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quarta-feira, 13 de março de 2019

A impunidade e a mediocridade


Por estatuadesal
Anselmo Crespo, 
in Diário de Notícias, 
12/03/2019

O Trio dos impunes

Metaforicamente, até podíamos classificá-los de inimputáveis. Mas isso seria, seguramente, injusto. Alguém que não pode ser responsabilizado por um facto punível, por se considerar que não tem as faculdades mentais necessárias para avaliar os atos que praticou, é muito diferente de alguém que se perpetua deliberadamente em atos lesivos, sem que disso se retirem as devidas consequências. A impunidade remete-nos para toda uma outra discussão, sobre um país onde continua a reinar a cultura do poder pelo poder, do "favor", do "amiguismo", dos lóbis e das corporações. Uma cultura de quem defende o indefensável, tantas vezes por interesses negros, escondidos lá no fundo do poço. Uma cultura de quem não pune por cobardia. Ou porque tem telhados de vidro. Eis alguns exemplos:

Tomás Correia. Depois de anos de suspeitas, o "sempre-em-pé" - ou o banqueiro das sete vidas, como lhe chamou o João Silvestre, do Expresso - presidente da Associação Mutualista Montepio foi condenado por irregularidades graves (entre 2009 e 2014) e multado pelo Banco de Portugal em 1,25 milhões de euros. Não ignoremos, nem por um segundo, as múltiplas ligações perigosas que Tomás Correia alimentou durante anos, nem tão-pouco as assembleias gerais polémicas, com resultados duvidosos, raramente escrutinados por quem quer que fosse. Foquemos nesta condenação do Banco de Portugal e perguntemos a nós próprios que consequência teve ela para o principal visado? Nenhuma. Tomás Correia, que governa a mutualista com mão de ferro há mais de dez anos, não só continua à frente da instituição como ainda está a ponderar uma recandidatura. Pior: num golpe de rins (há quem lhe chame palaciano), ainda conseguiu na 25.ª hora fazer aprovar em assembleia geral que toda e qualquer multa que lhe seja aplicada enquanto administrador seja paga... pelo banco Montepio. Como se as contas do banco não fossem já suficientemente problemáticas, Tomás Correia ainda sobrecarregou as de 2018 com mais 1,25 milhões de euros.
Sobre a idoneidade do condenado, ninguém parece ter competência para agir. Nem Banco de Portugal, nem Ministério da Segurança Social, nem tão-pouco o regulador dos seguros. É como se Tomás Correia beneficiasse de um estatuto especial, em que a lei, sobre ele, é omissa. Talvez porque Tomás Correia é de facto "especial."
Para dizer o que se segue, não é preciso especular. Os factos bastam. Luís Almeida, dado como um sucessor natural para Tomás Correia, já esteve ele próprio a ser investigado pelo Banco de Portugal. Depois, no conselho de administração da Associação Mutualista Montepio, figuram dois proeminentes socialistas: Carlos Morais Beato e Idália Serrão. O presidente da mesa da Assembleia Geral é o padre (próximo do PS) Vítor Melícias. E, se calhar, não é preciso continuar a dar mais exemplos.
Tomás Correia é hoje um dos expoentes máximos da impunidade reinante em Portugal. Preso pelos arames políticos e dos que têm ganho muito dinheiro à custa dele, o poder que lhe permite continuar de pé não lhe vem seguramente do cargo que ocupa, mas da informação que guarda e que poucos parecem interessados que seja colocada cá fora.

Carlos Costa. As suspeitas não se comparam às de Tomás Correia, mas a impunidade compara-se. Em quase nove anos no cargo, o homem a quem o país confiou a supervisão do setor financeiro conseguiu assinar a sentença de morte do BES para, num ato genial, fazer nascer dois bancos: "um mau e outro péssimo", nas palavras do próprio governo. Foi incapaz de antecipar o colapso do Banif, que nos custou a todos quase três mil milhões de euros. E, mais difícil ainda, permitiu que a jóia da coroa, a Caixa Geral de Depósitos, chegasse a uma situação de quase insolvência, com todas as consequências que ainda hoje estamos a pagar.
O cheque do mandato de Carlos Costa que nos foi passado, a nós contribuintes, continua em branco: à espera de que alguém lhe coloque um valor definitivo e que fiquemos todos a saber quanto nos custaram os dislates de uns e a cegueira - ou a incompetência - de outros.
E enquanto esse cheque não é preenchido, Carlos Costa lá continua sentado na cadeira de governador. Nomeado por um governo PS, reconduzido por um do PSD e do CDS, Carlos Costa está hoje completamente blindado pelo poder do Banco Central Europeu, indiferente à pressão política e pública, para que ponha a mão na consciência. Impune. Como se nenhuma consequência houvesse a retirar.

Neto de Moura. A primeira estupefação é termos de continuar a chamar-lhe juiz. Depois dos acórdãos que escreveu, depois das vítimas que deixou indefesas, depois da verborreia na comunicação social que só deixa ainda mais claro que Neto de Moura não tem condições para continuar a julgar. Seja o que for. Seja quem for.
A impunidade - alimentada pelos seus - foi total durante vários anos. Nunca ninguém tinha estranhado os acórdãos de Neto de Moura. Nenhuma fiscalização o tinha apanhado em falso. Nenhum superior encontrou qualquer motivo para o punir. Para o travar.
Perante as denúncias na comunicação social e a pressão pública, primeiro decidiu aplicar-se ao juiz uma advertência por escrito e agora transferi-lo do crime para o cível. O problema é que nenhuma destas duas "punições" resolve o essencial: continuamos a ter um juiz que julga e decide de acordo não apenas com a lei, mas com os seus preconceitos morais. E que, no final, espera "que nada de mal aconteça" às mulheres que deixou indefesas. A impunidade, no caso de Neto de Moura, manter-se-á enquanto ele for juiz.
Na justiça, na política, nas empresas, nos bancos, no país, a inconsequência perante os atos falhados, perante a incompetência, perante os atos criminosos arrasta-nos para uma sociedade mais medíocre. E a mediocridade apodrece-nos por dentro.

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