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segunda-feira, 30 de maio de 2011

MONSTROS QUE FAZEM PARTE DO NOSSO QUOTIDIANO


"Para mim, a sociedade deve centrar-se nas pessoas e são os direitos dos povos que orientam o mundo. Ora, não é assim que hoje acontece. As pessoas são designadas e tratadas como “recursos” (humanos, claro), mercadorias substituíveis a qualquer momento. Criaram-se novos deuses: a Economia, o Mercado, a Eficácia, a Avaliação de tudo e o tempo todo e sempre com letra grande. Só as pessoas continuam com letra pequena".

Ontem fiz aqui referência a uma entrevista com a Professora Doutora Ana Benavente, ex-Secretária de Estado da Educação. Trata-se de uma reflexão de extrema importância. Aos leitores que desejem ler toda a entrevista, poderão fazê-lo, através do Google: "Revista Lusófona de Educação", nº 16, 2010. Deixo aqui uma primeira parte que nos permite reflectir profundamente.
"Vou tentar sistematizar os pontos mais positivos e os mais negativos dos últimos anos, em que se misturam características nacionais e as dependências internacionais.
Em termos nacionais temos menos pobreza, temos. Crescemos e melhorámos de vida. O “povo” organizou-se como sujeito interveniente, nomeadamente através dos sindicatos e já não se cala frente ao poder absoluto de quem quer que seja. Mas perdeu poder, delegado em partidos cada vez mais parecidos (refiro-me ao Partido Socialista e ao Partido Social-Democrata, que alternam no governo há muitos anos). O fosso entre o mundo rural e urbano continua enorme. A televisão fez a sua entrada num país pouco escolarizado e com baixos níveis de literacia. O consumo veio calar solidariedades e lutas por mais justiça social. O Estado português, embora modernizado e com alguns serviços mais eficazes, guardou os seus piores aspectos de estado abusador e sem respeito pelos cidadãos. A cidadania é de longa construção, eu sei, na sua globalidade, mas sobretudo nas suas dimensões política e social, na participação e na responsabilidade cidadãs, mas entre nós está a ser muito lenta e de progressão não linear.
As fronteiras abriram-se e a emigração já não se faz “a salto”, mas sim com passaporte na mão (é hoje um direito de todos mas antes de Abril só era concedido a alguns). Para além de país de emigrantes, somos também um país de imigrantes. Convivemos bem com eles, mas basta um momento mais agudo de crise económica para os “bodes expiatórios” voltarem a estar na berlinda.
Estradas, muitas estradas, atravessam hoje o país, com uma frota automóvel idêntica à dos outros países europeus. Mas o caminho-de-ferro ficou para trás e pouco nos preocupámos com ambiente, sustentabilidade e essas coisas de esquerdistas (agora, os senhores do mundo já descobriram que a questão é séria).
Aumentou fortemente a escolarização e foram feitas diversas tentativas para democratizar a escola, transformando os seus conteúdos e as suas práticas para que todos pudessem apropriar-se dos saberes que apenas servem alguns – as elites, neste caso. Mas as margens de liberdade são estreitas e sempre contrariadas pelas tendências “pesadas” que nos vêm das organizações internacionais – OCDE’s e afins e que revelam sinais preocupantes de fazer da educação mais um bem de mercado (Mercado, um dos novos “deuses”, abstractos e de que todos fazemos parte, afinal).
Um breve parêntesis para referir que, de qualquer forma, e teremos certamente ocasião de voltar a este assunto, as práticas e as políticas precursoras, pioneiras, inovadoras têm o seu pleno lugar na vida das sociedades, ainda que sejam muitas vezes aparentemente negadas e contrariadas nos tempos que se lhes seguem.
Apesar disso, hoje os jovens portugueses viajam, estudam noutras escolas, vivem num mundo aberto e cheio de desafios, o que é excelente, mas também cheio de inseguranças, a resvalar para a agora chamada “esquerda moderna”, que significa perda de direitos e menor justiça social.
Se a entrada na União Europeia foi muito positiva, acabando de vez com o “orgulhosamente sós”, máxima de que o velho ditador tanto gostava, de lá vieram muitos fundos, mas com eles vieram também os modelos de desenvolvimento centrados nos mercados sem controlo, novas burocracias e imposições que nos esmagam.
Esbateram-se as diferenças entre a “esquerda” e a “direita”, o que cria um terrível sentimento de impotência nas escolhas políticas das pessoas.
Do lado positivo, num balanço social forçosamente esquemático, refiro, pois, a escolarização, a abertura das fronteiras, o aumento dos níveis de vida, alguma mudança nos costumes, uma maior tolerância à diferença.
Mas se a globalização derrubou muros,  também criou muitos outros, é bom lembrar (e não me refiro apenas ao da Palestina e ao muro entre o México e os USA).
Ficámos reféns da especulação financeira e seriam necessários muitos mais Obamas para que a globalização perdesse a sua face mais cruel e destruidora.
Para mim, a sociedade deve centrar-se nas pessoas e são os direitos dos povos que orientam o mundo. Ora, não é assim que hoje acontece. As pessoas são designadas e tratadas como “recursos” (humanos, claro), mercadorias substituíveis a qualquer momento.
Criaram-se novos deuses: a Economia, o Mercado, a Eficácia, a Avaliação de tudo e o tempo todo e sempre com letra grande. Só as pessoas continuam com letra pequena.
O crescimento da urbanização trouxe mais liberdade individual mas trouxe também mais servidão e anonimato. Claro que não defendo que o tempo volte para trás (é a letra de um fado), de modo algum. Trata-se, sim, de analisar o nosso país e a sua inscrição no mundo com lucidez, sentido crítico e com coragem (refiro-me aqui ao livro de Cynthia Fleury – La fin du courage).
A evolução do estatuto da mulher, fenómeno que também partilhamos em Portugal, e que nos permite hoje uma prática plena de cidadania, ainda nos deixa marginais e dependentes nos domínios da decisão, nos órgãos de Estado, no Parlamento, nos órgãos empresariais. O que significa uma cidadania “vigiada” e uma cidadania “mutilada”, porque plena na Lei e parcial na prática.
É curioso que, pertencendo nós ao dito “primeiro mundo” (dentro do qual existe o “quarto mundo”, o dos pobres e excluídos, La fin du courage). A evolução do estatuto da mulher, fenómeno que também partilhamos em Portugal, e que nos permite hoje uma prática plena de cidadania, ainda nos deixa marginais e dependentes nos domínios da decisão, nos órgãos de Estado, no Parlamento, nos órgãos empresariais. O que significa uma cidadania “vigiada” e uma cidadania “mutilada”, porque plena na Lei e parcial na prática. É curioso que, pertencendo nós ao dito “primeiro mundo” (dentro do qual existe o “quarto mundo”, o dos pobres e excluídos, é bom não esquecer), confrontamo-nos com três problemas que tornam a felicidade mais improvável: a depressão – os europeus são, certamente com os americanos, os maiores consumidores de anti-depressivos, a obesidade que já atinge os mais novos e a velhice. Se o prolongamento da vida é um bem, fruto do desenvolvimento, o modo como tratamos os nossos velhos é terrível, apesar de algumas medidas positivas mas ainda insuficientes.
Aliás, embora não seja pessimista e me envolva sempre em causas de luta contra a indiferença, acho que há fortes tendências em Portugal para a emergência de uma sociedade institucionalizada. Os mais novos vivem em creches, jardins-de-infância e escolas (a tempo inteiro, muito extenso, se faz favor), os mais velhos vivem cada vez mais sós ou em lares e residências e os “adultos” em idade activa e produtiva (que barbaridade!), vivem em liberdade vigiada, prisioneiros do consumo, nas casas que podem pagar, nos lugares em que podem habitar, batendo-se pelo emprego, muitas vezes dominados pelo medo do desemprego. Ora o medo é, para mim, o pior dos ingredientes sociais.
Na sociedade portuguesa actual, o poder é do capital internacional, sem rosto e sem nome. Embora tenha rostos e nomes, evidentemente. Nada do que vivemos é alheio a pessoas bem concretas. Mas não sabemos quem são, individualmente. A Europa tornou- se num espaço nivelador e medíocre de modelos de sociedade sem futuro. Não será por acaso que, actualmente, os partidos de direita crescem em todas as eleições europeias, da Holanda à Suécia. Há um imenso mal-estar, falta de esperança e de participação activa das pessoas nas suas vidas. Sentem-se “vítimas” de algo que lhes escapa, têm medo.
Novos “monstros” fazem parte do nosso quotidiano. Agora é o défice externo que leva o Governo, no caso português um Governo de um Partido Socialista que se tornou mais liberal que os próprios liberais, a massacrar os mais pobres, funcionários públicos e pensionistas, sempre os mesmos, os que estão mais à mão. E os emigrantes que se cuidem. Na Itália de Berlusconi e na França de Sarkozy, a exclusão já começou, sem vergonha.
Se é verdade que há hoje mais democracias no mundo e que as ditaduras têm a vida mais difícil, também é verdade que as democracias, e a nossa em particular, atravessam tempos difíceis. Que as dinâmicas sociais são assim mesmo, com ciclos, não tenho dúvidas, mas considero que temos que repensar os parâmetros da própria democracia. É um processo constante de que não nos podemos alhear, o da democratização da democracia. E estamos, parece-me, a afastarmo-nos perigosamente desse caminho.
Claro que também há quem pense em como construir uma “Boa sociedade”, mas esses movimentos têm pouca expressão apesar da sua urgência.
Estou convicta de que essa construção é possível, impondo a prioridade do bem comum, o direito ao trabalho digno e bem remunerado, desenvolvendo os direitos de cidadania, diversos e multiculturais. A regulação dos mercados financeiros e políticas públicas que visem mais justiça social e melhor qualidade de vida para todos, parece-me serem corolários de uma “Boa sociedade”, tal como a entendo. Uma sociedade que domine a tecnologia e não seja sua escrava, que ponha a sociedade do conhecimento ao serviço das pessoas, que não confunda desenvolvimento com desregulação dos direitos individuais e colectivos. Sejam direitos de primeira, segunda ou de terceira geração (falo dos direitos económicos e sociais e dos “novos direitos” – ambiente, etc.). Em síntese, os últimos 20 anos da sociedade viram a emergência de algumas medidas sociais positivas – refiro o rendimento social de inserção, antes inexistente, o atendimento aos mais velhos, que se impôs como uma questão colectiva, a educação pré-escolar, na sua vertente de democratização da escolaridade (Educação para Todos) e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, acabando com a hipocrisia até então reinante. Salvo estas “luzes” no nosso passado recente,  sinto, sinto que fomos deslizando para as piores dimensões da globalização. Escravos de instituições económicas internacionais, passados pelas “rasoiras” uniformizadoras e medíocres dos mais fortes, aqui estamos, os pobres dos ricos, a oferecermo-nos como “recursos”, que afinal são mais baratos noutros lugares do mundo. Falta debate, falta reflexão partilhada, falta intervenção crítica e foi faltando cada vez mais nos últimos 20 anos. Estamos mais “despolitizados”, com dirigentes padronizados e muito aquém do nível que os tempos pedem. Valer-nos-ão de alguma coisa as novas redes sociais na net?
O que sei é que no dia em que respondo à sua difícil pergunta, estamos mergulhados na “crise”. Basta ler os jornais, ouvir as pessoas e ver a TV. Mas não se discute quem são os responsáveis pela crise; não se discute esta espécie de fatalismo económico em que caímos nem as formas de sair dele. E não seria assim tão difícil… Mas aqueles a quem esta desconstrução interessa, não têm mostrado força para o combate político e social.
Onde está a esperança e a força do povo? É urgente reconstrui-las. E para isso, é urgente desenvolver o pensamento político e a intervenção social fundamentada. Aprofundar a cidadania, em suma.
Construir um mundo melhor é possível, mas para isso urge pensar em novas formas de luta que ponham em causa o modelo económico e social em que vivemos".

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