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quinta-feira, 19 de julho de 2018

"E O BURRO SOU EU?" *





Por
Publicado na edição de hoje do DN-Madeira





Um Burro foi desafiado a ajudar um fidalgo. O fidalgo estava então no início de uma longa “travessia no deserto”, mas trazia em si a esperança num futuro melhor. Prometeu que haveria lugar para todos e que a tirania iria terminar. O Burro acreditou assim que o futuro seria mesmo melhor. O Burro continuou a sua vida, livre e sem donos, sempre disponível. Com o seu trabalho metódico, corajoso e persistente, com todos os seus esforços, foi ganhando o respeito, amizade e consideração do fidalgo. Com isso ganhou também a desconfiança e a inveja de alguns fidalgos menores. Ignorou esses sinais e continuou a fazer o melhor que podia e sabia. 

Conforme o Burro trabalhava e mostrava resultados, as terras recuperavam e mostravam a fertilidade perdida. O povo juntava-se cada vez mais ao sonho de terem todos um futuro melhor. Dos porcos, feios e maus, desses ninguém queria saber ou ouvir. Depois, com a maioria do povo, acabou-se com a tirania e deu-se a esperança a todos aqueles que nunca a tinham tido ou a tinham perdido. 
Foi um tempo de muito orgulho e satisfação para o Burro. O seu trabalho era agora reconhecido por todos e o seu amigo fidalgo era o novo Senhor. Iam ser todos livres e felizes, tal qual o Burro sempre tinha desejado para o seu povo. 
O tempo foi passando e o Burro foi ficando esquecido: os bodes velhos eram agora as novas companhias do fidalgo. O Burro não se sentiu atingido, esperou que o seu tempo chegasse e seguiu a sua vida. O fidalgo andava agora com os porcos, feios e maus de sempre, com novas cabras loucas e hienas de sorriso fácil, mas o Burro, na sua inocência e caridade cristã, entendia que todos os seres merecem pena e o direito à sua triste vida. O Burro continuava a ser o mesmo Burro de sempre. 
O Burro foi então convidado para visitar a sua obra. Em vez de ver o seu amigo fidalgo, foi recebido por um Porco, um daqueles feios e maus que agora era uma das novas figuras de peso. O Porco mostrou tudo, como se tivesse sido ele a ter feito o trabalho do Burro. 
O Porco tinha apenas mandado construir um poço que estava sempre seco. O Burro, ao passar por aquele buraco, coberto uma armadilha, acabou por cair desamparado. A queda foi forte, mas o Burro logo se recompôs. Mas o poço era demasiado profundo. 
Sozinho, o Burro gritou bem alto para que o fidalgo o ouvisse e o ajudasse. Mas o Porco tinha feito tudo sem o seu conhecimento, mas todos à volta do fidalgo estavam comprometidos, inclusive um Burro velho. 
Foi depois recrutado um trio para se prestar a tudo. A mandar, uma ovelha, daquelas que ocupam muito espaço por onde passam, mas pouco fazem. A grande ovelha só tinha de se fingir de morta perante os problemas, ficar calada, fingir-se importante e repetir as palavras do Porco. Arranjou-se uma serpente para agradar os porcos e ainda uma mula, um híbrido, algo que não é nem cavalo nem asno, para fazer o papel de Burro e transmitir uma imagem pública de normalidade. Todos dispostos a agradar e servir os porcos, feios e maus desta vida nojenta e pouco digna, sendo que a cabra de leite tinha a particularidade de ser muito sensível ao facto de ser tratada por todos apenas por “cobra”. 

Com o “circo” montado, o Porco teve a fantástica ideia para calar definitivamente o Burro e tapar o poço seco. Chamou-lhe o “Enterro do Burro”! 

O povo foi assistindo incrédulo, calado e com medo. Então o Burro não era amigo do fidalgo? Que tinha feito o Burro para ser enterrado vivo? “Algo muito grave”, diziam alguns ratos das adufas! Outros galos tontos inventavam as estórias mais baixas e falsas, culpando o Burro e elogiando o Porco. Os abutres acéfalos, desejosos de se alimentar da carcaça do Burro, esperavam salivantes. Os cães de fila escrevinhavam umas mentiradas contra o Burro, mas ninguém lia e lhes dava crédito. As cabras loucas e as hienas esquivas obedeciam ao Porco, repetindo anonimamente as mentiras, na esperança que assim passassem a verdades. 
Era tudo uma grande mentira: o Burro só tinha cometido o “delito” de ter opinião, ser livre e fazer o que lhe apetecia. Era por isso que tinha que ser eliminado, para que fosse silenciado e servisse de exemplo para todos os outros! 
O Burro desconhecia a sua real e infeliz situação. Estava só e abandonado, os seus amigos não apareciam, ninguém o procurava e o Porco tinha desaparecido. 
Até que tudo mudou! Do fundo do poço, começou a ouvir vozes conhecidas. O Burro pensou que iria ser salvo. Tentou manter a calma e esperou serenamente pela ajuda. O Burro sentiu então terra e pequenas pedras a cair em cima de si. Depois, aconteceu-lhe o mesmo mais vezes. Percebeu: não o iam salvar, mas antes enterrar vivo! 
O Burro sofreu e chorou, chorou de raiva em silêncio e sem lágrimas, para que não percebessem o seu sofrimento. Num momento fúria, o Burro bateu com as suas patas no chão! Fê-lo imaginando que estava a espezinhar os que o tentavam matar. Esse momento de fúria foi também um momento de lucidez: cada vez que batia com as patas e se abanava, a terra que estava em cima de si caía para o fundo do poço e ele conseguia elevar-se mais. 
O Burro descobrira a solução: a terra que jogavam era a mesma que o iria ajudar a ficar cada vez mais perto da superfície. Continuou em silêncio, no escuro, até que já conseguia saltar para fora do poço. Aí deu um magnífico salto por cima de todos aqueles que o queriam matar e correu. Correu muito, livre, não olhou para trás e seguiu com a sua vida. O Burro voltara a ser livre, independente e feliz.
* Luiz Felipe Scolari

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