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sexta-feira, 31 de julho de 2020

LA VIE CRIA MURAL EM HONRA DOS OLÍMPICOS MADEIRENSES

Trata-se de uma louvável iniciativa gerada por uma parceria entre o JM e o Centro Comercial La Vie. Foi criado um mural onde, sucessivamente, serão lembradas e perpetuadas as figuras que atingiram o mais alto patamar da competição desportiva: os Jogos Olímpicos. Ontem foi a vez de Paulo Camacho, participante nos Jogos Olímpicos de Verão de 1988 (Seoul - Coreia do Sul), oficialmente denominados Jogos da XXIV Olimpíada. Aqui fica a síntese do seu brilhante percurso.


O Paulo foi o melhor nadador português da geração de 1970. Foi o único nadador madeirense que percorreu todas as etapas: campeão regional, campeão nacional, Campeonato da Europa de Juniores, Campeonato da Europa Absoluto, Campeonato do Mundo de piscina curta, Campeonato do Mundo de piscina de 50 mts. e Jogos Olímpicos. Foi nadador com o Estatuto de Atleta de Alta Competição Nacional com a categoria Europeia. Foi campeão e recordista regional absoluto em doze das catorze provas do programa olímpico. Campeão Nacional em várias distâncias, com destaque para os 100 mts. mariposa e 200 mts. livres. Conseguiu o título de nadador mais completo de Portugal na categoria de Juniores (1986 e 1987) e o título de nadador mais completo de Portugal ao nível absoluto (1989/90). Foi vencedor absoluto do Torneio Nacional de Fundo na prova dos 1500 metros (1987). Foi vencedor no Torneio Multinations, disputado em Antuérpia, em 1988, da prova de 100 mts. mariposa (57’47). Recordista Nacional de categoria e absoluto dos 100 mariposa (56’45). Participou no Campeonato da Europa de Juniores, no Campeonato da Europa Absoluto (Shefield – 1993). A marca de admissão (56’49) foi conseguida no Campeonato Nacional Absoluto de 1993. Participou no I Campeonato do Mundo de piscina curta (Palma de Maiorca – 1993/94) e no VII Campeonato do Mundo de piscina de dimensões olímpicas (Perth – Austrália – Janeiro de 1991). A marca de 56’78 nos 100 mariposa foi conseguida na piscina de Indianápolis, no Open dos Estados Unidos. Nos Jogos de Seoul realizou 57,62 na prova dos 100 mts. Mariposa. Em representação de Portugal, participou em muitos «meeting’s» na Europa, em África, na América do Norte e do Sul.
É este percurso de grande consistência que deve ser considerado em função das condições de prática de então que não eram minimamente satisfatórias.
Parabéns Paulo e parabéns à parceria La Vie / Jornal da Madeira.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Três mil milhões tarde demais


Por 
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
28/07/2020

O governo pediu uma intervenção da Procuradoria Geral da República para suspender a venda de ativos do Novo Banco até ser concluída a auditoria às suas contas (prometida para maio, depois adiada, e cuja nova protelação terá sido rejeitada). Essa auditoria é limitada a operações de 2000 até 2018 e não se sabe com que rigor tratará os créditos que este mesmo governo assegurava há semanas que estavam adequadamente vigiados, auditados e certificados ao longo dos anos, nada havendo a duvidar. De facto, ainda há poucas semanas o governo jurava que estava certo da correção das contas. Lembra-se da nota do primeiro-ministro para segurar por mais uns dias o ministro Mário Centeno? Aí se assegurava que “esta reunião ficaram ainda esclarecidas várias questões sobre a concretização do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução”. E, continuava o comunicado dizendo que o BCE, os auditores, o Banco de Portugal e tutti quanti asseveram a idoneidade das práticas da Lone Star no Novo Banco. Pois o problema é que as contas não estão esclarecidas e agora o governo, em desespero de causa, apela à justiça para bloquear provisoriamente os procedimentos do banco que geram aqueles pagamentos pelo Fundo de Resolução.

Há boas razões para passar tudo a pente fino, como por exemplo a revelação da venda de um pacote imobiliário, por 30% do seu valor, a um fundo a que esteve ligado o atual presidente do banco, pela jornalista Cristina Ferreira; ou de um colossal negócio de venda de imóveis em pechincha, com financiamento pelo próprio banco e prejuízos registados que são depois comunicados ao Fundo de Resolução para serem pagos pelo Estado, como provado pela reportagem de hoje do jornalista Paulo Pena, também no Público (e lá aparece o fantasma da Escom, um dos instrumentos que foi usado no passado pelo BES para todo o tipo de operações, dos submarinos a Angola). No total, já houve cerca de três mil milhões de euros de financiamentos públicos a este tipo de operações, que são outras tantas razões imediatas para se verificarem estas contas.

Ainda bem que o governo, dando o dito por não dito, pede agora uma intervenção musculada para travar o que tem sido o mecanismo de captação de financiamento público ao longo dos últimos anos: a transferência de valores para terceiros, registando prejuízos sempre surpreendentes e indetetados pela certificação das contas do ano anterior, de modo a exigir o pagamento público até se esgotar a maquia dos 3900 milhões prometidos no contrato e que, no dizer no ministro quando se assinaram os termos, nunca seria usada. Para qualquer observador atento, não há nisto nenhuma surpresa.

Digo há anos, e não descobri nada, que o método para extrair o dinheiro público é fazer vendas a prejuízo e depois exigir ao Fundo de Resolução o pagamento da conta. Assim, ganham os compradores, sempre bem seleccionados, e perde o Estado. O Novo Banco, com a Lone Star, é uma gigantesca lavandaria acarinhada por um contrato leonino e pelo silêncio das autoridades.

O mecanismo sempre foi óbvio. Vender imóveis na segunda década deste século com grande prejuízo, quando os seus preços disparam para o céu, só pode ser justificado de duas formas: ou a sua avaliação foi uma fraude (e isso tem responsáveis) ou a sua venda é feita por um valor fraudulento (e tem responsáveis). É aliás também por isso que muitas destas operações envolvem investidores anónimos, escondidos em sociedades offshore, o que devia ser um sinal de alerta para os auditores (quando não são eles as mesmas entidades que promovem a criação destas empresas de fachada).

Em todo o caso, esta tardia inflexão do governo tem duas leituras políticas, que não são ligeiras. A primeira é que isto é uma censura à administração do Fundo de Resolução e ao Banco de Portugal, que obviamente devia ter tomado a mesma atitude e desde os primeiros dias. Muito mal ficam os responsáveis por esse Fundo público, que deram como certas as vendas anteriores e a confiscação de dinheiros públicos que correspondeu a esses mágicos prejuízos. Mas há ainda uma segunda implicação: trata-se de uma censura ao anterior ministro das finanças, que não só parece ter fechado os olhos à espantosa desvalorização de ativos imobiliários, como fez guerra política para garantir os pagamentos, usando mesmo o subterfúgio de não informar o primeiro-ministro da realização do mais recente pagamento.

O final da história também é penoso e o governo está nela comprometido: é só na 25ª hora, e quando se está a esgotar o cofre que foi posto ao dispor da Lone Star, que o governo pede a suspensão momentânea das operações. Não é de adivinhar que tenha muito sucesso com esta iniciativa, até porque somente uma alegação substancial acerca de más práticas, de favorecimento de interesses velados ou de outras malfeitorias poderia inverter o rumo para o desastre que está escrito em letras garrafais no contrato da Lone Star. E nada indica que o governo tenha vontade de promover esse julgamento do regime bancário, que seria imperativo se houvesse um competente combate ao favorecimento e aos crimes de colarinho branco. E, ainda assim, resta um cenário ainda pior, que este pedido de intervenção da Procuradoria seja unicamente uma operação mediática para esquecer com a final da Taça.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Padre, deixe que a caravana passe!


Os espaços que deveriam constituir uma oportunidade para pensar e expressar uma opinião ou um mero desabafo, há muito que se tornaram preocupantes. Os comentários que algumas pessoas fazem na comunicação social e também nas designadas redes sociais (então aí...), tornaram-se para alguns uma possibilidade para vomitar leituras apressadas, ódios e sentimentos que nada têm a ver com os princípios que deveriam nortear a boa educação. Muitas vezes fico com a sensação que coexistem outros interesses, mormente os de natureza político-partidária.  


Desta vez a "vítima" foi o Senhor Padre José Luís Rodrigues. A propósito das recentes nomeações eclesiásticas operadas pelo Senhor Bispo D. Nuno Brás, uma cidadã resolveu tecer considerações desprimorosas e absolutamente ridículas, fazendo notar, entre outras, que o líder da Diocese só "não consegue mudar mercê da inflexibilidade dos mesmos como é o caso do padre de São Roque José Luís Rodrigues". Teve a resposta adequada.

Ora bem, conheço o Padre José Luís de quem sou amigo. Não é militante de um qualquer partido político e apenas prega, de forma militante, a Palavra de Cristo constante do Evangelho. Se a contextualização da Palavra incomoda, se falar da pobreza e dos dramas sociais gera uma espécie de urticária em certas peles sensíveis, mormente de natureza política, mesmo assim manda o bom-senso a guarda de respeito. Depois, democraticamente, há formas de manifestar uma opinião distintiva sem ferir as pessoas e as instituições. Utilizar os espaços de participação para apenas expandir angústias, neste caso, talvez melhor fosse a procura de um psicólogo no sentido da busca das razões que conduzem à agressividade!

Achei interessante o que li no blogue "Vittude": "(...) as redes sociais constituem ferramentas artificiais de bem-estar. Um local de projecção dos nossos sentimentos, angústias, desejos, desabafos e a camuflagem de uma realidade não tão boa quanto a que aparenta ser. Portanto, não desabafe nas redes sociais! Local muitas vezes carregado de um vazio emocional, uma crise existencial colectiva que fomenta uma busca incessante de notoriedade, de atenção e de apego".

É isso. Há pessoas que perdem a serenidade por pouco. Raramente analisam, mas escrevem como se fossem portadoras de um vasto conhecimento, após um esforço de estudo sobre uma dada matéria. Atiram, magoam, desvirtuam a realidade e "fazem a folha" com efeitos multiplicadores junto dos outros. 

Padre José Luís Rodrigues, essa cidadã de cortesia zero, se é cristã, mais cedo que tarde pedir-lhe-á perdão pela sua atitude. Ao meu distinto Amigo, Homem de uma coluna que não é de plasticina, Um Cristão a sério, ser humano feliz com o que faz, peço que se mantenha firme e deixe que a caravana passe. Um abraço solidário.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 26 de julho de 2020

O DOM DE OUVIR


Por
Liliana Rodrigues
Professora Universitária/Investigadora
26/07/2020


Quando começamos a escrever sobre a memória e/ ou a infância isso pode, eventualmente, ser um sinal de perplexidade ou de desprendimento pelo tempo.

Refiro-me à memória da gentileza e do respeito pela diferença e, em alguns casos, o espanto pelo absurdo (tão típico das crianças). Há, também, a memória juvenil da esperança. Das lutas e acesas discussões sobre o estado da região, da liberdade e da democracia. A ideia de que a Madeira deveria ser um lugar comum e exemplar onde, particularmente no espaço político, a decisão fosse fundamentada na capacidade de ouvir o Outro. Somos tão poucos que este movimento de dizer e ouvir deveria ser um processo simples e livre, sem apedrejamentos como castigo. Humilhar, publicamente ou não, alguém revela o pior que uma pessoa tem.

Parece que, com a idade, anestesiamos o dom de ouvir. Lembro-me, ainda criança, de passar horas a ouvir as explicações de tudo e de todos. Eles, pacientemente, ouviam as minhas ideias e os meus sonhos e, com alguma regularidade, as argumentações, por muito estapafúrdias que se perfilhassem. Mas ouviam. Creio que uma ou outra vez, à custa da extravagância do sonho, ouvi risinhos. O dia, por exemplo, em que ninguém levou muito a sério a minha obra de irrigação através da simplicidade da acção de furar a mangueira. Engenharia pura e infalível.

Intencional ou não, lenta e gradualmente perdemos a capacidade de ouvir, de medir e de respeitar a voz do Outro e isso já nos levou a todos a cometer erros. Eu e a aqueles que estão (e os que não estão) a ler estas palavras. Falamos muito. Demais. Tendemos a ouvir o eco da nossa própria voz. Ninguém é imune a más decisões, a pensamentos turvos ou a reacções mal reflectidas, às vezes por défice de aconselhamento, outras vezes por excesso de envenenamento que não é, forçosamente, exterior. A soberba mata por dentro. É como a cobra que morde a sua própria língua. Temos ainda o desacerto do momento ou imaturidade perante a vida e os actores que a compõem a influenciarem as decisões e a busca das razões. Aspirámos a uma verdade que é sempre a nossa. Esta teimosia estrutural de pensamento tem os seus custos e acabamos por compreender a irrelevância da parte, quando o que está em jogo é muito maior do que nós, isto é, o todo.

A forma e a substância do discurso têm dois sentidos: o que diz e o que ouve. O desafio está no ouvir. A surdez será sempre a forma mais pobre de estar perante a palavra e, por muito que a decepção tenha assolado o espírito, não podemos permitir que um se dirija a Outro como se ele fosse um ser menor, inclusive e em especial na política. Os eleitos nunca são menores. São a expressão da vontade de um povo que ouviu argumentos e optou por um desses compromissos políticos. Um eleito referir-se a Outro eleito como alguém menor, fraco, inoperante e vazio, como ouvi esta semana, é denegrir não somente o eleito, mas também o eleitor e a democracia. Senhor Presidente, não perca o dom de ouvir e o privilégio de ser ouvido. Oiça Sófocles: “Não guardes, pois, dentro de ti qualquer pensamento reservado, nem julgues que é justo aquilo e só aquilo que dizes”. 

sábado, 25 de julho de 2020

Assembleia Legislativa no precipício


Sinto um enorme desencanto pela Assembleia Legislativa da Madeira. Desde há muitos anos, sucessivamente, tem vindo a registar-se uma significativa quebra de qualidade. Por ali passaram figuras de proa, de todos os quadrantes políticos, que me encantavam pelos traços de oratória, pelo conhecimento, pela ironia, pela sua adultez política e pela capacidade discursiva que deixavam algo original e até, em alguns casos, memorável. Mas isso foi-se perdendo, esboroou-se, por razões múltiplas. Talvez tivesse sido essa a intenção para que um outro poder, o executivo, pudesse "brilhar". Certo é que, de legislatura em legislatura piora o registo do seu funcionamento. Porque há uma política que fez escola!


Mesmo que visivelmente errado aquilo entrou em um modo de desempenho rotineiro, previsível, bastas vezes ofensivo, com uma postura discursiva onde emergem vícios nas abordagens, estudo insuficiente dos vários dossiers, por vezes em um blá, blá histérico, arruaceiro e maldoso. Ainda anteontem escutei, pela rádio, um deputado da primeira fila que me meteu dó. O problema é que, depois, essa postura é transferida para os debates na televisão e na rádio, dando ao povo uma imagem desprestigiante do primeiro órgão de governo próprio.

Mas há, no meio daquilo, gente que sabe estar, que não sendo eloquente, traz consigo o conhecimento, a serenidade comportamental, uma paciência superior à da personagem bíblica de Jó. Há ali pessoas de reconhecido mérito social e profissional, que não precisam daquilo para nada, mas porque perseguem convicções e entendem exercer o salutar contraditório político. Gente que não se deixa ir na gritaria e nos abundantes tiques rasteiros. Gente que, apesar da sua postura, é claramente abafada pela estridente estratégia que esquece o discurso de ontem e aprova o interesse de hoje. Também porque há quem mude de discurso como de camisa!

Em alguns momentos, o que mais me impressiona é o tom de voz de algumas "personalidades", por vezes o ar furioso que apresentam ou o semblante que transmite uma ridícula superioridade (!) na tentativa de amesquinhar quem tem uma posição distintiva. É evidente que um parlamento não é propriamente uma formação de meninos de coro. O calor do debate pode fazer ultrapassar a linha vermelha. Mas há muita gente desafinada com os princípios e valores que deveriam nortear o debate das ideias sem descer ao patamar da indecência.

Seria bom para a vivência democrática uma tomada de consciência dos actos degradantes. Todos ganhariam. Ganhariam os madeirenses e portosantenses e, creio, ajudaria a não afastar os eleitores dos sufrágios. 

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Que mil troikas floresçam


Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
21/07/2020

Enquanto o Conselho destruía qualquer ideia de solidariedade entre Estados, voltando a sublinhar a distância entre as ilusões que muitos têm sobre a União e a realidade, um outro dossier está prestes a ser fechado: o quadro financeiro plurianual, que vigorará até 2027. Sem reforço orçamental nem redistribuição de encargos, Portugal terá, em plena crise, um corte nos fundos de coesão. Porque os custos da perda de receita pela saída do Reino Unido não foram distribuídos com critérios de coesão. Coesão é um palavrão do passado. A União, hoje, é mais mata-mata. Mas houve reforços de verbas: no controlo de fronteiras, para agradar à extrema-direita, e na defesa, dinheiro que vai direitinho para a indústria alemã e francesa.


A coisa não fica por aqui. Ao desconto (rebates) que 2,9 mil milhões de euros que quatro países do norte – chamar-lhes “frugais” é comprar a sua própria narrativa, baseada numa mentira descarada – já tinham conseguido em relação ao que deveriam ter de pagar, conquistaram, no Conselho Europeu, mais mil milhões. Foi um dia em cheio.

Mas o episódio mais lamentável foi mesmo a conclusão da negociação do Fundo de Recuperação. Os autodenominados “frugais” conseguiram impor a sua vontade e ela será um importante prego (mais um) no caixão que está a ser velado em Bruxelas. Bem sei que há negociações e depois chega-se a um meio termo. Mas não se chegou a meio termo nenhum. Chegou-se a meio termo nos valores, não no essencial.

A Holanda e aliados conseguiram uma vitória impensável: não só haverá condicionalismos na distribuição de dinheiro que pretendia responder a uma emergência, como a sua imposição ficará está nas mãos de uma minoria. O “supertravão” às transferências poderá ser acionado por qualquer país que ache que outro, na sua ótica (e nos seus interesses, obviamente), não cumpre os objetivos E só uma maioria qualificada (não chega uma maioria simples) pode aprovar essas transferências. O que quer dizer que, à boleia da pandemia, uma minoria de Estados – e não a Comissão – ganhou o poder formal de determinar políticas de cada Estado. Está preparado o caldo para o caos e a desagregação. A Holanda venceu em toda a linha, como nunca imaginou que venceria. Agora sim, gostava que António Costa tivesse falado grosso.

Isto é muito pior do que em 2011. Em vez da troika, em vez do FMI, da Comissão Europeia ou do BCE, que por pior que sejam são estruturas transnacionais, cada país ganhou uma arma de chantagem, que só será eficaz contra os que estão em situação mais difícil, não podem dispensar estes apoios e não têm peso político no conselho. É o último ato de um processo de subalternização quase colonial de uns Estados em relação a outros. No meio de uma pandemia. Nem no meu pior pessimismo alguma vez pensei que a UE se pudesse tornar em coisa tão grotesca.

Quem defenda isto em Portugal escusa de vir, noutros momentos, falar do glorioso passado do país. É na defesa do presente e do futuro que se mede o patriotismo. Por ignorância (os sinais de impreparação têm sido demasiado frequentes) ou má-fé, Rui Rio veio defender, ainda na fase negocial, a posição dos ditos “frugais”. Ao que parece, acha bem que sejam os outros a decidir o que se faz em Portugal. Como não governa nem faz oposição, esperam que países estrangeiros façam as duas coisas por si. Se outros, concentrados nos seus próprios interesses, nos impuserem regras que nos sejam prejudiciais, lá virá responsabilizar o governo pela situação em que estamos. A pergunta que sobra: se é assim que querem, faz sentido continuarem a defender que Portugal seja um país independente?

A ideia de que as regras que serão impostas têm como objetivo o bom uso do dinheiro e não os interesses específicos de quem as impõe é de tal forma infantil que qualquer pessoa que a defenda não cumpre os mínimos de maturidade política para governar um Estado. A Holanda é tão ciosa do bom uso do dinheiro dos outros países que até fica com os impostos deles para não os estourarem com mulheres e vinho.

Pôr uns Estados a decidir onde outros investem é péssima ideia. Porque concorrendo uns Estados com outros que tiver essa possibilidade irá tentar travar investimentos de competidores que ponham em risco a sua supremacia. A expansão de um porto que concorra com o de Roterdão, a recuperação de um setor que compita com o de um dos países com força política. É por isso que estas coisas mais específicas costumam ser decididas na Comissão. Ou não aprenderam nada com a história da abertura das fronteiras?

Para os inocentes que não perceberam que o cumprimento das regras do Estado de Direito apareceram nas negociações para mais do que a barganha negocial, deviam perguntar-se porque mostram esta preocupação líderes políticos que nem se deram ao trabalho de expulsar Órban do PPE. Costa não o devia ter dito, porque Órban não merece defesa de ninguém, mas é evidente que não é na transferência de fundos que isto se resolve. É na expulsão da Hungria da União Europeia. Pôr isto no debate teve como única função, para quem tem vivido muitíssimo bem com o regime húngaro nestes anos, arranjar mais um argumento para dar poder de chantagem a uma minoria.

O que foi acordado neste fim de semana foi pior do que não haver acordo e deveria ter sido bloqueado até novo Conselho. Como escreveu Martim Silva, a “bazuca foi um tiro no pé”. Foi mais um passo para a destruição do projeto europeu. Mas uma coisa ficou provada: quatro países podem impor a sua vontade à Alemanha e França. É preciso quererem muito. A Holanda, que é de longe o país que mais ganha com o mercado interno e o euro, construiu uma narrativa interna que já não permite que a opinião pública aceite qualquer tipo de solidariedade europeia. E conseguiu derrotar o eixo franco-alemão. Disse-me um grande e falecido amigo, já há uns bons anos: desta União, não voltaremos a ter boas notícias. O poder que derruba o mau é sempre pior. A isso dá-se o nome de decadência.

NOTA
A Estátua, que não costuma comentar os textos publicados, desta vez não resiste: levanta-se, bate palmas ao Daniel e assina por baixo! De facto, a UE vai de derrota em derrota até à derrocada final.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Bater em mortos


Por
Daniel Oliveira,
in Expresso

Em princípio, um colunista não se cita. Mas tem de ser. Em 2005, notícias publicadas no Expresso envolvendo o BES irritaram Ricardo Salgado, que mandou retirar a publicidade. Chegado há pouco tempo a este jornal, escrevi o que repeti vezes sem conta: “Nos jogos de poder, o Espírito Santo está sempre entre nós. Talvez todos fiquem finalmente a saber quem manda neste país.” Um mês depois chamava a atenção para a promiscuidade entre o novo ministro Manuel Pinho e o BES, seu anterior patrão. Salgado, o banqueiro intocável, foi tema recorrente das minhas crónicas (não estive sozinho, mas pouco acompanhado).


Em 2010, António Mexia dizia na página do “Compromisso Portugal” que os portugueses tinham de “assumir sacrifícios”. Escrevi: “Fez a sua vida profissional à boleia da política e do Estado e quer menos Estado. Faz-se pagar como os 200 que mais recebem nos EUA e exige sacrifí­cios. [...] São estes homens, transformados pela imprensa em oráculos da Nação, que nos dão lições de competitividade, meritocracia e estoicismo. Falam de cátedra. Mas não sabem do que falam.” Gostava de afrontar o poder de Mexia e Salgado quando um ainda andava de braço dado com o atual dono do “Observador” e outro ainda pagava campanhas a todo o arco do poder. Estavam longe de ter caído em desgraça.

Há uns dias, José Gomes Ferreira disse, na SIC, que Carlos Alexandre era criticado porque havia agências de comunicação e advogados de defesa a fazer o seu trabalho. O jornalista Luís Rosa, do “Observador”, acompanhou: porque criticam Carlos Alexandre e nunca Ivo Rosa? Como estou no lote dos que criticaram as medidas de coação contra Mexia e critico com frequência Carlos Alexandre, não vou assobiar para o lado. Começo por esclarecer que só falo com agências de comunicação para marcar entrevistas e que recebi um e-mail anódino de um advogado ligado ao processo da EDP, que não conheço, depois de ter escrito sobre o assunto. Ainda nem respondi. Não sou impressionável pela lisonja nem pressionável pela ameaça. Vantagens de ser um radical mal-encarado e com longo currículo de inimizades. As críticas que faço a Carlos Alexandre são ditadas pelo escrutínio a qualquer poder. Estou livre para o fazer porque, não investigando estes casos como Luís Rosa investiga, não criei relações de dependência com ninguém. Se investigasse, teria de gerir a relação com juiz, MP e advogados de defesa. Porque o jornalismo cruza fontes. Não depende apenas de uma, tomando as suas dores e atirando sobre os restantes.

Nada me liga a Carlos Alexandre ou Ivo Rosa. Nem os conheço. Tenho a minha opinião, vivo bem com a dos outros e gosto pouco de passar a cúmplice dos que sempre denunciei por não gostar do modus operandi de Carlos Alexandre. Não aceito essa chantagem.

Uso da mesma liberdade que usei com Mexia e Salgado quando o pecado era criticá-los. Mas presto mais atenção a quem tem poder do que a quem já o perdeu. E também gosto de afrontar o poder do novo intocável, Carlos Alexandre. Se resisto a superbanqueiros e supergestores, também resisto a superjuízes. Nunca fui dos corajosos que batem em mortos. 

Tão livre como Gomes Ferreira, repito que um juiz justiceiro não nos serve. Serve-nos um país onde a banca não manda em políticos, os monopólios não são privados e os processos não morrem em manchetes oferecidas por magistrados.

sábado, 18 de julho de 2020

Tudo bons rapazes


Por 
Pedro Filipe Soares, 
in Público, 
17/07/2020

Há pessoas com azar. É essa a única conclusão, segundo Rui Rio. Depois do Ministério Público considerar que a campanha presidencial de Cavaco Silva foi financiada pelo tal “saco azul” do Grupo Espírito Santo (GES), o atual líder do PSD diz que não acredita em tal coisa. Pouca sorte, deve ter sido.


As provas estão aí para uma análise imparcial. Um total de 253.360€ foram entregues por administradores do BES e do GES à campanha presidencial de Cavaco Silva. Cada donativo individual não ultrapassou o máximo permitido por lei e o valor total representou metade do que tinha sido orçamentado para a campanha. Os beneméritos receberam depois o dinheiro de volta através da ES Enterprises, uma entidade controlada pelo GES e que é considerado o tal “saco azul” do grupo. É este o esquema para contornar a lei e colocar uma empresa (o GES) a financiar uma campanha eleitoral.

Rui Rio acha impensável que Cavaco Silva tenha sido ilegalmente financiado. Já Cavaco Silva diz que estava acima dessas coisas. Explicou no seu livro Quinta-feira e outros dias que foram Eduardo Catroga e Ricardo Baião Horta quem se encarregou do financiamento da sua campanha. “Foi um apoio que muito valorizei, porque, pessoalmente, sempre tive uma forte aversão a pedir dinheiro para campanhas eleitorais. Nunca o fiz ao longo da minha vida política”, afirma. Que chatice ser conspurcado agora com estas coisas.

Que culpa teve Cavaco Silva de Ricardo Salgado o financiar? Logo a ele que não queria saber dessas coisas mundanas. Imagino como deve invejar os outros candidatos que não tiveram dinheiros ilícitos. A triste reputação que vai agora perseguir Cavaco Silva até traz lágrimas aos olhos.

Se Cavaco Silva soubesse nunca teria aceite aquele jantar em casa de Ricardo Salgado, em 2004. Esse jantar ao qual foi com a sua mulher, onde partilhou o momento com Marcelo Rebelo de Sousa e o então primeiro-ministro Durão Barroso, em que foi pressionado por Ricardo Salgado a candidatar-se às eleições presidenciais, foi o momento. Deve ter sido mesmo o tal momento do qual se diz que não há refeições grátis. Como deve ser infeliz ter-se a retidão de Cavaco Silva e uma vida tão madrasta que lhe prega estas partidas.

Sim, porque antigamente é que era bom. Antes da lei proibir que empresas financiassem partidos nada isto era incorreto, quanto mais ilegal. Ah, os bons velhos tempos em que o BES e o GES podiam financiar os partidos do regime sem esta publicidade negativa, sem este mal estar. Depois disso, tiveram de surgir os esquemas, porque os financiamentos eram mais difíceis de desaparecer. Mas, Cavaco Silva não sabia de nada. Rui Rio, que anda nisto há tantos anos, acredita nisso, piamente. Aliás, se ainda houvesse BES nada disto era um problema, a Terra giraria à volta do Sol normalmente.

Nem tudo era fácil antes da queda do BES, percebe-se. Como foi difícil ao CDS escapar do financiamento ilegal do caso Portucale, nem queiram saber. Ter um milhão de euros a entrar pelas contas de um partido adentro não é coisa fácil. Gerir tamanha generosidade tira anos de vida, de certeza.

Mesmo os esquemas fiscais criados para legalizar rendimentos não deixaram as coisas resolvidas. As amnistias fiscais (os Regime Especial de Regularização Tributária - RERT) foram boas para muito do dinheiro que estava escondido em offshore ou para normalizar fraudes fiscais, iremos ter a confirmação disso quando for provado que muitos dos pagamentos do “saco azul” do GES passaram por esta lavagem. Mas, nem tudo ficou resolvido. Veja-se agora a cruz que carrega Miguel Frasquilho, que tem uma declaração das finanças a dizer que está tudo em ordem, mas o nome nos escaparates com as provas de ter recebido do tal “saco azul”. Que vidas tão difíceis agora que estão manchadas pela sombra de Ricardo Salgado.

Sabe-se que Ricardo Salgado era o Dono Disto Tudo. Até parece que há provas de ele ter uma espécie de rede mafiosa, com contabilidades paralelas. Mas, a nossa elite é impoluta, limpa como água acabadinha de sair da nascente. Que chatice ter caído lá esta gota de óleo, conspurcou aquilo tudo.

Salve-nos a ironia, que quanto ao resto já fomos condenados e cumprimos pena. Só os culpados é que ainda andam à solta.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Falta mão-de-obra qualificada


Não é a primeira vez que tal me acontece. Em conversas com empresários, de uma forma recorrente, vem sempre a história, por um lado, da "falta de mão-de-obra", por outro, a necessidade de profissionais "qualificados" que dêem garantias mínimas. Tantas vezes isto me acontece que dou comigo a reflectir sobre aqueles a quem recorro para resolver pequenas situações de manutenção pelo desgaste próprio do tempo. Tenho dificuldade, confesso. E eu não sou um picuinhas que implique com miudezas.


Conheci um marceneiro/carpinteiro, infelizmente falecido, que dava prazer falar e combinar uma obra. O Mestre Emílio sabia de madeiras e do mais adequado para cada trabalho. Tudo era feito com perfeição. Um dia, ele já nos 80 anos e com o seu ajudante que andava pelos 70, a quem tratava pelo "rapaz", ouvi-o dizer: "oh rapaz, eu de uma cana vieira faço uma telefonia". Assim exprimia o seu conhecimento, criatividade e segurança no que fazia. Hoje, é-me difícil encontrar uma competência mínima. Outra. Tem pouco tempo, entrei em uma loja de plantas e questionei a empregada: "minha senhora, esta planta é mais de interior ou exterior?" Resposta célere: "dá para dentro e dá para fora". Fiquei na mesma. Apresentei-lhe outro vaso com outra espécie e a resposta veio rápida: "dá para dentro e dá para fora". Azar meu, pensei, pois eu queria só para dentro! Isto explica ou pode explicar a ausência de um conhecimento mínimo ao qual se junta a capacidade de saber fazer e de saber atender.

Regresso aos empresários que se queixam pela falta de mão-de-obra e competência. Há qualquer coisa aqui que não bate certo, desde a formação escolar e profissional ao interesse em trabalhar em estabilidade e sem defraudar as receitas públicas. Sobre a primeira, se a qualificação não é a melhor, pode-se concluir que, salvo alguns casos, o espaço da formação escolar e profissional merece uma séria e ponderada reflexão. Deixo isto de parte, fica para uma outra oportunidade, e situo-me, apenas, no caso dos que, pressuponho, querem um emprego mas não desejam trabalhar. E alguns empresários dizem-me exactamente isso, que não é apenas a incompetência que está em causa, mas também a ausência de controlo, pois o direito a um qualquer subsídio não deveria criar as condições de fuga ao trabalho regular, com direitos e deveres, concedendo espaço ao biscate não facturado. Um deles confidenciou-me que propôs, a um dado sujeito, a sua contratação. Respondeu-lhe: não estou interessado, porque assim a minha mulher perde o "rendimento social de inserção". Ora ela trabalha a dias e ele, está quieto, porque o biscate é mais vantajoso. Quanto ao futuro, logo se verá!

Obviamente que nem todos funcionam da mesma maneira. Não tenho factos que provem uma generalizada desonestidade. Por outro lado, entendo que os mais vulneráveis devem ver a sua vida acompanhada e protegida pela Segurança Social. A fome não pode esperar pelo dia seguinte. E as crianças e os mais idosos devem ter protecção absoluta. Para mim isso é inquestionável. Outra coisa é, na força da vida, procurar expedientes e desistir de objectivos. E isso educa-se!

E assim, vou ao supermercado (e não só) e tropeço em inúmeros luso-descendentes. Todos devem ser acolhidos, logicamente que sim, mas questiono-me por onde andarão os aqui nascidos e inscritos no Instituto de Emprego (18.000!)? E os 44.000 em layoff estarão todos nessa situação?

Disto nada sei, apenas constato. Mas merece estudo e debate político.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 14 de julho de 2020

O mundo a caminho do hidrogénio


Por
João Abel de Freitas, 
13 Julho 2020 

O cluster do hidrogénio verde, para além dos efeitos no clima, poderá constituir uma oportunidade de reindustrialização profunda e diferente da UE e dos Estados-membros. 

Jeremy Rifkin, presidente da Foundation on Economic Trends, em Washington D.C., é um economista de renome mundial. Um tanto polémico nas suas ideias arrojadas e muito dado à Prospectiva – antecipação de acontecimentos de ruptura/novas tendências –, percorre o mundo, desde 1994, a comunicar com executivos das grandes empresas. 

Os temas que privilegia nas suas palestras prendem-se com as novas tendências na ciência e na tecnologia, explorando cenários de mudança possíveis no enquadramento global, nas sociedades em si e nas economias. 

Rifkin tem uma vasta obra de investigação publicada da qual relevo para o tema deste artigo “The Hydrogen Economy” (2002) – com tradução brasileira, “A Economia do Hidrogênio” (2006) – onde antevê substanciais alterações nas instituições políticas, na economia e na sociedade, que começam a ganhar fôlego, decorrentes da introdução do hidrogénio como “vector energético”. 

Numa palavra, antecipou uma mudança de paradigma energético muito impulsionado pelo combate às alterações climáticas onde o hidrogénio seria o futuro motor. 

O mundo a deslizar nesta onda parece estar a dar-lhe razão. Pelo menos desencadeou-se em vários países um debate alargado sobre o hidrogénio, acompanhado da elaboração de estratégias e de planos de concretização faseados, sendo 2030, uma das metas intermédias de referência para muitos países, entre eles Portugal, e 2050 a meta final de descarbonização do sistema energético. 

A Alemanha que pretende ser o ‘país do hidrogénio’ (número um mundial) divulgou, em 10/06/2020, depois de seis meses de debate no seio do Governo, a estratégia onde o hidrogénio verde é visto como uma tecnologia estratégica de ponta porque, diz: “só o hidrogénio verde, produzido a partir de energia renovável, é perene”. O Japão também acelera no sentido de reduzir o custo de produção do hidrogénio em mais de 70%, tornando-o assim competitivo com o gás natural e obtendo duas vantagens se atingir essa meta, competitividade e perenidade, enquanto o gás natural é uma produção a prazo. Tudo em movimento no sentido do hidrogénio, dos maiores países aos de menor dimensão. 

[Referi-me antes ao hidrogénio como “vector energético” porque, na realidade, não é “uma fonte de energia” primária. A energia contida no hidrogénio pode ser recuperada de duas formas, ou através da queima ou da pilha a combustível, “fuel cell”]. 

Mas afinal de que hidrogénio estamos a falar? O hidrogénio é o elemento químico que mais existe na natureza. E pode ser obtido por electrólise da água que separa as moléculas do oxigénio (O2) das do hidrogénio (H2) por efeito da passagem de uma corrente eléctrica. 

Até agora, este processo electrolítico tem sido pouco usado na produção do hidrogénio para fins industriais, na medida em que é mais barato obtê-lo através dos combustíveis fósseis, mas em contrapartida emite dióxido de carbono (CO2), também conhecido por anidrido carbónico ou gás carbónico, muito poluente do meio ambiente. 

Estamos então a falar de “uma revolução”, o hidrogénio verde, pois a separação das moléculas processa-se através de energias alternativas ou renováveis, dando origem a um carburante neutro em carbono que permite inflectir as alterações climáticas na medida em que contribui decisivamente para a descarbonização do próprio sistema electroprodutor e também pelas suas aplicações no todo da economia. 

O hidrogénio verde não emite, por conseguinte, gases com efeitos de estufa (GEE). 
Hoje, a grande questão do hidrogénio verde é a dos custos elevados de produção. Para se tornar inequivocamente um dos combustíveis do futuro precisa de tecnologias que façam baixar os custos de forma expressiva. 

O hidrogénio verde é uma moda? Sim, começa a ser uma moda útil e de possível transformação do sistema económico. Todos os países da União Europeia estão na corrida ao hidrogénio verde. 

A Comissão Europeia com o seu “Pacto Verde”, de que francamente se espera um bom desempenho e um comando decidido da Comissão, apesar dos vastos escolhos que terá de enfrentar: os lobbies, principais causadores do aquecimento ao nível do planeta. Registo aqui que, conforme li na comunicação social, a Europa premeia estes poluidores do ambiente com 137 mil milhões de euros/ano em isenções diversas. As “guerras” vão, pois, ser fortes e complexas. 

A Presidente da Comissão começa a carburar bem. Ainda não é um Jacques Delors mas, embora em tempos bem diferentes, está a afirmar-se no cargo. 

Em meu entender, o cluster do hidrogénio verde, para além dos efeitos no clima, poderá constituir uma oportunidade de reindustrialização profunda e diferente da União Europeia e dos Estados-membros. À partida, no seio da União, existem quase todos os argumentos para esta “revolução” de mudança de paradigma energético. Há cientistas à altura para apoio ao desenvolvimento das tecnologias de ponta ao longo do cluster onde a Europa apresente fragilidades. Há qualificação diferenciada e elevada de recursos humanos. 

O desenvolvimento deste cluster vai potenciar empregos bem qualificados (engenheiros de várias especialidades e técnicos de planificação de elevado gabarito) e com alguma antevisão é possível às Universidades antecipar cursos e formação específica que preencham estas necessidades. 

E afinal faltam ou não argumentos de sucesso? 

Faltam e são estruturantes na projecção da União Europeia (UE) para o topo. 
Uma UE com uma estratégia de cluster, assumida pelos países membros nos seus vectores estruturais; Uma UE com um vasto entendimento na base de um programa global amadurecido; 

E, finalmente, a já célebre questão do financiamento, onde a União é antes uma grande desunião. É de analisar o financiamento para este cluster, relacionado com a baixa sucessiva de isenções aos lobbies poluidores (petróleo, gás e carvão). 

E Portugal? 
Portugal tem uma estratégia que esteve em consulta pública. Essa estratégia identifica vectores interessantes. Uma centralidade em Sines, várias actividades onde investir e a despertar interesse em empresas de sectores variados. 

Para além da cooperação com a Holanda, no meu entender, é fundamental uma colaboração muito bem alicerçada com a Alemanha que, no seu plano, tem definidas as condições de investimento no exterior em domínios onde reconhece não ter condições de competição. Aliás, assinou, neste contexto, contrato com Marrocos para a energia solar. Será importante identificar projectos para atrair capital alemão de interesse estruturante para os dois países. Algum trabalho anda a ser desenvolvido neste domínio. 

Quanto à estratégia nacional impõe-se delinear alguns caminhos: 
Aprofundamento e caracterização detalhada dos segmentos do cluster, necessariamente integrado no conjunto restrito dos clusters base do programa de transformação da economia portuguesa com esta ou outra designação; 
Identificação detalhada das áreas de intersecção com outros clusters; 
Articulação com a estratégia global para a Europa e com os países membros; 
Combate à subsidiodependência dos projectos, tão típica no país. Isto significa um rigor técnico e económico na selecção dos projectos a financiar no seio do cluster; 
Monitorização dos projectos financiados, o que exige das entidades públicas de financiamento a criação de uma estrutura altamente qualificada certamente mediante recurso a organizações de peritos nacionais e internacionais. 

Pensamos que cada cluster integrador do Programa de Transformação da Economia Portuguesa deve ser dotado de plano de investimentos indicativo, gerido por uma estrutura de missão. 

Uma nota final. Portugal, tal como a União Europeia, também premeia por ano os grandes poluidores através de isenções que somam 867,5 milhões de euros. Um problema a merecer redobrada atenção. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Não, não vai correr bem


Por 
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso, 
11/07/2020

1 Chego a ter pena do nosso MNE, Augusto Santos Silva: o esforço a que ele se vota, por dever de ofício, para argumentar que as decisões de outros países de nos colocarem na lista negra turística são injustas e infundamentadas e não obedecem a um “critério uniforme” é tempo perdido e fracasso garantido. Sim, há um critério uniforme, que é o definido pelo organismo europeu que se ocupa das doenças infectocontagiosas, baseado no número de casos actuais por 100 mil habitantes — onde ocupamos o segundo lugar entre todos os países europeus com mais casos, só atrás da Suécia, e sem dar mostras de conseguir baixar, antes pelo contrário, esse número que derrota todas as nossas invocadas razões. E não, não adianta argumentar com o nosso “exemplar desempenho” quando, numa fase inicial, os portugueses se fecharam todos em casa e a DGS nada mais teve de fazer do que verificar que a curva estava achatada. 


Continuar a insistir nisso torna-se tão ridículo quanto a argumentação de que somos um grande povo, porque há 500 anos navegámos mundo fora e fizemos o que fizemos. Aliás, toda a retórica que se ouve dos nossos governantes, secundados por muitos outros parceiros políticos, agentes económicos e “especialistas” que têm medo de parecer pouco patriotas, faz-me lembrar tristemente os tempos em que éramos dizimados nos Festivais da Eurovisão, não porque só para lá enviássemos músicas indigentes mas porque, segundo juravam os “patriotas”, os outros votavam contra nós por razões políticas. O mesmo tipo de argumentos que também levava o Estado Novo a garantir, contra o mundo inteiro, que não tínhamos colónias mas sim “províncias ultramarinas”, que não tínhamos colonialismo mas sim “regimes autónomos” e que o massacre de Wiriyamu nunca ocorrera porque Wiriyamu não existia. É triste assistirmos agora a um Governo democrático lançar mão do mesmo tipo de argumentos para, em desespero de causa, tentar salvar uma época turística destruída pelo desastre das políticas públicas de saú­de. Tiradas patéticas e antigas de séculos, como a “traição do velho aliado inglês”, a “deslealdade do vizinho espanhol” ou a “hipocrisia dos belgas”, são, aliás, contraproducentes, na medida em que fazem passar a mensagem de que tentamos desesperadamente esconder um problema que não conseguimos ultrapassar. Porque não é aceitável que, no sexto mês de pandemia, com tudo o que já se sabe, uma só pessoa visite um lar em Reguengos, contamine outras 150 e mate 15. Fora tudo o resto que, desde que soou a ordem para desconfinar e descontrair, mostrou à saciedade que nada estava pensado, planeado, organizado e que quem de direito continuou durante dois meses tranquilamente sentado em cima de uma curva que se mantinha eternamente achatada em número de casos e de mortes, sem estranhar que todas as dos outros países fossem caindo até próximo do zero.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO


2 Se bem percebi (já nada é certo...), David Neeleman comprou a TAP por 10 milhões e injectou lá mais 200 milhões através da Azul. Conta-se à boca cheia, porém, que ele terá recuperado esses 200 milhões vendendo a posição da TAP como compradora de aviões, de que desistiu em favor de outros mais baratos. Mas o ministro Pedro Nuno Santos contradiz o rumor, dizendo que Neeleman “foi interrogado sobre o assunto e negou” — garantia aparentemente suficiente para o ministro. Como quer que seja, esses 200 milhões, que se supunha que o Governo quereria que fossem transformados em capital, como seria normal, parece que se mantiveram como suprimento de um sócio, isto é, como dívida da TAP, que vence juros e que terá de ser paga, no prazo de vencimento — e, estranhamente, isto foi apresentado como uma vitória negocial do Governo. Já quanto aos 10 milhões que efectivamente Neeleman meteu para comprar a TAP, hoje valiam zero, como capital de uma empresa tão desvalorizada que vai precisar de 1200 milhões dos contribuintes só para começo de conversa. Mas para ele se ir embora, porque o ministro assim queria, o Estado comprou-lhe a posição de 10 milhões por 50 — e a Azul desapareceu do horizonte socie­tário. Porém, assegura o ministro, vai manter-se como parceira da TAP, pois tal é o “legado” que David Neeleman deixa à empresa. “A TAP precisa da Azul”, reconhece Pedro Nuno Santos, rendendo-se à evidência de que essa ligação está hoje entre as mais rentáveis da companhia portuguesa. Mas “a Azul também precisa da TAP”, garante, certo de que o americano não desfará essa colaboração transatlântica. Oxalá! Oxalá o homem que vendeu por 50 uma posição de 10 numa empresa levada à ruína e que terá conseguido sair com um crédito de 200 milhões em vez de uma posição accionista equivalente numa empresa cujo futuro mais provável continua a ser a ruína esqueça que foi publicamente destratado e ameaçado pelo ministro e esteja a fim de honrar o tal “legado” de que aquele fala. Porque, contratualmente, como é de tradição nas negociações em que é preciso defender os contribuintes, nada ficou escrito. Estava eu a meditar nisto, bem como no simbolismo das fotografias do ministro posando em frente à miniatura de um avião da TAP (a fotografia clássica dos donos da empresa ou dos presidentes executivos que se imaginam donos dela e que bem caracterizou toda a actuação de Pedro Nuno Santos neste dossiê), quando, logo no dia seguinte, sou surpreendido por nova afirmação grandiloquente do ministro. Deslumbrado por ter comprado por 1,5 milhões (!) 58 carruagens de comboios à espanhola Renfe — a que há a acrescentar um custo previsto de 8,5 milhões em restauro (aceito apostas para um mínimo do dobro) —, Pedro Nuno Santos exclamou, e pareceu-me que falava a sério: “Estamos prontos para ensinar outros governos como se fazem bons negócios.” Logo depois, ficou a saber-se que a CP pediu mais 60 milhões ao Governo, para “dinheiro de bolso”. E a SATA 163 milhões — quase tanto como os prejuízos acumulados, com grande escândalo, pela TAP nos dois anos antes da covid. Vá somando e acredite que tudo isto vai acabar bem. Aviões com a nossa bandeira no ar, novos comboios em terra e bons negócios em carteira. Como poderá acabar mal?

Sobre o pano de fundo de uma economia privada em ruínas e mais dependente do que nunca dos dinheiros públicos, vemos um Estado disposto a gastar sem contenção o dinheiro que não tem e que há-de vir da Europa. Mas só quem acredita que o dinheiro nasce debaixo das pedras é que pode pensar que isto vai acabar bem.

3 Efacec: “Empresa estratégica” para o país, centenária, verdadeira escola de engenharia de ponta, inovadora, altamente rentável, exportando 90% da produção. Cobiçada por meio mundo, acabou nas mãos da “engenheira” Isabel dos Santos e do seu dinheiro feito “por mérito próprio”. Recebida na empresa com pompa, circunstância e curvatura de espinhas, não arriscou, porém, um euro seu, que melhor investido foi no Dubai. Tornou-se dona da Efacec exclusivamente com dinheiros arregimentados junto da banca portuguesa. Mas, mal caiu em desgraça e viu os seus bens arrestados às ordens de Luanda, a mesma banca fechou as portas à Efacec e dispôs-se a estrangulá-la, se necessário até à morte, com os seus 2500 trabalhadores. Os bancos viraram costas, os seus outros accionistas de referência, nomes grandes da indústria nacional — a Têxtil Manuel Gonçalves e o Grupo Melo —, deixaram correr e, dos “cinco ou seis” compradores que nos dizem já estar na calha, nem um se mostrou. Restou o Estado. Agora, somos assim também donos de uma metalomecânica. Com o aplauso unânime e jamais visto dos trabalhadores, dos sindicatos e dos outros accionistas privados. Cuja única preocupação é que o Governo sucumba à tentação da venda aos tais compradores que nos dizem fazer fila à porta e deixe a empresa e os trabalhadores fora da única protecção garantida: a do dinheiro dos contribuintes. Vai acabar bem.

4 Novo Banco: Sertório foi um general romano dissidente, que se virou contra os seus, à frente de um exército de camponeses e pastores da Lusitânia. Ficou na nossa história tal como Wellington, um general estrangeiro que nos ajudou a combater o invasor. O Fundo Sertorius, organizado pelo Novo Banco, teve o objectivo inverso: vender património imobiliário nosso, constituído por créditos herdados do BES, a quem desse mais, preferencialmente estrangeiros, que era quem tinha dinheiro para tal. O pacote Sertorius do NB foi vendido 70% abaixo do seu valor, com perdas assumidas de 300 milhões de euros. Não foi caso único desde que o NB foi vendido aos texanos da Lone Star: são justamente os créditos declarados incobráveis e vendidos a preços de saldo que têm permitido ao NB todos os anos reclamar ao Estado o pagamento das prestações de capital contingente assumidas pelo Fundo de Resolução até um montante de 3,9 mil milhões (no mínimo e não ocorrendo situações excepcionais, que vão ocorrer, claro). O que há de novo agora, segundo noticiou o “Público”, é que o Sertorius foi vendido a um grupo a que esteve ligado um administrador actual do NB. Tamanha é a reiterada incapacidade ou incompetência da gestão do NB em valorizar os créditos herdados e tão generosos são os preços a que se desfaz deles que a possibilidade de interesses ocultos em todo o processo é sempre uma hipótese a considerar. Verdade ou não, certo é que o NB tem sido um maná para uns quantos felizardos e uma ruína para os contribuintes. A continuar, sem vergonha alguma, enquanto os deixarem.

5 Entusiasmada com a experiência de teletrabalho dos funcionários públicos durante os três meses de confinamento — cuja falta ninguém notou —, a ministra da pasta resolveu que, de futuro, até um terço deles poderia continuar assim, sem prejuízo algum para o serviço. Porém, após a primeira reunião com os sindicatos, o porta-voz de um destes apressou-se a declarar que teletrabalho sim, mas só com aumentos salariais e progressões na carreira garantidas, pois a poupança nas despesas com transportes e alimentações eram engolidas por outras como electricidade e água, além de “outros consumíveis”, resultantes de ficarem em casa. Pressurosa, a ministra já declarou que as progressões na carreira, além das progressões automáticas, são sagradas, pois que “austeridade”, como lhe chamou, nunca mais. Entretanto, abolida a regra de uma entrada por duas saídas, o Estado — declarado agora pelos teóricos como mais indispensável do que nunca — prepara-se para contratar sem contar, para a Educação, para a Saúde, para os bombeiros, para a apanha do abacate, para onde pedirem. A pagar com o dinheiro que há-de vir da Europa. E tudo isto há-de acabar bem. Só pode.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Oh Senhor Cónego… Não havia necessidade!


Apesar de não conhecê-lo no plano pessoal, o Cónego Manuel Martins, em 2009/2010, por aí, granjeou a minha simpatia por algumas homilias na Sé Catedral do Funchal. Deixou-me bem impressionado, pela acutilância das palavras ditas aos crentes. Lembro-me quando se dirigiu "aos governantes incompetentes e bispos sonolentos"; quando se insurgiu contra "(...) o parlamento regional que recusou medidas de combate à pobreza" (...) quando sublinhou "conhecer a falsidade de tantas medidas anunciadas de combate à pobreza e situações de miséria e de fome de tantas famílias (...); quando em uma dada homilia, falou da existência de casos sociais que precisam de ajuda por causa do "desemprego, alcoolismo, droga" e de "famílias jovens que não podem pagar o crédito à habitação" ou o "pão para os filhos"; quando disse que "há situações dramáticas de injustiças sociais gritantes que causam tanta indignação que muitas vezes levam-nos à revolta"; recordo-me, ainda, da sua denúncia: "conheço pessoalmente situações de pobreza extrema e de fome". Teve coragem, reconheço.

Eu diria que passados onze anos, as situações permanecem. Foi Padre porque, contextualizando, enalteceu a Palavra de Cristo e puxou as orelhas a quem tem o dever de pugnar pela solução das graves assimetrias sociais. Na altura, repito, fiquei bem impressionado. Sinceramente, nunca percebi (ou se calhar percebi) a razão pela qual, permitam-me a expressão, foi despachado da Sé para Machico.
Pelas suas posições independentes de qualquer partido, sem o conhecer, fiquei atento. Daí para cá senti que se remeteu a uma posição muito discreta. No mínimo, não tem sido motivo de atenção dos media. Até que, na última semana, a propósito da candidatura dos “Fachos de Machico” às “7 Maravilhas da Cultura Popular”, o Senhor Cónego Manuel Martins resolveu puxar dos galões (!) e reivindicar que os “fachos” pertencem, secularmente, à Igreja e não ao município. Uma polémica sem qualquer sentido, quando não está em causa a “paternidade”, mas uma candidatura que dará visibilidade cultural à cidade de Machico, com efeitos positivos a vários níveis. Até para a própria Igreja. 
Portanto, Senhor Cónego, com todo o respeito, mas com algum humor, (precisamos de uma pitada de humor na vida) na esteira do “provedor” Herman José, apenas lhe digo que “não havia necessidade”. De facto, nestas circunstâncias, como salientou o Presidente da Câmara, os "fachos" dispensam “senhorio”. Somos poucos para potenciar a imagem da Região e, particularmente, a de Machico.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Chega ao fim o pesadelo!


Por
Nicolau Santos
Jornalista 
Especializado em Assuntos Económicos

Termina hoje o reinado de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal. É o fim de um pesadelo, que durou 10 anos, e durante os quais foram tomadas decisões que continuam por explicar e que custaram cerca de 15 mil milhões de euros euros aos contribuintes, além de terem prejudicado fortemente a imagem de Portugal no exterior, aumentado as taxas de juro da dívida pública e os custos de financiamento das instituições financeiras e desprestigiado o banco central.

Carlos Costa era diretor-geral do BCP para a área internacional mas não percebeu para que serviam as off-shores que compravam acções do banco com financiamento do próprio banco; era administrador da Caixa Geral de Depósitos e conduziu a expansão do banco público em Espanha, que acabou num enorme buraco – mas ele só se responsabiliza pelos dois anos em as coisas correram bem; disse aos portugueses que o Novo Banco nascia com activos limpos e seguros – e a instituição já teve de pedir 3 mil milhões ao Fundo de Resolução e ainda vai pedir mais; passou cinco emissões de dívida senior do Novo Banco para o BES mau – e por causa disso Portugal pagou mais pela sua dívida pública, os custos de financiamento dos bancos dispararam e o Fundo de Resolução terá de entregar pelo menos 600 milhões a esses fundos internacionais. E há mais, muito mais. Mas como Carlos Costa considera que o Novo Banco foi um sucesso, provavelmente é também o que pensa da sua atuação de uma década à frente do Banco de Portugal.

Resumamos então os casos polémicos em que Carlos Costa esteve envolvido ao longo da sua vida profissional.

Foi diretor-geral do BCP entre 2000 e 2004. Em 2001, Carlos Costa deu parecer favorável à renovação de créditos das sociedades offshore criadas para a aquisição de ações próprias. Carlos Costa que era diretor-geral para a área internacional, com o pelouro das sociedades sediadas em paraísos fiscais não viu nada de errado no funcionamento dessas off-shores, que tinham sido criadas em 1999 e que visavam manter artificialmente alto o preço das ações do banco. Por causa dessa manipulação do mercado, Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal e António Rodrigues seriam afastados da administração do banco e sujeitos a pesadas sanções. Em 2009, ouvido no âmbito do processo decidido pelo Banco de Portugal, Carlos Costa defendeu que a decisão que tomou de renovar os créditos foi normal e justificada. Em 2013, Costa afirmou em tribunal: “Não tinha conhecimento de qual era a prática da gestão discricionária, nem tinha conhecimento que não havia beneficiário último” das sociedades off-shores, acrescentando que as funções que desempenhava não o obrigavam a ter essa informação sobre as sociedades não residentes, com as quais assinou contratos de renovação de créditos. Portanto, Costa assinou de cruz, não quis saber o que faziam essas sociedades, que se fartavam de comprar ações do BCP com financiamento do próprio BCP, nem se os titulares dessas sociedades eram testas de ferro, nem quem eram os seus beneficiários últimos – embora fosse o responsável pelas sociedades sediadas em paraísos fiscais. Se isto não é incompetência é pelo menos sacudir com muito pouca vergonha a água do capote.

Em 2004, Carlos Costa é administrador da Caixa Geral de Depósitos com o pelouro internacional e supervisiona o plano de expansão do banco público em Espanha, liderado por Fernando Faria de Oliveira. A aventura começa bem mas salda-se no final por um prejuízo de 483 milhões de euros. Ouvido sobre as suas responsabilidades, Carlos Costa reclamou que a reestruturação do Banco Siméon e a sua transformação no Banco Caixa Geral correu bem entre 2004 e 2006, quando ele se encontrava em funções, mas que aquando do descalabro que se seguiu já ele estava no Banco Europeu de Investimento, como vice-presidente. A arte de bem sacudir a água do capote volta a ser demonstrada por Carlos Costa.

Em 2015, Carlos Costa, que tinha sido indicado para o cargo por José Sócrates, é reconduzido no cargo por Pedro Passos Coelho, a escassos quatro meses de eleições legislativas. A decisão é fortemente contestada pela oposição mas é um prémio para a colagem de Carlos Costa ao governo PSD/CDS e à política económica da troika.

Em 3 de Agosto de 2015, Carlos Costa anuncia a resolução do Banco Espírito Santo e o nascimento do Novo Banco, que teria um balanço completamente limpo de créditos de cobrança duvidosa. Em 2017, considerou na Assembleia da República que «o Novo Banco foi um sucesso». Até agora, o Novo Banco já recorreu a três mil milhões de euros de injeções de capital do Fundo de Resolução para sanear ativos problemáticos. E já anunciou que vai precisar de mais dinheiro, esgotando provavelmente os 3,89 mil milhões de euros da almofada financeira que foi garantida à Lone Star aquando da venda da instituição. A palavra sucesso tem um estranho significado na boca de Carlos Costa.

Carlos Costa tem o mérito de ter afastado Ricardo Salgado e toda a sua administração do leme do BES. Escolheu uma nova administração, liderada por Vítor Bento. E quando se supunha que o Banco de Portugal sabia finalmente tudo o que se passava no banco, eis que Carlos Costa anuncia a sua resolução, quatro meses depois de ter escolhido Vítor Bento. Depois pede-lhe encarecidamente para se manter, agora como presidente do Novo Banco. Bento aceita mas diz que precisa de três a cinco anos para implantar a instituição no mercado. Carlos Costa aceita. Três meses depois sucumbe às pressões do governo PSD/CDS e diz que afinal o banco é para vender em seis meses. Passos Coelho não queria que o caso BES/Novo Banco contaminasse as eleições de Outubro. Vítor Bento demite-se. Carlos Costa pede ajuda a António Horta Osório, que indica um dos seus mais fiéis compagnons de route, Eduardo Stock da Cunha. Stock chega e não consegue vender o banco nem em seis meses nem num ano. Ao fim de dois demite-se. Segue-se António Ramalho. Esta trapalhada é designada como um sucesso por Carlos Costa.

Carlos Costa anuncia que há 17 interessados na compra do Novo Banco. Quando chega a hora nem uma das propostas se aproveita. Costa tenta uma segunda vez e fica nas mãos de apenas um interessado: o fundo norte-americano Lone Star. Os americanos não pagam um tostão pelo banco. Metem mil milhões para o recapitalizar e pedem uma carta de conforto de 2,4 mil milhões ao Estado. Mário Centeno, então ministro das Finanças, recusa. O Banco de Portugal conduz a venda e fica explícita uma cláusula que garante que o Novo Banco pode recorrer a injeções de capital do Fundo de resolução até 3,89 mil milhões de euros se encontrar nos seus ativos incobráveis ou de cobrança muito duvidosa. Mas como Carlos Costa tinha dito que o Novo Banco nascia sem problemas ninguém se preocupou demasiado. Afinal não era assim. Os activos do Novo Banco afinal tinham imensos pecados e até agora o Fundo de Resolução já foi obrigado a injetar quase 3 mil milhões de euros na instituição – e seguramente vai esgotar a almofada de 3,89 mil milhões. Mais um sucesso para a coleção de Carlos Costa.

No final de 2015, Carlos Costa anuncia a resolução do Banif, surpreendendo tudo e todos. Mais um custo de 3 mil milhões. Há dois anos que o Banco de Portugal tinha representantes no conselho de administração do banco. A instituição apresentou em Bruxelas oito planos de recuperação, todos chumbados. Apesar disso, pelos vistos os representantes do banco central na administração do banco não conseguiram fazer nada para travar o caminho da instituição para o abismo. Outro sucesso do longo reinado de Carlos Costa.

Mesmo a terminar 2015, Carlos Costa tem nova decisão extraordinária: decide retirar do Novo Banco cinco emissões de dívida sénior subscritas por grandes fundos internacionais (Black Rock e Pimco, entre outros) que estavam no Novo Banco e passá-las para o BES mau, provocando perdas de cerca de 1,4 mil milhões de euros a esses investidores e lesando gravemente a imagem de Portugal junto dos mercados. A decisão levou, segundo esses grandes investidores, a uma subida das taxas de juro da dívida pública e a custos de financiamento recorde para os bancos nacionais. Além disso, de acordo com a Bloomberg e o Financial Times, essas entidades boicotaram a operação de colocação de 500 milhões de euros de dívida subordinada da Caixa. Em 2017, o acordo tentado entre o Governo português e o Fundo de Resolução com esses investidores apontava para uma reparação de 600 milhões de euros.

Seria fastidioso continuar. Estes factos mostram o descalabro que foi a gestão de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal. Infelizmente, a fatura sobrou para o país, para os contribuintes portugueses e para o sistema financeiro. O custo total das suas decisões aproxima-se seguramente dos 15 mil milhões de euros. Mas Carlos Costa retira-se agora para gozar a sua bem forrada reforma, enquanto pensa com os seus botões como foi um grande sucesso a sua passagem pelo Banco de Portugal.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Gato & Rato


Por 
Angela Silva, 
in Expresso, 
04/07/2020

Esta é a saga de um professor e de um aluno que, após 40 anos de encontros e desencontros, coincidiram no topo do Estado. Adoram jogar, competem entre si, mas já não vivem um sem o outro. A covid, as presidenciais (e o faro) tornaram-nos cúmplices. Até ver...

Tom e Jerry é uma velha série de curtas-metragens sobre dois simpáticos animais, um gato e um rato, para quem a vida é um eterno jogo, uma divertida rivalidade e um histórico sucesso de bilheteira. A coabitação entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa não foge muito a este guião. Não são propriamente rivais nem consta que se queiram comer um ao outro (estão, aliás, a viver uma superlativa lua de mel sob o signo da covid e com os cálculos para a reeleição de Marcelo em pano de fundo). Mas, como acontece com o gato e o rato, o destino dos dois está ligado, e Tom e Jerry também viveram tempos pacíficos. Em 1971, Hanna e Barbera, que 30 anos antes tinham criado a série, associaram-se com a MGM Television para fazer uma nova temporada em que Tom e Jerry regressavam como amigos. Não tiveram o mesmo sucesso — aparentemente, o público preferia-os como adversários, exatamente como acontece com a direita portuguesa, que odeia ver Marcelo aninhado em Costa. Mas a dupla resistiu.

Por cá, que a dupla política do momento continua a assinar uma marca poderosa são as sondagens que o dizem. Ninguém tira aos dois homens fortes do regime entre 60% e 70% de popularidade. E os protagonistas não brincam em serviço quando se trata de zelar pela marca ao milímetro, como prova o facto de nem um nem outro ter querido falar com o Expresso sobre os quase 40 anos em que por várias vezes se cruzaram, primeiro na vida académica, depois na vida política. Um só falava se o outro falasse; um talvez falasse, o outro não queria; um não queria, o outro talvez quisesse. Mas estava tudo combinado — não falava nenhum.

A situação não está para brincadeiras. António Costa está em alta, mas o controlo da epidemia escorrega-lhe das mãos e o que tem pela frente pode a qualquer momento virar-lhe o jogo. Marcelo vai a votos daqui a seis meses e, porque precisa da esquerda, deixou-se agarrar por um momento felino de Costa, que ficará para a história como o 13 de maio na Autoeuropa. Após cinco anos de coabitação no topo do Estado em que houve de tudo — convergiram, divergiram, chocaram de frente, desconfiaram um do outro, amuaram, espicaçaram-se em público e acabaram de mãos dadas —, Presidente da República e primeiro-ministro sentem-se reféns um do outro.

Costa porque precisa do apoio do Presidente, que chega ao povo para almofadar as sequelas do terramoto económico e social que aí está. E Marcelo porque, com a direita a valer 30%, precisa dos votos socialistas para somar com folga os 51% necessários. Mas, como entre os dois o jogo nunca pára, mais do que pôr as mãos no fogo pela trama que se segue é aconselhável esperar pelas cenas dos próximos capítulos. Até porque o tempo opera sempre alterações nos personagens. Na saga cinéfila, Jerry (o rato) permaneceu bastante estável, mas a personalidade de Tom mudou consideravelmente. No início, andava sobre quatro patas e comportava-se sempre ao ataque, mas com o tempo passou a andar sobre duas patas e a ter um registo mais humano, ao ponto de sentir culpa por alguns comportamentos contra Jerry. Há episódios em que o gato chega até a parecer deprimido. E embora nestes cinco anos Marcelo e Costa tenham alternado nos dois papéis — nos fogos de 2017, o Presidente foi o gato que engoliu o rato, mas na gestão da pandemia foi o primeiro-ministro quem soube agarrar o parceiro —, a verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa entrou em cena com a expectativa de ser o felino e foi ele quem mais surpreendeu o público por, em vez de comer o rato, se ter em alguns momentos deixado comer por ele.

Diogo Lacerda Machado, grande amigo e confidente de António Costa, exibe, aliás, confiança na prevalência do suposto rato desta história, que, como se tem visto, é tão ou mais jogador do que o Presidente da República. “Marcelo já não consegue surpreender o António”, arrisca Diogo, convicto de que António percebeu que o Presidente já não tem a mesma jovialidade e que “isso também lhe diminui a imprevisibilidade”. Com uma ressalva: “Desde que Marcelo não volte à juventude depois dos 70...” Quem trabalha com o Presidente em Belém aconselha prudência, porque “Marcelo já não toca às campainhas [coisa que fazia na juventude], mas se for preciso ainda abana a cama da avó para simular um terramoto [que o próprio confessou ao biógrafo Vítor Matos que adorava fazer na infância]”. Nas sagas de sucesso, todo o cuidado é pouco. E Marcelo e Costa andam há 40 anos a surpreender-se um ao outro.

Ironicamente, a 5 de março de 2021, a Warner Bros. projeta o lançamento de um novo filme sobre a eterna aventura do gato e do rato. E quatro dias depois, em Lisboa, tomará posse o próximo Presidente da República, que, tudo indica, será um reeleito Marcelo Rebelo de Sousa. Também para os dois (ele e Costa) será o início de uma nova aventura, agora com o picante inerente a um segundo mandato presidencial, que a tradição diz ser sempre mais interventivo mas que, desta vez, tem condimentos acessórios: uma crise sem precedentes que leva o primeiro-ministro a contar com um Presidente amigo na gestão de uma das mais dramáticas páginas da história recente.

Para já, há um pacto firmado nas ‘barbas’ do país. Costa não apoiará outro candidato a Belém e os socialistas ajudarão a engrossar a esperada reeleição do atual Presidente; e o atual Presidente não faltará no apoio ao Governo, apesar dos riscos de desgaste se a crise da covid começar a queimar o poder político. Consciente de que pisa gelo fino, Marcelo preveniu-se com uma declaração justificativa no Expresso — “Não se espere que o Presidente crie uma crise política ou um afrontamento com o Governo durante uma pandemia em que existe um esforço comum.” Mas o PR conhece a astúcia do parceiro e sabe que António Costa foi hábil quando, há meses, lhe ofereceu a dianteira e lhe sugeriu que fosse ele a falar no final das reuniões com especialistas que, semana após semana, vão dando pistas para a gestão da crise. A última deu para o torto, Costa atirou culpas para os técnicos pelo desnorte dos políticos que não conseguem controlar os contágios na Grande Lisboa, e Marcelo, que preocupa os amigos porque “já se atravessou demais”, teve de fazer as honras da casa. Subitamente, o mundo político parecia de pernas para o ar — o primeiro-ministro a reconhecer que há problemas e o Presidente da República a deitar água na fervura. A atual temporada, confirma-se, é de compromisso. Mas nada de precipitações, porque a história desta dupla é um filme animado.
Cúmplice Quando chegou a Belém, Marcelo confiou que Costa seria moderado e, sem uma alternativa à direita, jogou na estabilidade. O PM confessou que Marcelo “ajudou muito” MÁRIO CRUZ/LUSA

“AINDA HOJE 
ACHO QUE FOI O COSTA”

“António Costa diverte-se com Marcelo Rebelo de Sousa desde a Faculdade”, recorda Diogo Lacerda Machado, que foi colega do primeiro-ministro em Direito e lembra-se do fascínio dele pelas aulas do professor mais popular da clássica Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Marcelo era divertido, e o António adorava as aulas.” Só se queixava de que ele falava a mil e era difícil tirar notas, mas que importância tinha isso quando tudo o resto era lucro. Aulas nada chatas, ambiente bem-disposto e um convívio raro entre professor e alunos, com direito a jantares na Churrasqueira do Campo Grande, na Portugália da Almirante Reis ou no David da Buraca, muitas vezes com prolongamento para discotecas.

Extrovertido e excêntrico, Marcelo chegou a alinhar com os alunos em incursões no Plateau e no Kremlin, como relata Vítor Matos na biografia “Marcelo Rebelo de Sousa”. Mas por detrás da boa relação professor-aluno, que chegou a levar Marcelo a dar um raro 17 a Costa em Direito Público Comparado, e do clima de galhofa que ambos curtiam, havia um cimento especial: um e outro adoravam política, e Marcelo foi rápido a farejar um futuro promissor ao então ativista na Associação de Estudantes, que após uma primeira aliança com o PCP acabou por conseguir, com raros dotes de oratória e de negociação, levar o PS ao poder na Faculdade.

No último ano do curso, em 1985, a relação estreitou-se ainda mais. Costa foi um dos três alunos eleitos para a Comissão de Finalistas que iria organizar a viagem de fim de curso. E passou a ter reuniões com o presidente do Conselho Diretivo, que era Marcelo Rebelo de Sousa. Lacerda Machado integrava o grupo e diz que “era visível que Marcelo olhava para o António de forma diferente. Aos outros, ele achava graça, mas o António distinguia-se por ser top nas cadeiras políticas, e era evidente que ele dava-lhe mais atenção”.

Era de tal maneira que, quando precisaram de pedir ajuda para angariar fundos para a viagem de finalistas, os outros apertaram com António: “Tu é que pedes, que ele a ti dá.” E Marcelo deu-lhes uma ideia: aparecerem num jantar de antigos alunos da Faculdade e levarem um caixote na mão para os contributos. Os três fizeram-se ao caminho, tiveram sorte, mas quando foram desafiados pelos ex-alunos para se sentarem à mesa Diogo conta que olhou para o lado e António Costa já lá não estava: “Ele pediu e pirou-se.” Disse que tinha atividades inadiáveis da JS (Juventude Socialista). A política estava sempre primeiro.

Quatro anos após terminar Direito, é já na política pura que António Costa volta a cruzar-se com Marcelo Rebelo de Sousa. Muito ligado a Jorge Sampaio, em cujo escritório de advogados estagiara, Costa é chamado para dirigir a campanha do então líder socialista à presidência da Câmara Municipal de Lisboa e vê-se subitamente envolvido num duelo político com Marcelo Rebelo de Sousa, que se candidatou pelo PSD. Todas as sondagens davam a derrota ao professor, e a desconfiança minou a campanha que marcaria o primeiro embate político entre ‘o gato e o rato’. “A minha taxa de notoriedade era dramática e foram precisas várias ações de campanha espetaculares para chamar a atenção dos lisboetas” reconheceu recentemente Marcelo ao “Observador”. E foi o desespero de querer combater os 80% que os estudos de opinião davam ao candidato de Costa que o levou ao célebre mergulho no poluído Tejo, a andar a conduzir um táxi ou a passar uma horas pendurado num carro de recolha de lixo.

Conhecedor da postura ‘fora da caixa’ do antigo professor, António Costa aconselhou Sampaio a demarcar-se dos números mediáticos do adversário e a assumir uma atitude madura. “O Rebelo de Sousa é um rapaz divertido, mas eu não ando a brincar com Lisboa e com os lisboetas”, atirou-lhe Jorge Sampaio no frente a frente televisivo que deixou Marcelo no tapete. O resto foi o que se viu: Sampaio ganhou com 49% e Marcelo ficou sete pontos atrás. Nas ruas de Lisboa, os cartazes do candidato do PSD onde começara por se ler “Marcelo” exibiam há semanas duas letras a mais — “TV Marcelo”, marca de uma empresa de reparações. Alguém tinha jogado na descredibilização do candidato da direita, e o visado não tem dúvidas: “As maiores maldades que a campanha de Jorge Sampaio me fez, atribuo-as a ele [António Costa]”, relatou o próprio a Bernardo Ferrão e a Cristina Figueiredo no livro “Os Caminhos de António Costa para Chegar ao Poder”. “Ainda hoje acho que foi o Costa. Ele foi muito útil ao Sampaio, que era um bocado ingénuo”, confessou. Já ao atual primeiro-ministro, se há coisa de que Marcelo nunca o acusou foi de ingenuidade.

“ELE TAMBÉM NÃO É UM GÉNIO”

Exatamente por isso, a jogada de Costa para chegar ao poder após ter perdido as eleições em 2015 não surpreendeu o comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa. Por esses anos, eles falavam muito, Marcelo era simpático com Costa, mas nem por isso achou que a tarefa fosse fácil. Pelo contrário, chegou a dizer que “só um génio” ganharia as eleições para o PS após o terramoto José Sócrates e que “ele [Costa] também não é um génio”. Outra coisa é ser arguto, e aí Marcelo nunca teve dúvidas. Mal lhe ouviu o discurso de derrota na noite eleitoral, percebeu o ‘golpe’ e antecipou: “Ele deve ter na cabeça um Governo minoritário com o apoio dos outros partidos.”

Luís Marques Mendes diz que “Marcelo sabe que o António Costa é um político muito talentoso e foi das primeiras pessoas a perceber que aquela solução de Governo iria acontecer”. E porque argúcia com argúcia se paga, se tinha chegado a hora de ambos coincidirem no poder, para quê perder tempo? No domingo seguinte, o país já não teve direito ao comentário dominical do professor, porque os seus calendários foram subitamente acelerados. Na quinta-feira, decide precipitar o anúncio de que será candidato a Belém e convoca a comunicação social para o dia seguinte. Na sexta-feira de manhã sabe-se que vai anunciar à tarde a candidatura. E assim Marcelo escapou de dizer o que pensava da ‘geringonça’, com a qual sabia estar condenado a entender-se. Calculismo, ziguezagues, imprevisibilidade e surpresa nunca faltarão neste enredo.

QUANDO MARCELO LEVOU ANTÓNIO A MENTIR

“Seria mau que este Governo não durasse quatro anos. A estabilidade é um bem que não pode ser desbaratado.” A frase é de Marcelo e podia ter sido dita em novembro de 2015, quando o Governo minoritário de António Costa tomou posse. Mas é de 1996, quando Marcelo liderava o PSD na oposição e Costa era secretário de Estado do Governo de Guterres. É importante porque mostra como, apesar da célebre fama de instável e conspirativo, Marcelo Rebelo de Sousa, entre abrir uma guerra e comprar a paz, normalmente escolhe a segunda.

Foi assim em 2016, quando o ambiente político era de cortar à faca e o Presidente, mal chega a Belém, não hesita em pôr-se ao lado do primeiro-ministro, apostado em ajudar a descrispar o ambiente cá dentro (a começar pelo sistema financeiro, que voltava a fazer tocar as campainhas) e a legitimar a imagem da ‘geringonça’ lá fora. Já tinha sido assim 20 anos antes, quando Marcelo chegou a líder do PSD e garantiu a António Guterres que não lhe derrubaria o Governo minoritário e que até estaria empenhado em viabilizar-lhe os quatro Orçamentos do Estado. Foi aí que Marcelo e António Costa voltaram a cruzar-se, e desta vez, com um no poder e outro na liderança da oposição, viram-se obrigados ao diálogo e à negociação. Mas nem por isso as jogadas e diatribes deixaram de ser imagem de marca.

Marcelo tratou de mostrar que é possível compatibilizar uma postura de estabilidade política com uma aguerrida estratégia de oposição (o que ele gostaria de ver hoje em Rui Rio). E durante três anos infernizou a vida ao guterrismo. António Costa tutelava os Assuntos Parlamentares, uma pasta que o obrigava a coordenar a relação com os partidos no Parlamento e com o PSD em particular. Tanto mais que a agenda política da época envolvia uma panóplia de assuntos que exigiam negociação entre os dois maiores partidos, a começar pela revisão constitucional e a acabar nos dois referendos, à regionalização e ao aborto, que Marcelo impôs, que acabaria por ganhar e que funcionaram como condição para viabilizar os Orçamentos de Guterres.

Marques Mendes, que como líder parlamentar de Marcelo teve um papel central nessas negocia­ções, garante que António Costa nunca foi nesta fase um interlocutor direto de Marcelo Rebelo de Sousa. O líder do PSD “tratava diretamente dos dossiês mais importantes com António Guterres e com António Vitorino”, que era o ministro da Presidência. Mas quando Vitorino saiu do Governo e Costa subiu a ministro, viu reforçado o seu papel, e há um episódio que marcará para a história o dia em que a estratégia do jogador Marcelo levou o jogador Costa a mentir.

Estava-se em 1997, o PSD já tinha aprovado um Orçamento, e Marcelo percebe que politicamente é urgente conseguir ganhos de causa. É quando convence Guterres de que para aprovar o OE seguinte precisa de dar a entender que tinha o PS nas mãos. E para isso os socialistas teriam de deixar cair uma medida emblemática e mostrar que o tinham feito para satisfazer uma exigência do maior partido da oposição. De um dia para o outro, novos cartazes do PSD invadiram o país — “Pena máxima para coleta mínima” —, ameaçando provocar uma crise se o Governo não desistisse de avançar com a coleta mínima para o IRC e o IRS dos trabalhadores independentes que, teoricamente, Guterres se preparava para aplicar.

Eis senão quando o jornal “Semanário” obtém a notícia de que o Governo vai deixar cair a coleta mínima e já estará tudo combinado entre Guterres e Marcelo. O jornal tem fontes dos dois lados que confirmam a história, mas ninguém dá a cara, e o editor de Política, Paulo Baldaia, diz que é preciso confrontar o Governo. “O Filipe Santos Costa, que escreveu a história, e o Raul Vaz, que era diretor, tinham informações que sustentavam a notícia”, recorda Baldaia. Mas o assunto não foi pacífico e decidiram pedir uma reação ao gabinete do primeiro-ministro. A resposta chegou num telefonema de António Costa para o editor: “Estou a ligar-lhe a pedido do primeiro-ministro e o que tenho para lhe dizer é em on. O Governo tudo fará para avançar com a coleta mínima.”

O jornal recua na manchete, que estava para ser “Governo deixa cair coleta mínima” e passou a ser “Governo garante que coleta mínima é para avançar”, relata o jornalista. Mas a notícia manteve o essencial da informação recolhida, segundo a qual fontes dos dois lados garantiam haver um pré-acordo entre Marcelo e Guterres para deixar cair a medida. O jornal sai num sábado, e na segunda-feira o diretor é convidado para ir no dia seguinte a São Bento tomar um café com o primeiro-ministro. António Guterres explica-lhe que pediu a António Costa para dizer o que disse porque “tinha de ser” (o negócio com Marcelo assim previa). E no sábado seguinte, o semanário fez manchete com a frase “Governo mentiu”. A coleta mínima nunca chegou a existir. Vinte anos depois, na campanha para as legislativas e já no papel de candidato a primeiro-ministro, António Costa previne-se e assume que um dia mentiu a um jornalista. Só não disse que na origem da mentira esteve um arranjo político entre o Governo de que fazia parte e o seu velho professor Marcelo Rebelo de Sousa.

UMA CONVERSA DELIRANTE

A memória dos dois está cheia de histórias que são avisos, e uma delas marcou António Costa para sempre. A duas semanas das autárquicas de 2001, que levariam António Guterres a deixar a liderança do PS após uma derrota devastadora, António Costa é ministro da Justiça, está no bar de um hotel do Porto com Diogo Lacerda Machado, que era seu secretário de Estado, e veem entrar Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha ido cheirar a campanha.

“António”, gritou-lhe Marcelo. “Professor”, respondeu-lhe Costa. E a conversa durou até às quatro da manhã. Lacerda Machado recorda o discurso delirante do ex-líder do PSD, que na altura já tinha sido substituído por Durão Barroso e que, contra todas as previsões, antecipava “uma vitória estrondosa” do Partido Socialista. “Ai, sim?”, questionou Costa, incrédulo. “Sim, não tenho dúvidas”, respondeu-lhe o professor, que parecia sonhar com um pesado desaire para Durão, o homem que o substituíra no PSD e que ele não teria desistido de apear. “O PSD vai sofrer uma derrota arrasadora e vai haver uma reviravolta no partido”, continuava Marcelo, “e António Guterres vai sair reforçadíssimo”, relata Lacerda Machado ter ouvido. Incrédulos, ministro e secretário de Estado recolheram aos quartos já de madrugada com a sensação de que Marcelo confundia o desejo com a realidade. E não se enganaram: o PS teve a sua maior derrota autárquica de sempre e Durão Barroso não tardaria a chegar a primeiro-ministro.

À coca conhecem-se bem e vivem num misto de confiança e desconfiança mútua. Costa sente que Marcelo já não o consegue surpreender. Mas o segundo mandato do PR ainda cria suspense em São Bento CAMPISO ROCHA

Por estas e por outras — que ao longo dos anos permitiram aos dois homens conhecer-se bem —, mal percebeu que Marcelo Rebelo de Sousa se ia candidatar a Presidente da República, António Costa tratou de se preparar para o que aí vinha. Marcelo ia ganhar e era vital garantir uma boa onda na relação entre ambos desde o início. Sampaio da Nóvoa, que Costa chegara a acalentar, ficou subitamente sem rede. A socialista Maria de Belém arriscou um resultado miserável, mas deu jeito a Costa, que assim pôde dizer que havendo dois candidatos naquela área não apoiaria nenhum. E assim, com o primeiro-ministro a facilitar a vida a Marcelo, começou em beleza a última e mais motivadora etapa desta longa corrida a dois.

Marcelo Rebelo de Sousa é eleito em janeiro de 2016, arranja uma maneira simpática de agradar à esquerda — “O povo é quem mais ordena”, escreveu no discurso de posse —, e quatro dias depois António Costa convida-o para ir jantar a São Bento. Um primeiro encontro a sós com direito a novidade: embora Cavaco Silva ainda fosse o Presidente da República (a posse de Marcelo seria daí a dois meses), Costa disponibilizou os ministros para se começarem a reunir com o futuro chefe de Estado. E, nesse interregno, Marcelo recebeu quase todos os ministros no Palácio de Queluz, onde montou um gabinete provisório. “Eles fizeram tudo para começar com o pé direito”, diz um dos colaboradores da Casa Civil do Presidente. Com um acrescento: “Eles conhecem-se, gostam-se e temem-se.” Numa dupla que sabia ir disputar protagonismo, todo o cuidado era pouco.

“SOBRANCEIRO”, “NÃO ATENDO”

O arranque foi uma lua de mel, como provam as célebres imagens do primeiro 10 de Junho em Paris. Estão os dois no palco, começa a chover, e António Costa protege Marcelo sob um guarda-chuva para dois. A serenata à chuva é idílica, mas em redor do palco emigrantes portugueses lesados do BES pedem ajuda: “Ajude-nos, senhor Presidente!” Diogo Torres, autor do livro “Marcelo & Costa”, conta que uma assessora do primeiro-ministro “decidiu falar com quem pedia a intervenção de Marcelo”. “Você sabe que ele é amigo do Ricardo Salgado, não sabe?”, terá perguntado. Se aconteceu, Marcelo e Costa não ouviram. Mas os últimos cinco anos não foram sempre Paris.

“Sobranceria.” Foi esta a palavra escolhida pelo Presidente da República quando numa reunião com assessores no Palácio de Belém, algures em 2018, se referiu ao primeiro-ministro. Vivia-se o rescaldo da fase mais negra na relação entre ambos, os trágicos fogos do verão de 2017, quando mais de 100 pessoas morreram no interior do país, somados ao assalto ao paiol de Tancos que o Presidente não gostou de ver o Governo desvalorizar, e, aí sim, a relação tremeu. Pela primeira vez, conta quem acompanhou de perto António Costa, “ele sentiu que Marcelo pisou o risco da deslealdade”, quando fez um discurso arrasador em que assumiu falhas do Estado, exigiu um pedido de desculpas e despediu a ministra da Administração Interna em direto. Mas desleal porquê? Porque “o Presidente estava a par de tudo, o António tinha sido claro com ele, e ele sabia que o primeiro-ministro já preparava uma remodelação”. A versão de Belém é outra: “O Presidente logo nos fogos de junho exigiu consequências políticas e o primeiro-ministro nada fez. Em outubro, quando se somam mais de 100 mortos, o Presidente perdeu a paciência e decidiu que nem mais um dia”, contam na sua Casa Civil.

Certo é que o PS fez tocar as campainhas do mal-estar instalado, e o jornal oficial do partido publica um artigo do jornalista Simões Ilharco a acusar o Presidente de ter exorbitado “claramente os seus poderes constitucionais”. No site do Ministério da Administração Interna, a revista de imprensa sugere a leitura do blogue “O Jumento”, onde Marcelo Rebelo de Sousa era apelidado de “manhoso” e eleito como “o jumento do dia”. E o “Público” escreve que o Governo recebeu “com choque” o discurso presidencial. Mas Marcelo responde à letra: “Chocado está o país.”

A avaliação de António Costa como alguém que tende a desvalorizar o que corre pior foi o que levou o Presidente a falar de “sobranceria” na tal reunião em Belém. Mas as pedras na relação entre ambos não se ficam por aí. “Há sempre alguma desconfiança”, diz quem os conhece bem. “Eles entendem-se, acham-se graça, sabem jogar juntos, mas desconfiam um do outro.” E foi por desconfiança que o Presidente da República ficou furioso quando, dias antes de sair a acusação sobre o assalto a Tancos, viu multiplicarem-se notícias de que ele estava a par de toda a trama ilegalmente montada para recuperar o armamento, sem que alguém do Governo saísse em sua defesa. Ausente do país, Marcelo abriu uma exceção e falou da política interna para mostrar que estava indignado — “O Presidente da República não é um criminoso.”

O clima de tensão foi tal que, quando António Costa lhe ligou para esclarecer o assunto, Marcelo não o atendeu. Ao lado do Presidente, o ministro dos Negócios Estrangeiros insistiu: “Senhor Presidente, o primeiro-ministro tentou falar-lhe.” Mas Marcelo fez-se de surdo. Depois de andar dois anos a impedir que Tancos fosse esquecido, não aceitava que o tentassem salpicar. “É verdade que o Presidente não lhe atendeu o telefone?”, perguntaram os jornalistas a António Costa. “Olhe, ofereço-lhe uma rosa”, disfarçou o primeiro-ministro, quando Tancos lhe invadiu a última campanha eleitoral.

O VERDADEIRO BLOCO CENTRAL

Marcelo e Costa não são de amuar. Quando divergem, encontram saídas (foi assim com vários diplomas do Governo que, para não serem vetados, foram negociados entre Belém e São Bento); se há uma situação de conflito, telefonam um ao outro e esclarecem; e quando não concordam tentam combinar como vão gerir o desacordo. Foi assim no início da pandemia, quando o Presidente, depois de se ter confinado em casa deixando o palco a António Costa, quis avançar para o estado de emergência contra a vontade do primeiro-ministro. Viveram dois dias de alta tensão, estiveram quase a embater de frente, mas acabaram por se articular, e Marcelo combinou com Costa que ele poderia anunciar o que aí vinha. “É este o método que seguem sistematicamente”, garantem em Belém. O que não evita uma permanente disputa de protagonismo.

Marcelo faz um discurso a prevenir para os riscos de populismos? Costa diz que “há discursos que parecem pintura abstrata”. Costa resiste ao estado de emergência? Marcelo diz que, “como toda a gente já percebeu, essa foi a decisão acertada”. Cada um tenta levar a taça. Mas, mais do que de confronto, esta é uma relação de dependência. “O destino dos dois está ligado”, assumem na Casa Civil do Presidente, onde as frustrações da direita, que acusa Marcelo de andar há cinco anos com António Costa ao colo, são retribuídas. “Era do interesse do país garantir a estabilidade política e financeira, e o Presidente nunca poderia provocar uma crise sem haver uma alternativa. E em boa verdade nunca a teve.” Para Marques Mendes, que conhece bem Marcelo, não é expectável que ele mude muito num segundo mandato, mesmo que a direita recupere, por razões que se prendem com a própria personalidade do Presidente.

“Não estou a vê-lo nunca a ser oposição ao Governo”, diz o conselheiro de Estado. Sobretudo quando o país precisa de convergência de esforços e “quando se percebe que os portugueses gostam deste bloco central institucional”. Mas um dos segredos desta dupla é que, no fundo, no fundo, eles não estão muito distantes ideologicamente.

Marcelo Rebelo de Sousa é um social-democrata e António Costa é um socialista moderado. Tão moderado que, ‘geringonça’ à parte, escolheu para lhe gerir as Finanças alguém que se ajustou facilmente ao cargo de presidente do austero Eurogrupo. Marcelo motiva-se com este criativo jogo político de António Costa. E António Costa, que adora puzzles e que na juventude era viciado no “Risco” (um jogo de estratégia), não imagina um Presidente mais estimulante. “Eles já não vivem um sem o outro”, conclui o melhor amigo do primeiro-ministro. Por muito que isso inclua diatribes, rasteiras e desconfianças ou, quem sabe, uma descolagem de Marcelo para, algures no segundo mandato, ajudar nos bastidores a influenciar uma liderança política alternativa à do seu velho aluno. A direita está triste. Mas não desistiu de contar com ele.