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sexta-feira, 10 de julho de 2009

A INTERVENÇÃO DA DEPUTADA JÚLIA CARÉ

Como soe dizer-se, clarinho como água. O Dr. Jaime Gama adivinhou o que a Drª Júlia Caré iria dizer ao plenário da Assembleia da República naqueles dez minutos regimentais a que tem direito. Aqui fica o texto da sua excelente intervenção.
SENHOR PRESIDENTE
SENHORAS E SENHORES DEPUTADOS
Invocando a dupla celebração, ocorrida no passado dia 1 de Julho, dia da Região Autónoma da Madeira e da sua descoberta, quero em primeiro lugar, prestar homenagem aos cidadãos Madeirenses e Portosantenses, o povo “humilde, estóico e valente” cantado no Hino Oficial da Região, os que enfrentando as “vagas procelosas” da miséria, “se fizeram ao mar” e têm afirmado a gesta portuguesa e insular “por esse mundo além”.
Quero aqui render-me aos primeiros povoadores. Partindo dos confins ocidentais da Europa, dali de onde “a terra acaba e o mar começa”, rumo ao desconhecido, eles aportaram à primeira terra descoberta, e, à custa de muitas vidas, sangue, suor e esforço humano conquistaram e domaram a orografia do terreno, “do vale à montanha e do mar à serra”, de degrau em degrau, à semelhança dos “passos de gigante” do Douro de Miguel Torga.
A História do povoamento da ilha simboliza-se no contraste entre a beleza extrema da paisagem e o processo doloroso da sua humanização. O agricultor madeirense, antes de o ser, foi cabouqueiro e arquitecto. Foi vítima da prepotência de certos senhorios, mártir e escravo da terra, de onde lhe advém uma certa atitude servil, moldada por séculos de colonia, um sistema agrário de regulação da propriedade rural, que se manteve na Madeira até ao 25 de Abril!
O romance de reivindicação social “A Canga” do escritor madeirense Horácio Bento de Gouveia, denuncia bem a problemática social e humana que subjaz a este regime de exploração da terra.
A colonia foi um dos quadros reguladores da sociedade, condicionou a vida da esmagadora maioria da população, marcada por profundas assimetrias. É natural que os seus efeitos ainda permaneçam no inconsciente colectivo. Talvez seja preciso falar mais da colonia, exorcizá-la.
Um quadro comum marcou durante séculos a vida madeirense em ciclos de monoculturas agrícolas para exportação, épocas de crise, fome, sublevação popular, emigração, morte. Em consequência, desde o século XVII, muitos foram forçados a fugir do arquipélago, em busca de sobrevivência, iniciando a epopeia da diáspora madeirense pelo mundo.
O desejo de autonomia, contra o centralismo do Governo em Lisboa surgiu sempre no corolário de graves crises sociais e económicas. A promulgação do Monopólio Cerealífero em Fevereiro de 1931, deu origem à Revolta da Farinha, a 4 de Abril, a primeira sublevação nacional contra a Ditadura. Tivesse tido o desejado apoio por parte de forças políticas da oposição de então no resto do país, bem como de solidariedade do exterior e talvez tivesse alterado o rumo da nossa História recente!
Salazar nunca perdoou aquela revolta, cobrando um punitivo imposto de guerra e impondo à Madeira outros dois monopólios: em 1934, o monopólio da cana sacarina à fábrica do Torreão, dominada pela família Hinton e em 1936 o monopólio do leite, através da Junta dos Lacticínios, dando origem à revolta do leite, ignorada pela imprensa nacional de então. Falta ainda verdade histórica ao contexto das revoltas dos anos 30 do século XX na Madeira, episódios da nossa História comum, de que falam os escritos de muitos intelectuais madeirenses.
A autonomia não aliena a qualidade de ser português, mas dá à região regionalizada foros de se governar por si mesma. Esta ideia de auto-governo remonta a antes do séc. XVIII, aprofunda-se com o liberalismo ao longo dos sécs. XIX e XX, balançando sempre entre o desejo de Autonomia Administrativa e Política. Teses que ganharam força política, após a Revolução do 25 de Abril, defendidas por todas as forças partidárias da esquerda à direita, concretizadas com a conquista da democracia.
Beneficiando de apropriadas condições políticas, económicas e financeiras nas últimas décadas, a Madeira tem sido objecto de notório desenvolvimento visível nas muitas estradas, escolas, centros de saúde, complexos culturais, desportivos e turísticos, rede eléctrica, saneamento básico, rede de transportes, progresso infra-estrutural que tem libertado a Madeira do estado de subdesenvolvimento extremo a que esteve votada durante séculos.
Esta vaga de desenvolvimento não tem todavia nada de estranho; é uma consequência do processo de regionalização e da conquista da Autonomia. É o resultado da legitimidade democrática adquirida em processos eleitorais, de ter orçamento próprio, beneficiar de verbas comunitárias, transferências orçamentais, ter capacidade de endividamento. Em toda a sua história, nunca a Madeira dispôs de tantos recursos! Foi para isto que aconteceu Abril e se implantou a Democracia em Portugal!
Resta saber, é se esse desenvolvimento representa para todos os madeirenses, a tal medida desejada durante anos, que iria permitir potencializar as riquezas e recursos naturais desta terra. Ou se não se trata de mais um ciclo semelhante a outros caracterizados pelo império de monopólios, a contento do poder de certas classes sociais da ilha; foi assim com o açúcar, o vinho, o monopólio cerealífero, lacticínio.
Será que estamos perante o ciclo do monopólio do betão? É que às grandes obras do litoral madeirense, os enrocamentos, as promenades, a profusão de túneis, as marinas tecnicamente mal concebidas, sem condições de utilização (Lugar de Baixo – Ponta de Sol) há que adicionar o caos urbanístico, a construção anárquica, inquietantes manchas negativas na nossa bela paisagem e atentados ao equilíbrio natural, enfim tudo o que constitui a orgulhosa marca do modelo de desenvolvimento da chamada Madeira Nova.
A Madeira hoje, passados três décadas de governação autónoma, com maioria absoluta, sempre do mesmo partido, continua a caracterizar-se por uma sociedade marcadamente desigual. Em época de crise, apresenta uma indústria turística a perder mercado, desemprego galopante, na ordem dos 12%, alarmante pobreza, recessão económica e emigração como resposta, sendo quase sempre as mesmas classes sociais a terem que abandonar a ilha em busca de sobrevivência. Dir-se-ia que por um sortilégio qualquer de um Deus zangado, só há oportunidades na ilha para uns quantos, numa injusta dicotomia de filhos e deserdados da sorte. Como entender isto em democracia?
É incontornável um balanço a esta legislatura, no que à acção do governo na esfera de competência do Estado para as regiões diz respeito. Cabe aqui abrir um parêntesis sobre a Lei das Finanças Regionais, que consagra a legítima aspiração autonomista madeirense de gerir todas as receitas fiscais próprias em seu benefício, bem como as responsabilidades do Estado, no quadro constitucional vigente, designadamente os custos de insularidade.
O PIB, indicador utilizado para o cálculo das transferências orçamentais do Estado penalizou duplamente os Madeirenses: nas verbas comunitárias e na actual Lei de Finanças provocando um “corte” nas verbas disponibilizadas, argumento utilizado como “roubo” nas eleições regionais antecipadas de 2007.
Sabia-se ser este PIB (21%) não a realidade do bem-estar madeirense, mas a consequência da existência da praça financeira da Zona Franca off-shore, ou a sua feira de vaidades. Discute-se hoje a nível internacional a utilização deste indicador, como índice de riqueza de um país. Veja-se as directivas europeias sobre as ultraperiferias.
É censurável o seu uso no cálculo das verbas do Orçamento de Estado a que a Madeira tem direito, em prejuízo de todos os cidadãos madeirenses e portosantenses. Poder-se-ia ter usado outro indicador, o índice do poder de compra ou o produto nacional. Mas quem foram ou são os responsáveis por esta mistificação financeira? Quem é que andou a apregoar aos quatro ventos que a Madeira era a Região mais rica do país, usando este argumento embuste como bandeira para ganhar eleições e afirmar-se no poder?
O Centro Educativo da Madeira é um equipamento dependente do Ministério da Justiça, há demasiado tempo desejado, pensado, criado. Concluída a sua instalação física na freguesia do Santo da Serra, em Setembro de 2005, ainda não entrou em funcionamento, quatro anos decorridos.
O Governo Regional sempre se manteve à margem desta questão, recusando propostas de tutela conjunta que permitissem o arranque desta importante infra-estrutura, da responsabilidade do Estado, na recuperação e reintegração social de jovens delinquentes. Não houve acordo entre as autoridades regionais e nacionais e o equipamento referido, concluído, faltando apenas a componente técnica humana, está a degradar-se, enquanto os jovens delinquentes oriundos da Região continuam a ser enviados pelos tribunais para Centros Educativos do Continente, com todos os inconvenientes sociais.
A liberalização do transporte aéreo, reivindicada pelas autoridades regionais como um indispensável factor de competitividade para a indústria turística da Região, apresenta novos condicionalismos, não acautelados previamente, para os cidadãos da Madeira e Porto Santo: a questão das épocas altas, o estatuto de residente, o pagamento de penalizações, arbitrariamente impostas pela transportadora, em caso de alteração do bilhete emitido e ainda o não reembolso do bilhete quando há cancelamento da viagem. Qualquer coisa que parece chocar com os direitos do consumidor.
Toda esta questão afecta de uma maneira muito especial os estudantes universitários, da Madeira e não só. Desapareceu a anterior tarifa de estudante e a situação difere, consoante a viagem se realiza entre a Madeira e Lisboa, ou o Porto, havendo famílias a terem de pagar viagens dos filhos sempre acima dos 300 euros. É isto “low cost”?
SENHOR PRESIDENTE,
SENHORAS E SENHORES DEPUTADOS:
A situação actual da Madeira é – para o bem e para o mal – o resultado da governação de trinta anos de Autonomia, pelo mesmo partido, sempre com maioria absoluta. Mais do que a disputa financeira entre a Madeira e o Continente, mais do que a reivindicação de infinitas revisões constitucionais, exerça-se as competências consagradas no Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira, à semelhança dos Açores. Já não cola o esbracejar contra “os colonialistas de Lisboa”; os Madeirenses sabem que eles (se ainda existem) estão a mais de 900Km de distância. Têm todavia no seu inconsciente colectivo as marcas de um outro colonialismo de séculos, próximo, humilhante, o dos senhorios, do qual precisam libertar-se para, então sim, usufruírem de uma verdadeira Autonomia.
Deputada
Maria Júlia Gomes Henriques Caré

2 comentários:

Vilhão Lembrador disse...

Quanto o navio afunda, logo aparecem os ratos em fuga. Com discursos que são, nitidamente, preparatórios para a sua (nova)vidinha que se segue, a partir de Setembro, junto a quem prejudicou, ao longo dos anos 2005 a 2007, levantando o braço e validando tantas normas e leis contra os professores e seus conterrâneos...
Mesmo que, dessa forma, engolisse alguns sapos. Tudo o que se passou recentemente é só branqueamento do passado na fuga da rataria...

André Escórcio disse...

Obrigado pelo seu comentário.
Não tenho procuração nem sou advogado de defesa da Drª Júlia Caré. Tenho no entanto que lhe dizer que me parece mal informado sobre, em matéria de política educativa, as posições da Deputada em S. Bento. Já aqui publiquei textos referentes às declarações de voto deixadas no diário das sessões. Declarações que tornam bem claras as suas posições desalinhadas com o Partido Socialista e em defesa de causas em que ela acredita. Nem sempre, é verdade, chegaram cá fora ao conhecimento de todos. E houve tqmbém quem disso se aproveitasse para "bater" sem fundamento.
Ademais, é muito difícil, certamente reconhecerá, uma voz se impôr num hemiciclo e num grupo que sustenta o governo. Seja em que parlamento for.
Olhe, eu, por aqui, estou farto de apresentar projectos mas são todos chumbados! O que fazer?