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sexta-feira, 24 de abril de 2020

A noite que matou o Estado Velho


Esta é a noite mais linda e duradoura. A noite da esperança. A noite onde acaba o martírio e se abre uma janela para o futuro. A noite que travou o obscurantismo traduzido na ignorância, no espezinhamento social, político e cultural, a longa noite ditatorial, da censura, das prisões arbitrárias, da tortura, do Tarrafal, do exílio e das deportações, da emigração forçada e de uma guerra colonial que matou 8.831 militares e deixou mais de 100.000 incapacitados e cerca de 140.000 afectados psicologicamente. A valores correntes, nos teatros de guerra, enterrámos 21,7 mil milhões de euros. Foram décadas de condenação à fome, à miséria e ao analfabetismo. Eu que nasci no ano que terminou a II Grande Guerra, que senti as suas consequências, eu que servi e vivi o drama nas matas da Guiné Bissau, olho lá para trás e questiono-me sobre o porquê da estupidez de não terem sabido ganhar as asas do desenvolvimento.   


Esta é, portanto, a noite libertadora, do rompimento das grilhetas, dos ferros que travavam ou nivelavam o pensamento, da falência da ideologia estatal, da repressão policial, das escutas telefónicas, da violação da correspondência, dos julgamentos sumários de opositores políticos, da denúncia, das perseguições e da colossal mentira assumida por autocratas e corporativistas, tudo, diziam, "A Bem da Nação". 

Esta foi a noite que matou o Estado Velho. A noite que matou a violência própria de um regime fascista. 

E há, ainda, para meu espanto, quem deseje branquear a memória, que sinta saudades de alguns crápulas, justificando, também oiço amiúde, que tínhamos os cofres cheios de ouro! Perante a treta de uma alegada "fortuna", lamento o facto de nunca ter sido feita uma séria e justa responsabilização judicial.
Mas estamos em 2020, decorridos que são 46 anos após a noite de todas as noites. A caminho de cinco décadas de um novo Portugal. No essencial, cumpriu-se Abril. Com muitos e preocupantes desvios, é certo, o País que éramos não é o País que hoje desfrutamos. Mudámos muito e para melhor. Em todos os sectores, áreas e domínios. E Portugal soube, finalmente, perceber a necessidade da existência de Regiões Autónomas. 
Mas faltou-nos rigor, disciplina, uma atitude atempada contra os factores geradores de corrupção, faltou-nos uma política social integradora, uma escola voltada para o futuro que não se esgotasse nos anos de escolaridade obrigatória, faltou-nos gerar uma outra mentalidade, disciplina e sentido de responsabilidade. Faltou-nos Justiça a todos os níveis. Faltou-nos capacidade para planear e para travar a onda de oportunistas. E mais, não fomos capazes de impedir que os medíocres atingissem posições de enorme responsabilidade na decisão política. Hoje, faltam-nos referências, pessoas de uma credibilidade superior em quem possamos acreditar. A nossa grande fragilidade, é minha convicção, está aí, porque  tendencialmente, afastámos os melhores.
Que os desígnios de Abril se cumpram e que a onda populista seja travada. Por isso, deixo aqui uma parte da versão integral do poema escrito por Manuel Alegre, em 1963, e incluído no livro Praça da Canção (1965). 

(...)

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

(...)

A foto, da minha autoria, expressa o meu 25 de Abril. Que cada um retire a leitura que melhor entender. Eu tenho a minha, naturalmente.

Ilustração
Foto de uma secção, com os efeitos de luz, de uma das 43 colunas interiores (todas diferentes) do Azkuna Zentroa (43.000 m2), em Bilbao, projectado pelo arquitecto francés Philippe Starck. Trata-se de um moderno centro de arte contemporânea, onde emerge a diversidade estilística de cada uma das colunas.

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