Adsense

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Tempos de desilusão


Cresce a desilusão. Silenciosa, mas anda por aí, por todo o lado. Tenho por adquirido que, hoje, ninguém tem mão nisto. A violência cresce, em alguns casos de forma animalesca; é o sistema de Saúde feito terra de ninguém, cheio de conflitos e divisões; é a Educação, completamente atolada em um pântano, disfarçada de palavras enfeitadas e muita propaganda, onde vale mais a burocracia que a aprendizagem; é essa coisa da aquacultura onde ninguém se entende e, no mínimo, explica; é a Economia que, dizem, cresce, mas, paradoxalmente, não é sensível nos bolsos do povo; são as casas do povo transformadas em casas de propaganda; é o Ambiente com mais imagem e paleio que acções; é a arrepiante queda do sector do Turismo; são os sinais graves de manifestações que cheiram a ausência de transparência, abafadas pelo poder do dinheiro; é a Segurança Social que deixa prescrever milhões; é o assalto à comunicação social, pintado de cores amenas, mas onde lá no fundo emerge o controlo absoluto para manter as consciências adormecidas; é a enervante Justiça, desesperante e degradante, até com juízes e procuradores que deixam um rasto de desconfiança, (um mero exemplo: será aceitável que um alegado crime de ofensas pessoais ande para ali a marinar há 27 anos?); é uma Assembleia Legislativa onde faltam referências maiores e que vive de uma arrepiante gritaria e de truques de retórica; é a pobreza que choca; é a falsa alegria de viver que esconde infelicidades sem fim; é a mentalidade retrógrada assente na ignorância altifalante e no deixa andar; é a falta de modos, de  rigor profissional, cumprimento de prazos, de responsabilidade e respeito pelos outros, desde as situações mais comezinhas àquelas de maior significado, e que nos deixam boquiabertos. Ninguém tem mão nisto!

Não se trata de saudosismo. Nada disso, por várias razões e mais uma: é que o meu tempo foi uma trampa. Nasci no final da última grande guerra. Tempos difíceis com um pavoroso Estado Novo de permeio. Muitos sobreviveram no quadro do pão que o diabo amassou! Apesar da vergonhosa guerra colonial que me impuseram, tive sorte e ganhei, com muito esforço, o meu espaço, mas isso, sem olhar para o passado, não me impede de ver o que por aí vai, na comparação entre os dias de ontem e os de hoje.
Ultrapassadas as dificuldades, estamos a passar por tempos de desconfiança absoluta, que nos leva, permitam-me, a "um olho no burro e outro no cigano"; tempos de mentira dita com um fácies de seriedade convincente; tempos de gente aureolada de exemplares senhores, alguns até banqueiros, que roubam à descarada; tempos de muitos comentadores de treta, vazios, superficiais, porque não fazem um esforço de estudo compaginado; tempos de inculturas e iliteracias diversas; tempos de atropelo à dignidade de quem trabalha e de desamor pelos outros; tempos de gente que se "vende aos bocados", como escreveu Sttau Monteiro, "(...) a prestações, dia a dia. Muitos, ao fim dum tempo, já nem sabem que estão a vender-se: atingem uma posição que os obriga a defender interesses contrários a tudo o que sempre sustentaram, e são comprados por essa posição (...)"; tempos de uma desenfreada corrupção, subtil ou descarada; tempos de subordinação a directórios vários, que coarctam a liberdade, a autonomia e ordenam segundo os seus interesses; tempos de habilidosos oportunistas que se instalam pela via partidária e progridem por ínvios caminhos, espezinhando e afastando quem, eventualmente, possa fazer sombra; tempos que, por mais que dela se fale, não desejam a mudança, porque ela própria não interessa aos poderes instituídos; tempos de reguladores que nada regulam; tempos de bastidores maquiavélicos e ardilosos da escala local à global, onde pensar é quase proibido; tempos de multiplicação de fortunas que desequilibram e provocam dramáticas assimetrias; tempos de esgotamento individual e de medo, consequência dos novos senhorios ditatoriais que impõem uma doce escravatura, bem vestida, que desgraçam seres humanos indefesos; tempos de gente que fabrica a guerra, porque é sensível ao cheiro do petróleo; gente que "mata" quem divulga ou prende quem denuncia escândalos. Justificam,  hipocritamente, porque estamos em um "Estado de Direito Democrático".
Ao correr do pensamento, onde tanto fica por acrescentar, sinto que a desilusão, a frustração e a perda de alegria crescem e ninguém tem mão nisto. O que fazer? Li que "a desilusão é a visita da verdade". É capaz de ser.
Ilustração: Google Imagens.

Sem comentários: