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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

"MAIS RÁPIDO, MAIS FORTE, MAIS ALTO"


Os testes de laboratório realizados a Cristiano Ronaldo mostram a sua capacidade acima da média na impulsão, na velocidade e na força de remate. Dizem que, do ponto de vista atlético, o que mais distingue Cristiano Ronaldo é a potência. E concluem que o lema olímpico “citius, altius, fortius” “serve na perfeição para descrever o que, do ponto de vista atlético, mais destaca Cristiano Ronaldo dos outros futebolistas” (Público, 12/01/2015). 


O “citius, altius, fortius” idealizado pelo frade dominicano Henri Didon (1840-1900) tem as suas origens naquilo a que, em Inglaterra, em meados do século XIX, ficou conhecido como “cristianismo muscular”, um movimento que associava a cultura desportiva ao desenvolvimento espiritual da fé cristã: Vencer por Cristo e jogar por glória Dele. Este movimento, numa rutura com um passado que, por motivos religiosos, colocava entraves ao desenvolvimento das práticas desportivas, acabou por merecer a aderência tanto da Igreja Católica quanto da Protestante. Teve como principais promotores Charles Kingsley (1819-1875) que via na prática desportiva o contraponto do ensino livresco e Thomas Hughes (1822-1896) que, com o livro “Tom Brown`s School Days” uma espécie de mensageiro da escola pública de rugby, se opunha à promoção do “homem muscular”, quer dizer, de um desportista desprovido de espiritualidade.
Pierre de Coubertin foi fortemente influenciado não só pelo modelo inglês das escolas públicas, “amat victoria curam”, que quer dizer: “a vitória ama o esforço”, de Thomas Arnold (1795-1842), bem como pelo frade Didon um entusiasta da educação desportiva enquanto método energético de envangelização através dos valores educativos do esforço físico, da conquista pessoal e da persistência da vontade de vencer, quer dizer, da força moral que comandava a educação pelo desporto de Inglaterra de meados do século XIX. Por isso, Coubertin, por diversas vezes, na vasta obra que publicou, expressou, quer direta, quer indiretamente, a sua visão do sentido transcendental do desporto que considerava o instrumento pedagógico da religião laica que era o Olimpismo. 
Neste sentido, os Jogos Olímpicos renovados sustentavam-se em quatro princípios:
1. Serem uma religião, quer dizer, uma adesão a um ideal de vida superior que aspira ao aperfeiçoamento;
2. Representarem uma elite de origem totalmente igualitária que traduz a diferença dos méritos relativamente à igualdade de oportunidades;
3. Promoverem um momento de tréguas, pela celebração quadrienal da primavera humana;
4. Glorificarem a beleza pela celebração dos jogos das artes e do pensamento.
Por isso, como Coubertin afirmou no Almanaque Olímpico (1920) a vida é simples porque a luta é simples. Pelo que, um bom lutador:
1. Recua, mas jamais abandona a sua posição; 
2. Pode ceder, mas nunca renunciará;
3. Perante o impossível contorna-o e vai ainda mais longe; 
4. Se lhe falta o folego, repousa e espera uma nova oportunidade;
5. Se é posto fora de combate, encoraja os seus companheiros com a sua palavra e a sua presença;
6. Mesmo quando, à sua volta, tudo se desmorona não se deixa tomar pelo desespero.
Repare-se que a divisa olímpica foi, pela primeira vez, citada por Michel Bréal durante o primeiro Congresso Olímpico (1894) mas como se pode verificar no nº 1 do Boletim do Comité Internacional dos Jogos Olímpicos com uma ordem diferente das palavras: “citius, fortius, altius”. Como refere Conrado Durántez, de acordo com a ideologia do “cristianismo muscular”, a intensão era dar à divisa um sentido de elevação aos Céus.
Assim sendo, a divisa olímpica encerra um sentido de transcendência pelo que não pode ser simplisticamente, por motivos de mera oportunidade, reduzida à potência que um qualquer atleta demonstra nas circunstâncias de um teste laboratorial. 
Cristiano Ronaldo viu um vermelho direto no jogo entre o Real Madrid e o Athletic de Bilbao, na 22ª jornada da Liga espanhola por agressão a um adversário. Mas, depois do “calor da batalha”, não levou muito tempo a reconhecer o erro. E disse: “peço desculpa a todos e especialmente, ao Edimar pelo meu ato irrefletido no jogo de hoje” (A Bola.pt, 24-01-2015). Ora, para além de todos os dados do domínio biológico que se possam encontrar no atleta, é esta a grandeza humana que está contida no “citius, altius, fortius” pelo que, numa lógica cartesiana completamente fora do tempo e do conhecimento, é impróprio reduzir a máxima olímpica a um simples biologismo sem qualquer sentido humano. Por isso, na humildade de pedir desculpa, Ronaldo preservou a máxima do apóstolo Paulo que consubstancia a filosofia do “cristianismo muscular” que, um dia, no final da sua carreira de grande futebolista, há de também celebrar: “lutei num bom combate, terminei a corrida, mantive a fé”.
O humanismo em Coubertin, como se pode verificar na sua vasta obra, desenvolveu-se entre a tradição católica e a modernidade laica, numa permanente interrogação cultural. O problema é que, nos tempos que correm, uma das “doenças da alma” humana expressa-se na desvalorização do discurso da cultura relativamente ao imediatismo superficial e reducionista das imagens, com dramáticas consequências para o desenvolvimento do Movimento Olímpico (MO). Desde logo porque o desenvolvimento do MO se faz com cultura e não com capacidades físicas sem significado para além delas próprias.
Hoje, a expressão “citius, altius, fortius” tem um sentido em que:
• O “citius” não significa só velocidade atlética mas um espírito vivo e decidido perante os desafios da vida; 
• O “altius” não significa só um objetivo desportivo mais elevado mas a própria elevação do indivíduo aos mais nobres valores do homem e da vida; 
• O “fortius” não significa só ser-se mais corajoso no combate desportivo mas em todos os combates da vida. 
É nesta perspetiva e só nesta que o “citius, altius, fortius” pode caracterizar Cristiano Ronaldo enquanto ser humano e desportista. Tudo o mais, pouco ou nada tem a ver com divisa olímpica.
A sociedade tem de olhar para os seus atletas enquanto heróis do nosso tempo mas, sobretudo, enquanto seres humanos. Quer dizer, com respeito. É uma tarefa que cabe aos Comités Olímpicos Nacionais mas também a todos aqueles que, nas Escolas, nas Federações, nos Clubes e, entre outros, nas Universidades, de acordo com a Carta Olímpica, fazem parte do MO. Se assim não for, à revelia do credo subjacente ao “citius, altius, fortius”, os atletas, como refere Manuel Sérgio, correm o risco de serem reduzidos à condição de “bestas esplêndidas”. 
NOTA:
Um artigo publicado no Jornal A BOLA, assinado pelo Professor Doutor Gustavo Pires, que aqui transcrevo com a devida vénia.

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