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sexta-feira, 30 de junho de 2023

A (incessante) crise moral


Por
Miguel Alexandre Palma Costa
Professor de Filosofia



1. Quem como eu nasceu na década de 70 do século passado, nos últimos quase 50 anos já se fatigou (e inoculou) do vocábulo “crise”. Arrisco aqui a mencionar (e enumerar) algumas das consecutivas crises políticas nacionais – e respetivas ‘instabilidades governativas’ – do pós-25 de abril, crises que nos acompanham ciclicamente até ao momento presente, todavia, destaco particularmente, as diferentes crises económico-financeiras internacionais. Por exemplo, a crise resultante do embargo petrolífero e geradora do conflito Israelo-árabe (1973-1974); a crise que levou à primeira visita do Fundo Monetário Internacional (FMI) a Portugal e a medidas drásticas de austeridade entre 1977 e 1978, incluindo limites quantitativos ao crédito, mas também a desvalorização do escudo para restaurar a competitividade da nossa economia e produtos. Não olvido a segunda intervenção do FMI, que regressou em 1983, por iniciativa do Governo do Bloco Central e conduziu o país a mais uma recessão fruto da (inconveniente) receita aplicada. Mais recentemente, a famosa crise do Subprime que teve origem nos EUA, no verão de 2007, originada por problemas nos empréstimos à habitação e que atingiu o seu ponto mais crítico em 2008, com a falência do Lehman Brothers – uma das principais instituições financeiras norte-americanas –, crise que se disseminou por várias instituições de crédito portuguesas (Bancos) e que fomos constrangidos a resgatar para prevenir a possibilidade de ocorrência de risco sistémico no sistema bancário. (Este é o mesmo sector que teve no ano passado [2022] lucros acima dos dois mil milhões de euros e que sobe consecutivamente as taxas de juro dos créditos dos seus clientes.) Seguiu-se, então, a dura crise financeira de 2010-2013, em que a desconfiança dos mercados (investidores) relativa às dívidas públicas soberanas se alastrou e o receio sobre a incapacidade de vários países conseguirem cumprir com os seus compromissos levou a uma nova intervenção externa, agora da célebre “troika”, que se fez acompanhar de “insensíveis e firmes” medidas que visavam corrigir os diferentes desequilíbrios económico-financeiros da nossa débil (e muito exposta) economia por forma a restabelecermos a capacidade de nos voltarmos a financiar nos mercados. Para o fim, mas bem mais perto de nós, está – e prossegue – a crise sanitária da Covid-19, provocada pelo novo e célebre vírus “SARS-CoV-2”, uma nova “pneumonia viral” que surgiu (enigmaticamente) na província de Wuhan, na República Popular da China, em finais de 2019, mas que rapidamente se espalhou por vários países da Ásia e depois pelos 5 continentes, colhendo mais de 26 mil mortos em território nacional e que sinaliza o começo de mais uma crise/recessão.

Paralelamente a todas estas “provações”, existiram e subsistem outras que convivem diariamente com todos aqueles que ainda habitam este país (e mundo) – e até aqueles que já o deixaram –, como as crises orçamentais, climáticas/ambientais, energéticas, na habitação, justiça, saúde, demográficas, sociais, de segurança, no desporto, na democracia…, mas evidencia-se uma que é talvez a razão/causa de todas as anteriormente referidas, a incessante crise moral. Neste contemporâneo mundo em que estamos todos deslumbrados, obcecados e entretidos com o prazer, com a velocidade e novidade tecnológica – mas também com o dinheiro e poder –, a (educação) moral já não é relevante.

2. Em todos os momentos e em todas as sociedades existiram – e continuam a existir – comportamentos considerados bons e outros maus. É no seio da comunidade, na relação com o(s) outro(s) que revelamos a nossa moralidade, que ponderamos e decidimos conscientemente, que avaliamos como corretas ou incorretas atitudes e condutas, e que sentimos (ou não) a obrigação/dever de cumprir com as normas, prescrições e orientações instituídas. Somos seres morais na medida em que o nosso agir está comprometido com uma codificação de regras, leis, normas, valores e motivações que nos dizem o que é o Bem e como devemos segui-lo/praticá-lo. Porém, a realidade é que continuamos a errar (e muito), falhar, a cometer deslizes e injustiças. A este propósito, Emmanuel Levinas, filósofo francês do século XX, é muito claro na obra Totalidade e Infinito, quando declara que importa muitíssimo «não nos iludirmos com a moral», pois ela esbate na prova com o real, sobretudo quando vivemos num estado (e economia) de Guerra que “suspende a moral” – por agora, militarmente circunscrita à Ucrânia, mas com impacto económico global –, tal como a praxis política, que “se opõe à moral”.

Apadrinhando a opinião, a fantasia e a ilusão, vivemos hoje num paradigma social que concebe e alimenta uma civilização essencialmente hipócrita onde a Verdade e o Bem parecem já não ter lugar ou apreço. Dito por outras palavras, a mentira parece ser agora um ‘pilar’ moral da nossa época, na medida em que os cidadãos se desinteressam (e abdicaram) do próprio conceito de Verdade… e tudo graças há espantosa quantidade de mentiras utilizadas no dia a dia. De facto, na política, nos negócios, na área da justiça, na “fina” finança e não só, os mentirosos são hoje tão bem-sucedidos e admirados que parece até que a Verdade deixou de ter qualquer categoria/valor moral e epistemológico. Pior, atualmente – e segundo o filósofo americano, Harry G. Frankfurt – tanto a verdade como a mentira foram ultrapassadas por uma nova forma de discurso e de conhecimento: o bullshit, a treta, parvoíce, o disparate, a farsa, a artimanha, a arte de dizer tolices, mentiras, falsidades… porque é do interesse daquele que a exprime (e exclusivo benefício) desprezar os factos, mas sobretudo consolidar o seu estatuto/posição de poder e enfraquecer os adversários. Ora, para quem acompanha a nova novela da Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP (mas também poderia ser a ex-Comissão de inquérito sobre alegadas “obras inventadas” na Madeira), percebe que a verdade não passa por ali. O que importa aos vários protagonistas das audições públicas (sejam ministros ou ex-ministros, ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, ex-adjuntos, a ex-CEO ou mesmo a antiga administradora da TAP, Alexandra Reis, que alegadamente recebeu uma indeminização choruda pela cessação de funções na empresa) são os efeitos políticos das suas afirmações – verdadeiras ou falsas – em quem as escuta, conhecendo perfeitamente a verdade e sabendo que aquilo que diz é falso e que toda (ou muita) muita gente sabe que é falso. Para além de já estarmos todos “empanturrados” com estas audições sobre a TAP no Parlamento, sabemos que o objetivo principal não é querer dizer (e defender) a Verdade nem ter a aparência de verdade, mas tão só chocar a opinião pública e semear a dúvida entre os cidadãos que se julgam bem informados. A finalidade é “condicionar” (ou mesmo liquidar) putativos candidatos a altos cargos partidários e governativos, e para isso é preciso dizer qualquer coisa, seja qual for a mensagem, verdadeira ou adulterada, pois isso resultará num ruído de fundo incessante nos media – proporcionará capas de jornais, aberturas de telejornal, comentários, crónicas, previsões, análises e até séries de entretenimento – que todos nós, público, vamos consumir. Sobre este assunto, num pequeno texto, Hannah Arendt é clara ao afirmar que abandonamos a Verdade como ideal cultural: “as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político ou demagogo, mas também na de homem de estado” (Verdade e Política). Entramos, livres e voluntariamente, na era da pós-verdade!

Em suma, infelizmente as democracias contemporâneas promovem agora todo o tipo de tretas, mentiras, asneiras, idiotices… a ignorância em geral, e o próprio alicerce da educação já não procura formar o “carácter” dos cidadãos de modo a viverem bem e na/para a Verdade. A moral degenerou num instrumento utilitário, que nos dá prazer e permite ganhar dinheiro, para muitos a coisa mais importante na vida.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Fabricantes do Ocidente perturbados com a qualidade das viaturas chinesas


Por

O salão automóvel de Xangai foi um autêntico choque para os construtores ocidentais. Permitiu-lhes o contacto com o seu atraso tecnológico face à China, neste domínio.



1. Hoje, não vou voltar ao fabrico de aviões em que a China iniciou uma “longa marcha”, recente, de competição com o Ocidente, através da empresa COMAC com sede em Xangai, em que para ser bem-sucedida terá de saber superar várias barreiras, difíceis algumas, aplicando cuidadosa e inteligentemente os trunfos que já adquiriu ao nível do conhecimento técnico, mas não da diplomacia comercial e em especial na sua cooperação com os BRICS (actuais e futuros) e, porque não com a França (?), uma vez que Macron entrou em contacto com Cyril Ramaphosa, Presidente da África do Sul, país anfitrião da Cimeira dos BRICS de 22 a 24 de Agosto próximo, em Johanesburgo, no sentido de nela participar.

Esta solicitação de Macron causou surpresa e desconfiança em todo o mundo. Desde “cavalo de Tróia”, até ideia ousada, atrevida e inovadora na perspectiva de ganhar pontes com um grupo de países com influência cada vez maior no panorama geopolítico global, já tudo se disse. A situação é ainda uma nebulosa, sentindo-se sinais de que esta mostra de alguma autonomia de França, não terá caído bem nos EUA e mesmo em alguns parceiros europeus.

Também é verdade. Macron causou imensa surpresa e interrogações entre os BRICS, até porque a Cimeira tem uma agenda bem conhecida, com um ponto forte: o alargamento. 20 pedidos de adesão estão sobre a mesa. E alguns sonantes como a Arábia Saudita e Irão (recentemente reconciliados), Indonésia, Argentina, México, Turquia, Egipto. …

2. Regresso à China, mas não gostaria de voltar a receber, de gente não identificada, emails pouco recomendáveis, como quando, aqui, há algum tempo, publiquei uns artigos de opinião sobre “o século da Asia”, cujo título nada tinha de original, porque muitos estudos e artigos, por toda a Europa, assim designavam e continuam a designar o século XXI.

Evidente e natural essa abordagem começar pela China, (depois India, Japão …), o país, então e agora, mais em evidência, onde assenta de facto, o motor dessa mudança do Mundo para a Ásia.

O automóvel eléctrico chinês

O tema hoje é a viatura de fabrico chinês. Estamos perante uma situação oposta à da indústria aeronáutica. A China aqui comanda, tendo-se tornado, no primeiro trimestre de 2023, o primeiro país exportador do mundo de viaturas eléctricas.

O salão automóvel de Xangai realizado, em Abril último, foi um autêntico choque para os construtores ocidentais. Permitiu-lhes o contacto com o seu atraso tecnológico face à China, neste domínio, traduzido na construção de viaturas e de baterias a baixo custo.

Mas o que perturbou, rotundamente, os fabricantes do Ocidente, sobretudo os europeus, não foi tanto a quantidade exportada, mas a qualidade do produto que, em nada, deve aos melhores carros eléctricos, construídos no Ocidente.

No entanto, as fábricas chinesas poderem disponibilizar veículos eléctricos de qualidade a 10.000 dólares por unidade, faz grande mossa.

O Ocidente não consegue. Tanto assim é que o Comissário Europeu, Thierry Breton, responsável pelo mercado interno da UE, começou a congeminar “uma investigação” às práticas comerciais das marcas chinesas de carros eléctricos. Antes da investigação, já fala de “dumping”. E mais curioso uma vez que algumas das marcas chinesas são produzidas em fábricas de capital misto Ocidente/Chinês. Por exemplo, a BYD, que é a segunda maior construtora mundial, concorrente da Tesla (primeira), tem capital de Warren Buffet.

Que finalidades procura esta iniciativa de Thierry Breton? Limitar a entrada no mercado europeu de automóveis chineses, aplicando tarifas aduaneiras. Outro contrassenso sobretudo para as empresas americanas que investiram na China, como se referiu.

E isto sobretudo porque as baterias de fabrico chinês saem mais baratas na produção, ao usarem materiais de fabrico próprio sobretudo à base de lítio, ferro e fosfato, enquanto o Ocidente recorre a lítio, cobalto e níquel, minérios estes bem mais caros, mais poluentes e que causam problemas éticos, por exemplo, na República Democrática do Congo devido às condições de extração.

E ainda um outro grande problema de mercado. A China assegura mais de 85%, (há quem refira acima de 90%), dos minerais críticos, utilizados nas baterias, nomeadamente o conjunto de minérios conhecidos por terras raras.

Recentemente, soube-se da existência de reservas de terras raras na Europa, por exemplo na Gronelândia e na Suécia.

Sobre a Gronelândia há toda uma história onde até Donald Trump, em 2019, tentou comprar a grande Ilha, um território autónomo da Dinamarca. É evidente que a China também andou a sondar como se aproximar desse território.

Apesar das reservas detectadas, para além do tempo necessário para efectivar um projecto mineiro, há na Europa, mais que nos EUA, grandes tensões políticas sobre a exploração mineral.

Na Europa, está subjacente uma mentalidade neocolonial. Na exploração de minérios é sempre preferível deixar os estragos fora e comprar limpa a matéria-prima. Tem sido esta tese a predominante.

Porém, no caso da Gronelândia, a situação para além desta mentalidade é ainda mais complexa. Não se dominam os efeitos da exploração por se tratar de uma região polar, o que vem causar muitas interrogações e convém agir sensatamente. De erros grotescos a Europa é especialista como no caso do gás russo em que se corta o consumo e houve que regressar ao carvão. Temporário espera-se, mas regressou-se, com todos os efeitos nefastos.

A dependência da Europa

A União Europeia tem uma elevadíssima dependência em terras raras e em outros minerais críticos, como o lítio. Portugal é o país com maiores reservas de lítio na União, mas o processo de exploração por erros básicos, como a falta de diálogo com autarquias e população criando profundos desentendimentos e instabilidade social, tem atrasado o arranque dos projectos de mineração.

A União Europeia até tem um plano para a produção de baterias desde 2018, mas sem recursos básicos a aposta é a reciclagem podendo, diz, atingir 20% das necessidades do plano. E os restantes 80% como se resolvem, tanto mais que as relações Europa/China já foram bem melhores?!

Independentemente do futuro do automóvel eléctrico, designadamente pelos limites de autonomia, a Europa dificilmente terá uma posição de relevo como ambicionou, apesar dos milhares de milhões de euros gastos, por atrasos e erros estratégicos em muitos domínios. E com esses atrasos tecnológicos e comerciais, concorrer com os EUA e a China é uma tarefa difícil para não dizer impossível.

Mesmo para manter uma posição no carro eléctrico, não de primeiro plano, a União Europeia terá de alterar substancialmente a sua política de mineração, a sua política de reciclagem e de cooperação com a China, que tem vindo a degradar-se nos últimos tempos. Gastar dinheiro sem visão é continuar a bater no muro. Aliás, o Tribunal de Contas Europeu, em relatório recente de 19/06/2023, afirma que a política de Bruxelas para as baterias eléctricas está completamente errada. “O cerne do problema é o risco de escassez de matérias-primas estratégicas para fabricar as baterias e a dependência europeia”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 25 de junho de 2023

A herança


Por
Pacheco Pedreira
Público
24/06/2023
estatuadesal


Se esta “herança” permanecer intacta, nenhum governo sobrevive sem ter, ou grandes poderes, ou grandes protecções. Vai ser bonito para o ressentimento e a vingança e péssimo para a democracia.



Há-de haver uma altura em que este governo do PS seja substituído por um governo do PSD, muito provavelmente aliado à IL e com qualquer forma de acordo com o Chega. Mas não é a política de alianças para garantir uma maioria a minha matéria de hoje, embora em muitos aspectos os acordos que se fizerem agravam o modo como a “herança” vai ser gerida.

Parto de três pressupostos que muito provavelmente não se vão realizar, mas, para efeito de argumento, servem. Primeiro, é que a “herança”, ou seja, o conjunto de leis, práticas, promessas informais e formais de questionários, inquéritos e controlos, compromissos e intenções públicas, sobre “transparência”, incompatibilidades, extensão às famílias e aos amigos de impedimentos legais quanto à actividade empresarial, e à propriedade de bens e empresas, escrutínio severo de passados e presentes com destaque para qualquer obscuridade, confusão, falta de declaração, numa interpretação maximalista muito para além da lei para o domínio elástico da “ética”, exclusividades também numa interpretação maximalista, para governantes e família, verificação de lugares de residência, trajectos, uso de carros, diversões, futebol (se for natação ou andebol não conta), etc., etc., vai ser recebida pelos governos do futuro. Tudo estará em cima da mesa, reproduzindo a avalanche de rigor, com ou sem base legal, que se aplica nos nossos dias. Esta é a “herança” de que falo.

O segundo pressuposto, é que a comunicação social permanecerá politizada e persecutória como é hoje, misturando casos sérios com trivialidades, ou invenções assentes muitas vezes em denúncias não verificadas, e quase nunca corrigidas, mesmo que seja num canto obscuro, pelo órgão de comunicação, mesmo quando se verifica uma evidente falsidade. Ou seja, continuando a não haver escrutínio no sentido jornalístico da palavra, mas secções de escândalos, misturando tudo, num afã persecutório aos detentores do poder político, dramatizando, com uma linguagem condenatória à cabeça, excessiva e motivada pelas preferências políticas dos órgãos de comunicação, suas redacções e seus proprietários, misturando gente séria com escroques, para dar um contínuo alimento às pulsões populistas. E, convém não esquecer, protegendo pelo silêncio quem querem proteger, seja para manter o alvo político, seja porque são dos “nossos”.


O terceiro pressuposto é que o Ministério Público continuará a actuar como faz hoje, noticiando com grande celeridade que abriu um inquérito sobre determinada pessoa ou acção, mesmo quando sabe que não tem qualquer fundamento legal para a penalizar. No momento em que o publicita, está a lançar uma sombra de suspeição e ilegalidade sobre coisas que nunca chegam ao tribunal e que, passado o efeito pretendido, são arquivadas. Igualmente se pressupõe que o Ministério Público, sabendo que as matérias que lhe serviram de pretexto para ouvir telefonemas, controlar mensagens, fazer escutas e vigilância não chegam como prova num tribunal, continue a passar o conteúdo de inquéritos sob segredo de justiça para os programas justiceiros da comunicação social, para que haja condenação na opinião pública de comportamentos que podem ser reprováveis, mas não são ilegais. E também para vir depois dizer que não foi mais longe por “falta de meios”.

Se esta “herança” permanecer intacta, nenhum governo sobrevive sem ter, ou grandes poderes, ou grandes protecções. Se eu imaginar, a partir do dia de hoje, quem possam ser o primeiro-ministro, os ministros e secretários de Estado, do PSD ou da IL, os apoiantes parlamentares do Chega, a maioria não passa sequer no questionário que o PS fez, quanto mais no que já se sabe de suspeitas públicas sobre a sua actividade privada, património, funções autárquicas, comportamentos de tráfico de influências, decisões obscuras em funções públicas, amiguismo e compadrio pessoal e partidário, etc., etc., de novo, como para os casos actuais, sem sequer se tratar de ilegalidades. Esta também é a “herança” da sua responsabilidade.

Há, no entanto, aqui um pequeno problema: é que nenhum dos pressupostos se vai realizar, as leis e práticas referidas vão continuar, mas deixarão de ser um escândalo, a comunicação social, se se mantiver a politização actual à direita, vai respirar de enorme alívio porque “conseguiu” e vai proteger os seus “seus”, e o Ministério Público vai ser posto na ordem, ou seja, só os “outros” é que são um alvo legítimo, o resto é intocável.

O PS e a esquerda farão então o que a oposição faz hoje, mas sem os mesmos meios dado que não têm o aparelho de propaganda jornalístico-político que está hoje montado, e muito menos a sua agressividade. Terão a tarefa facilitada na substância, mas fraca no altifalante. Para além disso, as acusações de “vocês também fizeram” vão ser habituais.

O fundo populista vai continuar em crescendo, mas o populismo pelo seu conteúdo antidemocrático não “come” da mesma maneira o mesmo alimento e vai encontrar elementos de vingança suficientes para continuar a olhar para trás e não para cima. Haverá gente que cuidará disso, e são bons nessa gestão da fúria do escândalo.

Vai ser bonito para o ressentimento e a vingança e péssimo para a democracia.

O autor é colunista do PÚBLICO

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Começou o desafio ao Ocidente no espaço aéreo


Por
João Abel de Freitas
Economista

Na ocupação do mercado mundial, a China vai defrontar-se com vários outros problemas, nomeadamente o da certificação europeia e norte-americana. Mas poderá conquistar fatias de mercado no Sul Global, onde aquela não é exigida.



1. Esta batalha da China ao Ocidente, no domínio do espaço aéreo, vai prolongar-se muito no tempo. Até porque a capacidade de combate da China está no início. Nada tem a ver com Taiwan. Essa está sempre latente a outro nível. Ao nível da guerra, e agita-se sobretudo quando acicatada do exterior, como foi o caso da visita de Nancy Pelosi, tida por provocação, ao romper com o consenso estabelecido.

Esta batalha, iniciada a 28 de Maio de 2023, mas com vários anos de trabalho anterior, com falhanços e entorses de percurso, admitidos pela China, até pouco tem a ver com o papel do Estado/País.

2. Quando se trata de empresas, o Ocidente costuma ajeitar às empresas chinesas o figurino de “espias”, sobretudo no campo das tecnologias em que está em perda, como aconteceu e está a acontecer com a Huawei (no G5), impedindo ou limitando a sua actuação nos mercados.

Lembram-se, de certeza, da célebre entrevista do Embaixador dos EUA em Portugal sobre a Huawei, com ameaças nada veladas ao Estado Português, aquando dos leilões da Anacom, de que não houve reacção oficial, ou sendo concreto, houve um bloqueio silencioso da Huawai.

3. No dia 28 de Maio, o avião C919 fez o seu primeiro voo comercial, Xangai-Pequim, ao serviço da transportadora aérea CEA (China Eastern Airlines), dando início a uma longa batalha de alcance imprevisível com a Airbus (um consórcio europeu) e a Boeing (grande empresa dos EUA), os dois colossos mundiais da indústria de Aviação Civil.

O C919 é um avião comercial de passageiros de média distância, de fabrico COMAC (Commercial Aircraft Corporate of China) com sede em Xangai. Este avião corresponde a um “sonho antigo” da China de começar a discutir a primazia nas alturas e a ganhar autonomia face às duas rivais Boeing e Airbus (senhoras do Mundo neste mercado) e, certamente, corresponder a Xi Jinping que, em 2014, dizia, a China nunca será uma potência mundial, enquanto não construir o seu próprio avião comercial. A China pretende, assim, conquistar uma posição equilibrada na construção aeronáutica civil, como já detém no transporte comercial.

4. A COMAC começou, aliás, por fabricar um, de pequeno porte para curtas distâncias, (transporte regional) que tem alguns clientes externos, como a Indonésia. A COMAC tinha razão. Não era naquele modelo de pequeno porte que se coloca o desafio que lhe interessa desenvolver. Aí competiria, quando muito, com uma Embraer (Brasil), uma Bombardier (Canadá)…

As ambições da COMAC teriam de virar-se para outra gama e, assim, apareceu o C919 que se propõe começar a construir 150 aviões/ano, durante os próximos cinco anos, tendo já 1.200 pedidos de 32 clientes diferentes, o que ultrapassa a produção prevista para os cinco primeiros anos. Não são ambições ainda a fazer mossa a uma Airbus ou a uma Boeing. Mas começa a incomodar, sobretudo no mercado da Ásia.

A COMAC, certificada na China nos três tipos de certificação obrigatória para poder entrar em exploração comercial, está a posicionar-se como alternativa ao 737 da Boeing e ao A320 da Airbus. Por algum tempo subsistirá um problema – a elevada integração de componentes do exterior, EUA e Europa. As empresas concorrentes também o são. A Boeing adquire cerca de 40% a 50% de fora dos EUA. A Airbus até da Malásia integra componentes. A COMAC tem uma incorporação mais elevada, dizem os especialistas, mas a questão basilar não é essa, mas sim o ambiente instável que se vive, a nível do planeta, que pode trazer restrições de entrega ou mesmo de cancelamento de componentes, como tem acontecido com a Huawai e outras empresas chinesas.

Necessidades da China em transporte aéreo de passageiros

5. A China é o segundo mercado mundial da aviação comercial. Tem três ou quatro empresas de transporte de passageiros com grandes frotas, entre as 12 maiores do mundo. Estima-se que, até 2041, precise de 8.500 aviões, equivalente a cerca de 20% do mercado global. Para cobrir estas necessidades, a China recorre sobretudo à aquisição de aviões de fabrico europeu, a Airbus, com parte já encomendada mas agora em redução, o que nos leva a concluir que o primeiro grande colosso da indústria mundial da Aviação a ser afectado pela COMAC será a Airbus.

Aliás, essa é a posição dos analistas de mercado, sem apontarem as razões de fundo. Lemos desta maneira porque a própria COMAC indica a pretensão de ocupar, até 2035, um terço do mercado chinês e 20% do mercado mundial. Na ocupação do mercado mundial, a China vai defrontar-se com vários outros problemas, nomeadamente o da certificação europeia e norte-americana. A certificação em si já é um processo moroso, porque exigente, mas, neste caso, pode ser sucessivamente atrasado, o maior tempo possível, como meio de “reserva” de mercado para os seus aviões.

Mas, certamente, poderá conquistar fatias de mercado no Sul Global, onde a certificação europeia e americana não é exigida, só mesmo a pressão dos governos dos EUA e da União Europeia poderá funcionar.

Mas uma estratégia de cooperação a desenvolver com os BRICS, designadamente na área das componentes, poderá constituir um trunfo importantíssimo. Aliás, o grande elo entre os BRICS é mesmo a economia e não a política, e os BRICS estão com uma dinâmica interessante. No próximo Verão são esperadas decisões significativas, designadamente em termos de alargamento, e existe um leque de países candidatos. Que designação terão “os futuros” BRICS?

O marketing da COMAC

6. Não é fácil pôr a funcionar um marketing global com efeitos imediatos. O problema da confiança/segurança para um produto desta natureza conta muito. Convencer as transportadoras aéreas a fazer a troca de marca leva tempo. 

Em muitas áreas do Sul Global reina uma antipatia forte contra o Ocidente, alicerçada em múltiplas razões e, na sua maioria, com fundamento de natureza histórica, cultural e social, e depois estão em desuso os acordos globais e de longo prazo que os Estados Unidos e a União Europeia praticam e tentam impor aos parceiros.

Cada vez funcionam mais os entendimentos para fins específicos e, neste modelo de parceria, a China é mais expedita. E um trunfo que conta, uma vez ganha a confiança na qualidade do produto, é a agressividade/preço.

A COMAC, segundo a informação disponível, produz bem mais barato que a Boeing e a Airbus, e poderá oferecer preço e condições de pagamento sugestivas, o que será bem aceite por alguns países destas economias emergentes com maiores dificuldades financeiras. Um grande trunfo. Mas o lançamento de sustentação assentará, inicialmente, nas transportadoras aéreas chinesas. O que com elas se passar marcará, sem dúvida, o futuro da COMAC.

7. Por último, e a título de informação. A China trava uma outra batalha e esta no mar. A plataforma que colocou a 17 de Maio último para estudo da captura de urânio, existente na água salgada (3.3 microgramas, em média, por litro).

Com esta investigação, se vier a ser bem-sucedida – a China pensa ter resposta até 2035 –, o Mundo passará a dispor de uma quantidade quase infinita de urânio a partir de 2050. Para a China, este sucesso equivale a uma escolha estratégica para sustentar a sua indústria nuclear no futuro.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Muito próximo do abismo


É aflitiva a situação dos indicadores de pobreza da Região Autónoma da Madeira. Trata-se do pior desempenho entre as regiões ultraperiféricas.




A ideia que os políticos transmitem, há 47 anos no poder absoluto, é que se respira felicidade, bem-estar e que são marginais os casos de pobreza e de privação, quando comparados com os níveis apresentados pelas outras regiões do país e, concretamente, pelas ultraperiferias: Guadalupe, Guiana Francesa, Reunião, Martinica, Maiote, São Martinho (França), Açores e Ilhas Canárias (Espanha). Mas lá vem o dia que os números são tornados públicos e, consequentemente, as muitas máscaras caem. E esta situação é preocupante.

Há muita vida feita de aparências, de muitas festas, de muito controlo social, de muitos subsídios para atenuar a dor profunda, de muita intervenção política diária, de muitas línguas caladas ou obrigadas ao silêncio, de muita cumplicidade interesseira, de muita economia paralela que disfarça, de muita "guerra" institucional contra a República, eu sei lá o que se esconde por essas ruas, becos e travessas da Madeira real.

Preocupa-me pelo facto de alguns indicadores terem uma óbvia repercussão no futuro. O desenvolvimento não se compagina com situações generalizadas de pobreza, com o círculo vicioso de uma economia com pés de barro, com uma mentalidade que não assenta em valores culturais, tampouco se compagina com o indicador dramático da ausência de saúde. Assiste-se a um crescimento na venda de medicamentos, a ausência de saúde mental arrepia, as milhares de cirurgias e consultas médicas em atraso horrorizam, as várias dependências florescem, os suicídios e as tentativas assustam, o sistema educativo sem norte, construído através de páginas mediáticas, sem rigor, conhecimento científico e estatísticas marteladas, tudo isto, pergunto, aonde levará a população?

E vão falando, como se discursassem para tolinhos, do "Dubai na Madeira", de pioneiros nisto e naquilo, da ilha das flores, dos desfiles e carnavais da ilusão, da "obra" feita, sem conta darem (ou se calhar dão) que também estão a gerar, há muitos anos, indisfarçáveis túneis na cabeça das pessoas. A grande obra teria e terá de ser, em todos os campos, a da edificação do ser humano. Por aí, tudo o resto virá por acréscimo. Mas a população tem uma tendência para tudo perdoar, tudo esquecer e, como mero exemplo, lá virá o dia da inauguração, com música, discurso e foguetes, a "renaturalização" da trágica marina do Lugar de Baixo onde perto ou mais de 100 milhões foram atirados ao mar. Tudo é perdoado pela população. Até a própria pobreza é perdoada! Isto dá que pensar. 

Obviamente que não basta dizer que as outras regiões também não vivem no melhor dos mundos. É verdade. Mas isso, parafraseando, faz-me lembrar a história do Miguel que, no final do ano escolar, chegou junto dos pais e disse: "eu perdi o ano, mas papá, outros sete da turma também perderam!"

Ilustração: Dnotícias.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

A busca do anormal

 

Não sei se já atingiu o nível da saturação, mas andará por lá perto. Não me sobejam dúvidas que as ditaduras são especialistas em esconder e calar os assuntos incómodos. E não quero viver num ambiente em que a transparência não seja total. Julgo que qualquer pessoa, democrata e com um mínimo de bom senso, assim exigirá. Mas já ultrapassou o meu limite da tolerância.



Qualquer português bem informado já percebeu que houve trapalhada da grossa no ministério da Infraestruturas. Que é difícil entender como é que políticos com anos nos corredores do poder, que dominam o bas-fond da política, o que se vê e sobretudo o que não se descortina, que facilmente advinham as consequências mediáticas dos seus actos, permitam que determinadas situações resvalem para o inimaginável. E o essencial da novela de má qualidade já conhecemos: sobre o SIS, o ministro Galamba, a chefe de gabinete, quem telefonou a quem naquela noite, a bicicleta, o computador, os arranhões entre pares, sobre a comissão de inquérito, enfim, bastou-me um ou dois dias para perceber e tirar conclusões políticas e outras.

Mas não, ligamos a televisão ou a rádio e a cantilena mantém-se, com paletes de comentadores a escarafunchar onde já não há mais para dizer. "É a velha à volta da pedra e a pedra à volta da velha". Ora, se existe uma investigação em curso através das autoridades e se em curso está uma comissão de inquérito na Assembleia da República, pois bem, deixem o marfim correr até que as conclusões sejam conhecidas. Poupem, por isso, os cidadãos a este massacre pretensamente informativo e à política feita espectáculo. Já não há pachorra para assistir a um emaranhado ao jeito de um pelotão a marcar passo.

Agora foram as declarações escritas pelo Primeiro-Ministro, as quais deram lugar a outras do Presidente da República. E essas posições estão a "render como milho de Cabo Verde". Vamos ter mais uns dias de paleio inconsequente. Há qualquer coisa de podre na comunicação social. Perdeu-se o sentido da medida e da responsabilidade. Fico com a ideia que muitos são conduzidos pelo anormal, pela costela político-partidária e que importante é fazer sangue, aparecer e justificar o que legitimamente auferem. Não gosto!

Já não basta a vergonha que é a transcrição exacta dos registos telefónicos entre entidades sujeitas a investigação, transcrições que ninguém ousa averiguar de onde partem tais fugas de informação que deveriam estar em segredo de justiça; já não basta o julgamento na praça pública antes de qualquer criminalização e condenação e já não bastam as prescrições de processos de alegados prevaricadores, o que diz bem do crónico estado da Justiça, os cidadãos ainda têm de levar com séries do tipo "timex", os tais, dizia a publicidade, que não adiantam nem atrasam.

Portugal é um País com muitos e graves problemas por resolver. Que não são solucionáveis através de um simples estalidado de dedos: os de natureza económica, financeira, de educação, saúde, sociais, laborais, culturais, de industrialização, natalidade, desertificação do interior, problemas sem fim que deveriam merecer outra atenção e debate público. Mas não, ficamos pelo SIS e pelo Galamba. Ao ponto de ter lido numa rede social: "se ligar a televisão e não estiver a dar o Galamba, é porque tem uma avaria".

Bom senso, precisa-se!

Ilustração: Google Imagens.