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sábado, 1 de agosto de 2020

Visão estratégica ACS

Por
João Abel de Freitas
Economista
31 Julho 2020

Yuval Noah Harari e António Costa Silva antecipam várias conjecturas possíveis para o futuro do trabalho e da economia, a partir das mudanças tecnológicas, e não só, que estão a caminho de se implantar a vários níveis e ritmos nas nossas sociedades, instituições ou empresas. 

Quando fores grande, talvez não tenhas profissão. 

Esta citação do livro “21 lições para o Século XXI”, de Yuval Noah Harari, publicado em 2018 com edição em português de agosto do mesmo ano, introduz o capítulo Trabalho uma das 21 lições explanadas, que se inicia da seguinte forma: 

“Não tenho a menor ideia de como será o mercado de trabalho em 2050. É relativamente consensual que a aprendizagem automática e a robótica irão mudar quase todas as áreas profissionais – da produção de iogurte ao ensino do yoga. Contudo, há perspectivas divergentes quanto à natural mudança e à sua iminência. Alguns crêem que, já daqui a uma década ou duas, milhares de milhões de pessoas se tornarão redundantes do ponto de vista económico. Outros defendem que, mesmo a longo prazo, a automatização continuará a gerar novos empregos e trará mais prosperidade a todos”. 

1. A primeira parte do livro, O Desafio Tecnológico, onde se enquadra a lição 2, Trabalho, merece referência num texto a comentar a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, proposta por António Costa Silva (Lisboa, 5 de julho de 2020). 

O Desafio Tecnológico, por sua vez, é antecipado em termos de conteúdo nesta frase: “A Humanidade está a perder a fé na narrativa liberal que dominou a política global nas últimas décadas, precisamente no momento em que a fusão entre a biotecnologia e a tecnologia da informação nos confronta com os maiores desafios que a Humanidade algum dia encarou”. 

2. Encontro alguma sintonia em António Costa Silva e Yuval Noah Harari nos temas da narrativa liberal e do desafio tecnológico. 

A Visão Estratégica, no capítulo 2 – A crise sistémica e lições para Portugal – aborda no ponto das vulnerabilidades do modelo económico e social vigente “o erro estratégico inerente à visão neoliberal do mundo que minimiza o papel do Estado e exalta o mercado, deixando nas suas mãos os sectores estratégicos da economia” e, em vários outros pontos, desenvolve o papel e o impacto do processo tecnológico na sociedade portuguesa e na economia futura do país. 

Os futuros 

3. Yuval Noah Harari e António Costa Silva antecipam, neste contexto, várias conjecturas possíveis para o futuro do trabalho e da economia, a partir das mudanças tecnológicas (e não só) que estão a caminho de se implantar a vários níveis e ritmos nas nossas sociedades, instituições ou empresas. 

António Costa Silva vai além e conjugando a evolução das tecnologias, o enquadramento geoestratégico e geopolítico de Portugal, as características e os constrangimentos estruturais do tecido económico e social do país, traça com alguma mestria seis futuros possíveis para Portugal. 

Mas podemo-nos questionar: a revolução tecnológica em curso num tempo de fusão das biotecnologias e das tecnologias de informação não terá impactos mais profundos, devido à natureza qualitativa diferente das anteriores? Ou será apenas o “tremendismo” de desemprego maciço sempre presente nas mudanças de tecnologia que está em ebulição?! 

Na realidade, desde o início da Revolução Industrial que estes “cataclismos aterradores” marcaram presença nas mudanças tecnológicas. Apesar do desconforto tremendo e penoso que representou para muitos trabalhadores a perda do emprego, a reconversão de funções ou, de forma mais dura e injusta, a miséria para muitos e respectivas famílias, quantas vezes o suicídio, o saldo, em termos globais, tem sido positivo, pois por cada emprego perdido criou-se pelo menos um novo e consolidou-se um salto qualitativo na melhoria de vida das pessoas. 

As máquinas nas revoluções tecnológicas anteriores competiam com o homem em termos da capacidade física, não penetrando em domínios como o da aprendizagem, da comunicação e, sobretudo, na compreensão das emoções humanas. Com as novas tecnologias a própria cognição começa a ser afectada e sê-lo-á cada vez mais. Já começamos a ver isso, nomeadamente na Inteligência Artificial. No Facebook é tanta a informação que se recebe, sendo a mais simples os pedidos de amizade. Ora isto significa que os algoritmos do Facebook estão em processamento contínuo de informação e a alta velocidade, dados os milhões de utilizadores existentes. 

Ficamos com a sensação que as mensagens nos chegam em tempo bem determinado a ver se surtem os efeitos pretendidos: influência, convencimento, aquisição de bens, manipulação de toda a ordem, incluindo a política. 

Mas, se pensarmos em outros domínios como o dos veículos autónomos (sem condutor) que estão aí a aparecer e outros de maior sensibilidade como a saúde, a situação é bem mais complexa e as perspectivas algo mais incómodas ou de muita incerteza, como grande parte de consultas médicas sem médico e com bons resultados. 

No caso do automóvel sem condutor, refere Harari que se registaram (2012) cerca de 1,25 milhões de mortos por desastre automóvel, decorrentes de erro humano. Com o uso do veículo sem condutor a redução da mortalidade baixará de 90%, ou seja, irá poupar-se a vida de um milhão de pessoas/ano. E o dilema é o confronto do número de mortos contra o de empregos. E não será absurdo, diz Harari: “boicotar a automatização em áreas como os transportes e a saúde só para proteger os empregos dos seres humanos?” 

Há quem defenda que nem todos os empregos serão dispensados e para sustentar as imensas frotas sem condutor é possível criar muitos outros empregos de qualificação diferente para outras funções complementares como operadores e planificadores informáticos, gestores… Admitamos essa possibilidade. Será que os condutores dispensados adquirem com facilidade as novas habilitações para essas novas funções ou será mais realista considerar que muitos não o vão conseguir e, aqui, geram-se dois problemas, o desemprego e/ou as reformas. 

Entrará gente jovem, positivo, sem dúvida, e com outra qualificação, mais adaptável, mas, socialmente, fica por resolver a situação dos que, de facto, foram dispensados. A realidade que se apresenta é, assim, cada vez mais complexa e incerta para uma grande parte da Humanidade, pois as actividades afectadas serão cada vez mais alargadas. 

Mas algo mais perturbador ainda poderá acontecer quando as tecnologias de informação e as biotecnologias tenderem para um casamento perfeito, e “em certas áreas de actividade possa ter cabimento substituir todos os seres humanos por computadores”. Provavelmente nem tudo será mau, mas terá de haver grandes alterações de fundo, de mentalidade, de planeamento, de ajustamento a um novo modelo económico e de organização social. 

A velocidade a que se apresenta a nova revolução tecnológica ou, talvez, com mais precisão as várias revoluções tecnológicas vão exigir respostas complexas por parte do ser humano que ninguém as tem. 

4. A Covid-19 é a grande prova disso. Não há soluções à la carte. Foram-se criando. 

A Humanidade não está preparada para tanta turbulência, embora algum trabalho de prospectiva, sustentado e dinâmico, ajudasse a equacionar e a programar com maior rapidez os problemas que foram/vão surgindo, porque proporcionaria pensamento acumulado. Evidentemente, uma revolução tecnológica não chega da mesma forma que uma pandemia grave, mas por vezes também traz surpresas inesperadas. Quem nos diz que, num futuro próximo, não terá de se pensar no achatamento da velocidade dessas revoluções tecnológicas, um ensinamento do combate à pandemia, para dar aso a que as diferentes instituições e empresas possam acomodar-se, preparar-se de forma mais ajustada às alterações de fundo, nomeadamente nos recursos humanos? 

A prospectiva decapitada 

A União Europeia já teve uma Célula de Prospectiva que, no mínimo, está moribunda. Vários países tiveram instituições de prospectiva e até Portugal iniciou alguma experiência neste domínio. A narrativa liberal que dominou a política global nas últimas décadas secundarizou todo este tipo de trabalho intelectual, como bem reconhecem os dois autores, reduzindo-o a um pró-forma. Ainda subsistem departamentos de planeamento, mas funcionando para outros fins! 

Segundo a narrativa liberal, estes trabalhos são desnecessários porque estão aí os mercados a promover os “equilíbrios”. E com este pano de fundo onde se encontraram Trabalho, Tecnologia e Economia avançamos com alguns comentários à “Visão Estratégica” de António Costa Silva (ACS) 

Comentários 

5. Um comentário prévio aliás na linha do que já escrevi num ou outro sítio, incluindo o Jornal Económico, e que reproduzo: 

“Ler nos jornais, ver e ouvir na TV que a transformação da economia portuguesa se fará com um plano da responsabilidade do Gestor/Professor António Costa Silva é um puro devaneio. É alimentar o ruído de um combate político sem conteúdo. 

A este ou a outro governo tem de se reconhecer o direito de poder contratar assessores, sobretudo, se de qualidade, para determinadas tarefas. Mais razão ainda quando, nesta área específica da Cenarização/Prospectiva, não há “massa crítica” no aparelho do Estado. 

Esta área foi decapitada, em pessoas e estruturas, há alguns anos por razões de vária ordem, como a da sua “desnecessidade” [os estudos deviam ser dados a equipas do exterior], e nunca mais refeita. E, assim, quando necessário, não há estruturas nem técnicos qualificados a quem encomendar pensamento estratégico”. 

Já houve anteriores crises de confiança na narrativa liberal em anteriores épocas da história. Na segunda metade do século XIX, após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial sucederam-se igualmente situações de crise, o que parece que só com o mar calmo a narrativa liberal navega sem dificuldades. O problema nasce com a tempestade, pois com ela o descrédito das suas soluções agudiza-se, porque as não tem convincentes. 

Também escrevi e é minha profunda convicção que a responsabilidade do produto final nunca caberá a ACS: “o Plano é da inteira responsabilidade do Governo e só ele será julgado pela competência que demonstrar ou não na sua concretização, pelos resultados que obtiver e pela transparência da sua gestão”. 

Breves notas acerca do documento apresentado 

6. É preciso clarificar o tipo de documento que temos. 

Efectivamente, não temos um Plano. Temos uma Visão Estratégica sobre a qual pode ser trabalhado um Plano de Transformação da economia portuguesa. Em algumas áreas, como na Indústria e Infraestruturas, o documento até vai bem longe porque avança com propostas de medidas de política. 

Estamos perante um documento de reflexão onde se articulam ideias interessantes, bem elaboradas, nomeadamente nos domínios do enquadramento geostratégico e geoeconómico e, de algum modo, decorrente destes dois e de recursos detectados no mar dos Açores, é proposta a grande ideia da Universidade do Atlântico. Para mim, a mais inovadora do documento. 

Esta ideia precisa de ser bem alimentada e burilada sob pena de morrer antes dos nove meses. E incorpora em si a economia do mar de que tanto se fala e pouco se pratica (o cluster do mar). Uma ideia de grande alcance e muito de sonho que precisa de ser bem fatiada. Aqui também houve estragos no passado, construção naval, frotas, rotas marítimas, pesca… Há fatias em fases de maturação diferente, algumas que podem ser executadas com alguma rapidez, outras aí a cem anos… 

Os 10 eixos estratégicos, correlacionados com nove objectivos, entendo, são em demasia. Poderiam estar arrumados de outra maneira e por vezes melhor formatados. Outros não são bem eixos, mas uma junção de áreas sem grande conexão. Como exemplo, choca-me a mistura da Cultura, Serviços, Turismo e Comércio, como eixo estratégico. 

Parece até por ser o décimo que, por qualquer razão, estaria em falta falar daquelas actividades e então a solução foi “encaixotá-las” num mesmo eixo. Aliás, esta necessidade pode decorrer da “filosofia” dos Ministérios o que, em vários casos, leva a “entortar” ideias bem alinhavadas. Apostaria num eixo estratégico autónomo forte da Cultura, sustentado sobretudo nas actividades criativas e performativas. Bem merece sê-lo pelas potencialidades de arrastamento da economia e até pelas várias considerações de qualidade que ACS faz sobre a Cultura no documento. 

Porque afirmo que dez eixos são demais? Muitas frentes são difíceis de agarrar, e com cinco ou seis eixos selectivos é possível ir muito longe e transformar a economia. 

Feitas estas observações genéricas, olho para o documento como um produto bem pensado, de boa qualidade e que prova em si os vastos conhecimentos de quem o elaborou. Apesar deste reconhecimento sinto duas lacunas na reflexão. Por um lado, a quase ausência do vector demografia, embora com um ou outro toque menos tradicional e, uma certa “fuga” em tocar em estruturas existentes (estatais e para-privadas). 

Nestas últimas, há uma realidade bem diferente da dos princípios dos anos 1990. Dificilmente se aceita a ausência de reflexão numa Visão Estratégica sobre uma componente instrumental existente no terreno: a dos vários centros tecnológicos disseminados pelo país a trabalhar com as empresas na transferência de tecnologia e inovação. São instrumentos a agilizar com um papel determinante no sucesso de um Plano de transformação da Economia. Importante a sua articulação com os laboratórios centrais do Estado. 

Não posso deixar de referir dois eixos que entendo determinantes: a saúde, que retirou grandes ensinamentos no combate à pandemia e há muito a fazer para alargar esta área com funções muito bem definidas entre público e privado e as fileiras industriais a desenvolver. Segundo eixo, as infraestruturas físicas terrestres e marítimas, sendo que muitas delas há muito deveriam estar executadas. 

Noto outra lacuna, as estruturas gestoras da concretização do Plano, eficientes e desburocratizadas, e de elevado rigor, dependerão de quem? Gosto de estruturas de missão. Apenas para a “revolução industrial” (reconversão e reindustrialização) uma das áreas bem caracterizadas, articulada com os vários tipos de recursos do País, é apontada uma estrutura, digamos uma espécie de PEDIP, espero, mais operacional e com linhas estratégicas de fundo bem claras, necessariamente entroncadas nesta Visão Estratégica. 

Finalmente e deveria ser antes: como vai o Governo fatiar, agora, esta Visão Estratégica em três ou quatro partes (grupos de trabalho) no sentido de dar corpo a um Plano Operacional Global sustentado em subplanos, onde a cultura não pode deixar de estar presente. Não aprecio um País que não aposte na sua cultura de forma abrangente. A cultura fornecedora de inputs aos outros sectores. 

Nota final. Portugal nunca teve, em democracia, um plano estratégico global aprovado. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

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