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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Da fisga à bazuca


Por
28 Setembro 2020

No campo da gestão, em vez da mini remodelação que o primeiro-ministro “desenhou”, fazia mais sentido um Governo Novo, menos disperso e mais coeso, orientado para a execução do Plano de Recuperação e Resiliência. 



Há uma aceitação generalizada em Portugal e na Europa do montante das verbas disponibilizadas pela União Europeia para os países membros atacarem os efeitos da Covid-19 na saúde, no colapso das economias e nas sociedades. 

Face à perspectiva inicial de que a União Europeia ficasse pela fisga chegou-se à bazuca das verbas – uma expressão simbólica consagrada por António Costa, primeiro-ministro, que se tornou comum e simpática. Portugal vai dispor da sua “bazuca” comunitária, parte das verbas a fundo perdido e outra por empréstimos em condições favoráveis. 

A grande questão é como vai o Estado português manejar a bazuca? 

Vai empenhar-se na transformação radical do tecido económico e empresarial, de forma a gerar mais riqueza e proceder a uma melhor distribuição da mesma pelos portugueses? 

Terá o País uma visão estratégica, solidamente desenhada, planos e projectos coerentes, sustentados e interligados com a perspectiva europeia e internacional para a aplicação das verbas obtidas? Estará o País a definir, preparar e qualificar estruturas de gestão eficientes para gerir a bazuca e, desta forma, operacionalizar uma reforma eficaz, com respostas na hora, nos vários domínios intervenientes da Administração Pública? A experiência passada não é uma boa carta de recomendação. 

Vou socorrer-me de ideias retiradas de relatórios das equipas de avaliação de Programas Comunitários anteriores sobre os impactos no tecido produtivo e económico do País da aplicação das verbas. Como ponto de partida a entrada de Portugal na CEE, em 1986, deixando de lado a discussão se foi bem ou menos bem negociada a adesão, de nenhuma importância nesta abordagem. 

O que constatámos 

No período anterior à adesão, o País passou por uma grave crise, tendo de recorrer, pela segunda vez no pós-25 de Abril, à intervenção do FMI sob pena de bancarrota. Também sabemos que as medidas impostas pelo FMI se traduziram em resultados duros: queda da produção nacional, alto índice de desemprego, descida dos salários reais, perda do poder de compra, enorme pressão na tesouraria das empresas e salários em atraso. Enfim, toda aquela ladainha de males por demais conhecidos, decorrentes da aplicação da ‘receita FMI’. 

Com a adesão começaram a afluir ao País verbas avultadas e da sua aplicação resultou crescimento da economia. De facto, nos primeiros anos, os crescimentos do PIB são significativos com o País a aproximar-se lentamente da Europa. 

Nos trabalhos de avaliação dos especialistas releva-se que o crescimento inicial ficou a dever-se sobretudo a efeitos quantitativos. A especialização produtiva, a baixa competitividade continuaram e, em determinadas situações, as vulnerabilidades do tecido económico e produtivo agravaram-se. Dispondo de dinheiro avultado para investimento, que razões levaram o País a prosseguir no caminho do “mais do mesmo”? Simples. O País não preparou a adesão e as consequências tornaram-se cumulativas. 

A ausência de estratégia de fundo, baseada em objectivos de longo prazo, tendo em conta as alterações tecnológicas, de mercado e de exigência de recursos humanos qualificados aos vários níveis, penalizou o percurso futuro. Ou seja, Portugal sem programa coerente de aplicação dos fundos, pelo menos, nos investimentos públicos, não deu a volta. E se a isto juntarmos alguns “fumos” de influências nefastas… piorou ainda a aplicação das verbas em projectos de transformação. 

Faltaram as prioridades e a gestão. Apostou-se nas infraestruturas, em prejuízo da qualificação do factor humano e, mesmo neste investimento, a desarticulação era visível porque pouco sustentado em aspectos técnicos, económicos e do território. 

Alguém compreende que depois de tantas verbas investidas, por exemplo, na linha ferroviária Lisboa/Porto a situação esteja ainda por resolver?! Aguardemos que seja nesta nova vaga de fundos! No entanto, a rodovia avançou a grande velocidade. Era preciso gastar as verbas comunitárias de qualquer modo para evitar “a guilhotina”. 

As equipas de avaliação questionam também o tipo de investimentos, a aposta preferencial no projecto individual (digo eu, uma aposta desgarrada), com ausência de uma filosofia de interrelação tipo cluster, sem incentivos a privilegiar projectos conjuntos que criariam, sem dúvida, amplas sinergias e interacção entre empresas, centros de investigação e universidades. 

Desta forma, dar-se-ia robustez a uma especialização mais diferenciada da estrutura económica, ter-se-ia travado a desindustrialização em tão larga escala que varreu actividades por inteiro como a construção e reparação naval, a electromecânica pesada e inclusive o investimento da Renault, um projecto do pós-25 de Abril com alguns erros de raiz e sobretudo sem acompanhamento institucional, o qual teria permitido introduzir correcções a tempo ou ainda evitado a paralisação/retracção de pólos de desenvolvimento como a Mitrena em Setúbal. 

Há cerca de 20 anos escrevia, a propósito do desinvestimento estrangeiro[1], “o IDE em Portugal parece ter sido antes um produto decorrente de uma conjuntura pontual acolhedora e menos a resposta a condições de atractibilidade, induzidas pela qualidade competitiva do ambiente empresarial e sua envolvente”. 

Nestas notas, sintetizo preocupações que penso transversais a muita gente de linhas de pensamento diferentes e aponto domínios a equacionar para que a bazuca funcione e se evite daqui por dez anos repetir as mesmas coisas. 
Arrancamos com alguma vantagem. A visão estratégica de António Costa Silva, amplamente discutida e participada, um trabalho de qualidade. O Governo tem de conciliá-la com os objectivos de Bruxelas (alterações climáticas e digitalização) dar-lhe conteúdo político e estabelecer o programa final. 

Uma visão estratégica que, no entanto, peca por não colocar a Cultura no lugar devido de transformação económica e societária do País. A língua portuguesa é, por exemplo, um elemento estratégico chave. 

Penso haver eixos estratégicos em demasia. Muitos deles são complementares e havia que imprimir-lhes maior coerência, mas admito as dificuldades. 

O que falta então? 
Um guião de execução do Plano a desenvolver em duas frentes. 

Primeiro, o desenho aprofundado por eixo estratégico onde se explanam as múltiplas inter-relações, incluindo até verbas indicativas, distinguindo bem entre o imediato a fazer para suster o que existe e o médio e longo prazo, ajustado aos calendários preconizados pela União Europeia. 

Segundo, o desenho do perfil das estruturas de gestão (estrutura de missão) e qualificação das pessoas. Tudo pensado de forma integrada na Reforma da Administração Pública (AP). As reformas não se fazem no vazio, mas para responder às necessidades de decisão. Estamos perante uma situação dessas. 

Nos programas anteriores foram criadas estruturas de gestão, desligadas da AP, que em muito pouco contribuíram para a agilizar. Pelo contrário, desmobilizou-a. Já foram criados instrumentos novos como o Banco de Fomento, mas desconhece-se o “estado da arte”, embora pelo pouco que nos vai chegando persistam dúvidas sobre o seu funcionamento. 

Quanto aos restantes domínios, as dúvidas não são menores a começar pelo modelo de governação. Não se vê/sente trabalho articulado entre os diferentes Ministérios que terão (presume-se) intervenção directa nos diferentes eixos estratégicos. Por exemplo alguém sabe como estão a decorrer os trabalhos de conjunto nos Ministérios do plano, saúde, economia, ciência, educação e finanças sobre o eixo 3 – o sector da saúde e o seu futuro – aquele para todos o mais importante?! Devem existir mas não se sente. 

Plano de Recuperação e Resiliência 

O Governo apresentou recentemente um documento de aplicação das verbas a fundo perdido (12,9 mil milhões de euros) que intitulou Plano de Recuperação e Resiliência. A este documento faltou o enquadramento no global e francamente esperava mais que um simples enunciado de intenções. 

E, no campo da gestão, em vez da mini remodelação que o primeiro-ministro “desenhou”, fazia mais sentido um Governo Novo, menos disperso e mais coeso, orientado para a execução do Plano de Recuperação e Resiliência e do Plano global. Constituiria um sinal exterior entusiasmante de uma aposta clara na execução do Plano. 

O País não pode perder uma vez mais esta oportunidade de Progresso. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

[1] Determinantes do Desinvestimento em Portugal – Gabinete de Estudos e Prospectiva Económica, Maio de 1998.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O colapso climático contado pelo capitalismo europeu


Por estatuadesal
João Camargo, 
in Expresso Diário, 
22/09/2020

A apresentação do Estado da União da presidente da Comissão Europeia na semana passada, apesar de aclamada por muitos euroingénuos, não provocou em Portugal grandes reacções. De quem esperava um plano, o famoso “European Green Deal”, que respondesse à crise climática, apareceu o que é costume: optimismo tecnológico irrestrito, ilusionismo e contas erradas. Cantar vitória no campo da crise climática quando as contas são cortar 55% das emissões de 1999 até 2030 é rejeitar a ciência.



Não é seguramente fácil ter de fazer o diagnóstico calamitoso da economia capitalista europeia (mundial na verdade), da degradação ambiental, social e política e, ainda assim, anunciar uma sucessão de iniciativas que vão ultrapassar estas as dificuldades e fazer florescer o lucro de privados sem destruir os estados sociais, quem trabalha e o ambiente do qual dependemos. No entanto, foi esse jogo de luzes que Ursula von de Leyden teve que montar na semana passada, para prometer aquela que foi chamada de “ambiciosa” agenda para o pós-COVID europeu. Sendo um longo discurso, muito de interessante foi dito, como o pedido em 2020 que todos os Estados passem a ter salários mínimos, a esperança que no futuro os Estados cumpram leis (apesar das várias experiências fascizantes) ou a promessa da União dos Mercados de Capitais e a União Bancária para transformar a União Europeia no casino capitalista agora, quando os Estados terão de resgatar a quase totalidade da actividade económica. Cada vez mais o discurso público político europeu é expressão de alienação absoluta, mas é de destacar a audácia do pensamento irracional no que diz respeito ao combate às alterações climáticas.

Segundo van der Leyden, “temos mais provas de que o é bom para o clima é bom para os negócios e é bom para nós todos”. A frase, uma sucessão de absurdos, é a formulação necessária para conseguir chegar ao fim do discurso historicamente alienado. É uma frase que faz tanto sentido como dizer que “temos mais provas de que o que é bom para um condenado à morte é bom para um carrasco e para a multidão que assiste à execução”.

A presidente da Comissão afirmou que o Negócio Verde Europeu é o plano para a transformação necessária para ter mais espaços verdes, ar limpo e saúde mental e física. No entanto, o aprofundar da explicação tornou bastante claro que, em termos climáticos, o plano não responde sequer ao previsto no Acordo de Paris: travar o aumento de temperatura abaixo de 2ªC, idealmente nos 1,5ºC, até 2100. As contas são relativamente simples: segundo relatório de 2018 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, é necessário cortar 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, comparando com o ano de 2018. O que nos propõe então van der Leyden?

- Neutralidade de carbono até 2050. Porquê focar em cortar emissões, quando se pode criar um pacote em que os sumidouros de carbono aparecem magicamente para “anular” as emissões (através da tecnologia de captura e armazenamento de carbono que não funciona, de plantações florestais por todo o lado como se os incêndios não cubrissem cada vez maiores áreas e até - isto foi mesmo dito no discurso - a construção civil tornar-se num sumidouro de carbono), e até 2050, porque as datas não contam para nada e 2050 é mais bonito que 2030.

- Cortar 55% das emissões de gases com efeito de estufa na União Europeia até 2030. Este parecia ser o grande trunfo, e até parece à primeira vista ser mais ambicioso do que a ciência exige. No entanto, há malabarismo. A UE promete cortar 55% das emissões usando como ano base 1990 e não 2018 ou 2020. Como as emissões internas baixaram 25% desde 1990, o truque só serve para enganar quem quer ser enganado. Usar percentagens em vez de valores concretos de emissões é uma excelente maneira de criar as confusões necessárias para não travar o colapso. Em 2030 a União Europeia deve poder emitir perto de 0,9MT de dióxido de carbono equivalente, mas a proposta de van der Leyden é emitir 2,5MT, uma erro de 170% e a composição química da atmosfera não terá flexibilidade política para negociações. Além disso, se justiça histórica significasse alguma coisa para a Comissão Europeia, teriam de ser cortadas muito mais do que os 50%, já que a responsabilidade histórica da Europa pela emissão de gases com efeito de estufa é muito superior à da grande maioria dos países do mundo.

- Que o combate às alterações climáticas se torne um hub para todos os entusiasmos tecnopositivistas (partilhados pelo governo português), com tecnologias como o hidrogénio a ser apresentadas como panaceias de que é possível manter o capitalismo e travar o colapso climático. Como apogeu, descobrimos que uma fatia do dinheiro do Negócio Verde Europeu, cujo principal objectivo é a descarbonização, irá para o gás, outro combustível fóssil que recebe uma linha de crédito público para acelerar ainda mais a corrida para o precipício.

A Comissão Europeia confirma uma vez mais que usa a acção climática como ferramenta de propaganda política para agradar a progressistas distraídos e cativar novos empreendedores e investidores. As meias medidas na crise climática são inúteis e, uma vez mais, a Comissão Europeia mostra como as instituições da elite do capitalismo mundial são o maior entrave à acção climática e à justiça social que podem travar o colapso climático. Por isso mesmo, importa recordar que dia 25 de Setembro as greves climáticas voltarão às ruas por todo o mundo, contestando esta impotência e contrapondo a sua força social, que no dia 5 de Outubro, em Portugal, os Anticorpos organizam uma acção de desobediência civil de massas e que, em Novembro será assinado na Escócia e por todo o mundo o Acordo de Glasgow, que pretende levar o movimento global pela justiça climática para uma nova etapa organizativa. Outra história tem de ser contada.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Não deixem aos populistas a conversa sobre a corrupção…


José Pacheco Pereira, 
in Público, 
19/09/2020

Não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.


… porque senão eles tornam-na num ataque contra a democracia, usando como pretexto a corrupção, que lhes é verdadeiramente indiferente. Mais do que nunca, temos que ter uma conversação rigorosa, dura, intransigente, mesmo impiedosa, sobre a corrupção. Por vários motivos: um, estrutural, porque a corrupção é endémica em Portugal; outro, de circunstância: porque vem aí da Europa o alimento da corrupção, milhares de milhões de euros. Já se vêem os bandos de pombos atrás do milho. Por último, porque nada mais fragiliza a democracia nos dias de hoje do que a corrupção num debate público envenenado pelas redes sociais, com a crise de toda a informação de qualidade, mediada e séria a ser substituída pelo clamor populista e pela crise colectiva da “educação para a cidadania” dos seus cultores...

Comecemos pelo carácter estrutural da corrupção em Portugal nos dias de hoje. O que é que se pode dizer quando temos enredados na justiça, arguidos, acusados, indiciados, toda a panóplia de graus de indiciação, um antigo primeiro-ministro, vários ex-ministros, vários secretários de Estado, autarcas, dirigentes da administração pública, militares de altas patentes, responsáveis policiais, juízes, procuradores, dirigentes desportivos de grandes clubes, empresários, gestores de topo, deputados, banqueiros, personalidades do jet-set, génios das tecnologias, uma multidão de medalhados, doutorados, homenageados, por aí adiante. Quem é que escapa? 

O que aconteceu é que toda esta gente se encontrou uma ou mil vezes perante uma tentação a que não resistiu, ou que acolheu de braços tão abertos, que nem chega a ser tentação, felizes pelas oportunidades de ganhar dinheiro ilegalmente, de fugir aos impostos, de vender ou comprar um favor, de roubar com colarinho branquíssimo, de usar os seus conhecimentos nas altas esferas e os melhores conselheiros no mercado, para defraudar os “parvos” dos outros. Tiveram oportunidades, e criaram oportunidades, e é a facilidade com que isto aconteceu, e a fila enorme de gente importante que foi lá buscar o seu quinhão, que mostra que não é um problema de meia dúzia de corruptos, mas do “meio” que facilita o crime, ou seja, é estrutural e não conjuntural. Eles vivem no “meio” e são o “meio”.

Hoje isto é dinamite para a democracia. Já houve alturas em que não foi assim, ou não foi tão grave assim. Hoje, é. Os populistas usam a corrupção para atacar a democracia divulgando o mito de que regimes de ditadura como o de Salazar-Caetano não tinham corrupção. Completamente falso, e isso seria evidente se se tirasse a tampa da censura. Mas os políticos sérios em democracia ajudam a demagogia dos populistas a ter sucesso pela flacidez com que numa sociedade estruturalmente corrupta defrontam a corrupção. O problema da corrupção não vem da democracia, daí que o seu principal agente não seja sequer a chamada “classe política”, mas vem da sociedade, das debilidades do nosso tecido social, de uma burocracia assente em favores, da desigualdade de acesso ao poder e informação, e das várias promiscuidades entre poderes fácticos, como o contínuo que vai da construção civil aos clubes desportivos e terminando no poder político. 

O problema é que os promíscuos não estão sozinhos, porque, se se pensa que o alarido populista significa verdadeira recusa deste tipo de actos, estão bem enganados. Como os culpados lembraram, faziam habitualmente este tipo de tráficos sem qualquer protesto, como se fosse normal e era reconhecido como normal. Até porque, como diz o ditado, o peixe apodrece pela cabeça e por isso, de cima a baixo, o sistema de cunhas, tráficos de influência, patrocinato e favores mergulha até ao fundo e, numa sociedade com este tipo de convívio com a pequena, a média e a grande corrupção, nunca haverá verdadeiro repúdio da corrupção a não ser nas bocas de café, agora transpostas para as redes sociais. 

Uma das coisas que faz o populismo é centrar as suas acusações à corrupção “deles” e isolá-la como alvo principal, deixando de lado o meio em que ela é partilhada com “forças de segurança”, “agentes económicos”, “empresários de sucesso”, magistrados, protagonistas de um mundo em que o populismo não toca. Já viram alguma especial indignação com a corrupção nos grandes clubes quando não é o “nosso”? Como se as pessoas que vociferam nos cafés e nas redes não tivessem uma ideia de onde vem e para onde vão os muitos milhões e milhões que custam os jogadores. 

Isto significa que não se pode fazer nada? Bem pelo contrário, pode até fazer-se muito, mas de um modo geral não é o que habitualmente se faz na resposta pavloviana à pressão populista. O populismo é contraproducente para combater a corrupção; pelo contrário, até a reforça. Não é aumentar as penas, não é diminuir as garantias do Estado de direito, não é oscilar entre a complacência e a intransigência. É pensar de uma ponta a outra a administração, das autarquias aos ministérios, é cortar radicalmente os milhares de pequenos poderes discricionários que por aí existem, obrigar a que sejam transparentes e escrutináveis muitos processos que nada justifica não serem públicos. Agora que vêm aí vários barris de dinheiro, é vital que tal se faça. 

Mas é também dar o exemplo de que não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

É precisa uma cidade para formar um cidadão


Por estatuadesal
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário, 
17/09/2020

A absurda polémica em torno das aulas de Cidadania e Desenvolvimento começou com um pai que decidiu que os filhos não iriam a aulas que a lei define como obrigatórias, inventando uma objeção de consciência que não está em lado nenhum. Como estava previsto na lei, os alunos reprovariam por faltas injustificadas. No entanto, e ao contrário do que foi dito, o Ministério, por considerar que os dois alunos menores não podiam ser prejudicados por uma decisão imposta pelos pais, propôs um plano de recuperação mínimo para que os alunos não ficassem retidos.



Este artigo do secretário de Estado explica que plano era esse, para ficar clara a aldrabice que nos andaram a vender: elaboração de trabalhos escritos e orais sobre a diferença entre as características da infância, da adolescência e da idade adulta; Educação Ambiental e Literacia Financeira; Direitos Humanos (especificamente Direitos da Criança); sustentabilidade; educação alimentar; atividade física; e igualdade de género, com uma reflexão sobre representações, preconceito e discriminação, centrando-se na capacidade de exposição e argumentação das ideias dos alunos. O pai recusou, porque, usando os seus filhos como armas, o seu objetivo era sobrepor-se à lei.

O debate que se gerou baseia-se em dois equívocos. O primeiro parece equiparar a cidadania à religião. A religião é opcional e cabe ao Estado defender a liberdade de culto. A cidadania é um dever e cabe ao Estado usar os instrumentos ao seu dispor (a escola é um deles) para a promover. O segundo equívoco julga que o Estado democrático é neutro. Não é. Ele promove, com base na sua legitimidade democrática, um conjunto de valores essenciais. Não é neutro em relação à homofobia, ao machismo e ao racismo, por exemplo. Porque não é neutro em relação a valores como a igualdade e a tolerância. Não se baseia numa “ideologia”, mas na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que Portugal é signatário. Há quem não goste, mas o Estado não se torna neutro por não gostarem. É o preço de viver em democracia. Em ditadura, de que algumas destas pessoas são saudosas, é muito pior: o Estado não precisa de outra legitimidade para além da vontade de quem manda.

Também não gosto da forma como a história do colonialismo português é ensinado nas escolas. Penso ser demasiado benevolente com o nosso passado coletivo e que isso tem efeitos no presente. Continuarei a bater-me para que esse consenso seja alterado. Mas não me considero no direito de decidir que esta cadeira passa a ser facultativas para os meus filhos. Porque não é assim que as coisas funcionam em sociedade. E se um criacionista recusar as aulas de biologia? E se um qualquer grupo cultural ou religioso exigir que a escolaridade obrigatória deixe de incluir as raparigas e fizer objeção de consciência? A escola respeita os pais, mas nem é um mero prolongamento da sua vontade nem os filhos são propriedade deles. Se assim fosse, a escolaridade obrigatória seria intolerável. Os pais decidiam se valia a pena. Ela, com os respetivos currículos, é imposta, queiram ou não queiram os pais que os seus filhos os aprendam.

Li, numa rede social, um comentário elucidativo deste tempo. Uma pessoa partilhava um trabalho do Expresso em que se explicava em que consistia esta disciplina e como funcionava. O artigo era factual. Uma outra pessoas respondia que não seguissem a imprensa tendenciosa, que havia coisas muito mais pormenorizadas no YouTube. O eurodeputado Nuno Melo até garantiu que uma aula de educação física tinha sido interrompida por uma palestra para explicar aos alunos 67 tipos de sexualidade, incluindo atração por objetos inanimados. Quando lhe foi pedido que dissesse onde e quando tal tinha acontecido, recusou-se a esclarecer. E é este o problema: anda tudo a contar meias-verdades, meias-mentiras ou mentiras completas sobre este tema. E de repente acontece uma coisa extraordinária: com milhares de crianças nas aulas de cidadania e desenvolvimento, as pessoas falam do assunto como se estivessem a falar de uma realidade distante, que lhes chega por via das redes sociais.

São estes os domínios obrigatórios para todos os ciclos de ensino das aulas de cidadania: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde. São estes os domínios obrigatórios para os ciclos de ensino básico: sexualidade, media, instituição e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, risco e segurança rodoviária. Os domínios opcionais são empreendedorismo, mundo do trabalho, segurança, defesa e paz e voluntariado.

São estes os domínios que realmente preocupam os conservadores que querem que a cidadania seja facultativa: igualdade de género e sexualidade. São os mesmos assuntos que os preocupam sempre, pelos quais são, aliás, obcecados. Quanto ao primeiro caso, terão de mudar a Constituição: a discriminação por género ou orientação sexual, assim como étnica e outras, é combatida pelo Estado português. E a escola tem o dever constitucional de promover a igualdade. Quanto à segunda, pedem-nos que sejam eles a não tratar do assunto. E quando vem um referendo ao aborto, passam a pedir que o Estado prenda as suas filhas se o fizerem e que não se deve legalizar, deve-se ensinar... para depois não quererem que se ensine. Exigem que a sua negligência seja política de Estado.

Acontece que a ignorância neste tema produz vítimas. As primeiras são os seus filhos, negligenciados por ignorância, medo ou convicção dos pais, numa área fundamental da sua formação enquanto pessoas. As segundas são os frutos dessa negligência, crianças que surgem numa fase demasiado precoce da vida dos seus pais adolescentes. As terceiras são muitos milhares de jovens que sofrem na pele a discriminação, o sentimento de culpa, a indizível dor de se sentirem anormais por serem aquilo que são. As quartas somos todos nós, que temos de lidar, enquanto sociedade, com gravidez adolescentes, abortos legais ou ilegais e gente profundamente traumatizada. A escola não educa, dizem eles. Mas enganam-se. Educa cidadãos e seres humanos.

É preciso uma aldeia para educar um filho, diz-se. E para o defender também. Eu acrescentaria que é preciso uma cidade para formar um cidadão. Na forma como nos organizamos, essa aldeia ou cidade é a escola. Não substitui os pais, mas participa na preparação da vida dos seus filhos em comunidade. Desde que há escola que assim é, não vai mudar agora. O que muda é o que se ensina, porque mudou a sociedade.

Tendo perdido o domínio que tinham desta função, exercido antes pela Igreja ou pelo Estado autoritário, os ultraconservadores propõem uma impossibilidade: que a sociedade seja composta por núcleos familiares isolados que não partilham deveres, direitos e valores mínimos de convivência. Esses valores, que incluem os da igualdade, estão definidos na Constituição. Cada um manterá as suas convicções e as passará aos filhos, mas a sua aprendizagem na escola não é facultativa.

O que é milagroso? Que, em pleno regresso às aulas depois de meio ano com as escolas fechadas, estas pessoas tenham conseguido que o tema dominasse o debate público durante quinze dias. Um tema que preocupa um nicho da sociedade portuguesa. Por isso, demorei este tempo a tratar do assunto. Não fazer a vontade a políticos despertados por atenção que, dizendo-se representante das preocupações do português comum, vivem, nestes tempos difíceis, a léguas das verdadeiras angústias dos pais.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

VICENTE, ‘IN MEMORIAM’


Por estatuadesal
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 
12/09/2020

A conversa começaria assim. Vicente, tenho de escrever sobre uma pessoa que morreu de quem gosto muito. Sabes como é, a chatice dessa espécie de obituário doloroso, a morte do amigo, do colega, da pessoa que fez parte da nossa vida durante anos, tão perto como família, uma das pessoas com quem crescemos e aprendemos.



O Vicente faria uma daquelas caras com um sobrolho levantado, o lábio de baixo descaído numa espécie de desgosto, levaria a mão à cabeça e apercebendo-se que o cabelo se tinha ausentado, tiraria os óculos e limpá-los-ia com toda a consciência, como quem lava um vidro de uma janela para ver melhor. Eh pá, eu sei, é uma chatice. Mas não puxes ao sentimental, conta uma história cómica, o homem parece que tinha o seu feitio, fez coisas importantes. Das coisas importantes falam, conta as histórias. Não pendas para o trágico. E eu responderia, como é que vou pender para o trágico se ele de trágico não tinha nada? Era um homem muito divertido.

Era um homem livre. E um grande jornalista, um grande diretor. E toda a gente gostava dele, apesar das discussões épicas sobre miudezas, sobre coisas sem importância. Havia um entendimento secreto, simples. A falta de qualidade deve ser rejeitada, e um jornalista tem de trabalhar em duas frentes: escrever e pensar com o rigor moral da liberdade. Era assim que o Vicente Jorge Silva trabalhava e aplicava a si mesmo as regras da exigência.

No dia em que a Revista do Expresso fechava, durante toda a noite, vinha uma hora em que o Vicente se abrigava no gabinete e berrava, vou escrever a minha cronaca. Crónáca. Assim. E enredado em escrúpulos gramaticais e lexicais, fumando um cigarro a que chamava o paf paf, paysage audiovisuel français, vá-se lá saber porquê, remoía com alguns de nós o tema da coisa. Ou remoía antes ou remoía depois, quando a crónáca estava escrita, mas não pronta. Era a hora da consulta popular, com meia dúzia de jornalistas que faziam o corpo da Revista do Expresso que o Vicente fundara com eles, ou do 1º Caderno, geralmente da Política. A crónica do V.J.S. abria a Revista e era maturada longamente e em coletivo. O coletivo justificava-se pelo facto de toda a Revista ser feita em coletivo, com um grupo de gente que vivia mais tempo na Duque de Palmela, e nos restaurantes da Duque de Palmela, incluindo o Pabe onde Francisco Balsemão tinha a mesa dele, a maior de todas, do que em casa.

A sede do Expresso era uma casa da democracia por duas razões. Porque quem era quem na democracia passava por lá, e tanto nos cruzávamos com um general no corredor como com um futuro ou passado primeiro-ministro, como a democracia interna do jornal era violentamente democrática. Toda a gente tinha uma opinião e toda a gente a dizia alto. Não existia a menor reverência perante o poder, pelo contrário. O único critério para ter opinião era ter qualidade. Ora, o Vicente era o vigilante de serviço, um astuto conhecedor da mediocridade e do oportunismo que verberava. Na Revista, a sua sede, o coletivo era constituído por um grupo de pessoas que se portava como uma família e o Vicente era o patriarca. Um patriarca bondoso, qualidade que ele tentava esconder com medo de o acharem macio e dúctil. Chamava-nos tontaços.

Ligeiramente surdo, gritava mais que toda a gente. Conheci-o antes, na casa de Mário Soares, em Nafarros. Era tudo o que eu achava que deve ser um jornalista. Via-se que afinava pela cartilha do Ben Bradlee no “Washington Post” do Watergate, a denúncia corajosa da corrupção e da amoralidade na política. Soares achava-lhe graça, gostava dele e nunca deixou de gostar mesmo quando foi picado por ele. Mas o que o distinguia era o amor pelo cinema e a literatura, pela cultura francesa e pela italiana, pelos cinemas esconsos da Rive Gauche de Paris onde comia e bebia filmes e pelas livrarias recheadas de debates e polémicas intelectuais que seguia com devoção. Nos anos 80, o mundo era um processo de descoberta da liberdade depois do 25 de Abril, mas o que tornava o V.J.S. diferente era o cosmopolitismo, tão diferente da escola de jornalismo ao tempo em Portugal, vetusta discípula de “O Século” e do “Diário de Notícias”. Esta escola tinha códigos e dogmas que a Revista rejeitou. Sem o Vicente, teria sido impossível estilhaçar o jornalismo canónico. E sem o cosmopolitismo do Vicente, teria sido impossível reunir aquele grupo selvagem de pessoas que não obedeciam a nada nem a coisa nenhuma. Com ele e com o António Mega Ferreira, outro cosmopolita, uma nova escola estava a ser inventada. Dela sairiam o “Público” e “O Independente”, e muita gente ilustre.

A fundação do “Público” teve momentos cortantes, quem foi e quem ficou. Eu fiquei, por lealdade ao jornal e a Balsemão e porque os textos que gostava de escrever não me pareciam de jornal diário. Trabalhara em dois diários e o ritmo era infernal e curto, partia-se sempre atrasado. Foi o que disse ao Vicente. Não foi fácil entremear a rivalidade com a amizade. Ele tinha um sonho, realizar um filme, uma longa-metragem, e o “Público” iria interpor-se entre o sonho e a realidade. O filme acabaria por vencer, quando se cansou do fecho diário e quando o “Público” estava estabilizado. A amizade ficou. Almoçávamos em ocasiões importantes. Quando ele resolveu ser deputado pelo PS. Vicente, vais aborrecer-te. Quando ele fez o “Porto Santo”. Vicente, não interessa nada se é ou não um sucesso, é um filme maravilhoso, tudo o que sempre quiseste fazer como cineasta. E quando ele conheceu a última mulher, Rosana, com quem ficou casado para sempre. Vicente, nunca te vi tão feliz. Tão harmonioso. Eh pá, que palavra foleira.

Creio que apesar de ter estado na origem dos grandes empreendimentos jornalísticos da segunda metade do século XX português, o Vicente se orgulhava mais do que tudo da família, a mulher e os três filhos. A mãe do primeiro filho morrera, uma mágoa da qual falava pouco. Ao herdar uma casa (um apartamento minúsculo) do Vicente quando ele se casou pela segunda vez, percebi que havia memórias que tinham ficado para trás. Fotografias. E o Vicente era descendente de uma família de fotógrafos da Madeira, a fotografia era para ele tanto ou mais importante do que a palavra e foi por causa disto que ele foi tão bom editor.

A morte dele é um bocado da nossa morte, ele foi um bocado da nossa vida. Era um tipo divertido. Realmente divertido. Lembro uma imitação que o Vicente fez do Eduardo Prado Coelho. Era a segunda eleição Mitterrand e encontrámo-nos todos em Paris. A Maria João Avillez, o Vicente, eu. No Marais, em casa do Eduardo Prado Coelho, conselheiro cultural. Casado com a Tereza Coelho, nessa altura da Revista, depois do “Público”. Um grupo de amigos aos berros no serão cheio de vitualhas, ninguém cozinhava, que todos tínhamos comprado e comido até fartar. Uma vozearia argumentativa e feliz, palavra foleira. O Eduardo despede-nos na porta com a frase, pelas quatro de manhã, e agora vou comer uma sandes de fiambre. O Vicente e eu, a caminho de um táxi, dobrámo-nos a rir. O Vicente a imitar “o Eduardinho”, de quem gostava muito, pespegado no meio da rua. E agora vou comer uma sandes de fiambre. Ficou a nossa piada particular. E agora vou comer uma sandes de fiambre. Lembro o E.P.C., lembro-me disto. Lembro o Vicente. Não consigo chorar.

sábado, 12 de setembro de 2020

Deslizes reprováveis


Pode ser legítimo, pode constituir um exercício de liberdade individual, mas não me parece correcto. Não é não me parece, constituem, isso sim, dois monumentais deslizes com efeitos políticos desagradáveis para o próprio e para o partido do qual é secretário-geral. O primeiro, deu-se naquele momento na Auto-Europa, onde, subtilmente, mostrou o seu apoio ao actual Presidente da República, esquecendo-se que as bases do seu partido têm, obviamente, uma palavra a dizer. O segundo, foi o  de permitir que o seu nome figurasse entre os nomes da Comissão de Honra da candidatura do Senhor Luís Filipe Vieira à presidência do Sport Lisboa e Benfica. Ambos os casos constituem deslizes reprováveis.



Começo pelo Benfica. Desde criança, talvez motivado pelas vitórias europeias nos anos 60, nutro simpatia pelo Benfica. Sou um daqueles que se o Benfica ganhar, tudo bem; mas se perder, também tudo bem! Simpatia é uma coisa, outra é viver doentiamente os resultados. Quero lá saber! Comigo, além fronteiras, o mesmo se passa com o Real Madrid. Sou sócio há 70 anos do Marítimo, com quotas pagas, mas há 40 que não entro no estádio. Ora, o Dr. António Costa pode ser fervoroso sócio do Benfica, mas não se pode esquecer que é Primeiro-Ministro. E não se pode esquecer que há processos que decorrem nos Tribunais que, alegadamente, não só não deixam bem vista a Magistratura, como pessoas activas no clube. Só por isto deveria ter o cuidado de não se envolver. 

Depois, a questão da Presidência da República. Não foi um apoio explícito, mas foi interpretado como tal. Os partidos não têm dono, mas às vezes parece-me que sim. O Dr. Marcelo R. Sousa foi, sem margem para qualquer dúvida, uma lufada de ar fresco depois de dez anos do Professor Cavaco Silva. Eu votei no Professor Sampaio da Nóvoa (independente) e voltaria a fazê-lo, embora, deste mandato do Professor Marcelo sejam poucas as situações que desaprovei. Gosto de um Presidente que esteja no meio do povo, mas aprecio, também, um certo recato, porque gosto de sentir que a Presidência constitui uma reserva de todos nós. Pessoalmente, o presidente não tem nem deve estar em todas as situações e muito menos falar de tudo. Porém, não deixo de sublinhar que, globalmente, fez ou está a fazer um bom mandato.

Só que, politicamente, o contrato com o Povo foi de cinco anos e manda a Democracia que, em Janeiro, tenhamos de escolher o nosso próximo Presidente. Seja quem for. Eu voto no perfil de um candidato, em alguém que tenha uma história pessoal para contar, voto nas características que o candidato reúne de inteligência, leitura e experiência internacional, capacidade de diálogo, respeitabilidade, serenidade, independência e honestidade. Neste momento, não voto, sequer, por ser candidato apoiado por este ou por aquele partido. Voto na pessoa.

De regresso ao Dr. António Costa, por respeito aos seus camaradas de partido e ao povo em geral, "dar com o cotovelo" no Professor Marcelo Rebelo de Sousa, tem explicação política, lá isso tem, mas "não vou por aí". Felizmente, no quadro das minhas referências políticas (ideológicas, também), sociais e culturais, há outras opções. Até porque não existem insubstituíveis, por maior agrado que tenham gerado.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A abjeção de eterno retorno


Fernanda Câncio, 
in Diário de Notícias, 
05/09/2020

Desde 1984, quando se decretou que devia haver educação sexual na escola, que periodicamente surge um escândalo fabricado seguido de manifesto para que tal não suceda. Nunca tínhamos era visto um ex presidente e um ex PM subscreverem a ideia de que a discriminação só se combate se os pais deixarem.



Em 2004, decidiu-se em França que na escola pública os alunos menores não podem comparecer ostentando símbolos religiosos. Anunciada sobretudo como uma proibição do véu muçulmano, a decisão incidiu sobre todas as formas de traje afetas à religião. Nem as meninas muçulmanas podem cobrir o cabelo com véu ou lenço - muito menos usar burqa ou niqab -, nem os rapazes judeus usar quipá, nem os cristãos exibir crucifixos. A lei foi apresentada como uma defesa da igualdade de género e da liberdade das crianças - "a sociedade francesa não pode aceitar atentados à liberdade dos sexos e ao seu convívio", lia-se no relatório de "sábios" que lhe deu origem -, e está em vigor até hoje.

Estranhamente, nunca vimos os habituais paladinos portugueses da "objeção de consciência" dos encarregados de educação face às imposições da escola pública fazerem referência a esta compressão da vontade e das convicções dos encarregados de educação, quanto mais contestá-la ou apresentá-la como "marxismo cultural", "ideologia de género" ou "politicamente correto".

Do mesmo modo, não vimos nenhuma dessas vozes rasgar as vestes quando em 2017 o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu razão à Suíça no processo que os pais islâmicos de duas meninas de 11 e nove anos ali tinham levado devido à multa de cerca de 1300 euros que lhes fora aplicada por recusarem que estas participassem nas aulas - obrigatórias - de natação.

Argumentou o tribunal que o interesse das crianças de terem acesso a uma educação completa deve prevalecer face ao desejo dos pais de terem as suas filhas isentas das aulas de natação. A disciplina de educação física, da qual a natação faz parte, é vista pelos juízes como tendo um especial papel no desenvolvimento e saúde das crianças, observando o acórdão que "a escola desempenha um papel fundamental no processo de integração social das crianças" e que "o interesse dos estudantes em participar dessas aulas não é apenas nadar ou fazer exercícios físicos, mas, sobretudo, participar dessas atividades com todos os outros alunos, sem qualquer exceção quanto à origem da criança ou às convicções religiosas ou filosóficas dos pais."

Convém talvez frisar que o motivo pelo qual algumas famílias muçulmanas - há muitos muçulmanos que não concordam com isso - querem que as filhas cubram o cabelo e de um modo geral permaneçam "cobertas", não participando em aulas de educação física ou natação, é a ideia de que existe uma diferença fundamental entre os sexos, com papéis de género muito definidos, e que as raparigas devem ser educadas de forma diferente e "protegidas" dos rapazes. Quem pensa assim considera ser seu direito inalienável impor essa perspetiva não só às suas filhas como à comunidade escolar, com o que tal implica de exemplo de discriminação - porque crê que as suas crenças religiosas estão acima de tudo. Como se viu, o TEDH rejeitou tal perspetiva, tornando claro que vê o direito das crianças à igualdade, à saúde e ao desenvolvimento pessoal como sobrelevando as convicções dos pais e considera que os interesses dos menores não são sempre melhor representados pelos progenitores, não sendo estes donos dos filhos. Afinal, aquela multa imposta pelo Estado suíço é uma pena pelo dano que infligiram às filhas - aos seus direitos humanos.

Sabemos que este tribunal nunca teve de apreciar um caso em que em vez de educação física esteja em causa uma disciplina que visa especificamente familiarizar os alunos com os princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e contribuir para que sejam cidadãos informados e responsáveis, como se passa com a disciplina portuguesa de Cidadania e Desenvolvimento. Mas em face da decisão citada parece pouco provável que aceitasse o mesmo tipo de argumentos daqueles pais para recusar uma disciplina que visa evitar comportamentos de risco, sensibilizar para as questões ambientais, promover a igualdade de género e a não discriminação e contribuir para o conhecimento pelas crianças e jovens dos seus direitos e deveres.

Falo, claro, do pai de Famalicão que quer ver a sua "objeção de consciência" à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento reconhecida na justiça depois de impedir os dois filhos de a frequentar e vê-los chumbar por faltas não justificadas por esse motivo. O caso, no qual a justiça portuguesa deverá ter em consideração a decisão de 2017 do TEDH, será interessante de seguir. Até porque veremos pela primeira vez tratada nos tribunais uma questão que está sempre a regressar à discussão pública, trazida sempre pelos mesmos - agora com o oportunista apoio de outros - e poderemos finalmente ouvir os argumentos dos que se lhe opõem tão desesperadamente.

Trata-se, como esclarece o progenitor em causa, Artur Mesquita Guimarães, da educação sexual. Porque é que tanto o apavora que a escola fale disso não diz; afirma apenas que é "competência dos pais". Também o manifesto que surgiu esta semana contra a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento repete a ladainha: "No programa da referida disciplina inclui-se ensinamento sobre matéria de opinião íntima pessoal, moral e religiosa. Esta matéria tem sido publicamente anunciada em vista a libertar os alunos de "preconceitos e estereótipos" relativos à questão de género, e alterar "costumes, atitudes e valores" em matéria de sexualidade, assuntos que pertencem à responsabilidade educativa da família e não do Estado."

Mete sexo? É com os pais. Não surpreende ver sob estas palavras as assinaturas de prelados e reconhecidos fundamentalistas católicos, como não surpreenderia ver a de fundamentalistas muçulmanos - os pais das meninas suíças impedidas de nadar assinariam de cruz. Mas encontrar ali um ex-presidente da República (Cavaco), um ex PGR e juiz do Supremo (Souto de Moura) e um ex primeiro-ministro (Passos), todos da democracia e portanto da obediência à Constituição em vigor e à legislação europeia, não pode deixar de chocar.

É que, como se lê na muito resoluta resolução do Conselho de Ministros chefiado por Passos que em 2013 aprovou o V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não-discriminação 2014-2017, "é tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre mulheres e homens, sendo princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa e estruturante do Estado de direito democrático a não-discriminação em função do sexo ou da orientação sexual."

Princípio fundamental e estruturante mas opcional, será? Parece que não: "A prossecução de políticas ativas de igualdade entre mulheres e homens é um dever inequívoco de qualquer governo e uma obrigação de todos aqueles e aquelas que asseguram o serviço público em geral."

Para tal, a resolução, cuja leitura se recomenda a todos e particularmente ao ex-primeiro-ministro que a assinou, privilegia "ações na área da educação enquanto pilar das políticas para a igualdade", nomeadamente "a produção do Guião de Educação, Género e Cidadania destinado ao ensino secundário (...) e que a igualdade de género constitua um eixo estruturante das orientações a produzir para a educação pré-escolar e para o ensino básico e secundário." Mais: reconhecendo que "tradicionalmente a sociedade portuguesa tem revelado alguma permissividade face às discriminações, no que diz respeito à orientação sexual e à identidade de género", anuncia-se como objetivo estratégico "prevenir e combater todas as formas de discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género e promover a sensibilização de toda a sociedade portuguesa para esta problemática."

Poderá Passos, como poderão Cavaco o ex-ministro da Educação David Justino, também signatário do manifesto - e que em 2004, enquanto titular da pasta, defendeu que a educação sexual deveria fazer parte, incluída "num conjunto de questões ligadas à educação para a saúde e cidadania", de uma disciplina obrigatória ao longo de sete anos -, alegar que mudou de ideias. Que afinal as discriminações não devem ser combatidas pelo Estado, que a legislação europeia deve ser ignorada, que a defesa da igualdade na escola é só se os pais quiserem e que se a sociedade portuguesa é permissiva face à exclusão de pessoas, incluindo crianças, por causa da sua identidade de género e orientação sexual, ou se os estereótipos de género continuam a penalizar muito as meninas e mulheres - como a resolução citada reconhece - olha, azar.

Pode Passos, como podem Cavaco e Justino, até defender a "imediata revogação das leis de igualdade de género", à imagem do partido que está a marcar-lhes a agenda. Podem, em inconsciência ou consciência, objetar à Constituição. Podem isso tudo - e nós sentir abjeção.

Jornalista

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Porra, morreu o Vicente! Não é justo.

Por 
Nicolau Santos

Acabo de levar um soco de todo o tamanho. Abri o site do Publico e li: «Morreu Vicente Jorge Silva, primeiro diretor do Público e um jornalista exigente que fez história no jornalismo». Não acredito. Então, Vicente, tu morres-nos assim sem mais nem menos, sem avisar, sem te fazermos um grande jantar e termos uma grande conversa, aos gritos, para tu conseguires ouvir?



O Vicente não foi apenas o primeiro diretor do Público, como titula secamente a notícia (que devia estar a abrir o site, porra! O Vicente é o Vicente, o pai do Público!). Foi o fundador (a ideia é dele) de criar um jornal diário de referência em Portugal, à semelhança dos grandes jornais norte-americanos e europeus. Foi ele que criou o núcleo que o acompanhou desde o início da aventura e foi ele que escolheu Henrique Cayatte para desenhar o jornal mais elegante e de melhor bom gosto do ponto de vista gráfico que alguma vez existiu em Portugal.

Mas foi ele também que tornou o Comércio do Funchal uma referência de liberdade nos tempos do fascismo, ou que criou a Revista do Expresso, outro projeto incontornável do jornalismo em Portugal, pela abertura à Cultura e ao noticiário internacional que trouxe aos leitores. Com o Vicente, Portugal deixou de ser uma paróquia jornalística e entrou na modernidade. O Público foi um projeto que, se fosse escrito em inglês, estaria ao nível do New York Times, do Washington Post ou do Guardian.

Para além do fabuloso jornalista que foi, o Vicente era também uma excelente pessoa, profundamente bom, intrinsecamente saudável. Num processo muito conturbado como foi a sua demissão do Público, tendo-lhe eu sucedido, encontrou-se comigo sem qualquer ressentimento para me dar os seus conselhos e fazer alguns avisos. Ao longo dos anos fomos falando e quando fez uma exposição de fotografia em Lisboa, uma das suas paixões, comprei-lhe um quadro com uma lindíssima foto que está à entrada da minha casa. É o mar na sua imensidão azul escuro ao lusco-fusco e uma pequeníssima luz bruxuleante no meio de um barco pesqueiro, uma foto tirada da janela de sua casa no Funchal com a máquina pouco sofisticada que utilizava.

Outros dirão muito mais porque sabem bem mais do que eu sobre o Vicente. Para mim ele será sempre o melhor jornalista português e uma pessoa que continuarei a admirar na sua genialidade, mas também na sua pureza e nos seus grãos de loucura, como aquele em que recusou submeter-se aos ditames de Juan Luís Cébrian, do El País, e terminou abruptamente a reunião, dizendo-lhe: «José Luís, são precisos dois para dançar o tango. E eu não quero dançar o tango contigo». Ou quando, no primeiro trabalho que fiz para a Revista, me perguntou aos gritos (era surdo e, por isso, falava muito alto) «mas quem são estes gajos, o Bagão Félix e o Augusto Mateus? Ninguém os conhece!».

Meu querido Vicente, estou em choque. Nunca mais ouvir-te ou rir-me contigo provoca-me uma tristeza do tamanho do mundo e seguramente para todos os que conviveram contigo. Eras um líder carismático mas, ao mesmo tempo, uma excelente pessoa. Olho pela janela e vejo o Tejo transformado em lágrimas. Até sempre, Vicente.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

A culpa é sempre do falecido?


Por estatuadesal
Francisco Louçã
in Expresso,
01/09/2020

Não é ainda público o relatório da Deloitte sobre o BES-Novo Banco (será que haverá uma tentativa de o manter secreto?) mas já surgiu, noite dentro, uma barragem informativa para interpretar as suas conclusões. O primeiro movimento foi o do comunicado do Ministério das Finanças, à 1h37' da manhã, que garante que as perdas “decorreram fundamentalmente de exposições a ativos que tiveram origem no período de atividade do BES”, ou seja, até 2014. Assim, por causa da herança maldita do BES, entre 4 de agosto de 2014 (o dia seguinte à resolução pelo Banco de Portugal e pelo governo Passos Coelho) e 31 de dezembro de 2018 teriam sido gerados 4042 milhões de perdas, que o Novo Banco veio depois a suportar (2300 milhões de euros em operações de crédito, 488 milhões em subsidiárias e 1234 milhões em misteriosos “outros ativos” não especificados). Em resumo, a culpa é do falecido.



Se for esse o teor do relatório, tem um custo, que não é ligeiro: significaria apontar a dedo os promotores de uma fraude encobrindo fraudes anteriores. Convém lembrar que, na resolução, foi garantido que tinha sido feita a separação dos créditos maus e que o Novo Banco estava livre de riscos; que o Banco de Portugal procedeu depois a uma segunda resolução, jurando então que não restava resquício de risco; que as autoridades de supervisão autorizaram e os auditores assinaram as contas, certificando o cálculo das imparidades; que a administração do banco, incluindo António Ramalho, publicitou que não havia nenhum defeito no provisionamento de créditos suspeitos ou arriscados. Ou seja, há seis anos que nos dizem que nunca poderiam surgir novas imparidades nas operações tão cuidadosamente verificadas.

Agora, é-nos dito que as perdas terão sido de 4042 milhões até 2018 porque essas contas eram falsas (espero que ninguém me tente convencer que créditos imobiliários devidamente avaliados se desvalorizaram em catadupa num período de auge especulativo da habitação), um número encantadoramente vizinho dos 3900 milhões que o Estado se comprometeu a pagar na eventualidade, dita impossível, de haver erros naquelas contas tão escrutinadas. Portanto, quem decidiu a resolução tê-lo-ia feito em inconsciência ou, pior, em consciência.

O coro de certezas sobre as contas certificadas cobriu todo o período desde a resolução (2014) até à venda à Lone Star (2016) e prolongou-se até hoje, só tendo sido interrompido quando, cada ano, foram reveladas novas perdas no valor conveniente para assegurar o cheque do Estado, tendo em cada ocasião a administração reiterado que se tratava da última vez. As contas foram sempre de confiança até à véspera de pedir a anualidade, e voltaram a sê-lo no dia seguinte, até à prestação seguinte. Ou seja, as contas foram sempre um embuste.

Diz-nos ainda o Público que o relatório da Deloitte, porventura pressionado pelas investigações jornalísticas, inclui a análise de uma operação de outubro de 2019, a venda da seguradora GNB Vida por 123 milhões de euros. A venda tinha sido aprazada por 190 milhões, quatro meses depois de o banco ter registado nas suas certificadissimas contas 400 milhões como valor deste ativo, e a Greg Lindberg, um financeiro norte-americano então acusado e agora condenado por crimes. Não sendo legalmente possível proceder a essa venda pela situação do comprador, o Novo Banco decidiu não anular o contrato, ao contrário do que aconteceu com outros negócios comparáveis na Europa, e esperar por um novo interessado, a Apax, que curiosamente tem sede no mesmo escritório de Lindberg em Londres e a quem fez um segundo generoso desconto, desta vez de mais 67 milhões, tendo ainda financiado esta operação. Essa perda foi, naturalmente, paga pelo Estado. Mas tudo foi aceite, era essa a natureza do contrato com a Lone Star.

A 14 de maio deste ano, na sequência da quezília entre Centeno e Costa sobre se devia ter sido feito o pagamento ao Novo Banco antes da auditoria, o primeiro-ministro, cedendo ao ministro, emitiu um comunicado em que se afirmava que “ficou também confirmado que as contas do Novo Banco relativas ao exercício de 2019, para além da supervisão do Banco Central Europeu, foram ainda auditadas previamente à concessão deste empréstimo”. E listava ainda as auditorias que garantiriam a correção das contas: “em primeiro lugar, pela Ernst & Young, auditora oficial do banco; em segundo lugar, pela Comissão de Acompanhamento do mecanismo de capital contingente do Novo Banco, composta pelo Dr. José Bracinha Vieira e pelo Dr. José Rodrigues de Jesus; e ainda pelo agente verificador designado pelo Fundo de Resolução, Oliver Wyman”.

A lista impressiona e, no entanto, nenhum destes auditores e autoridades terá cuidado da venda de um ativo de centenas de milhões de euros a um criminoso, com quase 70% de desconto, com prejuízo pago pelo contribuinte. Assim, quando à 1h37' desta madrugada o ministério nos revela que um relatório ainda secreto remeteria toda a culpa para o avô do Novo Banco e, porventura, para a desatenção dos auditores no passado distante, esquece com ligeireza algumas operações que decorreram durante o seu turno e, sobretudo, a incúria que permitiu que uma mentira tão repetida e tão evidente fosse aceite com a maior naturalidade.

Não é difícil concluir que o país foi enganado durante os seis anos desde a resolução e que nem houve muito esforço para disfarçar a trapaça.