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domingo, 21 de setembro de 2008

INÍCIO DO ANO ESCOLAR: MAIS "CEM ANOS DE SOLIDÃO"

Amanhã inicia-se mais um ano escolar.
Acabei de ler um texto do Professor José Pacheco, autor que ando, há muito, a dedicar particular atenção. Aqui fica:
Deixei a última crónica suspensa nesta pergunta: porque não mudam as escolas? Não houve alvitres. Retomo a pergunta, porque, como disse o saudoso mestre João dos Santos, "se não sabe por que é que pergunta?" Tenho a "minha resposta", não "a resposta". Melhor dizendo, tenho uma parte da resposta. Explicarei. Evoco palavras do meu amigo Carlos: Numa manhã ensolarada de Janeiro, uma professora, que, casualmente, entrou na sala, enquanto as crianças escreviam poemas ao som de sonatas para violino, disse que aquela sala parecia um jardim. Fiquei feliz pelas crianças." Professores como o Carlos (são tantos os que conheço!) vão gravitando em torno do desastre. As suas palavras contrastam com as de outros professores, que me falam de sofrimento, de esforço não compensado, de desânimo que, não raras vezes, conduz à frustração. Não é fácil a vida nas escolas que temos. O professor está sozinho, na sua sala. Esse absurdo – um dos absurdos que sustentam a tradicional e hegemónica organização das escolas – reforça um mortal sentimento de auto-suficiência, expõe professores a situações de constrangimento e, por vezes, de violência expressa. Sei de professores que salvaram, in extremis, colegas em risco de serem agredidas dentro das suas salas. Sei de professores que foram ameaçados, humilhados, sovados. Se isto se deve a uma organização das escolas pautada pelo isolamento e pouco propícia ao exercício da solidariedade, não é menos certo que não cabe às escolas toda a responsabilidade. Não pretendo afagar o ego dos professores, que nunca é intenção minha agradar a quem quer que seja. Quero, tão só, dizer que escolas povoadas de solidão são objectos frágeis, ornados de contradições, que não digerem a massificação, e se degradam por efeito da crise que afecta outras instituições. Quando, já há muitos anos, um inspector me ordenou que voltasse a trabalhar sozinho (na "sua" sala, com os "seus" alunos como a lei estabelece), respondi-lhe, fundamentando, que a nossa profissão não poderia continuar a ser uma profissão solitária, mas solidária. E lá se foi o inspector, sem lograr impor a lei. Não se pense que são bravatas. Isto acontecia, há já muitos anos, numa escola deste país, sujeita às mesmas leis que as restantes escolas. Já então, eu nutria uma profunda ternura pelos inspectores que nos visitavam. Diferentes dos inspectores de hoje, também eram boas pessoas, mas nada sabiam de pedagogia. Explicávamos os nossos pontos de vista e eles entendiam. Debatiam-se entre o estabelecido pela lei e a evidência (prática e teórica), e acabavam por reconhecer a pertinência das nossas atitudes, porque o que lhes faltava em conhecimento sobrava-lhes em bom senso. Senti necessidade de referir esta memória, para dizer aos "legalistas" – àqueles que afirmam que as leis vigentes não permitem mudar as escolas – que isso não é verdade. As cifras do insucesso escolar, recentemente reveladas pelo ministério, são assustadoras. Nada nos dizem sobre o insucesso pessoal e social. Mas adivinha-se… A solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos. É causa de infelicidade e efeito da racionalidade que subjaz ao tradicional modelo de organização das escolas. E, quando a essa solidão juntamos a das famílias, apercebemo-nos da dimensão da tragédia. Como diria um professor meu amigo, as escolas não fazem milagres!... Para ilustrar os caminhos que levam à solidão, deslocarei o problema das escolas para famílias submersas no silêncio, na incomunicabilidade e indiferença. Farei o justo contraponto com famílias onde, efectivamente, se educa. Quando a mãe disse à Bia para arrumar os brinquedos, a pequena respondeu: tenho soninho. Com amorosa autoridade, a mãe olhou a Bia. A Bia arrumou. O Nelinho espalhou os seus brinquedos pela sala. Acabada a brincadeira, sentou-se, a ver televisão. O pai do Nelinho ordenou-lhe que arrumasse os brinquedos. Logo a mãe do Nelinho atalhou: Deixa lá! Não vês que o menino está com sono? Coitadinho! O pai ainda insistiu, com pouca convicção na voz: Vá lá, Nelinho, apanha, pelo menos os brinquedos que estão à tua beira… Mas o Nelinho já tinha recolhido aos braços protectores da mamã. E foi o pai quem os apanhou. Quando os "coitadinhos com soninho" chegam à idade de ir à escola, comportam-se de acordo com um padrão umbiguista, sedimentado em anos de permissividade e solidão. Um marmanjo com idade para deixar de "ter soninho" divertia-se a empurrar colegas mais pequenos, até que um miúdo mais franzino se feriu. Uma professora interveio e repreendeu-o. O jovem replicou: Quem é você para me falar assim? Acto imediato, o aluno pegou no seu telemóvel e telefonou ao papá: Tenho aqui uma gaja a chatear-me! O papá foi em seu auxílio. E apresentou queixa contra a professora. As escolas pouco, ou mesmo nada, podem fazer perante estes desmandos. Alunos que crescem sozinhos vão juntar-se a professores sozinhos, num drama que se eterniza. Há mais de cem anos, muitos educadores denunciavam o carácter solitário da profissão de professor, apontavam neuroses daí resultantes, reivindicavam a reconfiguração das escolas. Teremos de aguardar mais cem anos?

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