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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O rei vai nu

Por
Daniel Oliveira, 
in Expresso, 
08/08/2020

As suspeitas que recaem sobre Juan Carlos não são, na sua natureza, muito diferente das que recaíram sobre José Sócrates. Mas um foi detido à chegada a Lisboa, esteve preso em Évora, foi abandonado pelos seus correligionários e enfrenta um processo que o pode levar a uma pesada pena. Outro tem o presidente do Governo a apoiar a sua fuga indigna e a direita a exigir respeito e compreensão por quem é suspeito de fuga ao Fisco e corrupção.


Dizem os defensores da monarquia que a sua superioridade é preparar os chefes de Estado e as suas famílias para a representação do Estado. Uma superioridade que se baseia na ideia de que o privilégio garante mais sentido de dever do que a representação democrática. De que quem herda o poder o exerce melhor do que quem o conquista no voto. Tudo o que vemos no Reino Unido e em Espanha o desmente. Era a ignorância que garantia a gravitas da coroa. Como é ela que nos dá a ilusão do brilho incomparável dos grandes estadistas do passado ou da sobriedade incorruptível das ditaduras. Nenhum destes mitos sobreviveria ao escrutínio das democracias modernas. Nem os grandes estadistas que veneramos, nem os ditadores que branqueamos, nem os reis que protegemos. E só quem sobrevive a este escrutínio deve servir de exemplo. O que me leva a uma convicção contraintuitiva: nunca houve poder menos corrupto do que o atual, porque nunca houve poder tão escrutinado. Um escrutínio que torna todos os podres visíveis e nos oferece uma amarga sensação da decadência. Este paradoxo poderia levar a maior exigência dos cidadãos. Mas, porque haverá sempre corruptos, resulta em cansaço. E do cansaço nasce a indiferenciação. Os notáveis aldrabões que por estes dias ganham palco contam com isso. “Podia dar um tiro a alguém na 5ª Avenida e não perderia votos”, disse Trump, em 2016. Não estamos preparados para lidar com a verdade que exigimos. Ela pede demasiado de nós.

Os grandes estadistas que veneramos, os ditadores que branqueamos e os reis que protegemos não sobreviveriam ao escrutínio das democracias modernas

A monarquia não é mais corrupta do que a república. A diferença é que o monarca, mesmo depois de abdicar, não se livra do privilégio de berço que lhe ofereceu o lugar: a família, obrigada a carregar no cargo o fardo da ignomínia. Não vale a pena dizer que Juan Carlos é agora apenas um cidadão. Isso é falso, porque é por nunca o ser que ocupou o trono. E é por o poder ser transitório e nunca hereditário que a República se regenera.

A superioridade republicana é a sua humildade perante a fraqueza humana: as instituições não se confundem com pessoas ou famílias. Em janeiro, uma sondagem dizia que 43% dos cidadãos de Espanha apoiavam a monarquia e 42% eram contra. Quando chegar o seu tempo, uma regeneração republicana não será sinal de decadência, como teme o republicano PSOE, mas de progresso.

A História dá grandes saltos, e o papel da esquerda não é o de temeroso guardião do statu quo. Aceite-se o papel que Juan Carlos teve na transição democrática mas recuse-se a ideia de que a unidade de Espanha depende de uma família. Só a democracia e o diálogo a podem conseguir, através de uma federação plurinacional e multicultural. Para a construir, a coroa é um problema.

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