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sexta-feira, 12 de julho de 2024

Esta senhora é perigosa


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
12/07/2024
estatuadesal 


Esta senhora, Lucília Gago, é perigosa. É certo que se vai embora dentro de três meses, mas a cultura que deixa instalada é, em si mesma, um perigo.



Das duas, uma: ou Lucília Gago não entende a gravidade das coisas que diz ou deixa por dizer, das coisas que cala ou consente, e isso é altamente preocupante, ou, pelo contrário, entende-o muito bem mas não o considera grave, e isso é perigoso. Mas depois de seguir atentamente a sua entrevista à RTP não me restam dúvidas algumas de que a hipótese válida é a segunda. A senhora procuradora-geral da República (PGR) não apenas defende a sua dama, os seus métodos e os seus resultados, como ainda considera quaisquer críticas à actuação do organismo a que preside nada mais nada menos do que o resultado de “uma campanha orquestrada”. Segundo o seu raciocínio, vivemos num país onde todos podem ser livremente criticados, como é próprio de uma democracia, e onde o Ministério Público (MP), que ela supostamente dirige, pode instaurar por sua única iniciativa processos de averiguações criminais ao primeiro-ministro (PM), ao Presidente da República (PR) e a quem mais entender, mas o contrário — qualquer crítica ao MP ou à PGR — só pode ser resultado de uma campanha orquestrada e necessariamente de má-fé. Porque eles são infalíveis, “altamente competentes” e não devem explicações nem pedidos de desculpas a ninguém. Mesmo que escutem a troco de nada um ministro durante quatro anos, mesmo que façam cair um Governo anunciando que o PM está sob suspeita num inquérito e depois o Tribunal da Relação reduza essa suspeita a simples ridículo, ou que mantenham durante anos suspensa a vida de pessoas suspeitas de pretensos crimes gritados para a praça pública e depois deixadas a vegetar na secretária de um procurador.

Nada, ela e eles não têm nada de que se arrepender, nada que explicar, nada que reflectir. Nem a banalização das escutas telefónicas, que de meio excepcional para a descoberta da verdade degenerou no meio habitual ou único de investigação. Nem a “normalidade” da detenção prévia de pessoas para interrogatório junto de um juiz de instrução, podendo esperar presas entre três dias ou três semanas, em lugar do que seria normal, que era convocá-las para o interrogatório e depois, se o juiz assim o entendesse, ficarem então em prisão preventiva. Nem a sistemática violação do segredo de justiça como forma de pré-julgamento público favorável ao MP e tão fácil de evitar se houvesse vontade de o fazer. Nem sequer, ela que se diz avessa ao “espalhafato”, ter uma palavra de arrependimento perante as espalhafatosas operações de busca e apreensão de meios de prova junto de suspeitos, transformadas em operações militares mediáticas como se de combate ao terrorismo se tratasse. Nem ao menos os grosseiros erros na interpretação da lei processual, como no caso do parágrafo que fuzilou António Costa, em que dois telefonemas de dois intervenientes do processo que diziam ir falar com o PM é levado à conta de “notícia de um crime”, como exige a lei para abrir um processo de averiguações.

Ilustração Hugo Pinto

Diz a senhora que se não tivesse aberto um processo de averiguações a António Costa e se o não tivesse divulgado publicamente — sem mesmo saber se ele chegou, de facto, a ter o tal encontro com os outros intervenientes e de que constou ele — estaria a fazer uma “tentativa de encobrimento”. Mas encobrimento de quê, senhora Procuradora? Se fosse possível acreditar na ingenuidade de quem dirige o MP, seria de ficar estarrecido ouvir a PGR declarar que investigar criminalmente o PM em exercício “não requer nenhum cuidado acrescido”, porque “ninguém está acima da lei”. Portanto, ela pode escrever os disparates que lhe ocorrer nos comunicados da Procuradoria sem ter de se preocupar se isso derruba um Governo, porque a única coisa que lhe interessa e que deve interessar aos portugueses saber é que dois escutados no processo Influencer foram ouvidos a dizer que queriam falar com o PM. “Crime!”, concluiu ela, que, todavia, confessou não seguir de perto nem sequer os processos mais sensíveis e mediáticos do DCIAP, porque interferiria na sagrada autonomia dos magistrados do MP, além de que são muito “minuciosos”. A sério? Em que outro país do mundo é que esta rebaldaria se passará? Em que outro país do mundo é que um simples procurador do MP pode abrir investigações criminais ao PM e ao PR sem que o procurador-geral acompanhe passo a passo a investigação e esteja ciente, por exemplo, da necessidade de evitar a “coincidência” da divulgação de investigações com momentos políticos sensíveis?

Mas o pior da entrevista de Lucília Gago, para mim, foi a arrogância e o tom de ameaça que ela utilizou no lugar das explicações devidas. Arrogância quando, confrontada com a disparidade das acusações do MP face às decisões dos juízes, respondeu que “é muito difícil admitir um erro do MP, porque os magistrados do MP envolvidos são de grande competência”. Os juízes, portanto, é que são incompetentes. Pior foram as ameaças: João Galamba foi escutado quatro anos e, afinal, não foi acusado de nada e nem sequer ouvido? “As investigações prosseguem.” António Costa foi investigado, mas não constituído arguido, e a Relação arrasou os fundamentos da investigação sobre ele? “As investigações prosseguem e se o inquérito não foi ainda encerrado é porque algo a tal obsta.” Ou seja, que ninguém descanse em paz, o MP pode demorar anos, décadas, mas, tal como os agentes do FBI, nunca larga os seus Al Capones.

Esta senhora, Lucília Gago, é perigosa. Ela não apenas despreza as críticas à actuação do organismo que dirige, venham de onde vierem, como nem sequer aceita que, tendo os poderes que tem nas mãos, o MP não pode funcionar em roda livre, sendo hoje o único poder não escrutinado em Portugal, apesar de deter essa arma letal de poder privar da liberdade e da honra qualquer um, culpado ou inocente. É certo que ela se vai embora dentro de três meses, mas a cultura que deixa instalada é, em si mesma, um perigo.

2 Outra senhora que se transformou num perigo é a NATO. Os seus 75 anos, agora celebrados, não são um período homogéneo. Até ao desmantelamento da URSS e ao consequente fim do Pacto de Varsóvia, a NATO foi essencial para preservar a paz na Europa e no Ocidente, como organização de defesa face à ameaça soviética. Com um sábio jogo de contenção e firmeza, a NATO acabou por vencer em toda a linha a Guerra Fria. Porém, como algumas vezes acontece na história, os vencedores da Guerra Fria não souberam administrar a sua vitória. Assim aconteceu em Versalhes, em 1918, em que a humilhação alemã conduziu à ascensão de Hitler e à II Guerra Mundial. Ou no Iraque, em que a vaidade imbecil do Presidente George W. Bush quis “completar” a vitória exemplar do seu pai na I Guerra do Golfo, com isso conduzindo toda a região ao caos permanente. Com o fim da ameaça que justificara a sua fundação, a NATO não só optou por não se extinguir como também se lançou, sem justificação plausível, no expansionismo em direcção à Rússia — que muitos, como Henry Kissinger, logo avisaram que não poderia deixar Moscovo indiferente. Pela mesma razão, porque Kennedy não podia aceitar mísseis russos em Cuba em 1963, também Putin avisou que não poderia aceitar a Ucrânia na NATO, e eventualmente com mísseis nucleares da NATO na sua fronteira sul — isso constava, aliás, implicitamente do Acordo Minsk II, que Moscovo e Kiev tinham assinado, sob os auspícios de Paris e Berlim. Mas os Estados Unidos e a NATO responderam a Putin que qualquer país era soberano nas suas decisões e que a geopolítica não contava ali para nada. E deu-se a invasão — a qual podia ter terminado logo um mês depois, quando Moscovo e Kiev chegaram a um acordo de paz mediado por Israel e a Turquia, em Ancara, mas que Boris Johnson, primeiro, e Lloyd Austin, secretário da Defesa americano, depois, boicotaram, convencendo Zelensky a não assinar, prometendo-lhe em troca as armas necessárias para derrotar a Rússia. A chave para o fim da guerra da Ucrânia é Kiev renunciar à adesão à NATO, em contrapartida da retirada russa dos territórios ocupados. Mas a versão que nos vendem é que a única alternativa é prosseguir a guerra até à derrota total da Rússia ou Putin virá por aí fora até ao Terreiro do Paço. E por isso nesta celebração dos 75 anos da NATO, verdadeira cimeira de guerra, em cima da mesa está a adesão “irreversível” da Ucrânia à NATO, para que o facto consumado evite qualquer tentativa de pôr fim à guerra através de negociações de paz. E assim, num mundo em que o dinheiro necessário para combater as alterações climáticas foi desviado para fabricar armas para a Ucrânia, onde falta dinheiro para acorrer in loco às necessidades básicas dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, vemos o Presidente dos Estados Unidos saudar os membros da NATO, que já aumentaram ou vão aumentar as suas despesas militares. E o secretário-geral cessante, Jens Stoltenberg, condecorado com a Ordem Presidencial da Liberdade, mais uma vez apontar à próxima fronteira e ao próximo inimigo da chamada aliança defensiva do Atlântico Norte: a região da Ásia-Pacífico e a China. É todo um horizonte de esperança a perder de vista. Se ainda houver próximas gerações, não lhes invejo a sorte.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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