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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Desinformação e Desigualdade, palavras-chave no Fórum Davos 2024


Por
João Abel de Freitas, 
Economista


Com as novas tecnologias de informação e agora com a Inteligência Artificial, a velocidade de circulação da desinformação quase não encontra limitações tecnológicas. Uma questão-chave para o ano em curso, rico na ida às urnas.



No Fórum de Davos deste ano, que se realizou na Suíça de 16 a 19 de Janeiro, circularam dois relatórios perfeitamente distintos em tudo.

1. O relatório anual do Fórum Económico Mundial de Davos – The global risks report 2024 19th Edition, Insight Report – distribuído um pouco antes, a 10 de Janeiro, debruça-se sobre os riscos potenciais que poderão afectar as sociedades globalmente, distinguindo entre o curto (dois anos) e o médio/longo prazo (dez anos), onde a Desinformação aparece como risco de primeira linha.

Este relatório foi elaborado na base de um painel de 1400 personalidades (peritos, cientistas, representantes da sociedade civil, dirigentes políticos e empresariais) a quem foram colocadas uma série de questões sobre os riscos globais, para os próximos anos, arrumadas segundo cinco áreas: economia, ambiente, geopolítica, sociedade, tecnologia.

2. O relatório da OXFAM – Le rapport Multinationales et Inegalités 2024 – distribuído no Fórum de Davos, versa a Desigualdade, em duplo sentido, a economia e a pegada de carbono.

A OXFAM é uma ONG, sem fins lucrativos, que confedera múltiplas organizações a nível de vários países e se articula em parceria com muitas entidades. Nasceu em 1942, no Reino Unido, na sequência de uma grande crise alimentar, com a finalidade de encontrar soluções para os problemas da desigualdade, injustiça e pobreza. Para isso, utiliza campanhas, programas de desenvolvimento e acções de emergência em situações concretas.

Neste relatório, surgem duas conclusões globais, com uma actualidade gritante e profundo significado:

⦁ As cinco pessoas mais ricas do mundo viram a sua riqueza duplicar desde 2020, enquanto mais de metade da população mundial, cerca de cinco mil milhões de habitantes, em idêntico período, viram a sua riqueza decrescer;

⦁ A pegada de carbono das pessoas mais ricas é duas a três vezes maior do que se pensava.

A Desinformação

3. O relatório do Fórum Económico Mundial evidencia, pela primeira vez, a ameaça crucial do papel da desinformação.

Numa noção simples, a desinformação consiste no uso de um conjunto de técnicas e práticas de comunicação e de informação de massas, com o propósito de influenciar de forma determinante a opinião pública, utilizando dados falsos, escondendo ou falsificando factos. Um processo de manipulação do pensamento e acção das pessoas, tendo em vista fins concretos como o enviesamento de resultados eleitorais.

Com as novas tecnologias de informação e agora ainda com a Inteligência Artificial (IA), a velocidade de circulação da desinformação quase não encontra limitações tecnológicas. Uma questão-chave para o ano em curso, rico na ida às urnas, em muitas partes do Mundo, quer a nível local, nacional ou por blocos de países como serão as eleições de Junho da União Europeia.

Portugal, em 2024, não escapa a nenhum deste tipo de eleições. Marca presença em eleições regionais – Açores (e a Madeira?), nacionais – Legislativas e Europeias. Só escapam mesmo as Presidenciais.

Mas muitos são os países (76 ao todo neste momento, mais a União Europeia) em que os eleitores serão chamados a se pronunciar. Países dos maiores em população, como o Bangladesh, Índia, Indonésia, México, Paquistão, Reino Unido, Rússia vão a votos e quase no final do ano os EUA. Se todas as eleições têm o seu peso, as dos EUA terão uma importância relevante, pois podem trazer ajustes profundos na configuração da geopolítica mundial.

O Fórum Económico de Davos prestou grande atenção a esta situação, aliás, na base do relatório antes referido que aponta a desinformação como um dos maiores riscos para a humanidade: “o uso generalizado da desinformação e as ferramentas para disseminá-la podem minar a legitimidade dos governos eleitos”.

O Fórum de Davos não se cingiu apenas a esta temática da desinformação, até porque o tema central foi o de “reconstruir a confiança” num Mundo marcado por conflitos, guerras e crises bem diversas.

Difícil em situação tão complexa, restituir confiança aos povos e até me permito ter sérias dúvidas de que muitos dos presentes estariam seriamente apostados nisso, pois em todos estes encontros, muitas presenças se devem a um jogo e a um aproveitamento de “negócios” de todo o género, nomeadamente políticos.

A crise mundial é de facto profunda, complexa e perigosa e, em certos domínios, como o ambiente, segundo vários cientistas o referem, os riscos podem estar a aproximar-se de “um ponto de não retorno”. Neste sentido, até acredito numa aproximação muito global ao reconhecimento do problema em teoria.

Já quanto às medidas de ataque nada de comum. Aqui, entram os interesses económicos, os negócios e a apropriação da riqueza. Basta olhar para o campo da energia, onde os desentendimentos são o dia a dia. Jogadas com os preços, nada na realização das metas de descarbonização nem mesmo para aqueles que as juram defender (veja-se a reactivação das centrais a carvão na Alemanha).

É o caos e não um esforço de conjugação para, de facto, reduzir os riscos climáticos, hoje no topo dos riscos globais, com as situações climáticas extremas a sucederem-se, as secas rigorosas, os incêndios, a perda da biodiversidade.

A Desigualdade

4. O relatório da OXFAM apresenta no resumo inicial um quadro com a quantificação das desigualdades, bem mais expressivas na economia e no social que no ambiente.

Não uso os indicadores na sua globalidade. Seleccionei aqueles que, embora em número reduzido, me parecem dar uma visão bem clara das desigualdades que caracterizam o Mundo de hoje.

Fixemos estes dados:

⦁ Se cada uma das cinco pessoas mais ricas do Planeta gastasse um milhão de dólares por dia, precisaria de 476 anos para esgotar a sua fortuna;

⦁ À escala planetária, os homens possuem 105 mil milhares de milhões de dólares a mais que as mulheres, ou seja, uma diferença equivalente a quatro vezes a economia dos EUA;

⦁ 1% dos mais ricos do Planeta possuem 43% de todos os activos financeiros mundiais;

⦁ 1% dos mais ricos do Planeta emitem tanto carbono como os 2/3 mais pobres da Humanidade.

Estes quatro indicadores não podem deixar-nos insensíveis perante a vida.

A terminar

5. Assinale-se a tese defendida no discurso em Davos do ultraliberal Javier Milei, presidente da Argentina. “A justiça social não é justa, nem contribui para o bem-estar geral”, acompanhada de um acrescento: “a redistribuição não é o caminho para resolver as desigualdades”.

Se a estas afirmações/teses de Milei se juntar a carta de 250 multimilionários, também defensores do capitalismo como Milei que, mais uma vez se dirigiram aos líderes mundiais, reclamando que querem pagar mais impostos a fim de combater as desigualdades, a cacofonia em Davos fica perfeita.

Os liberais portugueses têm de se decidir se fazem campanha eleitoral na linha de Milei ou na linha dos 260 ultra-ricos que defendem o aumento de impostos para si próprios, na linha da OXFAM que defende uma maior taxação das grandes fortunas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Uma "líder autocrática" que usa o BCE como "trampolim": funcionários do banco central falam mal (e muito mal) de Lagarde


Por
CNN/TVI notícias




Christine Lagarde assumiu a presidência do Banco Central Europeu em novembro de 2019 mas ainda não convenceu os funcionários do banco central, a avaliar pelos resultados de um inquérito aos trabalhadores do BCE. De acordo com o POLITICO, que diz ter tido acesso aos resultados do inquérito, a maioria (50,6%) dos inquiridos classificou os primeiros quatro anos do mandato de Lagarde como "mau" ou "muito mau".

O inquérito, que contou com a participação de 1.159 dos cerca de 4.500 funcionários do BCE, revela uma insatisfação generalizada com a gestão da ex-presidente do Fundo Monetário Internacional, acusando-a de se envolver demasiado nas questões políticas, descurando as preocupações económicas, nomeadamente a subida galopante da inflação, e de utilizar o BCE como "trampolim" para regressar à política.

“Mario Draghi estava lá para o BCE enquanto o BCE parece estar lá para Christine Lagarde”, comparou um funcionário do banco central, citado pelo POLITICO, que assinala o desfasamento entre Lagarde e o seu antecessor, o ex-primeiro-ministro italiano. De acordo com a mesma fonte, na altura em que dirigia o banco central, apenas menos um em cada dez inquiridos classificou Mario Draghi como "muito mau" ou "mau", em contraste com 55% dos inquiridos que classificaram o seu desempenho como "muito bom" ou "excelente".


Entre as respostas dos inquiridos, o POLITICO salienta um dado que considera “preocupante”: o facto de mais de metade dos funcionários admitirem que o BCE poderá não ser capaz de assegurar o regresso à estabilidade dos preços. Um dos funcionários inquiridos acusa o banco central de se “concentrar em temas que ultrapassam as suas competências, num período em que a inflação atingiu o nível mais elevado da história da União Europeia". Outros salientam o facto de o BCE ter tomado partido no conflito armado entre Israel e o Hamas ou denunciam as viagens "excessivas" de Lagarde para fins não relacionados com as atividades do banco central.

Ainda em comparação com o seu antecessor, o POLITICO assinala o facto de Lagarde ter tido uma classificação muito pior do que Mario Draghi em relação às questões internas, com quase três quartos dos inquiridos a manifestarem descontentamento com as condições de trabalho e salariais, nomeadamente o facto de os aumentos salariais não acompanharem a subida da inflação.

“Christine Lagarde é geralmente apontada como uma líder autocrática que não atua necessariamente de acordo com os valores que proclama”, refere-se num relatório do IPSO, o maior regulador independente da imprensa no Reino Unido. De acordo com o POLITICO, o relatório sublinha a insatisfação dos trabalhadores com a aparente dualidade de critérios de Christine Lagarde, apontando como exemplo o facto de encorajar os funcionários a falarem, mas depois repreender os mesmos se partilharem abertamente as suas preocupações.


O POLITICO assinala ainda um outro dado “surpreendente” relacionado com o facto de nem os funcionários do sexo masculino nem os do sexo masculino estarem satisfeitos com os esforços de Lagarde em matéria de diversidade, com ambos os sexos a preferirem as políticas do seu antecessor, que introduziu pela primeira vez quotas de género no banco central. Embora a maioria tenha concordado com os objetivos quando Draghi levantou a questão, a implementação dos mesmos critérios por Lagarde é descrita como “contraditória e discriminatória”. "As questões de género dividiram seriamente o pessoal", observou um dos inquiridos.

Confrontada com estes resultados, uma porta-voz do BCE disse ao POLITICO que as respostas não correspondem à verdade e lembra que a conjuntura atual exigiu outras responsabilidades à presidente do banco central. “A presidente e o conselho de administração estão totalmente focados no seu mandato e implementaram políticas para responder a eventos sem precedentes nos últimos anos, como a pandemia e os conflitos em curso.”

Apesar do descontentamento geral, os resultados mostram que Lagarde conta com o apoio dos funcionários em alguns domínios em específico, como o facto de incluir a proteção ambiental no mandato do BCE.

Ilustração: Google Imagens

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Conflitos funcionais e disfuncionais


Sobretudo as organizações de natureza política são muito sensíveis às análises que lhes são feitas. Sempre que alguém tece um comentário, referencia uma visão sobre um qualquer assunto ou projecto, abespinham-se e tratam logo de menosprezar fechando-se no seu casulo. Mor das vezes atacam sem serenidade, arrastando consigo alguma comunicação social que tanto aprecia "fazer sangue". Existe uma cultura nesse sentido que peca por uma ausência de pensamento sobre as dinâmicas organizacionais.



Há um livro de Spencer Johnson, "Quem mexeu no meu queijo", que narra uma fantástica parábola, labiríntica, sobre a analogia entre os ratos em busca dos deliciosos queijos, com a vida real, mormente a corrida ao emprego, ao dinheiro, a afirmação pessoal, enfim tudo o que é desejável. Em síntese, tal como os ratos na busca do queijo, as pessoas também correm atrás dos "queijos" da vida! Há, claramente, uma semelhança com a baixa política.

Ninguém se atreva a mexer no seu queijo. Quando isso acontece o caldo entorna-se. No exercício da política muitos são aqueles que andam atrás do seu pedaço de queijo. Por diversas razões, não importa enunciá-las. E tudo começa muito antes da eleição, através da "contagem das espingardas" (os meus apoiantes e os outros), movendo influências e prometendo bons queijos para todos. Uma vez instalados no seu habitat, a serenidade tendencialmente apaga-se, o espírito organizacional de mudança emudece e guardar o seu espaço e o seu queijo tornam-se objectivos fundamentais. Facilmente se esquecem do dia que, solenemente, assumiram ser "homem de consensos e de diálogo".

Não devia ser assim, mas é o que é! Temos de surfar nas ondas da realidade. Trago também em memória a metáfora de Arthur Schopenhauer (1788/1860) sobre o dilema dos porcos-espinhos, que se "empurravam uns contra os outros para se defenderem do frio e do medo". Magoando-se, claro, pelos espinhos de uns com os outros, o que levou Alfredo Carneiro, editor do netmundi.org (2018), a narrar que "as necessidades sociais (...) impulsionam os "homens porcos-espinhos" a se reunirem, apenas para se repelirem devido às inúmeras características espinhosas e desagradáveis de suas naturezas. A distância moderada que os homens finalmente descobrem é a condição necessária para que a convivência seja tolerada (...)". Acentuo: "distância moderada" ou, melhor sublinhando, distância tolerada

Numa aproximação ao exercício da política, eu diria que a prática tem muito de comparável com a história dos ratos e porcos-espinhos. Seria sensato, bom para as comunidades, para a sã convivência dos membros e o cumprimento da finalidade e missão das organizações, atender às características e diferenças dos membros, percebendo que em todas elas, as de natureza política, as empresariais e outras, vivem e afirmam-se pela importância do conflito. 

Desde que o conflito tenha uma natureza funcional, ele acaba por ser determinante na evolução das organizações. O pensamento único, a subjugação ou o medo da própria sombra, esses não. Discordar, dentro da organização ou fora dela é, portanto, saudavelmente necessário quando a dissonância é gizada numa dimensão inteligente. Muito diferente é o conflito disfuncional, aquele que percorre qualquer um dos sentidos: do topo da pirâmide organizacional (o vértice estratégico) para os membros de base, ou desta para o topo. É desgastante e ruinoso quando o topo assume ou imagina que outros estão a tentar roubar-lhes o queijo. Por aí demonstram a sua própria fragilidade; da mesma forma, que se torna nefasto quando o centro operacional (os membros de base) geram desajustadas e complexas situações que vão corroendo, intencionalmente, a finalidade e a missão de uma dada organização. É por isso que são necessários líderes e não chefes!

Não esqueçamos que vivemos numa era de conflitos em todas as áreas da vida. Nas organizações também. Onde existem pessoas existem conflitos de ideias, de valores, de convicções, de estilos e de padrões. São aspectos que não podem ser evitados sob pena de anularem as ideias e a própria criatividade. Evitar pode significar gerar uma atmosfera de insegurança. Portanto, só resta saber gerir os conflitos, transformando os desacordos em oportunidades visando a melhoria do desempenho. E isso significa criar um clima adequadamente aberto, o que faz com que se utilizem os talentos e os recursos de cada pessoa. Negá-los, apenas porque sim, porque não existe empatia, constitui um grave erro estratégico.

Isto é conceptualmente básico. Na política ter-se a sensação que alguém deseja roubar o queijo, e que, por isso, necessário se torna proceder à morte do rato, eu diria que tal coloca em causa o êxito organizacional. O topo da hierarquia deve sobretudo procurar a homeostasia, isto é, um equilíbrio dinâmico entre as partes do sistema. É um problema de escuta e não de tentar saber quem anda a querer mexer no seu queijo.

Ilustração: Google Imagens

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Os silêncios e os deveres de cidadania

 

Tem muitos anos quando adquiri um equipamento de áudio da marca "Marantz". O slogan cativou-me: "Só o silêncio é mais puro". De facto, hoje, mais do que nunca, gosto do silêncio porque nele descubro a ordem das coisas por onde o pensamento navega e, assim sendo, sinto-o terapêutico nesta absurda loucura na qual vivemos, sem que a possamos travar. O silêncio é puro e, para mim, introspectivo. No silêncio encontro o som do pensamento!



É esse silêncio que me faz reflectir, analisar e decompor aquilo que se passa debaixo dos meus olhos de cidadão actor/espectador. Nesse vaivém dos pensamentos, questiono e descubro as respostas que deixo a maturar. Nunca publico de supetão seja o que for. O impulso raramente traz adequados retornos.

Mas há outros tipos de silêncio com os quais não consigo conviver. Marinado um determinado assunto, nunca me resguardo no silêncio, embora sempre de acordo com um antigo provérbio chinês que enuncia: "a palavra é prata, o silêncio é ouro." Por isso, quando escrevo, tomo por princípio que não se trata de uma verdade (única, a minha), mas que estou a ser honesto com a minha verdade. Porque há verdades e a minha é apenas uma! Não aprecio, no quadro de uma cidadania activa, o silêncio interesseiro e manobrador, por razões diversas e porque, entre tantas colateralidades, pode fazer melindrar este ou aquele, esta ou aquela instituição. O respeito pelos outros é uma coisa; bem diferente é deixar-se ficar pelas águas mornas ou nos pântanos de conveniência.

Ora bem, ao escrever sobre o Deputado Dr. Carlos Pereira e o assassinato político que lhe foi feito em directo, posicionei-me em defesa da qualidade técnica e política de quem sinto que, cabalmente, me representa. Não o fiz no quadro da Amizade pessoal que é elevadíssima. Eu sei distinguir entre o que são os valores narrados na "Carta de Princípios", neste caso do partido socialista, o trabalho realizado pelo Deputado e a amizade pessoal relativamente ao protagonista político em causa. Num dos pratos da balança coloco essa "carta de princípios" com a qual me identifico; no outro, a prática política obviamente sujeita a múltiplos olhares e interpretações. Este posicionamento constitui, para mim, o fermento da democracia. A existência de opiniões divergentes, não significa que elas sejam contra, por exemplo, uma sustentada alternativa à governação, tampouco à intenção de gerar fracturas partidárias internas com repercussões mediáticas. Se assim não se interpreta é porque, infelizmente, alguns passam ao lado dos direitos de cidadania, como se vivêssemos numa democratura. E daí os saneamentos.


São estes tipos de silêncio que me incomodam. Eu diria que existe e persiste um bloqueio de natureza cultural na vida e vivência democráticas. São sensíveis a teoria do rebanho e a da exclusão compulsiva de quem não entra, atempadamente e de cabeça baixa, no curral. A democracia não se funda nesse princípio de "quem não está comigo contra mim está". Isso é próprio de mentes pouco sadias, eu diria, perversamente oportunistas. E eu sinto-me um cidadão não militante partidário, mas que transporta uma "carta de princípios" políticos da qual não abdico. Assistir à violação desses princípios e aos assassinatos políticos apenas porque não se gosta, embrulham-me a tolerância do meu estômago provocando uma acidez cujo refluxo é a escrita. 

Há, portanto, silêncios que me são extraordinariamente úteis e outros que repudio. Ademais, sou um cidadão de pensamento livre. Quem não gosta de gente assim, que ponha na roda do prato e continue o banquete das aparências. Mas não se esqueça que quem está a pagar a factura somos todos nós.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Terras raras, energias renováveis: uma nova dependência da União Europeia?


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A transição energética e ecológica precisa de ser repensada e, no caso das renováveis, começa na mina. Caso contrário, não passa de uma grande falácia em termos ambientais.



A importância da China


1. Alguma imprensa europeia ligada à temática da energia noticiou, nos dias de Natal, que Pequim passou a colocar sérios obstáculos/proibição em situações específicas à exportação das tecnologias de mineração e tratamento das Terras Raras.

Esta decisão da China vem criar problemas agora e de futuro nomeadamente à União Europeia que é altamente dependente da importação de metais críticos, em que as terras raras se enquadram e, sobretudo, dificultar o desenvolvimento de fileiras industriais nestas áreas.

Esta posição em nada contribui para relações normais diplomáticas, políticas, económicas. É preciso construir uma nova diplomacia europeia para assegurar relacionamentos credíveis (comerciais e de investimento) de longo prazo com a China.

Neste momento, funciona um impasse de contrapartida, com a Europa em perda maior até porque age sem autonomia. Nada, na Europa, em áreas críticas, se aprova sem a supervisão americana. Exemplos, casos Huawei, chips, tecnologias, etc. Esta a resposta de Pequim, bem ciente dos efeitos na desindustrialização. Mas é o ditado “amor, com amor se paga” a funcionar.

E fica espaço à pergunta. Alguém beneficia com estas guerras económicas? A curto prazo, só prejuízo. A longo, depende de quem melhor se apetrechar para reagir com vantagem. E não me parece que vá ser a Europa!

Terras Raras

2. Por Terras Raras entende-se um conjunto de 17 metais existentes na crosta terrestre, devidamente identificados, pelas tecnologias actuais, muitas vezes associados a elementos radioactivos, como o urânio e o tório.

O valor das terras raras decorre da sua aplicação, depois de devidamente transformadas em produtos, em vários sectores das tecnologias verdes como baterias para veículos eléctricos, equipamentos eólicos e fotovoltaicos, equipamentos de toda a ordem para a economia digital (computadores, telemóveis, smartphones, etc.) e até equipamentos de defesa. Neste contexto, a sua exploração assume um elevado grau de sensibilidade.

A distribuição geográfica das reservas conhecidas de Terras Raras apresenta-se muito concentrada com predomínio para a China (60%), República Democrática do Congo e em muito menor grau Austrália e EUA.

A China é um quase monopólio na exportação de terras raras, cobalto e lítio (cerca de 90% das importações da Europa) e não tenciona partilhar esta situação a não ser em moldes por si negociados. Pelo contrário, até está a investir no reforço desse domínio no mercado mundial através de importações ou de investimentos no exterior quer na mineração, mas também na refinação e consórcios industriais como as baterias.

Quanto ao lítio, recentemente, foram identificadas, nos EUA, jazidas potencialmente importantes, embora com graus de risco de exploração ainda por afinar.

Lei das Matérias-Primas Estratégicas

3. A Comissão Europeia apresentou, em Março de 2023, uma proposta de Lei dos Metais Críticos, no sentido de intensificar os seus esforços para garantir o acesso futuro a minérios como o lítio e o cobalto na tentativa de minorar a sua dependência do exterior e em especial da China.

Se esta lei vai ser bem-sucedida é outro problema porque avança com muito atraso como acentua Georges Rickeles, director associado do Centro de Políticas Europeias (EPC), ao afirmar: “acho que é muito claro que a China está estrategicamente preparada para a próxima economia mineira. Está preparada para a transição verde e para a era zero das emissões líquidas. E a Europa não”. Admite mesmo um atraso europeu de, no mínimo, 15 anos.

Esta lei aprovada no dia 7 de Dezembro 2023 pelo Parlamento Europeu (PE) integra uma lista de 16 matérias-primas estratégicas e visa conseguir um contributo diferenciado da UE até 2030 de 10% na mineração própria, 40% no processamento e 15% na reciclagem.

No entanto, para além dos atrasos tecnológicos constatados face à China, que tem de longe a liderança mundial nestas matérias, como é costume na União Europeia, o grande problema que entrava o avanço é o da falta de meios financeiros atribuídos. E aqui surge sempre a divisão. Nada de comum em dinheiros. Dinheiro em conjunto nunca. Eurobonds ou coisa semelhante é um termo banido do léxico da UE, apesar do PE ter apontado para um Fundo.

Outro aspecto de discórdia é a aceitação dos projectos comunitários pelas populações locais, preocupadas com os efeitos ambientais e sociais da exploração dos recursos. O caso do lítio em Portugal é um exemplo.

Uma situação típica do Ocidente

4. Recuando alguns decénios, a situação da China no mundo não era a de domínio tecnológico nestas áreas.

Os EUA e mesmo a Europa mantinham uma posição relevante nas matérias-primas estratégicas. Só que as questões ambientais começaram a ganhar relevo e a cedência fácil dos políticos europeus apoiaram a deslocalização da mineração para outras paragens. Fácil enviar o “lixo” para o mundo subdesenvolvido num processo de forma negligente ou pouco inteligente.

Tanto assim é que os efeitos desta política são hoje contestados. Rolf Kubi, director administrativo da Eurominas (associação empresarial) não deixa de se exprimir da seguinte forma: “Afinal, os painéis solares ou as turbinas eólicas não devem produzir apenas electricidade verde, mas também precisam de ser feitas de matérias-primas verdes”. E afinal a mineração das matérias-primas tem pouco de verde. É mesmo poluente.

A Europa a caminho de uma segunda dependência energética?

5. O domínio da política energética anterior de influência alemã (Energiewende) levou à dependência do gás russo que se conhece. Parece que nada ensinou, estando a Europa a deslisar de forma leviana para uma outra dependência, a dos metais críticos e estratégicos.

Não será de parar para pensar e agir diferente?

Ninguém advoga o abandono das energias renováveis e, por conseguinte, a solução para os metais críticos merece reflexão profunda, no sentido de se chegar a uma estratégia sustentada de colmatar as necessidades da Europa. Mas será que é uma questão resolúvel sem o estabelecimento de uma estratégia energética comum?

Não estarão a ser ultrapassadas as capacidades instaladas em renováveis com todos os inconvenientes que isso acarreta, designadamente a dependência não resolvida antes apontada, mas ainda dificultando a entrada de outras fontes de energia mais seguras e de baixo carbono?

A UE, apesar de ter dado alguns passos, ainda não foi capaz de conjugar todas as fontes de energia de baixo carbono, em especial definindo o papel concreto da nuclear que é, sem dúvida, a que reúne condições para menos dependência ao nível da União Europeia. Esse equacionamento requer um novo sistema produtivo industrial e mudanças profundas ao nível da formação.

A energia é uma pedra basilar em toda a sociedade porque se liga a tudo. Sem energia voltaríamos à idade da pedra e com a energia no estado presente, em que 80% é de raiz fóssil, o aquecimento global com todos os efeitos que já vamos conhecendo começa a tornar o Planeta inabitável em várias zonas que rapidamente se vão estendendo.

A transição energética e ecológica (baixo carbono) precisa de ser repensada e, no caso das renováveis, começa na mina. Caso contrário, não passa de uma grande falácia em termos ambientais. Quase tudo a reequacionar e de forma urgente. Porque não aproveitar as eleições que aí vêm para ponderar estes aspectos fortes de uma nova civilização em Portugal e na Europa? Estamos numa altura de mudança.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Só tem um nome: saneamento!


Não dou por mal empregado o tempo que, no quadro de uma cidadania activa, ofereci ao Partido Socialista. Foram muitos anos, onde aprendi com pessoas de indiscutível valor, com o povo de todos os concelhos, onde mergulhei na política real e percebi todo o seu bas-fond e onde trabalhei e contactei pessoas de elevada credibilidade e notoriedade política e social. Foram anos de sucessivas angústias sobretudo porque o eleitorado fez sempre as escolhas que entendeu fazer. Afastei-me dessa luta e, hoje, nem militante sou. Valha a verdade, por aproximação a uma velha história vivida, também "meliante" nunca fui.



Tenho plena consciência que nem sempre estive bem, nem os grupos que integrei, com erros e estratégias que vieram, nos actos eleitorais, mostrar-se desadequados. 

Mas desse longo percurso, dois aspectos foram, para mim e muitos com quem privei, absolutamente fundamentais: 1º que a participação política constitui um serviço público à comunidade, nunca um emprego; 2º a defesa da qualidade em detrimento da mediocridade. Infelizmente, dois princípios que desde há muito venho a verificar um contínuo resvalar para um pantanoso espaço de mentira, aldrabice, jogos de pequeno poder, falsas unidades e descarado oportunismo. Num processo destes os melhores acabam sempre por serem afastados. Melhor dizendo, saneados. Ou, subtilmente, afastam-se porque se sentem a mais. Há uma "inteligência" subterrânea que se baseia no "quem não está comigo contra mim está" ou na lógica de "agora somos nós". Não é caso específico do PS, sublinho. No poder regional hegemónico, só por o serem é que não se notam as gravíssimas fragilidades e contradições.

Por que falo disto, perguntar-me-ão? Porque, enquanto cidadão, fiquei perplexo quando assisti, em directo, ao saneamento de um dos melhores políticos madeirenses de sempre, como cabeça de lista nas próximas eleições legislativas nacionais. O Dr. Carlos Pereira, por aquilo que tem sido na defesa da Região, pela sua extraordinária competência em sectores vitais da sociedade é muito mais respeitado entre os seus pares na Assembleia da República do que propriamente entre os que por aqui andam. Não se chega a Vice-Presidente da bancada do Partido Socialista na Assembleia da República sem um passado de reconhecido mérito. Mas é esse mérito que não é tido em conta. Porque fala, porque diz o que pensa, porque entre a qualidade e a mediocridade escolhe a primeira, logo há quem lhe "faça a folha". É triste e vergonhoso!


Aquele anúncio saneador (não foi o primeiro) ao terminar o Congresso foi de muito mau gosto. Não era o local apropriado, pelo que teve um significado político maior. Ininteligível. Mas analisando bem as coisas, situação que muito me constrange, não podia esperar melhor. O discurso foi indigente, cheio de generalidades e de banalidades; a história claramente apagada a avaliar pelas presenças; e, quanto ao futuro, um profundíssimo deserto de ideias no contraponto com "48 anos de partido único". Não era o momento para ler um putativo programa de governo, mas de marcar o terreno da alternativa, mostrando a existência de pessoas (quadros) e as concomitantes linhas de actuação ao encontro de uma sociedade de pensamento livre, não dependente, equilibrada e culta. 

Isto preocupa-me enquanto cidadão. Resta-me continuar a votar, enquanto dever de cidadania. 

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 13 de janeiro de 2024

A agonia feia do PSD


Por
Miguel Sousa Tavares
Expresso

Eis a dura realidade: disse mais Pedro Nuno Santos em 20 minutos de discurso sobre políticas alternativas e preocupações de futuro do que o PSD em oito anos



O PSD está fora do Governo há oito anos e, dizem as sondagens e a percepção política, muito provavelmente vai conti­nuar fora depois de 10 de Março. É demasiado para um partido que, mais do que qualquer ideologia identitária, mais do que qualquer filiação numa família política, tem, na sua natureza e no seu historial, a conquista do poder, a governação do país, como objectivo principal. Ao contrário do PS, do PCP e mesmo do CDS, o PSD não tem parentesco reconhecido nem fidelidade ideológica reconhecível. Alguém disse um dia que o PSD era o mais português dos partidos portugueses, com uma penetração social, etária e geográfica onde se podiam acolher todos os eleitores. Um partido nascido não para preencher um espaço político vazio mas para apresentar uma agenda essencialmente centrada na resolução de problemas concretos e apostado numa boa governação. Isso fez dele desde sempre um partido vocacionado para governar ou a alternativa real e permanente ao poder do PS: esteja no Governo ou na oposição, a mensagem-chave do PSD foi sempre essa — a alternativa. Foi isso que fez o sucesso eleitoral — para muitos então inviável — da AD de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles. Num contexto histórico em que parecia só haver uma solução à esquerda — com a esquerda civil e militar — e com uma Constituição que reclamava de qualquer Governo um “caminho para o socialismo”, a AD soube romper com o colete de forças estabelecido e impor-se como uma alternativa — no campo político, no campo económico e na vontade de transformação do país. Subscreva-se ou não o ideário político e o caminho seguido então, a AD de 1979 foi uma revolução dentro do regime. E a saú­de da nossa democracia teria sido bem pior sem essa revolução.

Mas passaram-se muitos anos desde então. Olhamos para os homens e mulheres da AD de então — como poderíamos olhar para a composição da Assembleia da República à época — e, para aqueles que se lembram, é impressionante e assustadora a comparação. Mas esse não é um problema específico do PSD nem sua culpa exclusiva: o nível dos agentes políticos de hoje, quer em qualidade quer em quantidade, é infinitamente pior do que foi na década seguinte ao 25 de Abril e genericamente pior do que foi daí em diante. Várias razões contribuíram para isso, mas nenhuma tanto quanto o sentimento popular de eterna desconfiança, de suspeição permanente e mesmo de pura e deslocada inveja. Da imprensa à justiça, dos jornais aos cafés, os políticos são hoje vistos quase como assaltantes do poder, alguém que, por definição, está ali não para servir o país mas a eles próprios, agarrados a lugares cheios de mordomias e vencimentos altíssimos — uma extraordinária mentira que nenhuma maioria parlamentar se atreve a desfazer. Se, por um lado, me pergunto muitas vezes quem é que ainda quer fazer carreira política ou governar o país, por outro lado, pergunto-me também se os portugueses gostariam antes de viver sem Governo nem políticos eleitos, em democracia directa, legitimada nas redes sociais.

Todos foram, pois, desertados dos melhores: dos melhores quadros, dos melhores deputados, dos melhores governantes. Mas o PSD, talvez porque, sendo um partido de poder, há tempo demais está afastado dele, parece ter sido mais abandonado do que todos os outros. Basta comparar a AD de então com a agora ressuscitada nominalmente: Montenegro é, obvia­mente, uma sombra de Sá Carneiro, e não é por o invocar todas as manhãs que o seu espírito o iluminará; Nuno Melo não se compara a um Amaro da Costa ou Lucas Pires, e, tendo sido um bom deputado na AR, preferiu depois o conforto de Bruxelas do que o desconforto da travessia do deserto, na oposição — aliás, como Paulo Rangel, que preferiu abdicar de um futuro que parecia brilhante no PSD para se acolher também a Bruxelas, onde, tal como Nuno Melo, apenas se distinguiu por fazer política interna à distância no Parlamento Europeu, ambos tão obcecados na sua raiva aos governos do PS daqui que por vezes nem se davam conta de que era o país que atacavam e não o seu Governo; e, enfim, Gonçalo da Câmara Pereira, que Montenegro se lembrou de ir buscar ao baú de memórias do PPM, comparado com Gonçalo Ribeiro Telles, não passa de um artista de variedades. Não é apenas por culpas alheias e razões comuns a todos que o PSD viu afastar-se tanta gente de valor, como Jorge Moreira da Silva, para citar apenas um caso gritante de desperdício. Não é por acaso que, no recente congresso ou na apresentação da nova AD, o PSD tenha recorrido aos que considera glórias do seu passado longínquo ou mais próximo, para os exibir nas primeiras filas. Porque, na ausência de outros que o país reconheça, o partido propõe-se enfrentar o futuro com a gente do passado — não para governar, porque já estão reformados, mas para avivar memórias que têm por boas.

Esse é outro ponto: porque não tem ideias para o presente nem qualquer visão de futuro, o PSD vive a invocar memórias. E, às vezes, desastradamente: ao contrário do que quer imaginar, o país não guarda boas memórias de Cavaco Silva — basta recordar os índices de popularidade com que saiu de Belém e o imenso suspiro de alívio que se escutou então, desde Alfândega da Fé até à ilha do Corvo. E os portugueses também não guardam, ao contrário do que eles supõem, gratas memórias do Governo de Passos Coelho: uma coisa é a simpatia de que ele, pessoalmente, gozava ou a justiça histórica de reconhecer que teve de governar com o programa da troika e toda a brutalidade que isso implicava; outra coisa foi a sua aposta de ir ainda “além da troika”, de empobrecer todos gloriosamente, as centenas de milhares de despedidos, as empresas falidas, todas as jóias da Coroa vendidas ao desbarato, um aeroporto transformado em palco de famílias destroçadas, despedindo-se dos jovens, que abandonavam “a sua zona de conforto”. Ninguém quer reviver esses tempos, e o PSD tem obrigação de ter qualquer coisa de infinitamente diferente e melhor para propor.

Mas, justamente, e esse é o ponto essencial: não tem. É inacreditável como é que um partido que esteve oito anos na oposição, que disse e repetiu estar pronto para governar em qualquer altura, afinal não está. Não tem um “Governo-Sombra” ou alguém que se tenha destacado em qualquer área de modo a podermos adivinhar como será um Governo seu; não tem nenhum esboço de programa de Governo que permita comparar alternativas para cada sector ou para cada problema; não tem sequer uma meia dúzia de ideias claras para o futuro do país que possam levar os eleitores a perceber a diferença. Na oposição, o PSD passou a vida a denunciar os “casos e casinhos” que atormentaram o Governo, mas a isso pareceu ter-se resumido toda a sua oposição: fora dos “casos e casinhos” alheios, o partido nunca lançou um caso, uma causa, uma proposta de solução própria para problemas concretos. E mesmo agora, em plena campanha eleitoral, toda esta AD, inspirada em Montenegro, acha que lhe basta atacar o PS e a sua governação para seduzir os eleitores. Que lhe basta reclamar do caos na Saúde, da falta de professores nas aulas ou da falta de casas no mercado, sem ter de apresentar alternativas ou soluções próprias. E mesmo naquelas áreas em que historicamente o PSD e a antiga AD se destacaram e lideraram, como no Ambiente, não há hoje nada senão memórias. Ribeiro Telles, Carlos Pimenta, Macário Correia, todos eles lançaram as bases de uma política ambiental visionária, que o tempo e os interesses foram depois corroendo aos poucos. Mas que é hoje mais premente que nunca, com a transformação energética, as políticas de descarbonização, as opções agrícolas e urbanísticas, num quadro de uma dramática falta de água. Tudo preocupações a que os socialistas sempre foram e continuam alheios e indiferentes e que, todavia, em termos eleitorais, poderiam marcar uma diferença e atrair eleitorado jovem ou esclarecido. Mas este é apenas um exemplo daquilo que o PSD podia ter estado a fazer e não fez para se apresentar ao país como uma alternativa real. Eis a dura realidade: disse mais Pedro Nuno Santos em 20 minutos de discurso sobre políticas alternativas e preocupações de futuro do que o PSD em oito anos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

2024

 

Depois da "festa" a realidade. Após uma certa embriaguez que as circunstâncias, rotineiramente, a todos envolve, Janeiro fora regressamos à sequência do dia-a-dia, para a maioria, à lamúria das insuficiências que o Natal, de uma ou outra maneira, esbateu. Já aqui escrevi sobre a minha contida desilusão face ao caminho tortuoso, esburacado e minado que os senhores do mundo nos obrigam a trilhar. Vive-se um tempo de descrença e de pavor, de ausência de referências que nos embalem para as palavras "acreditar e esperança", que rejeite seres  mais dados ao conflito do que ao sentimento humanista. E o conflito não está apenas nas guerras! Utopia, dir-me-ão! Só que a utopia é um caminho que se faz de sobressalto cívico, nunca de silêncios. A utopia, como dizia Pirri a Galeano, está lá, ao longe, por isso serve para caminhar. Por isso, caminhemos.



Há muitos silêncios por aí. Há muitas colunas vergadas pela obediência, muitas dependências intencionalmente criadas, muitos braços caídos e muitas silenciosas lágrimas vertidas por mil e uma razões. E o silêncio mata, lenta mas seguramente, a sociedade. A ausência de pensamento sobre tudo quanto nos rodeia, a capacidade de perceber, interpretar e de cruzar a(s) realidade(s), a insuficiência de sentido crítico joga sempre a favor daqueles que, na esteira de José Régio, vendem o seu produto:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
(...)"

É essa consciência e esse sobressalto que desejaria assistir, paulatinamente, em 2024. Tudo menos a gritaria de comentadores travestidos de qualquer coisa e de uma comunicação social descredibilizada porque sempre atrás do anormal. 

Difícil, eu sei. No ano dos 50 de Abril, onde a verdadeira Escola pouco deu na perspectiva de seres humanos conscientemente libertos através de uma superior qualidade da mente, não será demais augurar que os professores se soltem da rigidez do manual, no quadro de uma formação global, eu diria cultural, que jamais pode ser conseguida através do ciclo de verbos: debitar, fixar, responder, avaliar, passar ou chumbar. A aprendizagem da vida não está nos manuais da escola, é muito mais complexa, e repetir o passado apenas poderá conduzir à mentalidade que, genericamente, nos caracteriza e, aos poucos, à morte da Democracia. Aliás, por todo o lado, é sensível o assalto aos mais elementares direitos humanos. Sempre através da caça do descontentamento e das concomitantes palavras doces e olhares inocentes que não traduzem as intenções mais profundas.

Bom 2024!