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domingo, 23 de janeiro de 2022

Gás natural e nuclear: uma postura ecuménica da UE


Por
João Abel de Freitas, 
18 Janeiro 2022

Quando a Humanidade dominar a fusão nuclear teremos energia que não emite CO2, nem detritos radioativos, nem acidentes graves. Uma energia limpa em toda a fileira. Neste momento, a situação é de confiança na ciência.



Os factos

1. A escassos minutos da meia-noite de 31 de Dezembro de 2021, a Comissão Europeia fez chegar aos Estados-membros, como noticiou grande parte da comunicação social de toda a Europa, um projecto de rotulagem verde, que acrescenta o gás natural e a nuclear ao conjunto das “actividades virtuosas” para o clima, por entender que estas duas fontes de energia reúnem elevado “potencial de contribuir para a descarbonização da economia”.

Esta posição “ecuménica” de agradar a gregos e troianos não agradou a vários Estados-membros. Luxemburgo e Dinamarca manifestaram descontentamento pela inclusão da nuclear. A Áustria ameaça recorrer à Justiça europeia pela mesma razão. A Alemanha condena também a junção da energia nuclear e assume o desacordo com a França, através de declaração de 7 de Janeiro da Secretária de Estado Alemã dos Assuntos Europeus, sublinhando que a Alemanha conhece bem “a posição francesa sobre o nuclear”, da mesma maneira que Paris “sabe muito bem qual é a posição alemã”.

Os verdes europeus, com excepção dos finlandeses pró-nucleares, também condenam a atitude da Comissão. No entanto, dizem compreender que a Comissão tenha tido pressões dos lobbies do gás e do nuclear para fazer transitar estas energias do passado “a verdes”, destacando que o lobby nuclear é dirigido pelo Governo francês. A referência explícita ao Governo como lóbi deve-se à aposta de Macron que, ainda em Novembro último, foi claro na defesa da nuclear como energia de futuro para o seu país, sobretudo agora entusiasmado com as tecnologias de 4ª geração e as centrais de mini reactores SMR.

2. A propósito refira-se que a China, segundo a Agência de notícias Bloomberg (8 de Janeiro), pôs a funcionar, pela primeira vez no Mundo, um SMR ligado à rede eléctrica do País, com a capacidade de fornecer energia a 200 mil habitações.

3. O lobby nuclear está, de facto, activo. Em Outubro último, a França fez circular, na comunicação social europeia, uma posição em defesa da energia nuclear. Posição também assinada por vários países, Bulgária, Croácia, Eslováquia, Eslovénia, Finlândia, Hungria, Polónia, República Checa e Roménia. Muitos destes países estão em vias de abandonar a produção de energia a partir do carvão e a analisar o caminho a seguir.

As razões de protesto

4. Este alargamento da lista das actividades sustentáveis, embora com algumas condições restritivas, facilita o acesso a condições mais favoráveis ao financiamento dos investimentos das centrais a gás natural durante o próximo decénio e das nucleares nos dois próximos decénios.

Thierry Bretton, comissário europeu do Mercado Interno, estima que a nuclear de nova geração necessita de um investimento de “500 mil milhões de euros até 2050” e considera estruturante, no quadro da transição energética, o alargamento do rótulo verde bem como a corrida ao capital entre as diversas fontes de energia.

A questão dos financiamentos em condições mais favoráveis de custo e em concorrência é, de facto, a pedra angular da guerra dos lobbies. Ora, os lobbies das renováveis entendem que este alargamento desvia financiamentos e fundos comunitários para projectos no domínio da nuclear, ainda mais quando os pequenos reactores (SMR) estão a ganhar projecção na Europa e no Mundo.

5. A Alemanha, por seu lado, reconhece que não é maioritária na Europa na condenação do nuclear. Assume a posição por uma questão de “independência política”, nada dizendo, porém, sobre o gás natural.

A coerência

6. As razões subjacentes à condenação da nuclear e do gás natural como energias “limpas”, nada têm de comum.

O gás natural é de origem fóssil e, como tal, poluente lançando na atmosfera dióxido de carbono (CO2) e não se vislumbra no horizonte qualquer tecnologia que venha a resolver este efeito nocivo.

A sua inclusão é um puro contra-senso em termos climáticos. Como as energias renováveis são intermitentes precisam de outras fontes de energia para colmatar as falhas de produção que são muitas. Em sua defesa, surgem os lóbis e governos, sobretudo o alemão, defensores do gás e das renováveis.

Este tipo de argumento não colhe para a energia nuclear pois segundo alguns especialistas é a mais limpa e de produção contínua.

A questão está na segurança, o problema dos detritos radioactivos e os acidentes nucleares e não a qualidade da energia produzida. Os avanços tecnológicos são significativos e, agora, com os SMR, o risco torna-se ainda mais reduzido. Ficou, contudo, o sentimento profundo nas pessoas associando as bombas sobre Hiroxima e Nagasáqui na Segunda Guerra mundial.

Por outro lado, os três maiores acidentes nucleares foram dramáticos e, em especial, Chernobyl. Mas não houve acidentes por exemplo em França, o país que consome em termos relativos mais energia de origem nuclear (>70%). E ainda segundo indicadores da OMS para um período alargado incluindo Chernobyl, o número de mortes da nuclear é inferior ao de qualquer outra fonte de produção de energia.

Contudo, ficou intuído um sentimento de dimensão distorcido como ocorre com os mortos em acidentes de automóvel e aviação.

7. Assim, a Comissão na sua atitude de equilibrar os interesses incluiu o gás natural indo em contraciclo ao que se pretende na transição climática: “descarbonizar as economias”. Pensamos que deveria ter havido tratamento diferenciado privilegiando a Investigação e a Ciência, fundamentais em termos de Futuro.

Perspectivas

8. A energia nuclear avança em duas direcções:
Na produção segundo tecnologias de nova geração e SMR, na base da “fissão” nuclear, ou melhor, “cisão” na opinião de um amigo conhecedor. Fissão – diz – é termo de importação brasileira.
E na Investigação da fusão nuclear.

A competição entre a China e EUA neste domínio apresenta-se positiva.

Recentemente, a China deu um grande passo pois um dos seis reactores (EAST) experimentais, afectos à fusão nuclear, manteve o plasma durante mais de 17 minutos a temperaturas elevadíssimas. Para os cientistas, este avanço face ao anterior de três minutos é entusiasmante e uma boa referência.

9. Porquê a aposta na fusão nuclear?

Quando a Humanidade dominar a fusão nuclear teremos energia que não emite dióxido de carbono (CO2), nem detritos radioactivos, nem acidentes graves. Uma energia limpa em toda a fileira.

Neste momento, a situação é de confiança na ciência. A progressão é sustentada. Uma cooperação descomplexada entre os cientistas dos diferentes países, que há apesar de tudo, aceleraria os trabalhos experimentais.

Com a fusão nuclear dominada, a solução do problema da produção de electricidade é uma certeza. E o problema da transição energética fica em grande parte resolvido, dispensando-se eventualmente a prazo as renováveis de hoje ou serão exploradas para fins muito específicos, com a nuclear a substituir a sua função na produção de hidrogénio verde.

Com a tecnologia da fusão dominada e operacional atingiremos o grande objectivo: produzir energia eléctrica ilimitada e limpa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Serviço Nacional de Saúde: votar à esquerda ou à direita


Por estatuadesal
Isabel do Carmo, 
in Público, 
15/01/2022

Um estudo da Universidade Católica (UC) em associação com o jornal PÚBLICO e a RTP publicou como resultado, no dia 8 de Janeiro, que no topo das prioridades para o próximo Governo 43% dos inquiridos consideravam o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A partir daí passou a haver nuances nas posições à direita nos debates televisivos que são interessantes de observar. Por isso, ainda, convém relembrar o que são as posições de uns e outros. Trata-se, de facto, de um debate ideológico e que trata de ideias. Embora o pragmatismo seja necessário, mal de nós se deixarmos de ter ideias estruturadas, num mundo em que a superficialidade corre online e em que falta pensamento crítico. Cada vez que há uma proposta “prática” e “não-ideológica” devemos perguntar porquê.



Se seriarmos as propostas dos partidos, podemos começar pela Iniciativa Liberal (IL). O que propõe para a Saúde e para a Educação é que o Estado se retire dessas áreas, que passe a haver mercado livre na oferta e escolha de serviços de Saúde. Baseia-se em seguros. A solução é cara, demonstrado nos países onde são obrigatórios – Holanda, Alemanha, Suíça. A livre escolha agrada a muitos utentes, sobretudo se o acesso ao público é difícil. Mas os seguros, sejam eles obrigatórios ou livres, têm tetos conhecidos por plafonds. Por vezes terrivelmente desumanos, quando o teto chega a meio do tratamento oncológico ou das doenças neurodegenerativas.

Para o Centro Democrático Social (CDS), como os impostos têm que baixar, as pessoas pagariam de acordo com os rendimentos e as “classes mais desprotegidas” teriam as despesas pagas pelo Estado. Esta forma conservadora da “solidariedade” já não tem nada a ver com as orientações cristãs actuais.

O Partido Social Democrata (PSD) defende o SNS, mas considera que devem ser feitas contratualizações com o sector privado para consultas e acesso ao médico assistente. Propõe nova Lei de Bases para a Saúde. Na anterior, de autoria e prática governamental deste partido, a concorrência ou complementaridade do SNS e dos privados levou a dramático enfraquecimento dos serviços públicos. As empresas privadas de saúde não sobrevivem apenas com a clientela rica, os seguros e a ADSE. Sobrevivem com o financiamento do Estado. Durante o Governo de 2011 a 2015, quanto a hospitais foram tirados cerca de 400 milhões de euros aos públicos e financiados os privados em cerca da mesma quantia. Chegámos a 2019 com menos 4000 camas hospitalares e mais 3000 privadas, sobretudo cirúrgicas.

No início da pandemia vimos a falta das públicas. Surgiu então grande pressão de certas correntes para a utilização e pagamento de camas privadas para os doentes não-covid. Só no pico de 2021 foram propostos Cuidados Intensivos dos privados para os doentes covid. No entanto, com racionalidade imediata, o SNS recorreu e bem aos laboratórios privados logo no início da pandemia, visto que os públicos não eram suficientes. Mas foram os públicos (Instituto Ricardo Jorge, IMM da Faculdade de Medicina de Lisboa) a fazer os estudos que acompanharam a epidemia.

Investir no SNS – a maior prioridade

No Partido Socialista (PS) observam-se claramente duas correntes, visto que os oponentes das realizações e decisões do Governo não lhes poupam ataques, mesmo em plena campanha eleitoral. No entanto foram os votos do PS com os do Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP) e Partido Ecologista Os Verdes (PEV) que aprovaram a nova Lei de Bases da Saúde em 2019, contra as propostas da direita. Derrubando o tal “muro” da aliança PSD/CDS que António Costa não quer reerguer.

Finalmente, o BE, o PCP e o Livre defendem a verdadeira linha social-democrata. Longe de serem os extremistas de que se fala, longe de andarem aí a exigir a nacionalização dos grandes meios de produção, mas apenas a participação maioritária do Estado ou a nacionalização de serviços, aliás, de empresas já perdidas (PT, EDP, CTT), propõem para o SNS a linha da lei Beveridge adotada no Reino Unido e nos países escandinavos. A saúde é um serviço público com orçamento a partir do Orçamento Geral do Estado, o qual depende dos impostos progressivos.

A razão pela qual cidadãos sem partido apelam à coligação PS/BE/PCP e à sua confluência política é com certeza, em grande parte, para protecção do SNS, sem dúvidas em primeiro lugar para 43% dos portugueses e pelo menos 53% dos votantes (percentagens dos partidos nos resultados da sondagem da UC). Para tal é necessário inflectir o fluxo financeiro actual e repor no público o investimento que é feito nos serviços privados. Ora o fluxo do orçamento do SNS para os privados mantém-se e é anualmente (última avaliação 2018) de 474 milhões de euros para pagar serviços clínicos, excluindo a hemodiálise. Os equipamentos e medicamentos não estão incluídos.


A proposta de complementaridade, que afinal é a prática actual em relação a determinados serviços, tem resultados perversos, independentemente da vontade dos seus autores. Tira-se ao público para dar ao privado e depois diz-se que o privado é melhor. E é melhor no acesso, na hotelaria, no atendimento. Tem excelentes médicos, formados no SNS, que optaram por ser reconhecidos e ganhar decentemente.

As consultas no privado propostas pelo PSD arrastarão meios complementares de diagnóstico. E este fluxo, por este caminho, continuará sem fim, até que o SNS fique reduzido ao tratamento de agudos graves, às doenças crónicas dispendiosas e à Saúde Pública.

Na tal boa gestão dos privados, estes poupam naquilo que é a cultura colectiva do público, decisões e escrutínio interpares. Mas há uma questão: é que as empresas privadas de serviços de saúde destinam-se, como qualquer estrutura capitalista (sim é ideia, é ideologia e é prática) a ter lucro. Donde é que ele vem? Fica a pergunta para desenvolver o pensamento crítico.

Investimento no SNS como prioridade - pagar aos seus profissionais com reconhecimento e retê-los no serviço público. Com reposição da cultura do conhecimento e da investigação clínica. Reposição da cultura da empatia e da Medicina Narrativa, que é terapêutica para o doente e que inclui ter tempo e disposição. Pressupõe dedicação plena optativa e não só para os directores clínicos (essa já é exigida actualmente). A decisão deve depender do ministro da Saúde por proposta da instituição, sem caber ao ministro das Finanças, como se até ele houvesse uma cadeia de irresponsáveis.

Pressupõe investimento nos Cuidados Primários a nível de equipamentos (Programa de Recuperação e Resiliência). O programa do PS promete a abertura de 100 novas Unidades de Saúde Familiar. Assim seja. Para isso são necessários recursos humanos em dedicação plena. Assim se evitariam os seis milhões de urgências hospitalares em ano normal e seria pedagógico para distinguir o que é urgente do que não é. Portanto, olhemos para as propostas, coloquemos perguntas e coloquemos hipóteses. Isto são ideias, sim é ideológico. É para formular ideias e conduzi-las à prática que o cérebro do ser humano se desenvolveu tanto. Ou passou a ter ideias e práticas porque se desenvolveu, é a dialéctica da evolução.

Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O “killer” Ventura e a normalização da mentira


Por estatuadesal
Fernanda Câncio, 
in Diário de Notícias, 
04/01/2022

E a "questão da mentira", como deve ser valorizada? A pergunta é do pivot que dirigiu, na SIC-N, a roda de comentadores que se seguiu ao confronto entre Catarina Martins e o líder do Chega deste domingo à noite. Ninguém de entre os três - Ângela Silva, Ricardo Costa e Pedro Marques Lopes - respondeu à primeira, pelo que o pivot insistiu. Aí, o diretor da SIC afirmou: "A mentira existe sempre na política".



Depois de um debate em que Ventura falara de "polícias com reformas de 290 euros", de "Mercedes à porta de quem recebe o RSI" e restante habitual chorrilho de aldrabices odientas, e de termos visto a jornalista do Expresso Ângela Silva decretar que o deputado do Chega é "um killer" e "ganhou" a uma Catarina Martins "quase frágil", o encolher de ombros normalizador de Ricardo Costa garantiu-nos aquilo que só não sabíamos se muito distraídos nos últimos tempos: a maioria dos jornalistas e comentadores decidiu tratar Ventura como se fosse "um político igual aos outros", analisando as suas "performances" sem se deterem sequer a contradizer as falsidades que constituem toda a sua retórica. E até, como se constata pela opinião de Ângela Silva, elogiando a sua "técnica" - como um júri de boxe que dá mais pontos a quem leva uma marreta para o ringue.

Confesso que não sei bem interpretar esta posição, sobretudo quando assistimos simultaneamente à profusão de "fact-checking" nos media. Será que é por esse motivo, porque há "espaços para fazer a destrinça entre o verdadeiro e o falso", que os comentadores e jornalistas se acham desobrigados de sublinhar - ou sequer valorizar - mentiras quando as ouvem? Será que acham tão óbvio que Ventura mente que já nem vale a pena assinalar, porque toda a gente percebe? Será que, por ignorância ou desatenção, não reparam que mente? Ou será que, como indicia a resposta de Ricardo Costa, acham que não mente mais que "os outros políticos", ou que a política implica mentir e portanto quanto mais mentir mais "killer" é?

É tanto mais perplexizante esta atitude quando na mesma ocasião Pedro Marques Lopes sublinhou a importância de desmontar as mentiras de Ventura e lamentou que Catarina Martins o não tivesse feito - sendo óbvio que num modelo de debate de 25 minutos como é (incrivelmente) o escolhido pelas TV se favorece quem manda bocas e se impossibilita qualquer demonstração sistemática de falsidade.

Entendamo-nos: se debater com um demagogo que se especializa em dizer agora uma coisa e daqui a bocado o seu contrário (é ver as cambalhotas que o programa do partido tem dado nos últimos meses), em acusações torpes, em chistes, em interrupções e em invenções é sempre muito difícil, em 25 minutos é um tormento. A meu ver, Catarina Martins escolheu a postura mais eficaz: ignorar serenamente a maioria das mentiras e ataques, não entrar em diálogo e escolher um ou dois momentos e temas fulcrais para expor a demagogia e a mentira e sublinhar a sua diferença face ao oponente - fê-lo, e muito bem, com o racismo e com o Rendimento Social de Inserção. Ao contrário do que sustentou Ângela Silva, a postura da coordenadora do Bloco não foi "frágil"; foi tão forte e superior que, como bem assinalou Anabela Neves na CNN - corroborada por Sebastião Bugalho -, deixou Ventura nervoso, aflito até. O líder do Chega não está habituado a não conseguir irritar os adversários e precisa da lama para se sentir à vontade; assim ficou a rebolar sozinho.

Mas, admitindo naturalmente que haja diferentes opiniões sobre como melhor enfrentar Ventura num debate deste tipo (sobretudo quando se disputa eleitorado, o que não é o caso de Catarina Martins), a questão é que a tarefa de o combater e àquilo que representa não compete apenas aos adversários políticos - é antes de mais até, defendo, do jornalismo. É aos jornalistas que compete contextualizar, expor falsidades, repor a verdade - e perante alguém que se especializa em ódio e mentira e na destruição da democracia, chame-se Trump ou André Ventura, não dá para entrar na desculpa da falsa "objetividade", muito menos para namoros a "killers".

Nos EUA, há um ano - a 6 de janeiro - viu-se no que pode resultar a sistemática efabulação odienta, com uma multidão de hooligans trumpistas a invadir o parlamento. No mesmo exato dia, em Portugal, Ventura, no debate televisivo com Marcelo, mostrava a foto de sete pessoas negras com o Presidente e acusava-o de, naquela imagem, estar com a "bandidagem". Nem Marcelo nem a jornalista em estúdio - Clara de Sousa - reagiram ao ataque racista. O mesmo sucedeu nos comentários que se seguiram nas TV e nas notícias sobre o debate: não dei conta de alguém sublinhar a gravidade e a natureza do que ali se passara.

Não há duas interpretações possíveis para esse facto. A verdade é que ninguém, entre políticos, comentadores e jornalistas, achou assim tão grave que Ventura tivesse usado a imagem daquelas pessoas, por serem negras e pobres, como símbolo daquilo que diz combater e como arma contra o adversário. Ninguém se deu sequer ao trabalho de saber se alguma coisa do que ali afirmou (acusou aquelas pessoas de "terem vindo para Portugal para beneficiar do Estado Social", de terem "atacado uma esquadra da polícia" - tudo falsidades absolutas) correspondia à verdade: o que terá interessado é se "foi eficaz", se conseguiu o seu intento de embaraçar Marcelo, se foi ou não "killer".

Não tivesse existido um processo vitorioso em tribunal contra Ventura e o Chega e este episódio repugnante, que define o partido e o seu líder, mas também o jornalismo e o comentariado nacional, teria sido esquecido por quase todos.

Uma democracia em que isto sucede, em que a mentira, a calúnia e o ódio passam como normalidade, sem indignação nem refutação, e quem os usa como "vencedor", uma democracia que não grita ao racismo mais gritante e na qual não entrar no jogo do demagogo é ser "frágil", é uma democracia a precisar de cuidados intensivos.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Estará a renascer no mundo um certo impulso pela energia nuclear?


Por
João Abel de Freitas, 
Economista 
04 Janeiro 2022

À Europa urge encontrar uma estratégia energética comum de futuro, na base da ponderação de critérios científicos e delineada um pouco longe da pressão lobista.



1. Será que a energia nuclear está a encaminhar-se para uma fase “Small is Beautiful”?!

Esta, uma designação capturada à indústria. Um período que não resistiu euforicamente muito tempo. Talvez na energia nuclear tal não suceda. O sector da energia, em termos de estrutura produtiva, grupos empresariais, organização da fileira, acesso a financiamentos, pouco compara com a indústria, onde tudo é mais variado e pouco homogéneo.

O mundo encontra-se numa encruzilhada energética e está longe de cumprir os objectivos da transição climática, muito por causa do panorama errático da energia.

A energia na origem e dinâmica de diversos processos de desenvolvimento económico, hoje, se não se atalhar a tempo, será causa possível de retrocessos sociais, económicos e ecológicos. “Falta-nos tempo” refere Gordon Dalzell, o ilustre militante ecologista anti-nuclear do Canadá, que se bateu por várias causas com ganhos, agora defensor da energia nuclear. “Certo, há riscos. Mas os riscos serão bem maiores se não se adoptar a nuclear”, afirma.

Salvar o mundo de uma catástrofe climática, sem reduzir drasticamente o consumo dos combustíveis fósseis, não é viável. O COP26 foi, nesse campo, um fracasso tremendo.

O que são os Small Modular Reactors (SMR)?

2. São reactores de pequeno formato, de uma potência entre 10 e 300 MW. Segundo os especialistas, são mais eficazes, tecnologicamente mais avançados, flexíveis e facilmente transportáveis. Por estas características, têm menor impacto nos espaços naturais e na biodiversidade. Permitem a fabricação em série com uma economia de custos significativa.

As centrais nucleares com SMR tornam-se moduláveis com uma flexibilidade que as grandes não permitem. Assim, podem ser accionadas para complementar outras fontes de energia.

Há quem defenda que têm uma segurança mais consistente e, segundo o “Forum Nucléaire”, transcendem a simples produção de electricidade, pois podem “ir mais longe” na descarbonização das sociedades e desempenhar um papel determinante no apoio à economia do hidrogénio. No entanto, não deixam de utilizar o urânio como combustível, à imagem das centrais nucleares tradicionais existentes.

A situação actual

3. Existem 70 projectos no mundo para a construção de SMR.
Alguns já construídos como o HTR-PM na China e uma central flutuante com dois reactores a operar, instalados na Rússia a bordo da barcaça Akademic-Lomonosov. Outros em construção no Canadá, China, EUA, França, Reino Unido e Rússia.

A lista de países com manifestações públicas de adesão a este tipo de energia é longa e cada dia é acrescentada: Argentina, Bulgária, Estónia, Finlândia, Polónia, República Checa, Roménia.

Por outro lado, alguns países que tinham interditado a construção de novas centrais nucleares estão a reconsiderar, caso da Holanda e Austrália. Até a Bélgica, que nem há 15 dias vincou de novo a desactivação das suas centrais nucleares tradicionais até 2025, está a investigar o rumo a tomar quanto a SMR.

Parece estar na forja um movimento de alguma euforia face a este novo reactor que, em teoria, oferece condições operacionais mais avançadas e muito ajustáveis, por exemplo, a regiões isoladas como as ilhas ou de difícil acessibilidade.

4. Por outro lado, as renováveis eólicas e solar continuam a não responder em pleno.

Uma das muitas causas do aumento recente dos preços da electricidade na Europa, não sendo a maior, mas sendo relevante, é a intermitência da sua produção. No campo das eólicas, por exemplo, o vento no mar do Norte tem sido muito problemático nestes últimos tempos. Outra área menos conhecida é a elevada taxa de inoperacionalidade de uma central eólica que não funciona com vento fraco nem com vento forte (acima de 90Kms/h). Neste último caso, as centrais têm dispositivos próprios de paralisação sob pena de graves danos nas instalações.

Os especialistas criaram um indicador, designado de factor de carga, para medir a produção real ao longo de um período determinado (ano normalmente). Este indicador é um rácio entre a energia que produz e a que teria produzido se o vento fosse constante.

Na Europa, a utilização da capacidade instalada anda, em média, à volta de 20%. Na fotovoltaica (sol) é ainda menor, 15%. Este indicador aplicado à electricidade nuclear varia entre 75 e 80% em período equivalente.

Compensação das intermitências

5. As centrais nucleares tradicionais não entram, pelas suas características, na compensação das intermitências.

As centrais à base de SMR, porque moduláveis, podem ser planeadas para se articularem com outras fontes de energia. Até à data, a compensação das intermitências é feita mediante recurso às fontes energéticas de origem fóssil, contrariando assim os objectivos da transição climática.

Também está demonstrado que o consumo de electricidade em aumento, de que o mundo precisa para se desenvolver, não será satisfeito só com renováveis e, se nos períodos de compensação das intermitências for necessário continuar a recorrer a energias de origem fóssil, isso equivalerá a caminhar em sentido inverso ao da correcção climática (mais CO2).

Por outro lado, cada energia renovável no seu conjunto, ou seja, ao longo da fileira, não é assim tão limpa ou tão verde como se diz. Nas eólicas, por exemplo, temos os graves problemas com a extracção das terras raras, usadas e determinantes na produção da energia eólica, para além dos materiais compósitos dos aerogeradores que não são recicláveis como as misturas de fibras de carbono, de resinas de poliéster, de fibras de vidro. Outros problemas se levantam com o solar e até com as hídricas.

Assim, nem toda a “pintura” é tão real. Depois, nada disto é isento de lóbis, de interesses económicos que se digladiam nos mercados, na comunicação, nas universidades e nos aparelhos de Estado. De qualquer modo, apresentam mais vantagens que as de origem fóssil na descarbonização.

A Europa num dilema

6. A Europa está num dilema e em pane. Em pane, por escassez de energia, o que pode custar um dos invernos mais rigorosos.

Mas já é tradição. A UE não chegou a acordo para minorar esta situação. E resolver o problema de fundo quão difícil vai ser o caminho a percorrer! No dilema, entram os lóbis, os das renováveis e os da nuclear, com a Alemanha e a França em disputa.

A energia nuclear, no entanto, fez grandes progressos em termos de segurança, a questão-chave, e procura a designação de energia limpa. À Europa urge encontrar uma estratégia energética comum de futuro, na base da ponderação de critérios científicos e delineada um pouco longe da pressão lobista.

O Canadá, uma sociedade já muito descarbonizada (60% de hidro-electricidade, um pouco menos de 20% de origem fóssil, 7% de renováveis, 15% de nuclear) apostou na energia de origem nuclear na base dos SMR, com muito apoio da população e dos investidores, para prosseguir as suas necessidades futuras. Os EUA, com uma estrutura produtiva bem diferente, também vão apostar na nuclear para certos fins e nas renováveis (solar).

Dois exemplos de inspiração? Que a União Europeia não arraste indefinidamente tão importante questão! Muita pedra vai ser preciso partir até pela influência de lóbis, com algumas ONG de peso pelo meio.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Carta aberta ao mundo da mãe de Julian Assange


Por 
Christine Ann Assange [*] , 
in Resistir, 
31/12/2021




Há cinquenta anos, quando dei a luz pela primeira vez como jovem mãe, pensei que não podia haver dor maior, mas logo a esqueci quando sustive meu belo bebé nos braços. Chamei-o Julian.

Agora percebo que estava equivocada. Há uma dor maior. A dor incessante de ser a mãe de um jornalista galardoado, que teve a coragem de publicar a verdade sobre crimes governamentais de alto nível e sobre a corrupção.

A dor de ver o meu filho, que tentou publicar verdades importantes, manchado a nível mundial.

A dor de ver o meu filho, que arriscou a sua vida denunciar a injustiça, inculpado e privado do direito a julgamento justo, reiteradamente.

A dor de ver um filho são deteriorar-se lentamente, porque foi-lhe negada a atenção médica e sanitária adequada em anos e anos de prisão.

A angústia de ver o meu filho submetido a cruéis torturas psicológicas, numa tentativa de romper o seu imenso espírito.

O constante pesadelo de que seja extraditado para os EUA e a seguir passe o resto dos seus dias enterrado vivo em isolamento total.

O medo constante de que a CIA possa cumprir seus planos para assassiná-lo.

A onda de tristeza quando na última audiência vi seu corpo frágil cair exausto por um mini derrame cerebral, devido ao stress crónico.

Muitas pessoas ficaram traumatizadas ao ver uma super-potência vingativa que usa seus recursos ilimitados para intimidar e destruir um indivíduo indefeso.

Quero agradecer a todos os cidadãos decentes e solidários que protestam globalmente contra a brutal perseguição política sofrida por Julian.

Por favor, continuem a levantar a voz aos seus políticos até que seja a única que ouvirão.

Sua vida está nas suas mãos.

#YoSoyAssange
#JusticiaPorJulian

30/Dezembro/2021
[*] Mãe de Julian Assange.