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domingo, 30 de agosto de 2020

Memória - Verão camarário muito quente de 1994

O Dnotícias recordou e bem que, há 26 anos, o Professor Virgílio Pereira demitiu-se da presidência da Câmara Municipal do Funchal, em litígio com o presidente do governo, Dr. Alberto João Jardim. Não vou aqui narrar todos os contornos da história. No essencial, a Câmara, na sequência dos mandatos do Senhor João Dantas (PSD), devia, permitam-me a expressão, "uma pipa de massa". O Professor Virgílio era então Deputado no Parlamento Europeu e aceitou o convite para encabeçar a candidatura à liderança do executivo camarário. Consta que a dívida, sendo significativa, contou com o compromisso do Dr. Jardim de que seria saldada, se não na totalidade, pelo menos em uma grande parte, o que permitiria, no caso de vitória eleitoral, o Professor Virgílio Pereira governar a autarquia com estabilidade.


O compromisso não foi concretizado e as situações começaram a azedar, logo no início do mandato, até ao ponto do Dr. Jardim ter afirmado que "bom (presidente) é aquele que governa bem e faz obras mesmo sem dinheiro”. O disparo político, intencional ou não, foi feito no areal do Porto Santo. E o Professor Virgílio deu, serenamente, a resposta própria de um político com coluna: se é assim, demito-me já. E em Setembro isso aconteceu.

À contar da esquerda na foto em baixo: Dr. Jorge Martins, Arquitecto João Conceição, André Escórcio, Dr. Miguel Albuquerque, Armindo Abreu, Professor Virgílio Pereira e Arquitecta Elisabete.

O Professor Virgílio (PSD) e eu, pelo PS, estivemos envolvidos em uma longa campanha eleitoral em 1993. Nunca antes vista em eleições anteriores, asseguram-me. Foi taco-a-taco durante vários meses. Interessante foi o facto, logo que o Dr. Jardim teve conhecimento que eu seria o candidato pelo PS, ter dito que já poderia ir de férias descansado. Mais tarde, depois de um debate que a RTP-M promoveu, conduzido pelo ex-jornalista José Manuel Rodrigues, hoje presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, um  outro jornalista confidenciou-me que o líder do PSD estava a fazer "horas extraordinárias" pela candidatura do meu adversário político. Na realidade, fiquei com o sentimento que tinha valido a pena ter estudado, profundamente, todos os dossiers da cidade. Lembro-me de ter realizado 63 reuniões preparatórias com as forças vivas da cidade, com a ajuda da notável equipa que me rodeou. O Professor Virgílio Pereira, julgo eu, acreditou que a sua experiência seria suficiente para ultrapassar um iniciado àquele nível de debate político. Daí que, posteriormente, tivesse assumido: "a minha postura (no debate) talvez não tenha sido a mais correcta; deveria ter exigido o volte-face durante o debate e não consegui" (Dn. pág. 7 de 22.07.1993).

"Vamos bater-nos com galhardia e depois de tudo isto continuaremos amigos"
- Professor Virgílio Pereira


Recordo que uns dias antes o jornalista Luís Calisto (Dn) tinha-nos juntado no Pico dos Barcelos para um encontro. Foi, como disse o Luís Calisto, o aquecimento, que decorreu com absoluta cordialidade. Recordo esse momento com muito agrado, pela forma como discutimos alguns problemas, com algumas alfinetadas pelo meio, obviamente que sim, mas com respeito de ambas as partes. Afinal ele era um Senhor Deputado do Parlamento Europeu e eu um cidadão convidado pelo meu Amigo Dr. Mota Torres, presidente do PS-Madeira, e cuja experiência política activa resumia-se a quatro anos na Assembleia Municipal do Funchal. 

Nas contas finais perdi a eleição, por pouco, após uma "esfrega" de vários meses com um enorme entusiasmo. Depois, aconteceu a sua demissão pelas razões que, inicialmente, equacionei em traços gerais. O curioso de tudo isto, é que o Professor, fazendo jus ao que chegou a transmitir, publicamente, isto é, a sua oposição a "qualquer democracia musculada", quando decidiu demitir-se, teve a elevação de chamar-me ao seu gabinete, na Câmara, enquanto líder da oposição, para uma longa conversa. Disse-me que ia demitir-se e que não tinha outra alternativa. Fiz-lhe ver que compreendia, mas que não seria oportuno. A cidade apresentava um quadro degradado de "alto a baixo" (slogan da sua campanha) e que só com determinação, responsabilidade e respeito pela oposição, poderia ser ensaiada uma mudança consistente. Uma crise política não seria recomendável, quando estávamos com oito meses de mandato. Foi irredutível e e, aí chegado, disse-lhe que, então, seria melhor clarificar a posição eleitoral através de eleições. Respondeu-me: essa luta não me diz respeito, certo é que vou embora. Não houve novas eleições e o Dr. Miguel Albuquerque assumiu o lugar de presidente.

Apreciei a sua postura de homem e de político. As picardias da campanha e mesmo a minha postura à mesa da vereação tinham ficado definitivamente enterradas. Por isso, mantivemos uma irrepreensível cordialidade sempre que nos encontrávamos e nos encontramos. Tenho apreço pelo Professor Virgílio Pereira. Temos, politicamente, posições divergentes em vários assuntos. Ainda bem. Mas sempre vi nele um Homem politicamente decente, que nada tinha e tem a ver com certos comportamentos que uma verdadeira Democracia exige. É um social-democrata convicto, em síntese, uma figura que sempre se opôs àquilo que ele na altura designava por "democracia musculada". Por isso teve os seus dissabores partidários. 

Apesar de não convivermos, tenho presente as suas palavras no Pico dos Barcelos: "vamos bater-nos com galhardia e, depois de tudo isto, continuaremos amigos".

O Dnotícias lembrou o conturbado Verão de 1994. Foi bom recordá-lo, pois isso fez-me, também, trazer à memória um tempo que me "apaixonei" pela política séria, com princípios e com valores. Foi com o meu Amigo Dr. Mota Torres e, mais tarde, com outras figuras, que consolidei essa ideia que o exercício da política só faz sentido quando norteado por eles. Hoje, não tenho partido, mas continuo fiel aos princípios e aos valores políticos, económicos, sociais e culturais.


Esta a equipa, que considero notável e a quem muito devo, que se candidatou à Câmara Municipal do Funchal: no primeiro plano, Engº Arlindo Oliveira, André Escórcio, Arquitecta Elisabete; no segundo plano, também da esquerda para a direita: Drª Isabel Freitas, Dr. Manuel Caetano, Dr. Sales Caldeira, Dr. José António Cardoso, Dr. Carlos Varela e Dr. Gualberto Soares. Uma equipa que, pelas suas formações académicas, daria total resposta a todos os sectores da autarquia.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

GOSTARIA DE VER ALGUMAS PERSONAGENS COMO CANDIDATOS, NEM QUE FOSSE A UMA JUNTA DE FREGUESIA!


FACTO 
" Costa usa dinheiros públicos em função de interesses partidários" - Dr. Jaime Filipe Ramos, líder parlamentar do PSD-M na Assembleia Legislativa da Madeira. Fonte: 1ª pág. do Dnotícias.

COMENTÁRIO 


“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade“, frase atribuída a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler na Alemanha Nazi. O senhor Deputado, como é vulgar dizer-se, tem muitos anos a "virar frangos"! Desde cedo, nos corredores da aprendizagem política, compreendeu que virar o bico ao prego, esquecendo-se dos próprios comportamentos, que uma determinada situação, repetida até à exaustão, acaba por ter dois efeitos: primeiro, esquecer os próprios comportamentos do partido a que pertence; segundo, mediaticamente, centrar no adversário político a sua própria história comportamental. 
Não sei se o Primeiro-ministro utiliza os dinheiros públicos para interesse partidário. Se o faz está errado. Aliás, há entidades fiscalizadoras e denunciadoras, pelo que, se aquela declaração tem fundamento, enquanto Deputado, deve denunciá-las nos lugares certos. É assim que a Democracia deve funcionar em defesa de todos.
O que me deixa perplexo é a não existência de um espelho sobre aquilo que é prática continuada na Região, desde sempre, no quadro da sua Autonomia. Pergunto: o que são as festas de quase todos os frutos, hortícolas e não só, com palcos e discursos de propaganda? Quem os paga? O que têm sido as festarolas aquando das inaugurações? Quem as paga e algumas vezes a troco de quê? O que tem sido o controlo do poder desde clubes, associações até às casas do povo? O que tem sido o controlo da Administração Pública? O que tem sido o prémio aos fiéis e uma certa perseguição aos que não comungam da mesma mesa? O que têm sido, pelo que se lê, alguns "concursos" feitos à medida?
Torna-se insustentável quando as pessoas não assumem os seus próprios erros. Quando tudo é sempre culpa dos outros. Isto, quando nós, seres humanos, estamos sujeitos ao erro e condenados a aprender com eles. Mas, na política, há quem, humildemente, não consiga assumir esse princípio, antes prefira jogar para os outros as próprias insuficiências e comportamentos.
Tão grave quanto isto, é o facto dos que assim falam, julgo eu, portadores de um conhecimento que escapa aos demais, não terem a coragem política de se assumirem como candidatos a qualquer coisa, mesmo que seja a uma Junta de Freguesia, para avaliarem o seu peso eleitoral, isto é, o que pensam os eleitores sobre as suas atitudes. Jogam sempre na sombra dos outros e martelam e martelam... Não há paciência, seja lá por quem for.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

A (des)Ordem


Ana Rita Má, 
in Facebook, 
24/08/2020)

Por respeito aos nossos velhos tão maltratados em lares, muitas vezes pagos a peso de ouro, eu nem queria pronunciar-me sobre a triste novela que envolve um dos principais rostos da oposição a este governo desde há largos meses e o primeiro-ministro. E depois, vejo as várias associações de médicos virem entretanto a terreno clamar por respeito porque António Costa acusou de cobardolas alguns médicos designados para dar apoio num desses lares. E é aqui que já não me contenho. Bem sei, tenho mau feitio. Ou ainda acabo a passar por chefe de claque do governo do Costa, sabe-se lá!



A reação corporativa destas entidades e de ALGUNS destes profissionais, com principal enfoque para a Ordem dos Médicos é a mesma que faz com que a maior parte das queixas de utentes/doentes nunca dê em porra nenhuma, certo?

Onde andou o dono da Ordem durante alguns anos? Como explica tantos processos enterrados no esquecimento e na impunidade? Quantos médicos incompetentes têm sido responsabilizados por danos severos e tantas vezes a morte causados aos seus doentes? Quantos médicos escalados para estar de serviço em hospitais públicos, nesses mesmos horários estão em clínicas ou consultórios privados? Quantos usam o serviço público, onde ganham competências, como trampolim para negócios privados? Que provas já deu o dono da Ordem dos Médicos sobre o seu empenho em contribuir para um SNS mais competente e mais forte?

E agora, António Costa. Santa ingenuidade! Que incompetência, deixar-se apanhar num desabafo quiçá legítimo, não contra toda uma classe, como nos pretendem fazer crer, mas contra pessoas devidamente identificadas em relatórios. Culpado de muitas outras coisas, não disto.

Quanto à ética no jornalismo, não me pronuncio. A avaliar pelo que se vê e lê, é coisa que anda pelas ruas da amargura. A 'fuga', entretanto, cumpriu os seus propósitos.

Para terminar, duas notas:

Obrigada a todos os médicos e médicas incógnitos, profissionais, competentes, a dar o seu melhor nem sempre com os recursos que lhes são devidos. Ao SNS, que nos cumpre fortalecer e proteger.

Em vez de andarmos a apontar o dedo à árvore, talvez fosse bom olharmos para a floresta. Uma civilização democrática e de bem não pode tratar dos seus velhos como estamos a fazê-lo. E é essa a discussão que importa fazer. Como vamos cuidar dos nossos avós e dos nossos pais? Vamos deixar que sejam os privados a fazê-lo?

Ontem já era tarde.

sábado, 22 de agosto de 2020

Vem aí o fascismo?

 
Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
22/08/2020

1 Nas férias, andei tão distraído quanto convém a quem está de férias, mas não o suficiente para deixar de ler jornais ou seguir notícias, o meu vício mais incurável. Com Lisboa a uma profiláctica distância, lá acompanhei o que de mais palpitante parecia estar a acontecer na capital, esgotada a indignação pública pela morte de umas dezenas de cães e gatos queimados num “centro de acolhimento” para animais vadios, dos vários criados por força da influência do PAN sobre a hipocrisia dos seus pares na Assembleia da República. Tomei assim conhecimento de novas e ocasionais demonstrações de vida da nossa extrema-direita anti-sistema, as fotografias daquela meia dúzia de idiotas a brincar ao Ku Klux Klan e a notícia de umas ameaças de morte enviadas por e-mail a três deputadas e ao dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba. 


Nada de grave, pensei para comigo: a extrema-direita a sério é muito mais do que isto, incomparavelmente mais — mais gente, menos folclore e mais organização, menos ameaças e mais actos. Mas parece que estava enganado. Imediatamente, todos os responsáveis do país foram chamados a pronunciar-se publicamente sobre a “onda de racismo e chauvinismo” que varria Portugal de lés a lés; editorialistas inflamados esgotaram os adjectivos em apelos lancinantes contra a marcha imparável da extrema-direita antidemocrática, contra André Ventura — identificado como o líder oculto-óbvio de toda esta onda — e contra Rui Rio, o seu cúmplice; leitores obedientes encheram os jornais de cartas a proclamarem-se prontos para o combate; movimentos de várias origens e espécies logo convocaram uma manifestação para o Largo de Camões, finda a qual se zangaram uns com os outros; e, dos seus lugares sempre misteriosos, imergiram os inevitáveis abaixo-assinados, eterno asilo intelectual dos simples de espírito e dos esquecidos do público, para garantirem a todos nós, com a credibilidade da sua assinatura, que tudo isto era uma ameaça terrível e tudo isto estava intimamente ligado: racismo, xenofobia, machismo, homofobia, populismo. E, no fim da história, o regresso do fascismo, que é aquilo que, garantem eles, nos espera ao virar da esquina.

Porém, após mais de uma semana passada numa Lisboa quase deserta, magnificamente disponível não apenas para os turistas e os ciclistas, queria descansar os lisboetas que ainda estão de férias e ausentes (e suponho que o mesmo é extrapolável para o resto do país): sosseguem, não vi sinais alguns de tragédia à vista. Não vi negros discriminados, mulheres maltratadas, gays ou lésbicas olhados de viés, imigrantes mandados de volta a casa. Não vi um polícia com ar feroz em cada esquina (aliás, quase não os vi), não vi ninguém com ar de bufo, não vi secções de tipos vestidos de blusões negros e bastões escondidos, não vi medo nos rostos de ninguém, pelo contrário: ou muito me engano, ou vi gente, portuguesa ou estrangeira, com um ar descontraído, tranquilo, feliz, sem pressa, sentados nas esplanadas, nos cafés, nos jardins, caminhando pelas ruas, namorando, conversando, rindo — apesar das máscaras, apesar da pandemia. Digo-vos, com a experiência de quem conheceu o fascismo e várias ditaduras: alguém nos mente. Alguém, sentado numa redacção de jornal ou num gabinete de estudos sociais de numa qualquer universidade, anda a vender-nos um país que não existe nas ruas mas de cuja suposta existência talvez dependa a deles. Mas isto é uma coisa séria. O fascismo, o racismo são coisas sérias. E não se brinca com coisas sérias.

É evidente que há racismo em Portugal ou entre os portugueses, como existe em todos os países ou entre todos os povos. Mas decretar, para valer como verdade inquestionável, como alguns pretendem, que Portugal é um país racista é tão estúpido e tão inútil para ajudar a resolver o problema como jurar o seu contrário. O racismo é um fenómeno muito mais complexo e individual do que a simples educação, classe social ou ideologia permitem explicar. Há gente altamente educada que é racista, assim como há vastas camadas populares racistas, e há gente de esquerda — até mesmo dos que assinam manifestos e vão a manifestações — que é racista sem o assumir ou sem o saber. E há quem não seja racista com os negros e o seja com os ciganos, os árabes ou os asiáticos, assim como há negros que são militantemente racistas com os brancos. Proclamar que toda a polícia é racista ou, como já vi dito, que, no limite, todos os brancos são racistas pelo simples facto de serem brancos são argumentos de terra queimada que apenas servem para extremar os campos e empurrar gente para os braços da extrema-direita. É o mesmo tipo de argumentação, agora tão em moda e em modo quase imperativo, dos que querem reduzir a fabulosa história das navegações portuguesas a “achamentos” do acaso, logo aproveitados para o único fim da exploração das terras descobertas através do trabalho escravo.

Este é o tipo de discurso de que a extrema-direita se alimenta e que alguns lhe servem à medida. Proclamar que quem não reconhece Portugal como um país racista é um negacionista, que quem se atreve a dizer que há problemas causados pelos ciganos dentro e fora das suas comunidades é um populista seguidor de André Ventura, que quem se opõe ao derrube das estátuas dos descobridores ou quer celebrar as datas marcantes do ciclo das Descobertas portuguesas é um defensor do esclavagismo, que quem não gosta do estilo arrogante da deputada Joacine é um chauvinista que a quer mandar para a terra dela, e por aí fora, seguindo o index do histericamente correcto estabelecido e a cada dia acrescentado, tudo isso tem como único efeito útil irritar cada vez mais gente e levar alguma dela a sentir-se tentada a procurar refúgio onde os demagogos lhe dizem que estão os “verdadeiros valores portugueses”. Vamos do 8 ao 80, do mais imbecil patrioteirismo, que nos leva a celebrar como heróis nacionais os que as redes sociais e as revistas enaltecem e o Fisco perdoa, até ao masoquismo patriótico militante, que propõe como código genético para cada português uma herança de crimes espalhados pelos cinco oceanos e ainda por expiar.

Mas vivemos hoje. E, hoje, o que há a fazer contra o racismo é simultaneamente simples e difícil: aplicar as leis que temos, que são adequadas e suficientes, sem desculpas nem hesitações, mas também sem juízos de valor pré­vios; educar, discutir e convencer; ensinar a mais-valia de um país que é ao mesmo tempo de emigração e de acolhimento, para quem a descoberta do “outro” foi sempre um motivo de avanço e nunca de temor; e resistir à tentação suicida de reduzir os adversários ao silêncio e à clandestinidade, que é justamente o que eles querem, em lugar de os expor à luz crua da sua bestialidade e do seu incurável ridículo.

E, quanto ao fascismo, recomendo uma simples passagem pelos livros de História. Até àquele marco que foi o dia 1 de Maio de 1974, quando Portugal inteiro estava na rua, assinalando o momento em que todos os portugueses, sem excepção, passaram a ser oficialmente antifascistas.

2 Umas horas a assistir à Convenção Democrata online deixaram-me profundamente acabrunhado: ou alguma coisa de inesperado acontece até lá ou Donald Trump vai ser reeleito em Novembro, sem precisar sequer de fazer batota. É inacreditável como, após quatro anos de um saltea­dor na Casa Branca, os democratas não conseguiram produzir melhor do que um candidato a Presidente incapaz de mobilizar um moribundo a quem prometesse mais 10 anos de saúde e uma candidata a vice que é mulher e negra, ponto final. A indisfarçável incapacidade demonstrada pelos sucessivos discursos dos notáveis do partido em explicar porque deveria Joe Bidden ser Presidente não deixou lugar a ilusões: já vi enterros mais entusiásticos.

3 Para adaptar o antigo, e agora abandonado, Hospital Militar de Belém a hospital de retaguarda para doentes covid, orçamentou-se uma verba de 750 mil euros, apenas para 20 camas. E por essas 20 camas passaram 60 doentes, mas a conta final acabou nos 3 milhões: 46 mil euros por doente ou 150 mil por cama! Que mais irão as nossas Forças Armadas conseguir fazer para se desprestigiar?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

BEM PREGA... "FREI" CALADO!



FACTO

O dia 21 de Agosto é o Dia da Cidade do Funchal. Hoje, o governo regional, perante o programa apresentado, que não contempla qualquer intervenção por parte do governo na cerimónia comemorativa,, em comunicado, diz-se: "chocado" pelo "desrespeito institucional e das regras de sã convivência democrática", pelo facto da Câmara, tentar "amordaçar o governo" com "tiques de despotismo". Fonte: Dnotícias.

COMENTÁRIO

Nunca aceitei que, nos dias das cidades da região e dias dos concelhos, um representante do governo tivesse o direito quase "obrigatório" de usar da palavra. 
Neste caso, o dia é da cidade do Funchal e, por isso, têm direito à palavra, o presidente da Assembleia Municipal (PSD), todos os representantes das forças políticas representadas na Assembleia e, naturalmente, o Presidente da Câmara Municipal. Nada mais. Do meu ponto de vista, o dia do concelho ou da cidade, não deve servir para ajustes de contas entre os dois patamares da política. Para falar da cidade, dos aspectos positivos e negativos, estão lá os partidos políticos, o presidente da Assembleia e o Presidente da Câmara. 
O que me espanta é uma ausência de memória relativamente ao que se passou durante mais de 30 anos no Funchal, no decorrer dos quais, os vários partidos com representação municipal, foram, sucessivamente, impedidos de afirmar as suas preocupações. O direito à palavra era apenas do Presidente da Assembleia Municipal (PSD), do Presidente da Câmara (PSD) e do Presidente do Governo (PSD). 
Ora bem, o senhor vice-presidente do governo tem o direito de ter a sua opinião, da mesma forma que eu, enquanto mero cidadão, tenho a minha. Ele considera que o governo deveria ter espaço para falar; eu considero que não. A democracia é isto mesmo, é a possibilidade de opiniões divergentes.
O que ele não pode, deliberadamente, ocultar, é o facto do partido que politicamente serve, ter usado e abusado das suas maiorias absolutas para impor o silêncio de outros. Aí sim, parece-me ter existido motivos para outros se sentirem "chocados" pelo "desrespeito institucional e das regras de sã convivência democrática", por cuja decisão da Câmara, "amordaçar" a oposição" com "tiques de despotismo".
Mas que fique claro, apesar do meu posicionamento, por mim, tanto se me dá que falem ou deixem de falar. A questão que coloco é a de princípio e de respeito pela autonomia do poder local.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Mãos limpas ou mãos sujas, vai dar ao mesmo!


Não sei se se poderá designar por "operação mãos limpas", aproveitando a expressão que teve origem em Itália, nos anos 90, e que visou o esclarecimento dos casos de corrupção. "Mãos limpas" ou "Mãos sujas" vai dar ao mesmo, porque a questão essencial assenta no princípio da transparência e da licitude dos actos. Começa a ser enervante e até muito preocupante constatar sinais de comportamentos duvidosos sem que nada aconteça ou seja esclarecido. Não se trata de conversas de café, de historietas contadas na esteira de um eterno maldizer, mas da conjugação de inúmeras situações geradoras de dúvida que, por diversos canais, vão transpirando e criando duas sensações: a primeira, que há madeirenses abençoados e afortunados; a segunda, que a impunidade existe e floresce.



A construção de uma sociedade decente exige clareza, lisura e total distanciamento de todo o tipo de comportamentos, descarados ou tímidos, por parte dos cidadãos, tenham eles as funções que tiverem no corpo social. Esse entendimento está longe de constituir uma leitura global de boa aceitação do estado de funcionamento da democracia. Aliás, é muito mau, pois evidencia a existência de uma sociedade aprisionada pelos esquemas subterrâneos e capturada por poderes múltiplos, quando os cidadãos necessitam de vasculhar sítios da internet de "denúncias anónimas" para, peneirando os textos, tentar perceber o que se passa e que aos olhos escapa. É um mau sinal, pois parece provar que a sociedade não é devidamente escrutinada e a investigação falha. Ora, quando se assiste na comunicação social à concentração do poder financeiro, obviamente que esse é um outro sinal preocupante.

E assim se constrói uma sociedade desigual, de doce exploração, de perda de rendimento, de paz podre, de muitas particularidades, de senhores e de servos, de acumulação de riquezas e concentração do capital, algumas, muito mal explicadas, simultaneamente, de medos e de subtis perseguições aos que tentam levantar a ponta do véu. Portanto, não é estranho que sejam os pobres que fiquem mais pobres e dependentes, os que acabam por pagar os devaneios de um capitalismo selvagem. E assim sendo, sair do estado de pobreza acaba por ser uma miragem!

"Mãos limpas" ou "mãos sujas" pouco importa, repito. Importante, sem qualquer atitude persecutória, seria investigar para separar os honestos dos geradores de desonra. Para enaltecer uns e condenar os outros. Inclusive, os que permitem a agudização deste estado de crescente desconfiança e de miséria que a muitos conduz a estender a mão às migalhas da solidariedade. 

O problema está mais dentro da Região do que fora dela. Vociferar para longe é fumo! O julgamento dos comportamentos inadequados, de um tenebroso regime de teias e de deixa andar, não pode ser remetida, apenas, para os actos eleitorais. É no decorrer dos processos que faz sentido questionar as situações. O que me leva a deixar aos senhores, não sei se os deveria designar por novos colonos, a pergunta formulada por Almeida Garrett, em 1846, nas Viagens na Minha Terra: "E eu pergunto aos economistas, políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?" Respondam, analisando. Eu que nada tenho contra quem é rico. Enquanto cidadão apenas interessa-me perceber o percurso: se foi limpinho ou através de condenáveis processos. Tudo isto, por uma sociedade onde seja banida "a desgraça invencível" e mal vistos todos quantos norteiam de forma corrupta a condução na vida.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 16 de agosto de 2020

A Escola contribuiu para a desigualdade social

 

A estatística aponta para cerca de 32% de pobres, o que equivale, aproximadamente, a 75.000 pobres na Região da Madeira. Ora, os 724 agregados familiares em dificuldade não constituem novidade. Existem muitos milhares que vão vivendo. Não morrem de fome, isso não, sobrevivem conjugando, diariamente, o verbo esticar. Enquanto, entre outras instituições, o Banco Alimentar, a Cáritas, a Cruz Vermelha, as paróquias, a agricultura de sobrevivência e muitas pessoas de enorme coração atenuarem os dramas, a situação manter-se-á disfarçada. Mas eles existem.

Independentemente de não ter sido "construída" e, já agora,"inaugurada" uma sociedade mais justa e equilibrada, o que dependeria do estabelecimento de rigorosas prioridades no exercício da política de investimentos, indo directamente à questão da pobreza, essa, só se resolve(rá), todos o saberão, com um sistema educativo sério, inclusivo e de qualidade. Só através da Educação é possível romper com o círculo vicioso da pobreza. Não existe outra forma. A subsidiodependência, a distribuição de alimentos e as atitudes caritativas, só eternizam o drama. Podem e devem ser pontuais (necessárias) em função de um determinado quadro social, mas nunca deverão constituir a solução. A solução tem um nome: EDUCAÇÃO.

Politicamente, ninguém assume que há fome na Madeira. Nem se assume que este sistema educativo é, conceptualmente, uma fraude. Há fomes diversas, porque não dispusemos, no tempo certo, de estadistas, mas de meros políticos. Foi sempre mais fácil pensar na eleição seguinte do que nas gerações seguintes. E daí a inversão de prioridades que veio acentuar a existência de três grupos sociais: os ricos e muito ricos; uma classe média sucessivamente despojada do essencial, eu diria, espoliada; e um vastíssimo grupo de pobres. Os pobres (75.000) tornaram-se paisagem na Madeira. 

Os ricos ou muito ricos serviram-se no banquete montado na lógica das "obras", fossem importantes ou rigorosamente dispensáveis; sentaram-se à mesa do orçamento e impuseram uma economia ao seu serviço; porque lhes permitiram, saciaram-se, marimbando-se para o resto da sociedade. No meio de um repasto de quase cinco dezenas de anos, de grandes interesses e de muito blá bla, a escola acabou por servir de décor, de cumprimento de um direito constitucional, mas distante de uma formação individual e colectivamente emancipadora. O sistema educativo contribuiu para a desigualdade social. Infelizmente, basta olhar em redor e analisar o grosso da sociedade, sector a sector, área por área, para constatar as graves limitações a múltiplos níveis. 

A ausência de consistentes políticas de família e a insistência nas respostas sociais sem atender às causas dos problemas, conjugado com um sistema educativo assente em uma narrativa balofa, só poderia redundar no fracasso global da sociedade. Quem a estruturou sabia o que estava a edificar, até pela insistência naquela frase que, politicamente, significa(va) exactamente o seu contrário: "os madeirenses são um povo superior". Superior, em quê? Talvez, na pobreza!

A verdadeira História está por ser feita. Não a dos "cinco séculos de exploração", mas as das cinco décadas de escravização da mentalidade.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Babuínos como nós

Por 
Viriato Soromenho Marques, 
in Diário de Notícias, 
08/08/2020

O grande filósofo grego Epitecto, escravizado e agredido pelo seu proprietário romano, secretário de Nero, lembra-nos como na humanidade o desprezo e o domínio dos outros não precisou do racismo para existir. Ao longo da história, diferentes e muitas vezes convergentes são as formas de xenofobia, de opressão e exclusão do Outro. Apenas a superioridade na componente militar de cada cultura é o fator decisivo que separa vencedores e vencidos. No dealbar do século XVI, os astecas tinham água canalizada na sua capital, mas Cortés tinha armas de fogo. A lança mais comprida é também inseparável da moderna hegemonia planetária do Ocidente.


Mas isso não é racismo. Para perceber a diferença, importará revisitar os estudos do saudoso Manuel Viegas Guerreiro (1912-1997), sábio pluridisciplinar e conhecedor do mundo. Na sua leitura dos escritos de Pero Vaz de Caminha e de Cristóvão Colombo, o geógrafo português identifica um genuíno desejo de verter na escrita o espanto por povos tão diferentes e desconhecidos (a América foi uma espécie de encontro do 3.º grau), mas nunca abandonando o pressuposto da "unidade psíquica do homem". Em contrapartida, se percorrermos a literatura colonial europeia do século XIX - incluindo os nossos tardios africanistas, que ainda estavam a percorrer os caminhos entre Angola e Moçambique, quando as fronteiras dos impérios europeus em África se decidiam em Berlim -, o racismo está caudalosamente omnipresente. Na descrição dos africanos, os colonizadores europeus, inchados de arrogância, limitavam-se a despejar os seus preconceitos sobre povos que foram considerados sub-humanos. No final do século XV, D. João II fazia alianças e apadrinhava no batismo príncipes dos reinos da África Ocidental. No século XIX, pelo contrário, a aliança tóxica entre uma biologia rústica e um nacionalismo cada vez mais belicista criou o ódio ontológico, que tanto exterminaria milhões pelo trabalho forçado no Congo belga como aniquilaria a aristocracia intelectual judaica, num Holocausto consentido pelas massas que apoiaram o nazismo.

Poderemos e deveremos analisar os dispositivos constitucionais de Portugal, ou de qualquer país, para verificar se neles persiste a presença de elementos discriminatórios de base étnica. Não ouso sequer colocar a possibilidade de o brutal assassínio do artista Bruno Candé Marques ter outro desfecho que não seja o da condenação do homicida, após um regular e rigoroso processo de justiça. Faremos bem. Mas será sempre insuficiente. Dito de outro modo: um país pode não ser racista, à luz das suas normas constitucionais (como é claramente o caso de Portugal), mas manter em simultâneo uma maioria sociológica que partilha ou tolera crenças de teor racista.

Em 1953, a descoberta do ADN mostrou que o racismo "científico" é uma fábula. Mas ele alimenta-se do vírus do mal, que não pode ser extirpado. Apenas minimizado pela disciplina do respeito. Na verdade, nós, humanos, ainda não saímos do estaleiro. Partilhamos 94% do material genético com os babuínos. Sem ofensa para os babuínos.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Ó GLÓRIA DE MANDAR!

Por
Madalena Nunes
Vereadora na Câmara Municipal do Funchal
Jornal da Madeira
11/08/2020 

Há dias vi a Paula Erra a declamar o texto “O teatro e a peste”, de Antonin Artaud, na página do facebook do Teatro Municipal Baltazar Dias. Retive a frase do início: “A mais terrível peste é aquela que não divulga os seus sintomas”. Por acaso, ou talvez não, vi esse vídeo depois de ter lido as declarações de Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, sobre a necessidade de o PSD ter de se aliar ao Chega para conseguir aceder ao poder. Custa-lhe que o seu partido esteja arredado do poder há tanto tempo. Fala em “cliques de meia dúzia” que governam o país… devo dizer que esta frase me fez sorrir, ao lembrar-me do que tem sido a governação do PSD-M há mais de 40 anos.


Felizmente, Miguel Albuquerque revela de forma transparente as suas ideias sobre o que deve ser a ação política de quem quer governar: oportunismo político no que toca a lutar pela sobrevivência, sem olhar a meios, a valores ou ideias que sustentam projetos políticos. Ou seja, aliar-se a um partido que é assumidamente da extrema direita racista e xenófoba, não incomoda minimamente o atual presidente do Governo Regional da RAM que também é candidato assumido à presidência da República Portuguesa. Esclarecedor! Tremendamente esclarecedor!!! Depois não digam que ele não avisou!

Também é muitíssimo esclarecedor o silêncio total perante esta postura de Miguel Albuquerque por parte das pessoas filiadas no PSD-M e que se afirmam democratas e defensoras dos direitos humanos.

“A mais terrível peste é aquela que não divulga os seus sintomas”, escreveu Antonin Artaud. Na Madeira não temos esse problema. Os sintomas do caciquismo, da ditadura, da intolerância, estão bem visíveis e são postos em prática diariamente. Até a resolução governamental para a obrigatoriedade do uso das máscaras, medida que seria certamente aceite por toda a gente, mostrou bem o “quero, mando e posso” de quem nos governa, sendo decretada em cima do joelho e sem respeito algum pela correção jurídica da sua implementação. Tiques! Aprendizes de ditadores, que se escondem na defesa do povo, para darem cobertura à sua glória de mandar.

O antirracismo não é de esquerda, nem de direita. A luta contra o xenofobismo também não. São lutas por valores humanistas universais e não se compaginam com branqueamentos de partidos, nem com o silêncio ou com a ausência de reação de cada um de nós.

Temos de erguer a voz e as ações contra estes tiques populistas e ditatoriais que ameaçam tornar-se normais. Não falar deles, não os faz desaparecer. Sejamos do centro, da esquerda, ou da direita, sempre que nos calarmos perante injustiças ou perseguições, somos cúmplices e ajudamos a ascender ao poder ditadores que não desejam o bem dos povos. Desejam, sim, a “glória de mandar” que Camões já mencionava nos Lusíadas.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Gastar é uma coisa... investir é outra!

 

FACTO 

1º Por atraso nas obras, duas empresas reclamaram 5,5 milhões de Euros. O governo pagou. Fonte: 1ª página do Dnotícias: "Indemnizações Chorudas". 

2º Visando uma campanha de "Educação Ambiental" li que o grupo humorístico 4Litro ofereceu um vídeo para a "campanha dos monstros" (não os abandone na via pública). Entretanto, soube-se que o governo adjudicou a uma empresa, por sessenta mil euros, uma iniciativa semelhante. Fonte: blogue correiodamadeira. 

COMENTÁRIO 

No primeiro caso coloco duas reflexões sob a forma de perguntas: por um lado, que planeamento foi realizado (de obra e de suporte financeiro), no sentido de não permitir prorrogação dos prazos e pagamento dos encargos assumidos?; por outro, quando se verificam derrapagens nas obras adjudicadas, por razões não imputadas ao "dono da obra", se o governo tem exigido o pagamento de multas por parte das empresas? Seria interessante uma resposta cabal a estas questões, onde se pode juntar uma terceira, se as entidades públicas assumem o mesmo comportamento relativamente aos atrasos no pagamento de facturas por liquidar, apresentadas pelos pequenos e médios fornecedores! 

No segundo caso trata-se de uma iniciativa importante, destinada a quem ainda não percebeu, que os grandes e pequenos electrodomésticos não devem ser deixados em qualquer sítio. Há que solicitar o seu transporte gratuito e depositá-los nos lugares apropriados. O grupo humorístico 4Litro associou-se a esta iniciativa, segundo li, de forma gratuita. O vídeo, de quarenta segundos, é muito sugestivo. Bastaria que fosse explorado através das redes sociais para atingir os objectivos da campanha. Ora, face à dinâmica que aquele grupo evidencia e ao número de pessoas que o segue (126.500 no Facebook), existirá alguma justificação na contratualização de uma empresa, pelo valor de € 60.510,00, a fim de promover a recolha de monos, sensibilização para a poupança de água e, ainda, para a separação de lixos? Julgo que não. Há formas de conseguir o mesmo desiderato sem gastar um cêntimo. Os 4Litro fizeram-no de forma exemplar e contam já com 18.200 visualizações. 

Se trago estes assuntos à colação é apenas pela sensação de constante desperdício de dinheiro que tem origem nos impostos de todos. Só nos últimos dias, cinco milhões e meio para duas empresas, mais sessenta para uma campanha, milhares para escritórios de advogados, quando os serviços dispõem de licenciados em Direito, enfim, muito dinheiro deitado fora quando tanta falta faz em sectores e áreas de prioridade absoluta.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O rei vai nu

Por
Daniel Oliveira, 
in Expresso, 
08/08/2020

As suspeitas que recaem sobre Juan Carlos não são, na sua natureza, muito diferente das que recaíram sobre José Sócrates. Mas um foi detido à chegada a Lisboa, esteve preso em Évora, foi abandonado pelos seus correligionários e enfrenta um processo que o pode levar a uma pesada pena. Outro tem o presidente do Governo a apoiar a sua fuga indigna e a direita a exigir respeito e compreensão por quem é suspeito de fuga ao Fisco e corrupção.


Dizem os defensores da monarquia que a sua superioridade é preparar os chefes de Estado e as suas famílias para a representação do Estado. Uma superioridade que se baseia na ideia de que o privilégio garante mais sentido de dever do que a representação democrática. De que quem herda o poder o exerce melhor do que quem o conquista no voto. Tudo o que vemos no Reino Unido e em Espanha o desmente. Era a ignorância que garantia a gravitas da coroa. Como é ela que nos dá a ilusão do brilho incomparável dos grandes estadistas do passado ou da sobriedade incorruptível das ditaduras. Nenhum destes mitos sobreviveria ao escrutínio das democracias modernas. Nem os grandes estadistas que veneramos, nem os ditadores que branqueamos, nem os reis que protegemos. E só quem sobrevive a este escrutínio deve servir de exemplo. O que me leva a uma convicção contraintuitiva: nunca houve poder menos corrupto do que o atual, porque nunca houve poder tão escrutinado. Um escrutínio que torna todos os podres visíveis e nos oferece uma amarga sensação da decadência. Este paradoxo poderia levar a maior exigência dos cidadãos. Mas, porque haverá sempre corruptos, resulta em cansaço. E do cansaço nasce a indiferenciação. Os notáveis aldrabões que por estes dias ganham palco contam com isso. “Podia dar um tiro a alguém na 5ª Avenida e não perderia votos”, disse Trump, em 2016. Não estamos preparados para lidar com a verdade que exigimos. Ela pede demasiado de nós.

Os grandes estadistas que veneramos, os ditadores que branqueamos e os reis que protegemos não sobreviveriam ao escrutínio das democracias modernas

A monarquia não é mais corrupta do que a república. A diferença é que o monarca, mesmo depois de abdicar, não se livra do privilégio de berço que lhe ofereceu o lugar: a família, obrigada a carregar no cargo o fardo da ignomínia. Não vale a pena dizer que Juan Carlos é agora apenas um cidadão. Isso é falso, porque é por nunca o ser que ocupou o trono. E é por o poder ser transitório e nunca hereditário que a República se regenera.

A superioridade republicana é a sua humildade perante a fraqueza humana: as instituições não se confundem com pessoas ou famílias. Em janeiro, uma sondagem dizia que 43% dos cidadãos de Espanha apoiavam a monarquia e 42% eram contra. Quando chegar o seu tempo, uma regeneração republicana não será sinal de decadência, como teme o republicano PSOE, mas de progresso.

A História dá grandes saltos, e o papel da esquerda não é o de temeroso guardião do statu quo. Aceite-se o papel que Juan Carlos teve na transição democrática mas recuse-se a ideia de que a unidade de Espanha depende de uma família. Só a democracia e o diálogo a podem conseguir, através de uma federação plurinacional e multicultural. Para a construir, a coroa é um problema.

sábado, 8 de agosto de 2020

A invenção do verão

Por
José Soeiro,
in Expresso Diário,
07/08/2020

Tempo de liberdade e de disponibilidade para si – as férias finalmente. Mas não para todos. Este ano, chegados a agosto, uma parte dos trabalhadores não tem dias de férias para gozar, porque as suas empresas os obrigaram a despendê-los durante o período do confinamento, enquanto o lay-off não vinha. Para outros, as férias pagas são uma miragem que nunca tiveram o direito a saborear – há 800 mil trabalhadores a recibo verde e outros tantos trabalhadores informais para quem esse direito não existe. E há ainda os precários que perderam o emprego – não têm trabalho, é certo, mas poderemos chamar a um período de ansiedade, em que a ausência de atividade convive com a aflição da ausência de rendimento, um tempo de férias?




As férias de verão são, na realidade, uma invenção relativamente recente do ponto de vista histórico. Não existiram sempre, não existem ainda hoje em muitos países, e não caíram do céu. Enquanto estação, devemos o verão à inclinação do eixo de rotação da terra que nos traz, neste período, mais sol. Mas enquanto tempo social, enquanto interrupção parcial do “trabalho para outros”, enquanto tempo para nós, o verão é uma invenção e uma conquista do movimento operário, das greves e dos sindicatos.

Foi há pouco mais de 80 anos, em 1936, que a Frente Popular, em França, num governo que juntou socialistas, comunistas e radicais, reconheceu pela primeira vez no mundo as duas semanas de férias pagas aos trabalhadores. Esse reconhecimento não foi uma oferta generosamente outorgada por um Governo, por melhor que ele fosse. Foi um direito arrancado ao poder pela força de uma onda grevista que, pouco depois desse governo tomar posse, em maio desse ano, dinamizou uma enorme greve que começou numa empresa de aviação, que teve a solidariedade dos estivadores e que depois se alastrou a toda a sociedade, com a participação de mais de 2 milhões de trabalhadores, que então pararam.

Em junho de 36, contrariando a ambição dos patrões, o governo da frente popular fecharia a negociação de um acordo com os grevistas para lhes garantir não apenas as 40 horas sem perda salarial (num tempo em que a regra era ainda as 48 horas), mas também as duas semanas de férias pagas. Foi um momento histórico. Em Portugal, só depois do 25 de abril de 1974 se consagrou as férias como um direito anual irrenunciável, independente da vontade dos patrões.

Tantas décadas depois, o que temos?

Temos horários que se prolongam informalmente para lá das 40 horas, o tempo pessoal invadido por solicitações permanentes, a omnipresença de novas tecnologias, uma hiperconectividade que funciona como uma espécie de prisão. Temos, também, uma lei vinda de 2012, que cortou 3 dias de férias a quem trabalha, e que nunca foi alterada. Temos uma situação difícil pela frente, um mar de precários, de desempregados, de recibos verdes e de trabalhadoras informais que não têm férias pagas porque não gozam desse direito elementar que seria ter um contrato de trabalho.

Mas temos, também, memória – esse antídoto contra o fatalismo. E, como no passado, a imensa força da solidariedade e das escolhas coletivas por fazer.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

NÃO HÁ REGRESSO À LUA DE MEL... MELHOR SERÁ CLARIFICAR!


FACTO 

Diz o líder do CDS/PP que o partido "(...) não é moça do PSD". Fonte: Dnotícias, edição de hoje, 1ª página.

COMENTÁRIO 

Parece-me evidente que a coligação PSD/CDS tem os dias contados. Quando o líder dos centristas sublinha que o CDS "não serve, apenas, "para noites de aflição", isto significa que as relações entre os dois partidos atingiram um ponto sem retorno. No mínimo, está estabelecida uma grave desconfiança.
Isto é preocupante. Não entro por considerações de natureza política sobre os actos da governação. Enquanto cidadão interessa-me, fundamentalmente, perante as muitas fragilidades da Região, perceber se há um governo que, independentemente de questões ideológicas, está em condições de atenuar ou mesmo resolver os dramas deste povo insulano. Quando o desemprego cresce de forma preocupante, quando há empresas a caminho da insolvência, quando existe graves carências sobretudo alimentares e quando, por extensão, aumentam os sinais de pobreza, a pergunta que se coloca é a de saber quem tem "unhas para tocar esta guitarra". 
Se há momentos que exigem estabilidade governativa, este, certamente, é um deles. Não basta atirar-se à República, antes interessa demonstrar capacidade de solução, empenho, união de esforços e absoluta determinação. E o que tenho constatado é um jogo de olhos desconfiados, de passa culpas, de politiquices e de "engolir em seco" situações embaraçosas. E, entretanto, o copo encheu e hoje derramou. 
Pode até ser intencional quando se aproximam as eleições autárquicas (2021). Há situações dentro dos partidos que escapam à maioria dos cidadãos. Será que o PSD quer aferir o seu peso eleitoral antes dessas eleições? Será que o CDS, que pode valer mais do que os actuais três deputados, deseja a ruptura para reforçar a continuidade no governo? Será que o CDS pretende cair em outros braços? E o que significa a abertura do líder do PSD ao partido "Chega"? Tudo é possível. O que é evidente é que aquelas declarações trazem água no bico!
Seja como for, no plano político, não é possível manter um governo faz-de-conta. As repercussões políticas daquelas declarações são devastadoras. E se assim é, repito, enquanto cidadão eleitor, melhor seria uma atempada clarificação, só possível com a queda do governo e a marcação de eleições. 
Os tempos que estamos a viver são extremamente complexos. Tempos que estão para durar, porque nada se sabe relativamente ao surto pandémico e a economia não é assunto que se resolva em 24 horas. Por isso, torna-se necessário que alguém de qualidade assuma a responsabilidade do momento difícil que todos estamos a enfrentar. Alguém, entre os melhores da sociedade, que seja capaz de acabar com estes jogos de poder. Alguém, que dentro do quadro angustiante, devolva a esperança.
Nota 
Considero de pouco bom senso, nesta fase de extrema preocupação, o vice-presidente participar no Rali Vinho da Madeira. Basta atentar na Pirâmide de Maslow: para o ser humano, os cinco patamares começam pelas "necessidades fisiológicas" (respiração, comida, água (...), passam pelas necessidades de "segurança" (emprego, família, saúde, educação (...), as "sociais", as de "estima" e, finalmente, as de "auto-realização". Não é um bom sinal dado ao colectivo, perante uma sociedade mergulhada em algum desespero, um governante com altas responsabilidades, olhar para a sua realização pessoal, colocando de lado os dramas que atingem, neste momento, mais de 100.000 pessoas. Só a pobreza atinge mais de 30%, o que equivale a cerca de 80.000 habitantes.

Ilustração: Dnotícias.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O zoom dos imperadores


Por 
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
04/08/2020

Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020.

Quando Bezos (Amazon), Cook (Apple), Zuckerberg (Facebook) e Pichai (Google) se sentaram nos seus gabinetes para um zoom com a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, no fim da semana passada, nem era a primeira vez que o faziam nem seria a mais difícil das suas audições. Mas o surpreendente é que demonstraram algum nervosismo. Trata-se dos gestores de quatro das empresas mais poderosas do mundo e, se os deputados norte-americanos tinham perguntas a fazer-lhes sobre a forma como estabelecem monopólios nos seus sectores de atividade, estariam relativamente tranquilos quanto à inconsequência das questões: aquele Parlamento não concebe a ideia de impor restrições que dividam os monopólios, ao contrário do que aconteceu há um século com maior companhia petrolífera.

Assim, durante cinco horas, os quatro executivos desembaraçaram-se, mesmo que com alguma atrapalhação, das inquietações dos deputados, que ficaram na mesma. Desviaram a conversa para o “perigo chinês”, tão ao gosto de Trump, e para um discurso meloso acerca do “sonho americano”, que justificaria todas as tropelias na destruição de concorrentes e no condicionamento dos consumidores. Os “imperadores”, como lhe chamou a imprensa norte-americana, limitaram-se a exibir o seu poder, deixando as respostas no ar.

O que não conseguem evitar é que a questão do poder dos monopólios de busca de conteúdos, de comunicação, de publicidade e de plataformas sociais se torne mais notória no debate sobre o presente e futuro da democracia. Por isso radicalizam as suas posições. O que os imperadores estão a tentar construir é um castelo inexpugnável e que, estando acima dos estados nacionais e de autoridades internacionais, defina as suas próprias regras. Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020. Mesmo que não seja suficiente para recuperar o terreno eleitoral já perdido pelo milionário, assim se conformarão os poderes mundiais deste século: o que decide são os mísseis, o comando financeiro e o controlo de massas pela internet.

Nesse contexto, a intervenção da Casa Branca contra a rede TikTok, da chinesa ByteDance, foi interpretada como uma vingança: adolescentes norte-americanos terão utilizado a rede para popularizar a ideia de um boicote artificioso ao comício de Trump em Tulsa em junho, pedindo centenas de milhares de bilhetes para deixarem a sala às moscas. O presidente quereria banir a rede, que é a que mais tem crescido nos EUA (já terá 100 milhões de utilizadores, um terço da população, sobretudo jovens) e teria inventado o estratagema de impor a sua compra por uma empresa norte-americana para a domesticar. Em todo o caso, parece que a justificação é exagerada, a direita republicana também já tem grande presença na rede (o hastag #conservative tem 1,9 mil milhões de visualizações). O resultado, apesar de tudo, foi que a Microsoft se ofereceu, teria assim um canal de entrada no mundo das redes sociais e fala-se de um preço de 50 mil milhões.

Ora, a perspetiva da venda desencadeou uma tempestade entre os trumpistas. O conselheiro para o comércio externo, Peter Navarro, recusa a operação e pede iniciativas para proibir a ação da Tiktok e do WeChat, da Tencent, outro gigante chinês. Ameaçou mesmo a Microsoft de ter de encerrar as suas operações da China, se fosse adiante com a compra. Num tuíte de sexta-feira, Trump apoiou-o e anunciou a proibição do negócio, mas voltou atrás esta semana depois de um telefonema de Satya Nadella, chefe da Microsoft. Se se concretizar nas próximas semanas, será a maior compra de empresa do ano, com um simbolismo evidente: quando todo o mundo mergulha em recessão, há um setor que cresce, o da comunicação.

A lógica parece ser a de que, se for um gigante tecnológico norte-americano a crescer, a soberania dos imperadores ficará reforçada e, no fim das contas, é isso mesmo que é determinante. Os presidentes passam pela Casa Branca mas quem fica são os poderes que tutelam a comunicação e o nosso dia a dia.

sábado, 1 de agosto de 2020

Visão estratégica ACS

Por
João Abel de Freitas
Economista
31 Julho 2020

Yuval Noah Harari e António Costa Silva antecipam várias conjecturas possíveis para o futuro do trabalho e da economia, a partir das mudanças tecnológicas, e não só, que estão a caminho de se implantar a vários níveis e ritmos nas nossas sociedades, instituições ou empresas. 

Quando fores grande, talvez não tenhas profissão. 

Esta citação do livro “21 lições para o Século XXI”, de Yuval Noah Harari, publicado em 2018 com edição em português de agosto do mesmo ano, introduz o capítulo Trabalho uma das 21 lições explanadas, que se inicia da seguinte forma: 

“Não tenho a menor ideia de como será o mercado de trabalho em 2050. É relativamente consensual que a aprendizagem automática e a robótica irão mudar quase todas as áreas profissionais – da produção de iogurte ao ensino do yoga. Contudo, há perspectivas divergentes quanto à natural mudança e à sua iminência. Alguns crêem que, já daqui a uma década ou duas, milhares de milhões de pessoas se tornarão redundantes do ponto de vista económico. Outros defendem que, mesmo a longo prazo, a automatização continuará a gerar novos empregos e trará mais prosperidade a todos”. 

1. A primeira parte do livro, O Desafio Tecnológico, onde se enquadra a lição 2, Trabalho, merece referência num texto a comentar a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, proposta por António Costa Silva (Lisboa, 5 de julho de 2020). 

O Desafio Tecnológico, por sua vez, é antecipado em termos de conteúdo nesta frase: “A Humanidade está a perder a fé na narrativa liberal que dominou a política global nas últimas décadas, precisamente no momento em que a fusão entre a biotecnologia e a tecnologia da informação nos confronta com os maiores desafios que a Humanidade algum dia encarou”. 

2. Encontro alguma sintonia em António Costa Silva e Yuval Noah Harari nos temas da narrativa liberal e do desafio tecnológico. 

A Visão Estratégica, no capítulo 2 – A crise sistémica e lições para Portugal – aborda no ponto das vulnerabilidades do modelo económico e social vigente “o erro estratégico inerente à visão neoliberal do mundo que minimiza o papel do Estado e exalta o mercado, deixando nas suas mãos os sectores estratégicos da economia” e, em vários outros pontos, desenvolve o papel e o impacto do processo tecnológico na sociedade portuguesa e na economia futura do país. 

Os futuros 

3. Yuval Noah Harari e António Costa Silva antecipam, neste contexto, várias conjecturas possíveis para o futuro do trabalho e da economia, a partir das mudanças tecnológicas (e não só) que estão a caminho de se implantar a vários níveis e ritmos nas nossas sociedades, instituições ou empresas. 

António Costa Silva vai além e conjugando a evolução das tecnologias, o enquadramento geoestratégico e geopolítico de Portugal, as características e os constrangimentos estruturais do tecido económico e social do país, traça com alguma mestria seis futuros possíveis para Portugal. 

Mas podemo-nos questionar: a revolução tecnológica em curso num tempo de fusão das biotecnologias e das tecnologias de informação não terá impactos mais profundos, devido à natureza qualitativa diferente das anteriores? Ou será apenas o “tremendismo” de desemprego maciço sempre presente nas mudanças de tecnologia que está em ebulição?! 

Na realidade, desde o início da Revolução Industrial que estes “cataclismos aterradores” marcaram presença nas mudanças tecnológicas. Apesar do desconforto tremendo e penoso que representou para muitos trabalhadores a perda do emprego, a reconversão de funções ou, de forma mais dura e injusta, a miséria para muitos e respectivas famílias, quantas vezes o suicídio, o saldo, em termos globais, tem sido positivo, pois por cada emprego perdido criou-se pelo menos um novo e consolidou-se um salto qualitativo na melhoria de vida das pessoas. 

As máquinas nas revoluções tecnológicas anteriores competiam com o homem em termos da capacidade física, não penetrando em domínios como o da aprendizagem, da comunicação e, sobretudo, na compreensão das emoções humanas. Com as novas tecnologias a própria cognição começa a ser afectada e sê-lo-á cada vez mais. Já começamos a ver isso, nomeadamente na Inteligência Artificial. No Facebook é tanta a informação que se recebe, sendo a mais simples os pedidos de amizade. Ora isto significa que os algoritmos do Facebook estão em processamento contínuo de informação e a alta velocidade, dados os milhões de utilizadores existentes. 

Ficamos com a sensação que as mensagens nos chegam em tempo bem determinado a ver se surtem os efeitos pretendidos: influência, convencimento, aquisição de bens, manipulação de toda a ordem, incluindo a política. 

Mas, se pensarmos em outros domínios como o dos veículos autónomos (sem condutor) que estão aí a aparecer e outros de maior sensibilidade como a saúde, a situação é bem mais complexa e as perspectivas algo mais incómodas ou de muita incerteza, como grande parte de consultas médicas sem médico e com bons resultados. 

No caso do automóvel sem condutor, refere Harari que se registaram (2012) cerca de 1,25 milhões de mortos por desastre automóvel, decorrentes de erro humano. Com o uso do veículo sem condutor a redução da mortalidade baixará de 90%, ou seja, irá poupar-se a vida de um milhão de pessoas/ano. E o dilema é o confronto do número de mortos contra o de empregos. E não será absurdo, diz Harari: “boicotar a automatização em áreas como os transportes e a saúde só para proteger os empregos dos seres humanos?” 

Há quem defenda que nem todos os empregos serão dispensados e para sustentar as imensas frotas sem condutor é possível criar muitos outros empregos de qualificação diferente para outras funções complementares como operadores e planificadores informáticos, gestores… Admitamos essa possibilidade. Será que os condutores dispensados adquirem com facilidade as novas habilitações para essas novas funções ou será mais realista considerar que muitos não o vão conseguir e, aqui, geram-se dois problemas, o desemprego e/ou as reformas. 

Entrará gente jovem, positivo, sem dúvida, e com outra qualificação, mais adaptável, mas, socialmente, fica por resolver a situação dos que, de facto, foram dispensados. A realidade que se apresenta é, assim, cada vez mais complexa e incerta para uma grande parte da Humanidade, pois as actividades afectadas serão cada vez mais alargadas. 

Mas algo mais perturbador ainda poderá acontecer quando as tecnologias de informação e as biotecnologias tenderem para um casamento perfeito, e “em certas áreas de actividade possa ter cabimento substituir todos os seres humanos por computadores”. Provavelmente nem tudo será mau, mas terá de haver grandes alterações de fundo, de mentalidade, de planeamento, de ajustamento a um novo modelo económico e de organização social. 

A velocidade a que se apresenta a nova revolução tecnológica ou, talvez, com mais precisão as várias revoluções tecnológicas vão exigir respostas complexas por parte do ser humano que ninguém as tem. 

4. A Covid-19 é a grande prova disso. Não há soluções à la carte. Foram-se criando. 

A Humanidade não está preparada para tanta turbulência, embora algum trabalho de prospectiva, sustentado e dinâmico, ajudasse a equacionar e a programar com maior rapidez os problemas que foram/vão surgindo, porque proporcionaria pensamento acumulado. Evidentemente, uma revolução tecnológica não chega da mesma forma que uma pandemia grave, mas por vezes também traz surpresas inesperadas. Quem nos diz que, num futuro próximo, não terá de se pensar no achatamento da velocidade dessas revoluções tecnológicas, um ensinamento do combate à pandemia, para dar aso a que as diferentes instituições e empresas possam acomodar-se, preparar-se de forma mais ajustada às alterações de fundo, nomeadamente nos recursos humanos? 

A prospectiva decapitada 

A União Europeia já teve uma Célula de Prospectiva que, no mínimo, está moribunda. Vários países tiveram instituições de prospectiva e até Portugal iniciou alguma experiência neste domínio. A narrativa liberal que dominou a política global nas últimas décadas secundarizou todo este tipo de trabalho intelectual, como bem reconhecem os dois autores, reduzindo-o a um pró-forma. Ainda subsistem departamentos de planeamento, mas funcionando para outros fins! 

Segundo a narrativa liberal, estes trabalhos são desnecessários porque estão aí os mercados a promover os “equilíbrios”. E com este pano de fundo onde se encontraram Trabalho, Tecnologia e Economia avançamos com alguns comentários à “Visão Estratégica” de António Costa Silva (ACS) 

Comentários 

5. Um comentário prévio aliás na linha do que já escrevi num ou outro sítio, incluindo o Jornal Económico, e que reproduzo: 

“Ler nos jornais, ver e ouvir na TV que a transformação da economia portuguesa se fará com um plano da responsabilidade do Gestor/Professor António Costa Silva é um puro devaneio. É alimentar o ruído de um combate político sem conteúdo. 

A este ou a outro governo tem de se reconhecer o direito de poder contratar assessores, sobretudo, se de qualidade, para determinadas tarefas. Mais razão ainda quando, nesta área específica da Cenarização/Prospectiva, não há “massa crítica” no aparelho do Estado. 

Esta área foi decapitada, em pessoas e estruturas, há alguns anos por razões de vária ordem, como a da sua “desnecessidade” [os estudos deviam ser dados a equipas do exterior], e nunca mais refeita. E, assim, quando necessário, não há estruturas nem técnicos qualificados a quem encomendar pensamento estratégico”. 

Já houve anteriores crises de confiança na narrativa liberal em anteriores épocas da história. Na segunda metade do século XIX, após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial sucederam-se igualmente situações de crise, o que parece que só com o mar calmo a narrativa liberal navega sem dificuldades. O problema nasce com a tempestade, pois com ela o descrédito das suas soluções agudiza-se, porque as não tem convincentes. 

Também escrevi e é minha profunda convicção que a responsabilidade do produto final nunca caberá a ACS: “o Plano é da inteira responsabilidade do Governo e só ele será julgado pela competência que demonstrar ou não na sua concretização, pelos resultados que obtiver e pela transparência da sua gestão”. 

Breves notas acerca do documento apresentado 

6. É preciso clarificar o tipo de documento que temos. 

Efectivamente, não temos um Plano. Temos uma Visão Estratégica sobre a qual pode ser trabalhado um Plano de Transformação da economia portuguesa. Em algumas áreas, como na Indústria e Infraestruturas, o documento até vai bem longe porque avança com propostas de medidas de política. 

Estamos perante um documento de reflexão onde se articulam ideias interessantes, bem elaboradas, nomeadamente nos domínios do enquadramento geostratégico e geoeconómico e, de algum modo, decorrente destes dois e de recursos detectados no mar dos Açores, é proposta a grande ideia da Universidade do Atlântico. Para mim, a mais inovadora do documento. 

Esta ideia precisa de ser bem alimentada e burilada sob pena de morrer antes dos nove meses. E incorpora em si a economia do mar de que tanto se fala e pouco se pratica (o cluster do mar). Uma ideia de grande alcance e muito de sonho que precisa de ser bem fatiada. Aqui também houve estragos no passado, construção naval, frotas, rotas marítimas, pesca… Há fatias em fases de maturação diferente, algumas que podem ser executadas com alguma rapidez, outras aí a cem anos… 

Os 10 eixos estratégicos, correlacionados com nove objectivos, entendo, são em demasia. Poderiam estar arrumados de outra maneira e por vezes melhor formatados. Outros não são bem eixos, mas uma junção de áreas sem grande conexão. Como exemplo, choca-me a mistura da Cultura, Serviços, Turismo e Comércio, como eixo estratégico. 

Parece até por ser o décimo que, por qualquer razão, estaria em falta falar daquelas actividades e então a solução foi “encaixotá-las” num mesmo eixo. Aliás, esta necessidade pode decorrer da “filosofia” dos Ministérios o que, em vários casos, leva a “entortar” ideias bem alinhavadas. Apostaria num eixo estratégico autónomo forte da Cultura, sustentado sobretudo nas actividades criativas e performativas. Bem merece sê-lo pelas potencialidades de arrastamento da economia e até pelas várias considerações de qualidade que ACS faz sobre a Cultura no documento. 

Porque afirmo que dez eixos são demais? Muitas frentes são difíceis de agarrar, e com cinco ou seis eixos selectivos é possível ir muito longe e transformar a economia. 

Feitas estas observações genéricas, olho para o documento como um produto bem pensado, de boa qualidade e que prova em si os vastos conhecimentos de quem o elaborou. Apesar deste reconhecimento sinto duas lacunas na reflexão. Por um lado, a quase ausência do vector demografia, embora com um ou outro toque menos tradicional e, uma certa “fuga” em tocar em estruturas existentes (estatais e para-privadas). 

Nestas últimas, há uma realidade bem diferente da dos princípios dos anos 1990. Dificilmente se aceita a ausência de reflexão numa Visão Estratégica sobre uma componente instrumental existente no terreno: a dos vários centros tecnológicos disseminados pelo país a trabalhar com as empresas na transferência de tecnologia e inovação. São instrumentos a agilizar com um papel determinante no sucesso de um Plano de transformação da Economia. Importante a sua articulação com os laboratórios centrais do Estado. 

Não posso deixar de referir dois eixos que entendo determinantes: a saúde, que retirou grandes ensinamentos no combate à pandemia e há muito a fazer para alargar esta área com funções muito bem definidas entre público e privado e as fileiras industriais a desenvolver. Segundo eixo, as infraestruturas físicas terrestres e marítimas, sendo que muitas delas há muito deveriam estar executadas. 

Noto outra lacuna, as estruturas gestoras da concretização do Plano, eficientes e desburocratizadas, e de elevado rigor, dependerão de quem? Gosto de estruturas de missão. Apenas para a “revolução industrial” (reconversão e reindustrialização) uma das áreas bem caracterizadas, articulada com os vários tipos de recursos do País, é apontada uma estrutura, digamos uma espécie de PEDIP, espero, mais operacional e com linhas estratégicas de fundo bem claras, necessariamente entroncadas nesta Visão Estratégica. 

Finalmente e deveria ser antes: como vai o Governo fatiar, agora, esta Visão Estratégica em três ou quatro partes (grupos de trabalho) no sentido de dar corpo a um Plano Operacional Global sustentado em subplanos, onde a cultura não pode deixar de estar presente. Não aprecio um País que não aposte na sua cultura de forma abrangente. A cultura fornecedora de inputs aos outros sectores. 

Nota final. Portugal nunca teve, em democracia, um plano estratégico global aprovado. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.