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sábado, 27 de fevereiro de 2021

A bazuca, agora em vídeo


Por
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 26/02/2021


Portugal é uma questão de fé. Já era, com o milagre, a azinheira e os três pastorinhos que nos iam salvar e que anunciaram, a sobreviva, a conversão da Rússia. Como se vê, a Rússia converteu-se ao capitalismo. Viver em Portugal, se queremos estar confortáveis, significa abolir a dúvida e deixar a crença instalar-se. Mais do que a benzodiazepina, que faz mal à cabeça, o que se pretende é um programa de fé, começando por acreditar em tudo o que nos prometem, tudo o que nos explicam, tudo o que nos adiantam e tudo o que nos atrasa. Acreditar, eis a palavra. Este processo tem diversas fases de habituação e deve ser iniciado com a experimentação da abolição da dúvida sobre pequenas coisas, pequenos temas, minudências e excrescências.



Como no Direito, os casos práticos são o teste à vontade de acreditar, ao desejo de pegar em rosas mentirosas sem picar os dedos.

Por exemplo, comecemos por acreditar em tudo o que dizem em Portugal certos representantes que transportam o apelido Loureiro. Chamem-se eles Manuel, Valentim, João, o que quer que seja. Se é Loureiro é, deverá ser, certificado e verdadeiro. O João Loureiro, dirigente desportivo de um clube do Norte, diz que apanhou uma boleia para o Brasil num jato privado que depois se veio a saber transportava meia tonelada de cocaína no porão. O Loureiro certifica que só ia ao Brasil a uma entrevista de emprego de consultoria, e mesmo assim porque lhe ofereceram lugar no avião ao lado de um espanhol suspeito de tráfico em que a nossa Polícia Judiciária andava “de olho”. Logo esta expressão, andar de olho em cima de alguém, é deliciosa. Congratulemo-nos. Apesar do olho, os dois passageiros viajaram sossegadamente, podem ter trocado algumas palavras sobre um espumante ou uma cava, comentando, apesar da proibição de viajar para o Brasil, afinal sempre se pode dar um salto a São Paulo e Salvador porque ninguém maça. Isto, apesar do olho.

O Brasil costuma ser um país agradável para se viajar em pandemia, mas a Polícia brasileira estragou tudo com uma inspeção que revelou a meia tonelada de droga. Ora, como ia o nosso Loureiro saber do porão? Porventura, uma pessoa que viaja num jatinho, ainda por cima à borla e de boleia, vai inquirir sobre a carga? Ouça lá, aquilo que estão a carregar são as malas do espanhol? Porque eu só trago mala de cabina. É muita mala. Não, não, são uns pastéis de Belém para a família no Brasil. Um azeite português, e umas garrafas de Douro, colheita escolhida. E uns Rioja mais uns Pata Negra, no Brasil apreciam muito o enchido e o fumado ibérico. O nosso Loureiro disse logo, não tenho nada a ver com este filme, apesar de interrogado. Queria ser repatriado, mas parece que não lhe deram lugar no voo “humanitário” da TAP, onde decerto virá mais gente que só foi ao Brasil entregar um farnel. A variante já cá está, não vale a pena estar com imposições. Acreditemos que o Loureiro está inocente, presumidamente, e o resto alegadamente, e nem sabe o que é cocaína e muito menos benzoilmetilecgonina. No Norte, basta a palavra de um homem.

Segundo caso prático, mais complexo. A União Europeia quer que acreditemos que fez tudo bem e que em nome do ideal europeu teve de comprar vacinas para os 27 tentando um preço de saldo e por atacado, à dúzia é mais barato. No regateio, não acertou no shot, perdeu a vez na fila e agora estamos todos à espera de Godot e que se terminem de construir as fábricas de vacinas, rapidíssimas de construir. Um dubitativo diria duas coisas. Primeira, a Europa já nos pediu muitas coisas, entre elas que deixássemos de viver acima das nossas possibilidades de país mais pobre e desigual da Europa Ocidental, o género de país onde as crianças para comerem têm de ir à escola e dormem em casas geladas e gretadas, mas nunca nos tinha pedido para sacrificarmos a vida pelo ideal europeu. Para manter os 27 coesos, coisa que não aconteceu nem acontecerá, vocês têm de aturar mais uns milhares de mortos e de doentes até acertarmos a vacina.

Segunda coisa, no caso português, como somos um pequeno país, Bruxelas quer que acreditemos que se não fosse a Europa íamos estar anos à espera da vacina. Qualquer lista de países adiantados na vacinação nos diz o contrário, que os pequenos países teriam maior flexibilidade e, se tivessem planeado antecipadamente, e pago, coisa que detestamos fazer, pagar, teriam a população vacinada muito antes dos grandes países. Ora, há que acreditar na Europa, mesmo sabendo que o preço é elevado desta vez, a vida e a liberdade pelo ideal europeu.

E há que acreditar que, tendo nós os governantes que temos, mais os milhares de “especialistas” e diretores, se dependesse desta gente comprar a vacina e pagá-la a tempo e horas, planear decentemente, pagar, nem em 2025 tínhamos a primeira pica.

Planear não faz parte do nosso ethos, e pagar ainda menos. Uma borla é, como a raspadinha, o sonho de todos os portugueses. Desprezar uma borla, mesmo arriscando vidas, é insuportável. Acreditemos que é melhor assim, e sempre se salva o ideal europeu que acaba de decidir que não compra vacinas aos russos porque eles humilharam um europeu de Bruxelas chamado Borrell, que parece que fez uma viagem estúpida a Moscovo sem ninguém lhe mandar. Não, não é por causa do Navalny. É por causa do burocrata Borrell, e da humilhação, e acreditemos que Bruxelas sabe o que que faz. Fique em casa.

Por último, a fé ilumina-se com mais uma injeção de capital. Desde o império que Portugal vive embasbacado com as injeções de capital. Como diria o Palma Cavalão do Eça, um belo tipo de português, já cá canta o dinheirinho. O Costa deu-nos a bazuca, agora também chamada de vitamina, e um PRR. Dantes havia o PPR, uma poupança para descontar nos impostos e injetar capital na pátria e na banca, e agora vem aí o PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência. Dinheiro fresco e abundante a ser repartido pelo Estado e os artilheiros do PS em “projetos”.

Precisamos de projetos, projetos de futuro, e projetos sustentáveis, e projetos bonitos, e precisamos de os executar. E tudo muito verde e tal e coisa. Ora coisa em que nunca fomos bons é em projetos e em executar, sobretudo executar projetos que não passam de um conjunto de boas ideias, vulgo fantasias. A nossa especialidade é vender as pratas. No cansaço das arruinadas almas lusitanas, temos de acreditar que pela primeira vez na História desde os Lencastre e a Ínclita Geração vamos arranjar energias para planear e executar. Com rigor e probidade. E sem aproveitar a borla para comprar o segundo BMW ou o Mercedes. Alguém acredita nisto? Não. Mas a bazuca, que Costa nos oferece agora em vídeo, chegou aos ecrãs nacionais. E não custa nada. É um vídeo de borla. Ora, se é de borla, acreditemos que vale a pena, como dizia Rimbaud, perder por delicadeza a vida. A fé é que nos sustenta. E o ideal europeu. E o dinheirinho.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Carta aberta às televisões generalistas nacionais


Vários signatários, 
in Público, 
23/02/2021


Como cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia. Sabemos que há uma pandemia – e que o SARS-CoV-2, em vez de se deixar ficar a dizimar pessoas no chamado Terceiro Mundo, resolveu ser mais igualitário e fazer pesadas baixas em países menos habituados a essas crises sanitárias. Sabemos que não há poções mágicas – as vacinas não se fazem à velocidade desejada e as farmacêuticas são poderosas entidades mercantis.

 

Sabemos que, mesmo cumprindo os cuidados tantas vezes repetidos – distância física, máscara a tapar boca e nariz, lavagem insistente das mãos, confinamento máximo –, qualquer um de nós, ou um dos nossos familiares e amigos, pode ser vítima da doença e que isso causa medo a todos, incluindo a jornalistas, fazedores de opinião e responsáveis de órgãos de informação.

Sabemos também que os média estão em crise, que sofrem a ameaça das redes sociais, a competição por audiências, as redações desfalcadas, os ritmos de trabalho acelerados impostos aos que nelas restam, a precariedade laboral de muitos jornalistas.

Mas mesmo sabendo tudo isto, assinalamos a excessiva duração dos telejornais, contraproducente em termos informativos. Não aceitamos o tom agressivo, quase inquisitorial, usado em algumas entrevistas, condicionando o pensamento e a respostas dos entrevistados. Não aceitamos a obsessão opinativa, destinada a condicionar a receção da notícia, em detrimento de uma saudável preocupação pedagógica de informar. E não podemos admitir o estilo acusatório com que vários jornalistas se insurgem contra governantes, cientistas e até o infatigável pessoal de saúde por, alegadamente, não terem sabido prever o imprevisível – doenças desconhecidas, mutações virais – nem antever medidas definitivas, soluções que nos permitissem, a nós, felizes desconhecedores das agruras do método científico, sair à rua sem máscara e sem medo, perspetivar o futuro.

Mesmo sabendo a importância da informação sobre a pandemia, não podemos aceitar o apontar incessante de culpados, os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo e da DGS, as pseudonotícias (que só contribuem para lançar o pânico) sobre o “caos” nos hospitais, a “catástrofe”, a “rutura” sempre anunciada, com a hipotética “escolha entre quem vive e quem morre”, a sistemática invasão dos espaços hospitalares, incluindo enfermarias, a falta de respeito pela privacidade dos doentes, a ladainha dos números de infetados e mortos que acaba por os banalizar, o tempo de antena dado a falsos especialistas, as entrevistas feitas a pessoas que nada sabem do assunto, as imagens, repetidas até à náusea, de agulhas a serem espetadas em braços, ventiladores, filas de ambulâncias, médicos, enfermeiros e auxiliares em corredores e salas de hospitais. Para não falar das mesmas imagens repetidas constantemente ao longo dos telejornais do mesmo dia ou até de vários dias, ou da omnipresença de representantes das mesmas corporações profissionais, mais interessados em promoção pessoal do que em pedagogia da pandemia.

Enfim, sabemos que há uma pandemia causada pelo SARS-CoV-2, mas também sabemos que há uma diferença entre informação, especulação e espetáculo. E entre bom e mau jornalismo.

Consideramos inaceitável a agenda política dos diversos canais televisivos generalistas, sobretudo no Serviço Público de Televisão.

Como cidadãs e cidadãos, exigimos uma informação que respeite princípios éticos, sobriedade e contenção. E, sobretudo, que respeite a democracia.

Subscritores

Abílio Hernandez, Professor universitário; Alberto Melo, Dirigente associativo; Alfredo Caldeira, Jurista; Alice Vieira, Escritora; Ana Benavente, Professora universitária; Ana Maria Pereirinha, Tradutora; António Rodrigues, Médico; António Teodoro, Professor universitário; Avelino Rodrigues, Jornalista; Bárbara Bulhosa, Editora; Diana Andringa, Jornalista; Eduardo Paz Ferreira, Professor universitário; Elísio Estanque, Professor universitário; Fernando Mora Ramos, Encenador; Graça Aníbal, Professora; Graça Castanheira, Realizadora; Helder Mateus da Costa, Encenador; Helena Cabeçadas, Antropóloga; Helena Pato, Professora; Isabel do Carmo, Médica; J.-M. Nobre-Correia, Professor universitário; Jorge Silva Melo, Encenador; José Rebelo, Professor universitário; José Reis, Professor universitário; José Vítor Malheiros, Consultor de Comunicação de Ciência; Luís Farinha, Investigador; Luís Januário, Médico; Manuel Carvalho da Silva, Sociólogo; Manuela Vieira da Silva, Médica; Maria do Rosário Gama, Professora; Maria Emília Brederode Santos, Pedagoga; Maria Manuel Viana, Escritora; Maria Teresa Horta, Escritora; Mário de Carvalho, Escritor; Paula Coutinho, Médica intensivista; Pedro Campiche, Artista multidisciplinar; Rita Rato, Directora do Museu do Aljube; Rui Bebiano, Professor universitário; Rui Pato, Médico; São José Lapa, Actriz; Tiago Rodrigues, Encenador; Vasco Lourenço, Capitão de Abril

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Os partidos políticos e as candidaturas independentes


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
20/02/2021

À primeira vista repugna que os partidos tenham o monopólio das candidaturas. Impedir grupos de cidadãos de se proporem a uma junta de freguesia ou câmara municipal seria a restrição da liberdade de associação, mas o direito existe e os exemplos não são bons.



Parece que a reivindicação se prende com o aumento de facilidades para se constituírem listas de dissidentes partidários no assalto às autarquias, e na oportunidade para partidos sem representatividade se ocultarem sob pseudónimos.

O escrutínio do poder autárquico, exceto nas grandes cidades, praticamente não existe. Os jornais e emissoras de rádio locais raramente subsistem sem os apoios da autarquia e são, quase sempre, o eco dos interesses de quem as ocupa.

Aliás, é difícil saber o que é isso de independentes. De quê e de quem? Habitualmente, são os preteridos pelos partidos onde militam e cuja ânsia de poder é mais forte do que a fidelidade e as convicções ideológicas.

Em Coimbra, a ambição política de um respeitado Bastonário da Ordem dos Médicos, preterido pelo seu partido, o PSD, candidatou-se com um grupo onde predominavam docentes universitários, sob o pseudónimo de «Somos Coimbra», como se as outras candidaturas fossem, v.g., Viseu ou Bragança.

Perguntei a uma das responsáveis se eram de esquerda ou de direita, para eventualmente decidir o meu voto. Foi-me ‘explicado’ que não eram de esquerda nem de direita, tendo ficado elucidado. Eram de direita.

Neste momento, José Silva, então dissidente do PSD e que «foi Coimbra» é dado como o candidato do PSD. Foi mais sério como bastonário do que como militante partidário.

No Porto, o membro da alta burguesia e de grande património imobiliário, conservador e monárquico, concorreu contra o PSD, que o preteriu, e ganhou as eleições autárquicas contra Luís Filipe Meneses, sob o pseudónimo “Porto, o nosso partido”.

Quis ser o presidente da Região Norte na regionalização prevista, a que os exemplos dos Açores e Madeira provocaram hostilidade eleitoral, como se verificou no referendo que, uma vez feito, tornou ilegítima a regionalização política sem a sua repetição.

Podia multiplicar exemplos e refletir sobre a desagregação de partidos com dissidências provocadas por ambiciosos sob a designação de “Malveira, o nosso partido” ou “Somos Boticas” em que basta mudar o nome para cada freguesia ou município.

Quando são eleitos sob sigla partidária, ainda que designados independentes, podem os eleitores julgar o partido que os integrou, pela gestão ou eventuais desmandos do elenco municipal, o que não sucede com os autodesignados independentes.

No Porto, a provarem-se os benefícios com uma bolsa valiosa de terrenos adquirida por usucapião, e nebulosamente caída na família do autarca e dele próprio, que partido pode o eleitorado punir nas próximas eleições?

Os independentes políticos querem parecer filhos de pais incógnitos. Ignora-se a superioridade ética que os recomende.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

POBREZA




FACTO

"Em 2020, na Região Autónoma da Madeira, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social foi de 32,9%, o que constitui um aumento 0,7% p.p. face a 2019. A RAM foi a região do país com valor mais elevado, seguida da RAA (32,4%). A média nacional é de 19,8%" - Direcção Regional de Estatística da Madeira, na sua mais recente publicação, esta Sexta-feira.

COMENTÁRIO

Preocupante. Muito preocupante. Não apenas o crescimento da pobreza, o que é grave, mas o facto das eventuais políticas não se mostrarem eficazes quanto à sua redução percentual. Este estudo deveria exigir uma reformulação imediata das políticas educativas e sociais.
Assisti, já tem uns anos (28.10.2010), a uma importante conferência do Dr. Alfredo Bruto da Costa (já falecido), figura então muito prestigiada no plano internacional sobre estudos no quadro da pobreza. Lembro-me de ter referido, segundo os seus estudos, uma percentagem que rondava os 30% de pobres. Apontou a verdade nua e crua dos números, sublinhando que, ao tempo, no último estudo nacional, entre 1995 e 2000, nesse intervalo de seis anos, 80% dos madeirenses tinham passado por dois ou mais anos por uma situação de pobreza e que 30% viviam em pobreza persistente.
Entretanto, passaram-se mais dez anos e o problema persiste. E se com ele nos confrontamos é porque ele é um problema de natureza política. Após essa conferência, no meu blogue "comqueentao" escrevi: "(...) E como foi sublinhado pelo orador, "a causa da pobreza não está nos pobres", está nas mudanças sociais que são de natureza política. "Tudo o que seja combate à pobreza mantendo o padrão da desigualdade" não tem sentido, pois apenas a mantém uma parte da consciência tranquila. Mais, ainda, a solução não está na CARIDADE. É uma palavra que não gosto. Respeito e muita consideração nutro pelas mais diversas instituições que combatem a pobreza, de dia e de noite, respeito o notável trabalho das paróquias que matam a fome e esbatem casos muito sérios de carências várias, mas entendo também que não é pela via da caridade que os problemas se resolvem. É pela via política, com deliberações que "dêem o peixe mas também a cana", em simultâneo, como ontem salientou o Professor Alfredo Bruto da Costa. A "caridade" deve ser o fim da linha, o ataque às margens, para quem mergulhou tão fundo que experimenta dificuldades em se erguer. A caridade não resolve, a prazo, problema algum, apenas se destina a esbater os erros dos políticos. O governo tem de se convencer que a "armadilha da pobreza é a armadilha das desigualdades" e, portanto, na esteira do que disse o Professor, não se pode cair no círculo vicioso de que "os pobres são pobres porque são pobres", antes "os pobres são pobres porque os ricos são ricos".
Hoje, por razões pessoais, porque sou feliz, aqueles 32,9% deixam-me de coração apertado.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

O que é isso de “Governo de salvação nacional?”


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
15/02/2021


A direita democrática anda em polvorosa, lacerada por quezílias tribais no seio dos seus partidos, sem lideranças que parem a hemorragia que engrossa as fileiras da extrema-direita, esgoto da ditadura, onde agora desaguam marginais, oportunistas e delinquentes.



A culpa da integração do partido fascista no sistema democrático foi do PSD, na pressa e ambição do líder açoriano, sem esperar que se rendesse sem nada receber em troca.

Rui Rio, sem autoridade e visão política, delapidou aí o prestígio granjeado na vitória sobre a tralha cavaquista de Passos Coelho, e agravou o desnorte no patético discurso da eleição presidencial, a rejubilar por o partido fascista retirar votos ao PCP, no Alentejo, sem se dar conta de que era o seu próprio partido a sofrer a maior hemorragia.

O CDS, condenado a ser satélite do PSD, está em vias de se transformar num meteorito, a desaparecer na atmosfera das próximas eleições legislativas.

É nesta situação de desânimo e rancor que a direita ataca a credibilidade de tudo o que o Governa faz, indiferente à pandemia, sem avaliar as consequências da maior tragédia que atingiu a Humanidade. Espera, na insidiosa campanha, destruir um Governo para o qual não tem alternativa, e impede consensos para a luta eficaz contra a pandemia.

O ambiente malsão levou os corifeus da direita democrática a pôr em causa tudo e o seu contrário, a condenarem as concessões natalícias, que tinham defendido com ameaças e insinuações de que Costa queria roubar o Natal, para agora ficarem mudos quando estão em causa o Carnaval e a Páscoa.

Mas a mais tola das ideias, “um governo de salvação nacional”, havia de surgir de dois figurões que cursaram Direito na vigência da Constituição de 1933. É evidente que tão grande despautério havia de ser aproveitado pelos média, redes sociais e comentadores que fazem pela vida a comentar não assuntos.

O PR, com bom senso, afirmou que “Temos de continuar a apoiar os que sofrem (…), tudo sem crise política, sem cenários de governo de unidade ou de salvação nacional”. Disse tudo, e a ideia de que a inanidade de Santana e Jardim era possível ficou ainda a pairar em quem não reflete, ou não sabe, que não há governos de iniciativa presidencial.

Dizer “sem cenários de governo de unidade ou de salvação nacional” é tão irrelevante como dizer “sem cenários de nomeação de juízes para o Supremo Tribunal de Justiça”.

António Barreto, um liberal provinciano, trânsfuga de todos os partidos e frequentador assíduo dos painéis de comentadores, com coluna semanal no Público, onde zurze tudo o que está à esquerda do PSD e à direita do CDS e IL, afirmou aí, na sua última homilia, que “Dado o afastamento dos governos de iniciativa presidencial e de unidade nacional, as hipóteses são conhecidas: esquerda contra direita? Bloco central?” Pois…, óbvio.

Parece ficar a dúvida de que era possível e de que a direita melhoraria a governação se entrasse no governo, insinuando que este não presta. Mas a direita faria melhor?

Só me surpreende que sejam pagas tão tolas insinuações, só para darem tempo a Passos Coelho para regressar de Alcácer Quibir, com ou sem nevoeiro, em qualquer manhã.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O Mundo a caminho da Ásia-Pacífico

 

Por
João Abel de Freitas
Economista



1. O estudo - The world is moving East, fast – publicado pela Euler Hermes, líder mundial em seguros de crédito e também accionista do BPI e da COSEC em Portugal, fundamenta que o Centro de Gravidade da Economia Global (WECG, sigla em inglês), centrada no Atlântico até 2007, mas em movimento lento desde 2002, se localizará, em 2030, na confluência da China, Índia e Paquistão, dois anos antes do tempo previsto, à boleia da Covid-19.



O grande motor que está a accionar esta deslocalização no sentido da Ásia - Pacífico tem um nome. Chama-se República Popular da China, país cuja evolução da economia está a dar-se, hoje, a uma velocidade duas vezes e meia mais rápida que a média registada entre 2015 e 2019.

Não nos podemos esquecer que a República Popular da China nos últimos 40 anos atingiu a taxa de crescimento média mais elevada, em todo o mundo, graças às reformas económicas que introduziu nos finais da década de 1970, com algumas convulsões internas como reacção, e que este crescimento lhe proporcionou condições para arrancar à pobreza extrema mais de 700 milhões de cidadãos chineses. Um número jamais obtido em tão pouco tempo.

2. Para além de características específicas da sociedade chinesa em que valores como a ordem e a disciplina, muito pouco ocidentais, são regras interiorizadas e assumidas como basilares, as medidas que o governo chinês tomou para enfrentar a pandemia mostraram-se bem eficazes e, certamente por isso, a China foi a única grande economia a averbar, em 2020, uma taxa de crescimento positiva do PIB de 2.3%, como já aqui se referiu, embora a Região, no seu conjunto, tenha tido um desempenho relativo favorável no contexto mundial.

Para este desempenho comparado tem contribuído, em larga medida, considera o estudo, o processo de desenvolvimento do Acordo de Comércio Livre, intitulado Parceria Económica Regional Abrangente (RCEP, sigla em inglês), assinado entre a China e as maiores potências asiáticas e ainda a Austrália e Nova Zelândia, que visa eliminar as tarifas alfandegárias entre os países parceiros em 90%, durante os próximos 20 anos.

Quem são os países do Acordo?

Para uma melhor compreensão, vamos, seguindo o estudo, agrupá-los em três categorias:

Três países de economias desenvolvidas: Austrália, Japão e Nova Zelândia, países muito da órbita pró-ocidental.

Os quatro tigres asiáticos que ganharam esta designação devido a uma forte expansão durante um longo período: Coreia do Sul, Hong-Kong, Singapura, Taiwan.

Economias emergentes: China, Filipinas, Vietname, Malásia, Tailândia, Índia, Indonésia.

Este acordo face a outros de objectivos idênticos, por exemplo o dos EUA/México/ Canadá, tem regras bem mais flexíveis e o facto de ser necessário incorporar apenas 40% na mercadoria para ser tida como produto de origem RCEP contribui para acelerar a troca de bens entre os países membros e o entrosamento das respectivas economias.

Acresce ainda que as estruturas de exportação e de importação dos respectivos países parceiros se interlaçam, potenciando com facilidade uma maior integração das economias. O estudo analisa várias facetas das economias, através da produção de diversos indicadores de complementaridade, competitividade bem como da especialização por países.

Sendo de elevado interesse para os países da Ásia - Pacífico não deixa de o ser também para países e empresas de outras zonas que, eventualmente, tencionem explorar hipóteses de negócios naquele conjunto de 14 países tão diferentes em grau de desenvolvimento, dimensão das economias e de população, pelo que a sua análise poderá ser interessante nesta perspectiva.

Estes 14 países no seu conjunto representam 34.4% do PIB mundial e 43% da sua população.

No estudo, ainda se avança com os países que, eventualmente, vão ser os maiores beneficiários do acordo, na base da especialização e competitividade actuais, e que, no essencial, serão a China, o Japão, a Correia do Sul e Singapura, apesar da forte integração comercial crescente esperada para a Ásia-Pacífico como um todo.

3. O governo chinês no combate aos efeitos económicos nefastos da pandemia implementou políticas robustas de apoio à economia a dois níveis:

Estímulos Fiscais em geral,
Medidas de Protecção às empresas públicas.

O estudo avança que os estímulos fiscais do governo chinês se traduziram num crescimento do PIB em 4.1 pontos percentuais (p. p).

Uma diferença muito contrastante com o Ocidente pois os estímulos fiscais aplicados nos EUA apenas tiveram como efeito no PIB um crescimento de 1.7 (p. p) e na Alemanha 1.3 (p.p).

Por outro lado, as medidas de protecção às empresas públicas chinesas de natureza financeira e social constituíram um factor decisivo para suster os danos da crise pandémica pois tornou possível assegurar a manutenção da actividade económica, ainda que sem lucro, bem como os postos de trabalho.

Todas estas medidas conjugadas proporcionaram uma maior solidez relativa da economia face às homólogas dos restantes países e uma velocidade de crescimento que se traduzirá numa antecipação de dois anos para o PIB chinês atingir o dos EUA face ao que se estimava antes da pandemia (2019).

Mas, este comportamento só se tornou possível devido à transformação estrutural que a China operou no seu aparelho económico e produtivo, durante os últimos 40 anos.

Essa mudança de fundo atingiu tanto o sistema financeiro como a sua economia real, dando origem hoje a uma China tecnologicamente avançada, quando há 40 anos não passava de um país eminentemente agrícola.

Para ficarmos com uma noção aproximada do salto qualitativo que se operou na sociedade chinesa, basta dizer que a classe média continua em constante expansão, constituindo hoje uma das mais significativas à escala mundial e a participação da China no PIB mundial em 1990 era de 3,86% contra 20,6% dos EUA e, em 2017/8, Consoante as fontes, os EUA desceram para 15% abaixo da China com 18,6% (em paridades de poder de compra - Banco Mundial).

As mudanças não se deram apenas na economia. A nível político sucederam-se alterações importantes designadamente nos critérios de selecção dos líderes políticos onde a exigência da qualidade, a experiência e a capacidade de liderança tornaram-se determinantes.

Hoje começa a ser normal em certas escolas do Ocidente a abordagem e o estudo da existência ou não de um “modelo de governação chinês”, tanto no domínio da economia como na política – até já baptizado de meritocracia de estilo chinês, que de algum modo se inspirou na governação de Singapura.

E há investigadores da área da política social que começam a interrogar-se, se daqui a 20 anos, a meritocracia de estilo chinês não poderá constituir um modelo alternativo e um desafio à democracia liberal de estilo ocidental, cada vez mais em regressão no Mundo, embora a China esteja a demonstrar que, como admite Henry Kissinger na sua obra Da China, quanto mais poderosa fica, menos interessada está em intervir na vida de outras nações.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Rigor, responsabilidade e disciplina

 

Nasci quatro anos depois de terminada a II Grande Guerra Mundial. Tempos obviamente difíceis para todos, particularmente para os povos insulanos que viveram a guerra, mas também as históricas insuficiências de uma terra onde tudo faltava. Não apenas as infra-estruturas, mas tudo! A pobreza, a mais rude e penosa, era paisagem. Há excelentes documentos de historiadores que narram a dureza social de tais tempos, também marcados pelos senhores da terra. Jorrou sangue de escravidão. Isto para dizer que as famílias faziam das tripas coração para viverem ou sobreviverem. Mas, por razões que, julgo eu, os sociólogos melhor poderão explicar, eu não digo sem mácula, mas prevaleciam princípios que se foram esfumando no tempo. As famílias, ricas, pobres ou ditas remediadas, assumiam o rigor, a responsabilidade, a disciplina e a honradez, onde um simples aperto de mão ditava o compromisso, facto que hoje tenho muita dificuldade em ver assumidos de forma inquestionável pela população.

Confronto-me com situações de ausência de inflexibilidade no dever profissional, no cumprimento de prazos, de seriedade e de obediência a regras. Obviamente que existem muitas e relevantes excepções, mas a regra, essa é a sensibilidade que tenho sobre esta matéria, caracteriza-se por uma enervante e excessiva tolerância e brandura na exigência. Esse tempo de infância, esse tempo de dificuldades pós-guerra, não deixo de dizer que contribuíram muito para a minha percepção da vida e do rigor que ela exige. Não é que tenhamos de passar ou de impor sofrimento para aprender que uma sociedade, devidamente organizada, exige de todos, o tal rigor, responsabilidade e disciplina. Há formas de lá chegar através da Educação, com exigentes políticas a montante, na família, e políticas a jusante, na escola verdadeiramente educadora. De resto, o rigor, a responsabilidade e a disciplina não se resolvem com mentalidades insanas ou com uma escola enciclopédica.

O meu Pai.

Estou a lembrar-me de duas situações. Tinha eu aí uns treze, catorze anos, em férias de Verão, quando o meu pai, após o almoço, se aprontava para regressar à Farmácia Almeida, pedi-lhe 2$50 para ir ver um filme que passava no antigo Cine-Parque, qualquer coisa como 0,012 cêntimos na actual moeda. Fixou-me o olhar, ele que eu sentia que era muito meu Amigo, e disse-me: "pega, mas que não sirva de exemplo". Lembro-me que não fui e, ao jantar, devolvi-lhe as moedas. Mais tarde compreendi o que ele, certamente, me quis transmitir, é que, na vida, existem prioridades. E naquele tempo entre, por exemplo, a mercearia e o prazer de uma sessão de cinema, a alimentação estava em primeiro lugar. E percebi ainda mais, quando com ele ia à praia, à saída, pararmos para comprar uvas ou uma outra fruta, exclusivamente para mim. Mantenho essa imagem presente, a da prioridade.

Uma outra situação vivia na Guiné-Bissau, após infindáveis meses no mato. Fui colocado no Quartel-General, no Comando Geral das Milícias, liderado pelo então Major Fabião. Um dia fui chamado ao Brigadeiro, cujo nome, infelizmente, não me recordo. Apresentei-me e disse-me mais ou menos isto: escolhi o nosso Alferes para ser "escrivão" de um processo que tenho à minha responsabilidade. Tratava-se de um caso complexo que envolvia um oficial superior. Falou-me com voz amena, eu diria nada militar, explicou-me o caso e pediu que fizesse o melhor possível e mantivesse o adequado sigilo. Um Homem militar fantástico na relação com os outros, ele um Brigadeiro e eu um simples oficial miliciano de baixa patente. No decorrer da conversa registei e jamais esqueci as suas palavras: "nosso Alferes, a disciplina deve ser conquistada pela compreensão das pessoas". 

Este foi um outro momento que me ajudou a compreender o rigor, a responsabilidade e a disciplina. Mesmo na vida militar, com aquela alta patente, onde a norma é a de mandar executar e poucas palavras mais, ele defendia o princípio da compreensão no envolvimento das pessoas na defesa de uma qualquer causa, fosse ela militar ou civil. Digo eu, através destas duas entre outras situações que me ajudaram a moldar, que isto se educa a montante, na família, e a jusante, na escola.

Infelizmente, excluindo as boas excepções, que as há, o sentimento que tenho, repito, é que se abandonaram alguns valores essenciais que deveriam nortear a vida nesta sociedade da abundância e, paradoxalmente, também da miséria. Não pagar tornou-se normal; prometer e não cumprir tornou-se corriqueiro; o rigor profissional tornou-se condescendente, a responsabilidade tornou-se complacente e a disciplina tornou-se em condutas inapropriadas. Uma sociedade não consegue subir nos patamares da excelência e do bem-estar quando se assiste a uma contínua derrapagem nos princípios e valores que a enformam. 

Este é um quadro extremamente complexo que, aqui chegado, levará anos, algumas décadas a corrigir, claro, com a compreensão das pessoas, na palavra do Brigadeiro, e no sentido das prioridades na palavra do meu pai.

Ilustração: Arquivo próprio

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Olhá bujarda, é a fina flor do entulho


Por estatuadesal
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
09/02/2021


Se alguma pessoa tem a ingenuidade de pensar que os insultos, a calúnia ou outras trivialidades semelhantes são produtos do nosso século, não poderia estar mais enganada. São uma constante universal. No entanto, o tempo presente gerou duas particularidades, que não serão de pouca monta: a poderosa tecnologia de comunicação que promove o escalonamento da frase fulgurante e que, em segundo lugar, a acarinha. Este é o duplo valor da bujarda, que é o signo do sucesso comunicacional mais apetecível nos dias que correm. Se se atentar com cuidado, muitos dos incidentes e das disputas atuais exprimem a linguagem da bujarda.



O meu primeiro exemplo é o da Bastonária dos Enfermeiros, que tem levado a sua Ordem aos píncaros do tribalismo partidário. A anatomia das suas esforçadas mensagens demonstra como se constroem os efeitos da velocidade e da grosseria, que são essenciais para obter viralidade, a forma de se ser ouvido nesse universo de gritaria. O primeiro efeito, o da velocidade, exige que a influencer multiplique as reações, numa avalancha que inunde as redes comunicacionais provocando conflitos cada vez mais grotescos.

Ana Rita Cavaco demonstrou-o com a pitoresca descrição de como um secretário de Estado e a sua mulher foram indevidamente vacinados: “Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no país, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!” Tudo tremendo. A bastonária “ouviu dizer” que o governante tinha sido vacinado, como explica, e construiu o cenário: “pegou nela, na família e nuns amigos socialistas”, uma verdadeira excursão. Uma “quantidade de trastes por metro quadrado”, tudo “criaturas horrorosas”.

Só que era falso e o homem teve até a cortesia de lhe telefonar a pedir correção da calúnia. O que ele foi fazer. Só provou que era ainda mais culpado: “Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.” Portanto, o governante “ficou aborrecido com o que as pessoas dizem”, que por acaso era ela própria que repetia sem o menor resquício de prova. E a óbvia conclusão, não é mesmo evidente?, é que chegou ao lugar devido à sua família. Como se chega a tal sentença, isso fica nos recônditos da lógica condenatória, mas aqui está como se viaja de um “ouvir dizer” e dos “trastes por metro quadrado” até uma conclusão sobre “o critério neste país para se ter um alto cargo público, família”, lembrou-se-me.

Daniel Oliveira registou estas incoerências, portanto foi imediatamente apelidado de “seu esterco”, ultraje repetido para que não ficassem dúvidas sobre a esterquicidade do acusado, que é além disso “defensor de fura filas”, como o tal secretário de Estado que afinal não tinha furado nenhuma fila nem sido vacinado, mas isso não muda nada, ela ouviu dizer e por isso sabe que são trastes de metro quadrado e, de qualquer modo, lembrou-se de que ele só lá está por causa da família, a tal que teria sido vacinada na excursão governista, ou talvez não, na via das dúvidas é “a fina flor do entulho”. Em todo o seu esplendor, fica aqui exibida a vertigem do discurso punitivo sobre a desgraçada horrorosidade que afunda o país.

É isto um entretenimento? Não, é uma estratégia. Para quem vive naquela redoma das redes sociais e está viciado no seu fulgor, não é preciso ser informado, nem sequer usar argumento, o que é necessário é conseguir likes e partilhas ou talvez uma notícia de telejornal. A estratégia é fazer perder o fôlego criando uma irracionalização total do discurso, o que é reforçado pelo truque de subir sempre a parada com um tiroteio imparável (Trump, sempre o mestre bufão que inspirou esta técnica, chegou a fazer 400 tuítes por dia). É por isso que a bujarda é tão apetecível, tão contagiante, é um clamor, um apelo a que se olhe para os bujardistas. Não pretendem sequer ser lidos, aspiram a ser multiplicados. O título conta mais que a informação, que é irrelevante. Para esta conta, o ódio é o aplauso mais eficaz, os entusiastas recompensam a alarvidade.

O segundo exemplo, que prova que a estratégia trumpista tem seguidores fiéis mesmo entre os mais cordatos dos comunicadores, é a da fronda pela saúde privada. Como os hospitais privados se submeteram ao vexame da condenação popular pelo seu comportamento na primeira vaga, quando recusaram tratar doentes covid sem um preço apetitoso, tendo mesmo expulso dos seus serviços as grávidas que tivessem o vírus, os seus embaixadores sentiram-se motivados para um contra-ataque na segunda vaga. A forma de o fazerem é o que me interessa aqui, foi a bujarda.

O mote foi repetido em campanha eleitoral por um liberal que anunciava dez mil mortos provocados pela ministra da Saúde (Tiago Mayan) e pouco depois por um aspirante a profeta da direita, Henrique Raposo, que insistiu ipsis verbis: “o desprezo deste governo pelos hospitais privados é mais grave, é outra coisa, é uma tragédia séria que nos custou milhares de vidas nesta pandemia”. Há uma carnificina em curso, uma “ideologia” que mata, esperando-se que algum Tribunal de Nuremberga castigue estes genocidas.

A artimanha é mais uma vez evidente: se a posição bujardista é fraca, berra muito; se a razão é escassa, acusa o adversário; se falta senso a tudo isso, chama-lhe assassino. A coisa passa a ser uma pugna de sangue, a diferença é entre a vida e a morte. A bujarda, que fabricou o Pizzagate contra Hillary Clinton, sugere agora o Covidgate contra a homicida Marta Temido e o secretário de Estado que furou a fila, ou se não furou, está lá por causa da família, todos protegidos pelos “estercos” e pela “fina flor do entulho”, “criaturas horrorosas”.

Tendo feito uma carreira tardia em aforismos, Nietzsche escreveu um dia que se “pode perdoar qualquer falta de estilo, mas não de pensamento”. Como estava enganado. Conhecesse esta forma de comunicar da contemporaneidade e saberia que, se o estilo sempre interessou pouco aos bujardistas, o pensamento que anima este belicismo dos dias de hoje é simplesmente eficaz, o seu segredo é multiplicar sempre o absurdo de cada alegação que seja absurda, criando uma bolha impenetrável pela verdade. É uma pirâmide, é um vício. Já não vão sair disto, foi o que aprenderam e é onde se reconhecem. O problema é como é que a democracia vive ao lado deles, se não há tradução possível entre as duas linguagens.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Não deixem os actuais “liberais” apropriarem-se da palavra “liberdade”


Por estatuadesal
Pacheco Pereira,
in Público, 
06/02/2021


Quando os actuais “liberais” se põem num papel de defensores de uma ideologia proibida e perseguida, sem expressão em Portugal, de novo estão apenas a falar do neoliberalismo.



Eu não tenho nenhum problema, bem pelo contrário, em intitular-me liberal. Estou a referir-me ao liberalismo no seu sentido global, ou seja, político. Uma outra coisa é o liberalismo reduzido à esfera económica (que tem sido chamado “neoliberalismo”) e que assenta essencialmente na reivindicação de um “Estado mínimo” que deixe a “mão invisível” do mercado funcionar e que pouco cuida das liberdades propriamente culturais, sociais e políticas. Há variantes nestas posições, incluindo a liberal-libertária, que junta Bakunine com Milton Friedman, numa mesma defesa do laissez-faire.

O liberalismo tem tradição em Portugal, e foi por ele que uma geração que incluía Garrett e Herculano lutaram. O liberalismo é igualmente importante para perceber como cidades “burguesas” como o Porto estiveram sempre à frente dos combates pela liberdade, desde o 31 de Janeiro pela República, sem ser jacobina, e nas campanhas de Norton e Delgado contra a ditadura, sem ser comunista. O liberalismo conheceu um papel importante na monarquia constitucional, recuou alguma coisa na I República e recuou muito durante o Estado Novo. Depois do 25 de Abril, explica melhor a resistência ao PREC de Mário Soares do que o socialismo do PS, está presente no esforço vitorioso de Sá Carneiro (um homem do Porto) para retirar a tutela militar do regime democrático, e, sem precisar de ser nomeado, “normalizou-se” na democracia portuguesa.

Quando os actuais “liberais” se põem num papel de defensores de uma ideologia proibida e perseguida, sem expressão em Portugal, de novo estão apenas a falar do neoliberalismo. E a esquecer que mesmo assim, nos últimos dez anos, as ideias neoliberais e ainda mais aquilo a que os sociólogos chamam “background assumptions” tiveram um enorme sucesso ideológico e impregnaram o discurso comunicacional. Isto durante o período da troika, em que estiveram no governo.

Dois partidos políticos portugueses têm na sua génese a tradição do nosso liberalismo, o PS e o PSD. Ambos combinam o liberalismo político com outras tradições, o PSD com a doutrina social da Igreja e o personalismo, o PS com o republicanismo anticlerical e maçónico. No entanto, ambos partilham muitos aspectos da tradição social-democrata, na sua recusa do marxismo e do leninismo. O CDS é mais difícil de caracterizar pelas suas flutuações ideológicas, desde a sua génese na tradição democrata-cristã até à sua perversão no PP e o seu activismo em temas de “moral” contra o aborto, a eutanásia, os direitos dos homossexuais, funcionando como inverso do Bloco “fracturante” – nada tem que ver com a tradição liberal.

O PCP, o Bloco de Esquerda, o PAN não são partidos liberais, o que não significa que não sejam democráticos. O PCP e o Bloco de Esquerda partilham de uma teleologia da história e por isso há quem esteja na vanguarda e quem esteja na retaguarda, ou seja, não é a qualidade universal da cidadania que transporta a igualdade, mas sim a “classe” que determina o seu papel na história. O PAN assenta numa ontologia animalista da sociedade que desvaloriza a liberdade, porque desvaloriza o humano. De facto, “pessoas”, “animais” e “natureza” não estão para um liberal no mesmo plano, porque não são ontologicamente idênticas.

O Chega não é um partido liberal nem democrático. Não se pode ser democrata e racista e xenófobo ao mesmo tempo, porque raça e nacionalidade não podem diminuir o humano em que assenta a liberdade e a igualdade.

Dito isto, sobra a Iniciativa Liberal, na qual a hegemonia da correlação Estado-economia é dominante. O seu documento intitulado PREC Liberal, no qual são apresentadas 100 medidas, é relevante para o debate político nacional, porque representa um dos raros esforços programáticos num deserto ideológico. E isso tem muito mérito.

Uma análise mais detalhada fica para outra altura, mas como sempre acontece a propaganda é bastante menos elaborada – por exemplo, no seu site põe-se no mesmo plano de liberdade as “pessoas”, as “sociedades”, os “cidadãos”… e os “mercados”. E quando vamos ver quais as reivindicações para cada uma destas “liberdades” que é necessário “devolver”, no caso das “pessoas” encontramos “menos impostos, mais emprego, mais oportunidades, mais liberdade de escolha nos serviços públicos”. Mais à frente, na “competitividade” aparece: “Descomplicar, desonerar, atrair capital, libertar os contribuintes dos prejuízos das empresas públicas ineficientes.” Etc.

O problema não está em muitas destas propostas, que, aliás, todos fazem, sobre “corrupção” ou “transparência”, mas no facto de tudo ser posto no mesmo plano de importância para um país abstracto. Quando se fala num país pobre como Portugal que a prioridade possa ser “mais liberdade de escolha nos serviços públicos”, ou “libertar os contribuintes dos prejuízos das empresas públicas ineficientes”, tudo coisas razoáveis em si mesmas, não se pode deixar de pensar no que isto significa para a maioria dos portugueses que não têm condições para escolher um colégio para educar os filhos, nem estão muito preocupados se um hospital público custa caro, desde que sejam gratuitos os seus serviços. Não porque sejam desperdiçados, mas porque precisam. Repito: porque precisam. Se deixarmos o senso vulgar das palavras de ordem e passarmos para o senso comum da realidade, este programa é muito pouco sobre “libertar”, muito menos sobre partilhar e muito mais sobre pagar – e pagar arrasta atrás de si desigualdades profundas. Significa ter direitos, ter salário digno, ter habitação e serviços públicos básicos. A crise do liberalismo clássico no século XIX e que alimentou o socialismo veio da incapacidade de garantir o progresso social por muito que os “mercados” sejam “livres”.

É por isso que depois de ter lido cem vezes a palavra “libertar”, de uma coisa estou certo: não é de “libertar” da pobreza, da desigualdade, da exclusão que se está a falar. E não digo isto por qualquer vontade de “atacar” a Iniciativa Liberal, mas porque é mesmo assim. É também por isso que eu não quereria que a palavra “liberdade” fosse capturada por estes “liberais”.

Historiador

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A indignação com o SEF é tão dezembro de 2020!


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
03/02/2021


A comunicação social segue e alimenta torrentes monotemáticas, acompanhando as necessidades de indignação do mercado. O SEF é tão dezembro de 2020! Agora, são as fraudes na vacinação que estão a dar. Os critérios raramente são editoriais. São comerciais. Achamo-nos cada vez mais vigilantes, somos cada vez mais inconsequentes. É possível que Cristina Gatões nunca volte mesmo a um cargo de direção no SEF, mas voltará a qualquer coisa.. Nunca se demitiu. Apenas esperou que mudássemos outra vez de assunto.



Cristina Gatões chegou ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e não deu qualquer sinal de levar a sério os relatórios da Provedoria de Justiça que lhe diziam que o Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa era uma bomba relógio onde, a qualquer momento, poderia acontecer uma tragédia. Nem a tudo o que de irregular ali acontecia e já tinha sido noticiado. Depois da tragédia acontecer, a ex-diretora do SEF ficou em silêncio público durante nove meses. Não achou que aquele crime lhe exigisse, enquanto dirigente de um serviço que tem à sua guarda cidadãos que nos procuram, qualquer palavra. Contou com a cumplicidade do ministro. Em dezembro, Cristina Gatões demitiu-se por causa de uma enorme pressão pública.

Soubemos ontem que faz parte de um grupo de trabalho de aconselhamento ao SEF para a reestruturação dos “vistos gold”. Se Cristina Gatões se demitiu foi porque ela, o ministro ou os dois assumiram que as suas responsabilidades num caso de enorme gravidade assim o justificavam. Se o assumiram, não faz qualquer sentido que mantenha cargos relacionados com um serviço onde se revelou suficientemente incompetente para uma demissão pública.

Assim seria, se a demissão de Cristina Gatões tivesse resultado de qualquer reconhecimento de responsabilidades. Mas Cristina Gatões demitiu-se para salvar o ministro. E Eduardo Cabrita estava em dívida para com ela. A gestão da carreira da ex-dirigente do SEF revela a forma como a política se relaciona com o espaço público nestes tempos de ciclos mediáticos cada vez mais intensos e curtos. Os políticos sabem que tudo é grave até deixar se ser assunto e não ter gravidade alguma. E que tudo deixa de ser assunto muito rapidamente – menos a pandemia, que afeta demasiado o nosso quotidiano para ter impulsos exclusivamente mediáticos. Mesmo que seja notícia, já ninguém está nessa onda.

Esta semana, estão a dar as fraudes na vacinação (tratarei disso e de como a comunicação social entra em modo histriónico com uma regularidade tão cansativa na minha coluna semanal, na sexta-feira), há duas semanas eram os colégios privados, para a semana que vem será outra coisa qualquer. A comunicação social segue e alimenta estas ondas monotemáticas, acompanhando as necessidades de indignação do mercado. O SEF é tão dezembro de 2020!

A impunidade dos agentes do Estado (ou do sector privado, mas esses estão dispensado de qualquer escrutínio mediático até que aconteça uma falência de um banco qualquer) é fruto do comportamento da comunicação social, que vive de ondas e alimenta ondas. Da comunicação social, não dos jornalistas. Como se viu no caso do SEF, houve jornalistas a acompanhar tudo desde 2018. E a publicar notícias. Como agora o fizeram, perante o regresso de Gatões. Mas como a voragem mediática esmaga todos os assuntos com o que estiver a dar, tudo o resto passa desapercebido porque os focos estão intensamente apontados para outro lado. Os critérios raramente são editoriais. São comerciais. E a indignação que agora vende não é esta. O mesmo se passa com os comentadores, necessitados de partilhas, cliques e temas que lhes permitam insensatas indignações exclamatórias.

Sabendo isto, os políticos fazem o que qualquer um faria debaixo de pressão: cedem um pouco e esperam que passe. E passa cada vez mais depressa. Achamo-nos cada vez mais vigilantes, somos cada vez mais inconsequentes. Gritamos cada vez mais, os nossos gritos querem dizer cada vez menos. Até ficarmos roucos. É possível que Cristina Gatões nunca volte mesmo a um cargo de direção no SEF, mas voltará a qualquer coisa. Ela nunca se demitiu. Apenas esperou que fizéssemos aquilo que fazemos sempre: mudássemos de assunto. Como mudámos poucos dias depois da morte de Ihor Homeniuk.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Por estas e outras nunca haverá liberais em Portugal


Por estatuadesal
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
02/02/2021


(Não foi só o Mayan que veio com esta história, ó Francisco. Ontem também o Rui Rio pegou na dita, na entrevista à TVI, para provar o "preconceito ideológico" do Governo contra a iniciativa privada. Mas que raio de iniciativa privada querem estes tipos!? O Estado que pague aos médicos, que lhes mande os doentes, lhes pague as facturas dos internamentos que eles ficam com os lucros e, no fim do processo, não os taxe com muitos impostos?

Em suma, os que os liberais tugas pretendem e a que se habituaram durante décadas é ao chamado "Estado vaca-leiteira". Só que a teta da vaca está a secar e eles gritam que se fartam. Não, aos liberais e ao borracho não deve pôr o Estado a mão por baixo, parafraseando o provérbio.

Comentário da Estátua, 02/02/2021)

 

O Hospital Compaixão, em Miranda do Corvo, foi concluído há dois anos mas continua fechado. Não tem porteiro, nem telefonista, nem administrativos nem um único profissional de saúde. É um edifício vazio. E foi notícia nas eleições presidenciais, com um candidato, Tiago Mayan, a fazer do escândalo o tema de um dia de campanha, querem lá ver que o polvo do Estado recusa salvar os doentes por puro preconceito ideológico contra a iniciativa privada.

O hospital foi construído pela Fundação Assistência para o Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP), um nome curioso que se deve referir à sua função. Pois a Fundação especializou-se no negócio da saúde, gerindo várias unidades na região centro. O seu presidente é um dinossauro do PSD, Jaime Ramos, que foi deputado, vice-presidente da bancada, governador civil de Coimbra e presidente da Câmara de Miranda do Corvo em sucessivos mandatos. O Hospital Compaixão é o seu principal investimento mas, para surpresa dos inocentes, nunca abriu portas.

Em novembro, as autoridades de saúde contactaram todas as unidades privadas da região para programarem a cooperação na resposta à pandemia. Houve duas que não responderam, entre elas o hospital do dr. Ramos. Chegadas as eleições presidenciais e encontrado um porta-voz voluntarioso, o “escândalo” vem para a praça pública: temos aqui estas camas e salas cirúrgicas, tudo pronto, e o Estado recusa-se a enviar doentes. Perguntadas pela imprensa, as autoridades de saúde manifestaram perplexidade: como é que vamos mandar doentes Covid, ou outros, para um hospital que está fechado e não tem nem um enfermeiro nem uma médica? O dr. Ramos explicou então candidamente numa reportagem da Sic que o que queria, precisamente, era que o Estado lhe garantisse o pagamento dos profissionais que ainda não contratou e que lhe despachasse os clientes que ainda não tem. Ou seja, a iniciativa privada quer que o setor público lhe pague as despesas e lhe proteja o negócio. Não pretende convenções, quer uma garantia de cobertura dos custos e uma salvaguarda das receitas. Sem isso, continua amuado e não contrata ninguém. Só abre portas se o Estado lhe assegurar a tesouraria e os proveitos.

A mais atrevida das imaginações não conseguiria conceber um retrato tão fiel sobre o liberalismo português. Com direito a fanfarra eleitoral, um operador político estende o chapéu ao Estado, não para o ajudar a singrar ou para colaborar numa urgência sanitária, mas para lhe fazer a caixa. Como bem explicou recentemente outro destacado prosélito liberal, o dr. Mesquita Nunes, quem critica esta fé são os que “não percebem nada de economia”.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A China no mundo

 

João Abel de Freitas, 
01 Fevereiro 2021

O modelo ocidental de primeira potência pelo confronto apresenta-se de sucesso duvidoso no futuro e prejudicial a todos. Porque não partir para a construção de um novo modelo, o de partilha e cooperação, entendendo-se que partilha não é cedência.


1. O mundo chinês é muito complexo de apreender nos seus múltiplos aspectos.


Penetrar um pouco na sua história, na sua forma de contemplar o mundo, na diplomacia e até no processo de desenvolvimento económico que, nas últimas décadas, tem apresentado uma economia com taxas de crescimento da ordem dos dois dígitos, é um quebra-cabeças.

Para simbolizar as diferenças até se invoca o jogo de xadrez dizendo que a pressa do jogador ocidental é capturar de qualquer modo o Rei, enquanto o jogador chinês avança as pedras no tabuleiro de forma criteriosa na base de um fio condutor de jogo, de forma a desferir o xeque-mate fatal.

Com esta forma de pensar longe, de pensar os grandes objectivos, a China não planeia a curto prazo, mas a 30/40 anos. É num trabalho de longo prazo que alicerça “a dinâmica da vida”.

2. A cultura política da China é cerca de dez vezes mais antiga que a dos EUA e a China e a Índia foram, desde o ano zero até 1820, as duas economias dominantes no mundo.

A China, em perda lenta há algum tempo, afunda-se a partir de 1820 e atravessa um período de grande humilhação, marcado por conflitos armados perdedores (Reino Unido/China), conhecidos por “as guerras do ópio”. Este período humilhante estende-se até 1949, data da criação da República Popular da China pela tomada do poder pelo Partido Comunista Chinês (PCC).

Os primeiros 30 anos de governação do PCC foram muito agitados. Não nos podemos esquecer dos períodos dramáticos do Grande Salto em Frente (1958-1962) e da Revolução Cultural (1966-1976), que muito perturbaram o país e o mundo.

Nos últimos 40 anos, porém, a partir das reformas económicas introduzidas por Deng Xiaoping, a China ressurge, entra em estabilidade e o crescimento económico torna-se uma realidade. O povo chinês experimentou nestes 40 anos uma melhoria muito substancial das condições de vida.

Sobre os efeitos das reformas, vejamos o que escreveu Kishore Mahbubani no seu livro “A China já Ganhou?”.

“Quando fui pela primeira vez à China, em 1980, o povo chinês não podia escolher onde viver, o que vestir, onde estudar ou que empregos ter. Nenhum turista chinês viajava para o estrangeiro. Hoje em dia, os chineses podem escolher onde viver, o que vestir, onde estudar (incluindo no estrangeiro) e que empregos ter. Além disso, todos os anos, 134 milhões de chineses escolhem viajar para fora do país, incluindo para democracias ocidentais como na América do Norte e na Europa e para os seus vizinhos asiáticos democráticos, como o Japão e a Coreia do Sul”.

3. O aparecimento da Covid-19 veio paralisar esta dinâmica. Mas, por outro lado, também põe a nu as grandes fragilidades do Ocidente, evidenciando a sua grande dependência face aos países asiáticos e em especial da China.

Veio demonstrar que o processo de globalização subalternizou os interesses estratégicos dos Estados, subordinando-os à lógica do lucro dos accionistas das grandes empresas e grupos monopolistas. Foi exactamente esta subordinação que proporcionou a deslocalização, sem princípios, de produções essenciais para a Ásia (a conhecida desindustrialização), desguarnecendo-se por completo as retaguardas dos países, com realce para os produtos de saúde.

Chega a Covid-19 e, durante algum tempo, teve de ser a China a prestar os “primeiros socorros”, pois era lá que estavam as produções, em grande parte por transferência das empresas do Ocidente.

4. A economia chinesa, mesmo com a Covid-19, continua a destacar-se no contexto das grandes potências mundiais. É a única grande economia que, no primeiro ano Covid-19, 2020, cresce 2,3%. Em termos de comparação, o PIB dos EUA decresce 3,4%, do Japão 5,1%, da zona euro 7,2%, com o máximo de 8,0% na Índia (FMI, 26 de Janeiro).

Esta situação vem mostrar estruturas económicas muito diferentes e, em vários domínios, a China está em posição dianteira como na energia, onde predominam as renováveis, e em certas áreas tecnológicas como as telecomunicações, com o 5G.

5. Como vai Joe Biden lidar com a China? E, por outro lado, que postura observará nas relações da União Europeia com a China? Todas as posições se entrecruzam, não tenhamos dúvidas. Nunca são neutras, nem os seus efeitos.

Será que Joe Biden, em termos de fundo, embora de forma mais civilizada, seguirá a política de Trump, olhando a China como inimigo a abater e pressionará os países aliados a seguir a mesma linha?

Biden tem como lema de política externa liderar o mundo, fazendo “ressuscitar” o projecto da hegemonia global. É o que consta de um artigo seu publicado na “Foreign Affairs” de Março/Abril de 2020, e de dois outros muito recentes de conselheiros desta área.

Parece estarmos perante uma política externa mais de confronto que de cooperação. Os EUA vão procurar aliados para esta política sobretudo na União Europeia e Reino Unido, pois sabem que sozinhos não vão longe.

Para aliciar aliados Joe Biden vai tentar demonstrar que não é Trump regressando ao acordo de Paris, à Organização Mundial de Saúde e a outras medidas avulsas “simpáticas” mas pouco eficientes.

Mas a questão de fundo é a globalização. Que política terá Joe Biden para esta grande questão?

Evidente que não poderá haver uma reversão completa da globalização, muito vai mudar, e este processo vai atingir também a evolução da China. Para a China, a grande defesa será virar-se para o seu próprio mercado, o que já vinha a fazer antes da pandemia, e aqui as hipóteses são francamente favoráveis dada a dimensão (1,4 mil milhões de habitantes).

Por outro lado, as boas relações que tem desenvolvido com os países vizinhos, numa lógica de cooperação, ampliam ainda as potencialidades e de algum modo poderão contrabalançar a eventual aliança dos EUA com outros países para o confronto económico e tecnológico.

6. Aqui chegamos ao Acordo de princípio sobre Investimentos, assinado recentemente entre a China e a União Europeia. Entendi em artigo anterior que este acordo abria algumas luzes saudáveis no relacionamento União Europeia-China e não só para a Alemanha e França, como tenho lido em muito sítio. Penso até que pode contribuir para uma nova lógica da globalização e também, ao contrário do que li e continuo a ler, não impede as relações com os EUA, desde que não haja imposição de subordinação de interesses. Esse é que me parece ser o problema dos EUA. Aliados, sim, desde que se sujeitem à nossa estratégia de ser líder mundial.

A China, embora ainda longe de ser a primeira potência mundial, tem francas hipóteses de lá chegar pelo domínio da tecnologia e como planeia a muito longo prazo… deve já ter equacionado os vários cenários.

Daí que o modelo ocidental de primeira potência pelo confronto se apresente de sucesso duvidoso no futuro e prejudicial a todos.

Então porque não partir para a construção de um novo modelo, o de partilha e cooperação, entendendo-se que partilha não é cedência. É negociação. Partilhar é uma escolha do jogo em pé de igualdade com regras definidas de cooperação e troca de saberes.

Com um modelo deste teor poderia impulsionar-se um novo tipo de globalização onde os interesses mundiais ficariam mais equilibrados e gerar-se uma nova ordem mundial multipolar, de menores confrontos e de maior consistência para a Paz no mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

A imensa estupidez de querer derrotar a História


Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
26/02/2021


Ciclicamente, há uns espíritos desocupados da esquerda pronta-a-consumir que se dedicam a escarafunchar a História de Portugal a pretexto da depuração racista e de um ajuste de contas extemporâneo com o passado colonial, como se alguém lhes tivesse deixado em herança a missão de o resgatar e limpar de todas as impurezas. Esquecem-se, ou ignoram, que a História não pode ser julgada pelos padrões éticos contemporâneos nem pelo comportamento de cada país ou sociedade visto isoladamente, fora do contexto da época. E esquecem-se, ou ignoram — ou pior, assumem, sabendo — que esse é o caminho mais rápido e inevitável para tornar inviável qualquer discussão séria, reduzindo-a a um debate sem sombra de grandeza ou finalidade, apenas contaminado por preconceitos ideológicos, onde uma esquerda arrogante e ignorante julga poder obter ganho de causa pela simples ameaça de excomunhão alheia. Mas onde apenas consegue fazer ressuscitar das catacumbas uma ultradireita nacionalista e igualmente ignorante e facciosa, saudosa de um Império que foi muito mais a nossa ruína grandiosa e pretexto para uma longa ditadura do que o orgulho pátrio que nos vendiam. E eis como os extremos se tocam e mutuamente vão envenenando o ar que respiramos.



De repente, caiu-nos em cima um Blitz de ajuste de contas com o Império, o colonialismo e as guerras coloniais, totalmente desfasado de circunstância e real importância, não se desse o caso de ambos os lados não encontrarem outra forma de fazerem prova de vida: a extrema-esquerda porque já não consegue inventar mais causas fracturantes; a extrema-direita porque nunca encontrou outras causas tão emotivas. Três coisas lhes serviram de pretexto: os arranjos florais dos jardins da Praça do Império, datados de uma Exposição Floral de 1961; a morte do Torre e Espada Marcelino da Mata, ex-comando nativo na Guiné; e uma estapafúrdia declaração de um deputado e ex-governante socialista, defendendo, num dia em que se esqueceu de tomar os calmantes, entre outras luminosas considerações, o derrube do Padrão dos Descobrimentos, esse símbolo do nosso colonialismo. OK, se tem de ser, vamos então a isso.

Sobre os jardins de Belém e os seus arranjos, outrora florais e entretanto desaparecidos, confesso não ter opinião nessa palpitante querela. Adoro jardins e adoro flores, mas se elas representam os distritos do antigo Império ou os símbolos dos clubes da 1ª Liga, é-me indiferente: confio no vereador Sá Fernandes, que tem obra feita em Lisboa, para se ocupar do assunto.

Sobre Marcelino da Mata, herói ou vilão, a questão é bastante mais séria e só quem viu ou viveu a guerra de perto saberá como todas as guerras são feias e como o são particularmente as guerras de guerrilha e de contraguerrilha. Os que estavam lá no mato idos daqui, tantas vezes borrados de medo daquele inimigo que lhes levava vantagem em conhecimento do terreno e técnicas de combate, mil vezes devem ter agradecido aos Marcelinos da Mata que lhes salvaram a vida, indo aonde eles não eram capazes de ir e não se preocupando então em saber, certamente, que métodos de contraguerrilha eles utilizavam. Da mesma maneira que não o perguntavam sobre as unidades de “Flechas”, da PIDE, que no mato faziam o trabalho sujo a favor da tropa portuguesa. Como não se preocuparam os 26 prisioneiros portugueses resgatados das masmorras de Sekou Touré, em Conacri, pelos comandos que Marcelino da Mata integrava, em saber se aquela operação era legal ou ilegal. Por isso, a pergunta se Marcelino da Mata foi herói ou criminoso de guerra não faz sentido: obviamente, foi ambas as coisas. O que faz sentido, já que querem remexer na História, é perguntar porque deixámos para trás, abandonados à sua sorte, os combatentes guineenses que tinham combatido ao nosso lado e que o novo poder do PAIGC se comprometera a integrar nas forças armadas do novo país independente, mas que acabaram, ou na miséria, ou fuzilados sumariamente. Ou perguntar três coisas ao coronel Vasco Lourenço, que arrolou agora como prova dos crimes de Marcelino da Mata (“facto” depois reproduzido por vários outros, como Daniel Oliveira, na última edição deste jornal) uma conversa a que terá assistido no “gabinete de um major”, em que Marcelino da Mata, regressado de uma operação, contou como entrara numa aldeia, atirara granadas para dentro das palhotas e, quando as mulheres e crianças saíram, fuzilou-as a todas: quem era esse major? Porque razão, ele, Vasco Lourenço, testemunha da confissão de um massacre desconhecido mas igual em gravidade ao de Wiriyamu, em Moçambique, se limitou a “retirar-se, incomodado”, em lugar de cumprir o seu dever de oficial e de homem de denunciar aquilo que tinha testemunhado? E porque só falou disso agora, depois de 50 anos de silêncio, e quando o suposto autor do massacre já cá não estava para, eventualmente, o contradizer?

Ilustração: Hugo Pinto

Ah, e vamos às estátuas, aos “monumentos coloniais”. Mas, primeiro, deixem-me autobiografar-me no assunto. A seu tempo, que é o que interessa, fui, lúcida e convictamente, um opositor da guerra colonial e do tal Império — sobre o qual nunca tive dúvidas de que era, além de absurdamente tardio e inviável no tempo, profundamente iníquo e imoral para os povos colonizados e fonte de enganadora prosperidade do país, quando, de facto, só era benefício de muitíssimo poucos, o qual pagávamos com o sacrifício de vidas, de liberdade e da nossa integração no espaço europeu de prosperidade e justiça social. E, por isso, se sempre olhei com compreensão e respeito todos aqueles que, por opção, por profissão ou por falta de possibilidade de escolha, combateram nas guerras do Ultramar, também sempre respeitei e admirei os que, por convicção apenas, escolheram não combater numa guerra que não aceitavam e viveram no exílio vidas bem mais difíceis do que o discurso primário da direita imagina. Tantos anos passados, não mudei nada do que então pensava. Mas estou em paz com o assunto, com uns e com outros, e com a História — a nossa. Que, como todas as outras, teve momentos miseráveis e momentos grandiosos.

Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!

Mais tarde, já o Império era apenas uma saudade para uns e uma sombra para outros, tive ocasião de estudar detalhadamente e de escrever sobre um desses momentos miseráveis: o trabalho escravo nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe, que descobri então, para espanto meu, durara até meados dos anos 50 do século XX: quase cem anos depois de termos abolido oficialmente a escravatura. Mas também descobri, 30 anos depois da independência, que São Tomé e Príncipe era um país falhado, como o são, com excepção de Cabo Verde, todos os que descolonizámos — e essa é, afinal, a pior herança que deixámos e o pior desmentido à nossa invocada “missão civilizacional” de 500 anos. Naquele país, liberto das amarras coloniais, com condições naturais únicas para ser um pequeno paraíso no Atlântico, tudo era mal gerido, tudo tinha sido destruído: as roças, todas as infraestruturas, os inúmeros hospitais que havíamos deixado (cada roça tinha o seu), desbaratadas ou metidas ao bolso dos governantes as generosas ajudas externas, e só numa coisa, aparentemente, se revelava o orgulho nacional: nas estátuas decapitadas dos navegadores portugueses que haviam descoberto as ilhas e que jaziam no terraço do antigo forte português, transformado em Museu da Resistência, ou coisa assim. E, então, ali me quedei sozinho, em silenciosa homenagem a João de Santarém e Pero Escobar, que em 1470 tinham cometido o crime, pelo qual depois as suas estátuas haviam sido decapitadas, de descobrirem aquelas ilhas desabitadas, no longínquo ano de 1470.

E o mesmo fiz diante do forte do Príncipe da Beira, na fronteira do Acre com a Amazónia — um dos sete fortes que o marquês de Pombal mandou construir ao longo da fronteira do Amazonas e aos quais o Brasil ficou a dever esse imenso território que hoje tão mal trata. Ali, diante das muralhas em granito de Portugal, cujas pedras atravessaram um oceano, subiram o rio Amazonas e foram depois carregadas até ao forte e empilhadas para formarem um quadrado de cem metros de lado, mais uma vez fiquei em silêncio porque não havia palavras que servissem. E nesse momento, tentando imaginar o que aqueles portugueses do século XVIII teriam suportado naquela empreitada, quantos teriam morrido de exaustão, de febres, de mordeduras de cobras ou de ataques dos índios — ou apenas de saudades — lembrando-me do que Joaquim Nabuco, o maior historiador brasileiro, disse (“nenhuma empreitada dos portugueses no mundo se compara à colonização da Amazónia”), li, e nunca mais esqueci, o que está escrito no frontispício da entrada do forte: “É vontade de El-Rei. Faça-se.” Assinado: Luís de Albuquerque, governador.

E o mesmo farei se um dia for a tempo de ainda contemplar a estátua de Gaspar Corte-Real, que a comunidade lusa ofereceu ao Canadá em 1965 e que está colocada em St. Johns, na Província de Terra Nova e Labrador, de braços cruzados, contemplando o oceano que o trouxe desde os Açores, a sua terra natal. Não sei a que propósito ou despropósito, na sequência do movimento “Black Lives Matter”, parece que a estátua simboliza agora “uma narrativa colonialista, eurocêntrica e de supremacia branca”. E o curioso é que o autor desta frase é um professor universitário de Toronto, encarregado dos “Estudos luso-canadianos” e de origem e nome português — uma espécie de Ascenso Simões norte-atlântico. Porém, a verdadeira história é outra: Gaspar Corte-Real era o filho mais novo de João Vaz Corte-Real, descobridor e explorador da costa norte-americana, do rio Hudson ao Labrador, em 1472, 20 anos antes de Colombo ter chegado à América. Em 1501, o seu filho Gaspar voltou a explorar a Terra Nova (Newfoundland) e o Labrador, desaparecendo sem nunca mais ser visto. E no ano seguinte, o seu irmão Miguel partiu à sua procura, na que então chamavam “a terra dos Corte-Reais”, e desapareceu também para sempre. E, sempre à vela, muito antes de o primeiro canadiano ter pisado a terra a que hoje chamam sua e de onde correram com todos os índios que puderam, os portugueses continuaram até aos anos 60 do século XX a saciar ali a sua sede de aventura e a sua fome de bacalhau. Pois que derrubem a estátua, só lhes fica bem!

Quem não sabe construir, destrói o que outros construíram. Quem não tem história para contar, apaga os sinais do que outros escreveram. Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. E, tal como Estaline, hão-de acabar a apagar os personagens incómodos das fotografias. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia