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terça-feira, 31 de agosto de 2021

Trata-se de nós


É sabido que a proximidade de eleições acelera a capacidade imaginativa de uns quantos e faz aumentar perigosamente os níveis da demagogia e da intrujice, tantas vezes associadas à ignorância. Mas ainda assim seria bom que, nestas eleições autárquicas, estes fossem os males maiores.



Porque vai valer tudo, que o objectivo é enganar, iludir, acusar outros de culpas próprias, jurar falso. Apresentam-se propostas como salvação da cidade, que são as que o executivo da Câmara do Funchal não pôde concretizar pelos boicotes feitos à sua acção quer pelos sucessivos e orquestrados chumbos dos Orçamentos Municipais, quer pelo desprezo deliberado que mereceu a possibilidade de contratos-programa. Desprezo que teve a assinatura do vice-presidente do governo.

Mas do que quero falar hoje é do prometido parque de estacionamento subterrâneo para 1 500 lugares na praça do Município.

Vamos aos factos.

Facto 1. A área desta praça (passeios descontados) é qualquer coisa como 1700m2.

Facto 2. Cada lugar de estacionamento ocupa 12,5m2.

Facto 3. Nestas contas não vão entrar corredores de comunicação, rampas de acesso ou espaços de manobra, nem entradas e saídas, nem pilares de suporte das plataformas, nem equipamentos de segurança contra incêndios. Nada, só pisos e riscos no chão a marcar lugar.

Facto 4. Vamos, portanto, imaginar que o carro está cá em cima e, por milagre, no instante seguinte está arrumado num lugar lá em baixo, nas catacumbas da praça do Município.

Facto 5. Se cada lugar ocupa 12.5m2, por piso caberão 136 carros. Donde, para arrumar os 1500 não chegam 11 pisos.

Facto 6. Tendo cada piso um pé-direito de uns 2.20m, 11 pisos correspondem a uma profundidade de 24.20m (sem contar a altura da laje de cada piso o que, caro leitor, nos levará até aos 30 metros bem medidos).

Pergunta 1: É esta barbaridade que se quer para a praça do Município?

Facto 7. Esta praça merece ser tratada como uma importante jóia da arquitectura da cidade do Funchal; para além do fontenário central da autoria do arquitecto Raúl Lino, a praça está limitada por um conjunto de importantes edifícios: o Colégio dos Jesuítas, a Câmara Municipal, o Museu de Arte Sacra e a Igreja do Colégio.

Facto 8. O Museu de Arte Sacra e a Igreja do Colégio são Monumentos Nacionais (só há mais 4 com esta classificação no Funchal) e têm naturalmente as respectivas zonas de protecção.

Pergunta 2: A criatura que fez esta proposta saberá alguma coisa da história, da importância e do significado deste lugar?

Facto 9. Trazer o caos resultante de um parqueamento com esta dimensão para esta zona nobre da cidade é, para além de tornar a baixa intransitável, pôr em causa todo o trabalho que tem sido feito na mobilidade e circulação no Funchal – que de resto tem sido nacional e internacionalmente reconhecida como cidade de excelência em políticas de acessibilidade e, por isso mesmo, premiada.

Pergunta 3. O que se quer mesmo é destruir tudo o que tem sido feito?

Facto 10. O Funchal prepara-se, com esforço e entusiasmo, para o desafio de se candidatar a Cidade Europeia da Cultura 2027.

Pergunta: É também para sabotar essa candidatura que esta criatura aparece?

Caro leitor, se nesta campanha autárquica vai mesmo valer tudo, o pior é que vai provavelmente ser a mais dura que aqui já se viu.

Temos que estar à altura de dar uma resposta firme e coesa a ataques que já começaram e se vão intensificar para intimidar e amedrontar. E o medo é o chão onde crescem a repressão e a opressão.

Temos também que estar à altura em nome do desenvolvimento, da seriedade e da honestidade. Porque a cidade, nós, que a habitamos e a fazemos, que a usufruímos e a queremos, não podemos aceitar que nos tratem como se fôssemos um bando de energúmenos ou ignorantes, sem capacidade de escolha nem carácter, que se deixam enganar por uns quaisquer vendilhões do templo.

Porque estamos a tratar da Democracia. Porque vamos a eleições pelo nosso futuro.

Violante Saramago Matos

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A RTP e a Ryanair


Por estatuadesal
Boaventura Sousa Santos,
in Público,
29/08/2021


Não é a primeira vez que o noticiário da televisão pública serve de plataforma para as aleivosias do patrão da Ryanair. Mas, no passado dia 23, no noticiário da RTP 1 das 13 horas (às 13h33 para ser preciso), os portugueses devem ter ficado chocados e ofendidos com o que ouviram. Na sua mais recente conferência de imprensa, o patrão da Ryanair disparou mais uma diatribe contra a TAP, e o noticiário deu-lhe todo o espaço, sem sequer fazer um contraditório credível. O padrão de comportamento deste senhor é conhecido em toda a Europa, mas em nenhum país tem conseguido tanta publicidade gratuita como em Portugal e, pasme-se, oferecida pela televisão pública. Compreende-se que zele pelo seu negócio, o que não se compreende é que possa fazê-lo servindo-se de um canal de televisão que é pago pelos impostos dos cidadãos portugueses.



O modo como foi noticiada esta conferência de imprensa ofende todos os princípios de ética mediática. São feitas afirmações arbitrárias e de má-fé que rondam terrorismo informativo e que são apresentadas sem qualquer contraditório. Distingo três. A primeira é noticiada em transmissão directa: “O governo português não conhece ao pormenor como a TAP funciona diariamente, só sabe que precisa de milhares de milhões desviados dos hospitais portugueses e das escolas portuguesas”. Qual é prova que este senhor tem para dizer que os milhões que não foram para os hospitais e escolas se deveu ao facto de terem de ir para a TAP? Como sabe que o governo não conhece em detalhe o que se passa na TAP? Com que legitimidade o faz? E como é possível que o diga numa televisão pública que é paga por dinheiro público, o qual, seguindo a lógica do empresário, podia igualmente ser destinado aos hospitais e escolas?

Deixar que o empresário diga isto sem contraditório é indicar subliminarmente que quem redigiu o noticiário talvez não discorde da ideia. De novo, é perfeitamente legítimo que tenha essa opinião, mas nesse caso deve mudar de estação. Terá a RTP noção que muito do que o redactor ou redactora insinua sobre a TAP poderia ser dito pelos proprietários da SIC e TVI sobre… a RTP? Sabemos que há interesses legítimos, mas felizmente minoritários, em que a televisão pública seja privatizada. Os seus portadores devem ter sorrido ao ouvir esta notícia.

A segunda afirmação, talvez ainda mais aleivosa por ser transmitida em discurso indirecto, é a seguinte: “Michael O’ Leary não poupou críticas ao casamento da TAP com o ministério de Pedro Nuno Santos”. Tenha ele dito esta frase ou tenha ela sido uma reconstrução editorial (ficamos sem saber), esta afirmação contém duas insinuações que visam degradar duplamente a posição do governo. Por um lado, a ideia do casamento implica um negócio privado entre dois contratantes para fins de interesse recíproco privado. Ora, o que está aqui em causa é um interesse público que foi definido por um governo legitimamente eleito para o fazer. Tratou-se de assumir uma posição de controlo numa companhia aérea em nome do interesse nacional, à semelhança do que acontece em outros países do mundo. Para mais, foi a solução encontrada para uma empresa cuja privatização lesou de tal maneira o interesse nacional que configurou um acto de privataria. Pode discutir-se se foi uma boa decisão, mas se foi uma má decisão, a solução não é o divórcio, são as consequências eleitorais para o partido que sustentou o governo que a tomou. Por outro lado, insinua-se, o casamento não foi com o governo, foi com um ministério concreto dirigido por um dirigente político concreto com um perfil político concreto e bem conhecido. Neste passo da notícia, a demonização do governo usou como dispositivo a demonização do seu ministro mais à esquerda. Dupla demonização.

A terceira afirmação é a seguinte: “Se o governo português nos oferecesse a TAP gratuitamente, iriamos educadamente recusar. Não queremos algo que perdeu dinheiro durante 75 anos seguidos, que precisa de um resgate do Estado de cinco ou de seis em seis anos, que passa de uma crise para outra… Não, obrigado”. Esta afirmação, totalmente descontextualizada, atinge o paroxismo do insulto aos portugueses que ao longo da vida da TAP puderam unir territórios, famílias e afectos em condições que nenhuma empresa privada poderia ter assumido. Contém uma retórica de degradação da TAP que nos remete para além da manipulação da realidade própria da propaganda política de baixo calibre ético.

O patrão da Ryanair está livre de expressar as suas aleivosias, e certamente assim tem procedido noutros contextos, mas duvido que em algum outro país tenha encontrado uma caixa de ressonância tão amplificadora como na televisão pública portuguesa. A ideia que este senhor quis transmitir através da televisão paga por nós é que os portugueses vivem numa república das bananas.

Este incidente de jornalismo degradado ao nível da propaganda política talvez pudesse ser fruto de um acidente redactorial. Mas na verdade parece ser um sintoma de algo mais grave e profundo que deve merecer a atenção das entidades profissionais e públicas que regulam o jornalismo. Quem observou com atenção o modo como foram organizados e conduzidos os últimos debates presidenciais não pode ter deixado de suspeitar, com gosto ou amargura, dependendo das suas opções políticas, que poderá ter havido certo enviesamento a favor de forças políticas de direita ou mesmo de extrema-direita. Como se aproximam novos processos eleitorais, é bom que os portugueses estejam precavidos.

Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A ruralização da política


E aqui vamos. A agressividade gratuita continua, esquecendo-se os seus mentores que esse foi um chão que deu votos, por comodismo de uns e medo por parte de outros. Creio que uma larga maioria já não aprecia expressões do tipo: "Eles deveriam ser presos" (...) "Foi dar trabalho a um palerma" (...) Não queremos jovens com perguntas ou dúvidas" (...) Que o vento leve as almas que atrapalham" (...) O Funchal não precisa de vocês" (...) "Um bando de impreparados" (...) "Talibães da incompetência" (...) "Calar a voz do governo é um desrespeito à democracia, à Autonomia, à Madeira e a sua cidade"... quando se esquecem que, até 2013, nenhum partido tinha voz no Dia da Cidade!



Um dia, já tem muitos anos, uma Senhora de idade avançada, sentada à porta de casa, na zona mais alta do Funchal, após eu "vender o meu peixe eleitoral", olhou-me nos olhos e disse: "nunca diga mal dos outros". Certamente que com estas ou outras palavras tantos políticos ou sabem ou já ouviram posições semelhantes às daquela munícipe. Se eu já tinha como princípio orientador aquele pressuposto, depois de escutar a voz da razão, mais certo fiquei do que é viver em uma Democracia adulta, respeitadora dos outros, onde todos os posicionamentos devem ser considerados. Numa sociedade decente não existem uns e outros; os bons e os maus; os inteligentes e os pouco dotados. Existem, sim, pessoas, com direitos, deveres e opiniões. E a Democracia é exactamente isso, a capacidade de saber confrontar sem entrar no domínio da indecência. Até no domínio das propostas os candidatos devem medir as palavras, ou pela impossibilidade da sua concretização ou porque elas se voltam contra si próprios. Deixo o confronto verbal menor para centrar-me nas propostas.

Sobre os cursos técnicos superiores li o que disse o candidato Dr. Pedro Calado: "(...) São cursos de dois anos. Há uma grande lacuna nesse área. Há muitos jovens a procurarem as áreas técnicas com alguma especialização de ensino profissionalizante e a nível superior que, neste momento, não têm qualquer financiamento, nem atribuição de bolsas de estudo. Será um compromisso nosso e é uma das áreas que queremos muito investir". Não quero comentar alguns lapsos conceptuais (e confusos) que esta declaração contém, mas comento dois aspectos: primeiro, a responsabilidade da política educativa não pertence às autarquias; segundo, da declaração depreende-se que o Dr. Calado, candidato à presidência da Câmara Municipal do Funchal, está contra o Dr. Calado que até há poucos dias foi vice-presidente do governo da Região com a pasta das Finanças. E está contra o secretário regional da Educação que nunca propôs bolsas de estudo com tal finalidade.

É evidente que todos percebemos que o tempo é de feira das promessas. Vive-se, diariamente, um "quem dá mais" no sentido de, por faixas etárias, tentar a conquista do voto. Só que há princípios que não deveriam ser pervertidos, porque existem responsabilidades atribuídas aos governos e às autarquias, daí que considere muito pouco sensato confundir as obrigações de uns e de outros. Se as autarquias garantirem as responsabilidades que lhes incumbe no âmbito dos estabelecimentos de aprendizagem do 1º ciclo, enfim, já é muito bom. O pior é que, tendencialmente, enveredaram pelos manuais escolares e já vão na atribuição de bolsas de estudo. Só o Dr. Calado, julgo eu, deve saber que protocolos fará com o governo no sentido de ter um gigantesco saco de notas para pagar todas as promessas. 

O que os munícipes esperam da autarquia do Funchal é muito trabalho nos sectores, áreas e domínios fundamentais para o desenvolvimento e bem-estar dos cidadãos (tanto que há a dizer sobre isto!), o que implica um sentido de missão muitas vezes protocolarizado com o governo regional (a Região é tão pequena!) em total respeito pelas opções político-partidárias dos cidadãos, jamais de pessoas que chumbam orçamentos "por dá cá aquela palha", que cortam financiamentos, criticam e rebaixam malevolamente os outros, quando os próprios apresentam um currículo pouco abonatório. Fazer oposição exige profundo conhecimento das matérias, bom-senso, sentido de oportunidade e elevação discursiva. Tudo o resto é paleio.

Julgo que é tempo de trazer para a política, por um lado, a sensatez e o respeito pelos eleitores, por outro, a negação da agressividade como testemunham as frases com as quais iniciei este texto.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 21 de agosto de 2021

DIA DA CIDADE DO FUNCHAL E A DESELEGÂNCIA DO GOVERNO REGIONAL


Pode ser legítimo, mas não é aceitável. Hoje, Dia da Cidade do Funchal, o governo regional da Madeira fez publicar um suplemento de quatro páginas com dois claros objectivos: promover o seu candidato às eleições autárquicas e "demonstrar" o que faz pelo Funchal.



Ora, o exercício da política não deveria baixar a este patamar de interesses. Por um lado, porque, na sessão solene, ao contrário de tempos idos (antes de 2013), todos têm direito à palavra, desde o presidente da Assembleia Municipal (PSD) aos partidos políticos nela representados. Há palco para todos dizerem, de forma livre, o que pensam da cidade; por outro, porque se trata de um suplemento, pressuponho, pago por toda a população para clara promoção de um candidato. No mínimo não é cordial. O suplemento inclui, ainda, quatro páginas comerciais sobre a cidade do Funchal, não se percebendo a sua origem e responsabilidade.

Não me interessam os conteúdos de um e de outro espaços, apenas analiso a oportunidade no quadro das próximas eleições autárquicas. Até porque não é habitual o governo publicar nos "dias" dos outros concelhos. Não me interessa saber o que fizeram, dando inclusive a entender que se substituíram à Câmara em tantas obras. Pergunta-se: o que tem a ver a Câmara com o novo hospital, com o estudante insular ou com a reabilitação dos conjuntos habitacionais? Nada. Eu diria que não fizeram e não estão a fazer mais do que o seu dever. O auto-elogio é feio, quando, em contraponto, em causa estão muitas fragilidades políticas, fundamentalmente, todo o tipo de bloqueios ao normal funcionamento das autarquias cujas populações deram o seu voto a outras formas de conduzir a "coisa pública". O que dizer, por exemplo, dos chumbos ao orçamento e à ausência de protocolos para e execução de obras públicas?

Por outro lado, o título "O governo cumpre com a cidade do Funchal" deixa a entender que este suplemento não tem nada de inocente. Enquanto cidadão não me revejo neste tipo de política. Mais do que enunciar trabalhos executados, qualquer candidato deve apresentar propostas para o futuro. Os munícipes, no quadro do seu direito de voto, deverão estar municiados de um entendimento sobre o futuro e não sobre aspectos do passado. Podem ter uma leitura sobre o passado, e certamente têm, mas mais interessados estão em conhecer os projectos para o futuro.

Poderiam ter publicado o suplemento ontem, amanhã, para a semana, no dia de hoje parece-me absolutamente deselegante. Mas, enfim... é a política!
Ilustraçã: Google Imagens/Dnotícias

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Cabul, Saigão


Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
17/08/2021

Esta foi a guerra mais prolongada de sempre das forças norte-americanas. Foi também a primeira vez em que a Nato foi formalmente envolvida numa operação bélica, ao abrigo de uma claúsula do seu tratado e iniciando uma nova era em que a aliança militar passou a reclamar o direito a intervir em qualquer zona do globo. O fracasso de Washington e da Nato tem por isso consequências gigantescas.



A história raramente se repete e este não é por certo um dos casos em que tal se vislumbre. Seria ofensivo comparar os talibãs aos vietcong, ou o regime instaurado por Ho Chi Min com o dos herdeiro do Mulá Omar. Quarenta e seis anos depois da queda de Saigão, a fuga de Cabul, a que agora estamos a assistir, não se lhe compara nem nas circunstâncias históricas, nem nas implicações regionais. O único paralelo, e esse merece reflexão, é que estamos a assistir à segunda derrota do exército mais poderoso do mundo.

Esta foi a guerra mais prolongada de sempre das forças norte-americanas. Foi também a primeira vez em que a Nato foi formalmente envolvida numa operação bélica, ao abrigo de uma claúsula do seu tratado e iniciando uma nova era em que a aliança militar passou a reclamar o direito a intervir em qualquer zona do globo. O fracasso de Washington e da Nato tem por isso consequências gigantescas. A fiabilidade da superioridade militar norte-americana ou da sua capacidade de conduzir uma guerra com uma operação de ocupação, a qualidade da sua informação mesmo depois de controlar o país durante vinte anos, o seu planeamento estratégico, a consistência da sua articulação com os aliados regionais – tudo isso é posto em causa com a fuga de Cabul.

Poder-se-ia dizer que este destino estava escrito, mas seria uma simplificação. Quando os fundos, armas e apoios norte-americanos começaram a ser canalizados para os talibãs, tratava-se inicialmente de desestabilizar uma fronteira da URSS no contexto da guerra fria, pondo em causa a sua ocupação do país. Este jogo de curto prazo acabou por ser catastrófico, abrindo portas a que os talibãs se impusessem a outros senhores de guerra e dominassem o país, albergando Bin Laden e outros grupos do mesmo tipo. O resultado deste jogo sinistro seria sempre duvidoso, tanto mais que uma das potências militares da região, o Paquistão, era o melhor aliado de Washington mas também dos talibãs, e os financiamentos que estes recebiam da Arábia Saudita não tinham fundo. O desenlace não podia ser mais funesto. Depois do fracasso inevitável da estratégia da “construção da nação” pelas botas cardadas ao som de Washington, o Afeganistão viverá de novo sob o regime de terror de um fundamentalismo religioso e opressivo.

Neste contexto, a supremacia norte-americana no mundo sai diminuída desta tragédia de décadas. Militar e politicamente, a sua derrota deixa marcas. Outras potências, como a Rússia, que procura recuperar terreno, e a China, que usa outros instrumentos para a sua expansão e que procura evitar desastres deste tipo, aproveitarão as vagas deste fracasso, o que pode tornar uns e outros mais agressivos. O multilateralismo, se é isto, então deixa-se escoar como um discurso sem consequência.

O mundo ficou um lugar mais perigoso com a operação norte-americana apoiando os talibãs primeiro, depois ocupando o Afeganistão e agora chegando a este resultado tão paradoxal de um regresso à idade das trevas. O que é evidente é que, se o poder hegemónico age desta forma, revela que o seu tempo já passou.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Nova geração de políticas de habitação precisa-se


Por
16 Agosto 2021

Os nossos governantes não se cansam de dizer: “o que não formos capazes de executar até 2026 vai ser perdido”. É uma realidade. Mas falta indicar as condições básicas de sucesso e montar a máquina para que se execute bem o PRR e a tempo.



O meu último artigo, “O PRR e as Autarquias”, suscitou o envio de uma dezena de comentários que apontam para duas questões cruciais:

Ausência de planeamento e falta de confiança no funcionamento das Autarquias (grande morosidade de decisão) para aplicar no prazo previsto, ou seja, até 2026, os montantes do PRR em termos de Habitação, por comparação com o tempo que hoje leva, por exemplo, a aprovação de um projecto de construção ou de reabilitação numa Autarquia. Houve quem escrevesse “se o prazo de realização fosse a duplicar talvez…”;

O País não oferece uma política de qualidade no que se constrói e menos ainda um processo de controlo da mesma. Tem leis mas não monitoriza a sua aplicação. Registo uma frase que me chocou mas, por experiência própria, traduz uma situação bem real e generalizada: “Adquirir um apartamento é como uma caixa negra, nunca se sabe o que contém… Só depois, quando já não há saída sem conflito demorado… e quase sempre em perda de quem o adquire”.

O Governo e a Habitação

A dezena de comentários que penso ter sintetizado bem, cada um contando o seu caso pessoal em Autarquias de cidades, por acaso de cidades médias, admito que nas cidades maiores a realidade seja ainda mais caótica, identificam situações reais, indesmentíveis e muito generalizadas a merecerem profunda atenção e medidas urgentes bem articuladas nos princípios e execução.

Um grande caos existe. A partir daqui as pessoas questionam-se. Como vai ser possível cumprir um PRR exigente, ambicioso, e de que tanto o País precisa para se atingir um patamar habitacional recomendável?

Uma oportunidade perdida?

Ouvindo e lendo os nossos governantes reina a esperança. António Costa já por várias vezes se pronunciou sobre o tema afirmando que o mercado sozinho não resolve a Habitação e que fixar jovens é o “desafio”!

Antes do PRR, o Governo tinha avançado com linhas gerais para a política habitacional, sob a designação de “Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH)” como podemos ler no Portal da Habitação. A Resolução de Conselho de Ministros n.º 50 – A/2018, de 2 de maio, estabelece, a traços largos, o sentido estratégico, a missão e objectivos.

A Missão:

Garantir o acesso de todos a uma habitação adequada, entendida no sentido amplo de habitat e orientada para as pessoas, passando por um alargamento significativo do âmbito de beneficiários e da dimensão do parque habitacional com apoio público.

Criar as condições para que tanto a reabilitação do edificado como a reabilitação urbana passem de excepção a regra e se tornem nas formas de intervenção predominantes, tanto ao nível dos edifícios como das áreas urbanas.

Os Objectivos:

Objectivo 1: Dar resposta às famílias que vivem em situação de grave carência habitacional. Neste objectivo, se encaixa o 1.º Direito – Programa de apoio ao Acesso à Habitação.

Objectivo 2: Garantir o acesso à habitação a todos os que não têm resposta por via do mercado. Neste objectivo se integra, entre outros, o Programa do Arrendamento Acessível como a Porta 65 – Jovem.

Objectivo 3: Criar as condições para que a reabilitação seja a principal forma de intervenção ao nível do edificado e do desenvolvimento urbano. Reabilitar para Arrendar.

Objectivo 4: Promover a inclusão social e territorial e as oportunidades de escolha habitacionais.

Pedro Nuno Santos diz que o Estado falhou na Habitação e reconhece que “as Autarquias foram deixadas a sós, durante décadas”, na resolução deste direito constitucional e “hoje sentimos de forma mais dura as consequências de ausência de uma política de habitação consistente e perene para todo o território”.

O que me sugerem estas linhas avançadas…

O reconhecimento de grande negligência, ao longo dos tempos, deste direito constitucional é sempre uma atitude positiva. Mas não chega.

Algumas questões a propósito.

Primeira questão. Estas grandes linhas, estabelecidas num contexto anterior, já deveriam ter sido alvo de um trabalho de ajustamento ao PRR. Agora há muito mais disponibilidades financeiras. Por outro lado, há eleições autárquicas de cujos programas deviam constar as Estratégias Locais da Habitação para enquadramento dos acordos assinados com os Municípios, no âmbito do Programa 1º Direito.

Segunda questão. Devia ser formulada de forma clara e aos diferentes níveis a quem compete a responsabilidade de velar pela qualidade da obra, de forma que o adquirente não seja lesado.

Sobre esta questão coloquei no online a seguinte pergunta: “que Entidade monitoriza em Portugal a qualidade da Habitação em termos de construção?” Encaminharam-me para o Portal da Habitação que depois aponta para vários documentos de muitas páginas, nomeadamente um de 524 páginas sobre a História da habitação!

Resposta simples e clara à pergunta não há. Em Portugal intervêm sempre várias entidades, uma forma de não haver responsabilidade de ninguém. Muito papel, sim. Responsabilidade real…

Terceira questão. A Habitação é um primeiro Direito (constitucional) num sentido bem mais amplo que o Programa 1ºDireito. Mas este programa, se for levado a bom termo até 2026, significa uma revolução neste país. Mas por favor não me falem de “habitação social” no velho conceito – o que significa Habitação desqualificada. Um exemplo muito simples. Habitação social equivale a casas sem varandas e materiais e equipamentos de qualidade duvidosa.

Uma quarta questão. As sociedades estão em transformação. Introduza-se o espírito dessas mudanças no conceito da Nova Geração de Políticas de Habitação. Um exemplo. Hoje, a partilha e o uso da habitação comum entre o homem e a mulher é bem diferente do que era há umas dezenas de anos. Introduzam-se essas ideias nos projectos de habitação.

Tudo isto e muito mais terá de ser incorporado nos novos projectos e nas reabilitações, para além das características físicas básicas do anti-ruído, isolamento, temperatura, impermeabilidade de terraços e varandas (o que até à data funciona mal).

Os nossos governantes não se cansam de dizer: “o que não formos capazes de executar até 2026 vai ser perdido”. Essa é uma realidade. Mas falta indicar as condições básicas de sucesso e montar a máquina para que se execute bem o PRR e a tempo. Fundamental ajustar as ideias que existem ao novo contexto e construir na realidade a nova geração de políticas de habitação bem concertadas com as estratégias locais (Autarquias).

E termino com a pergunta: quem fiscaliza e garante a qualidade material da construção da Habitação?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Os talibãs em Cabul – Consummatum est. A última tragédia já começou.


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
15/08/2021

Conhecemos da História o massacre de Nanquim, com 155 mil chineses e chinesas saqueados, estuprados e mortos pela horda assassina do exército imperial japonês em 1937; a matança de 22 mil militares polacos, em Katyn, em 1940, ordenada por Stalin; o de Babi Yar, em Kiev, em 29 e 30 de setembro de 1941 com o massacre e assassínio de 90 mil judeus, homens, mulheres e crianças, pelos nazis, para lembrar apenas alguns.






Já nos nossos dias, podemos lembrar, sem as vítimas dos colonialismos, a limpeza étnica na Guerra da Bósnia (1992/1995) e a crueldade com que se mataram entre si, católicos (croatas), ortodoxos (sérvios) e muçulmanos (bósnios mais de 200 mil), e o meio milhão de vítimas provocadas por extremistas hutus contra os tutsis e hutus moderados, no Ruanda;

Ainda em curso, estão as guerras religiosas onde se cruzam motivações étnicas, raciais e a longa mão das grandes potências, a definirem a geoestratégia mundial, a saquearem os recursos naturais e a produzirem milhões de mortos e de refugiados:

Na região do Sahel, na Nigéria, o protestantismo evangélico e o Islão digladiam-se, e há a sharia para uns e milhares de mortos e dezenas de milhares de refugiados para todos; no Iraque, depois da criminosa invasão dos neo-Cruzados, Bush, Blair, Aznar e Barroso, morreram mais de 70 mil pessoas e o conflito entre xiitas e sunitas, agravou-se depois da fuga dos EUA, no fim de 2011; a infindável guerra de Israel com a Palestina ameaça um conflito internacional e mata em permanência; no Sudão, mais de quatro décadas de conflitos já produziram 1 milhão de refugiados e incontáveis mortes, diretamente pela guerra ou por inanição; na Tailândia e na Birmânia, os budistas dizimam muçulmanos; na Índia, os hindus matam muçulmanos e na Cachemira matam-se uns aos outros.

Deixei para o fim o Afeganistão onde os talibãs estão já em Cabul, com a canalha que aí se meteu a abandonar os que os apoiaram, com Biden a cumprir a promessa de Trump e a ficar cheio do sangue com que os jihadistas vingarão o assassinato de Bin Laden nos que não conseguirem fugir.

No campo de batalha tradicional, onde a paz nunca foi duradoura, onde Alexandre lutou dois séculos e meio antes da era vulgar, onde soçobraram o império britânico, a URSS e os EUA, os talibãs ameaçaram já que a luta só acabará com a sharia e, como dizia aqui um amigo meu, respondendo a quem defendia o direito de estes afegãos mandarem no seu país, “os afegãos mandam, o pior são as afegãs”.

A minha Pátria é a Liberdade, a deles é o Corão.

Curvo-me perante as mulheres, vítimas da crueldade misógina o fascismo islâmico e rumino em silêncio, impotente, o horror que sinto pela canalha que as abandonou aos canalhas que chegam.

Malditos deuses que não respeitam os Direitos Humanos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Resposta do filho de Otelo Saraiva de Carvalho aos vilipendiadores e difamadores do seu pai



Sérgio Bruno Carvalho,
in Facebook,
25/07/2021

Já todos sabem: morreu às 4:11 de hoje o meu querido Pai. Morreu o Óscar do 25 de Abril, morreu o Otelo Saraiva de Carvalho. Um Grande Homem, um Herói e... uma das vítimas da Revolução. Todos o conhecemos de uma forma ou de outra.



Eu andava há uns 15 anos a ver se o convencia a avançar com um projeto sobre o pós 25 de Abril, algo tão bem feito quanto foi a sua obra "Alvorada em Abril". Durante 15 anos essa foi a prenda de anos e de Natal que lhe pedi. Porque, daquela forma arrebatada e pormenorizada que conhecem, ele me contava e aos netos histórias que eu nunca ouvi de ninguém: Como a 25 de Novembro recolheu a casa e evitou uma guerra civil; como teve então tropas à disposição para ir para a rua e mandou-os para casa, como sequentemente nunca quis cargos nem honrarias que lhe foram atribuídos pelo Costa Gomes, Mário Soares, etc.

Esta 5ª feira falávamos sobre o processo das FP-25 e ele dizia-me "os meus Camaradas nunca acreditariam que eu alguma vez estivesse envolvido nisso! Então eu que dei instruções claras no Plano do 25 de Abril para que nunca nos virássemos contra outras unidades militares, que não fosse disparado um tiro! Eu que no 25 de Novembro evitei a guerra civil!".

Perguntei-lhe: "Lembras-te de que eu próprio tive de te perguntar, olhos nos olhos, de Pai para filho, se tinhas tido algum envolvimento? Com tudo o que se dizia nos jornais e TVs, a dúvida instalou-se em mim, teu filho... E que até me respondeste algo zangado que NUNCA, até parecia que não o conhecia!",

E depois perguntei "E alguma vez perguntaste diretamente aos teus Camaradas de armas, os outros capitães e majores do 25A? Perguntei-lhe ainda, e ao Eanes, perguntaste? Ele respondeu-me, "Eles sabem! Eles conhecem-me; o Eanes foi minha testemunha abonatória no processo..." - Mas respondi-lhe que "uma coisa é ser testemunha abonatória, outra é ter a certeza". E isso só temos olhando nos olhos de quem gostamos, com quem privámos e perguntando. Nos tribunais exerce-se o Direito, não a Justiça.


A coragem, abnegação e serviço à Pátria do meu Pai merecia muito mais de Portugal, muito mais reconhecimento.

O nome e a figura dele foram usados e abusados, e ele não se defendeu, porque acreditava sempre na generosidade dos próximos. Cobardes usaram-no, até para ganharem amnistia, e nunca vieram publicamente estabelecer a verdade. A amargura só o atingiu nos últimos anos... A revolução devora os seus filhos.

Fico profundamente triste por não se ter feito o livro "O Verão Quente do Óscar". Seria um testemunho único, essencial e necessário para a história recente do nosso País, agora que se aproximam os 50 anos da comemoração do 25 de Abril. A equipa estava pronta, faltou arrancar...

E sei que uma das principais causas de morte do meu querido Pai foi a tristeza e amargura; pelas narrativas inverdadeiras que se criaram sobre ele, e pelo falecimento da sua mulher Dina

no passado Dezembro, companheira de vida que com ele fez as 3 comissões em África, e que o amou total e devotamente mais de 50 anos. Foi a maior ferida, a fatal.

Para mim, será sempre o meu muito Querido e inesquecível Pai. Disse-lhe isso ontem ao ouvido.

Precisava de o ter tido mais comigo na minha juventude, Portugal tirou-mo.

Lembrem-se do verdadeiro Otelo, não daquele que os media criaram. Ele merece, vocês sabem que sim!

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PS: O jovem oficial Otelo, reconhecido e amado por todos os seus soldados, nunca usou balas nas suas armas durante as três comissões em África.

O major comandante revolucionário Óscar exigiu que não houvesse tiros no 25 de Abril, revolução exemplar para todo o Mundo.

O general Otelo que tinha a maioria do poder militar em Portugal retirou-se e foi para casa em 25 de Novembro, e evitou uma guerra civil.

Nas suas palavras: “A minha responsabilidade nos atentados terroristas das FP25 é zero!”

“Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. Liquidar um ente humano é para mim extremamente doloroso, não concebo que alguém o consiga fazer. E no entanto tenho este rótulo que me é dado, sobretudo pela gente de direita"

Ao contrário do que se diz, O julgamento das FP-25 terminou no dia 7 de abril de 2001, no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa. Otelo foi absolvido no processo pelo colectivo de juízes da 3ª Vara Criminal da Boa Hora.

Talvez um dia os cobardes que se aproveitaram dele e da sua imagem para serem amnistiados sejam “homenzinhos” e digam a verdade. Que tirem o capuz.



segunda-feira, 9 de agosto de 2021

A guerra civil e a história


Por
Pacheco Pereira, 
in Revista Sábado, 
05/08/2021


Em vários momentos da nossa história os portugueses mostraram como a frase salazarista sobre a bondade “dos nossos costumes” é completamente falsa. Estivemos em guerra civil durante anos no início do século XX, tivemos a nossa quota de assassinatos políticos na Monarquia e na República.



Há uma certa razão para a ideia que está na base da Wikipédia, uma enciclopédia feita a partir da lei dos grandes números - se milhares de pessoas participam na elaboração, correcção e melhoria de um determinado artigo, tenderão a corrigir-se umas às outras, até haver estabilidade no texto de uma qualquer entrada. O que acontece não comprova esta ideia ingénua, e isso é particularmente nítido nos artigos relativos às ciências humanas, embora também aconteça em matérias científicas. Se um artigo sobre a geometria de Euclides pode estabilizar-se e conhecer apenas pequenas melhorias, tendo os erros mais flagrantes, caso tenham existido, já há muito ficado para trás, o mesmo não se passa numa artigo sobre Maomé ou sobre José Sócrates. Artigos sobre a Covid, as vacinas, sobre o 5G, as alterações climáticas, não conhecem descanso e muitos deles têm de ser controlados por um esquema semelhante à peer review das enciclopédias tradicionais, ou dos artigos académicos.

A permanente introdução de teorias conspirativas, factos infundados, teorias não científicas, ataques pessoais, preconceitos políticos, politização e ideologização faz com que os artigos sobre matérias de ciências humanas - por exemplo, religiões, biografias, interpretações de eventos, sociologia, identidades nacionais, e história - estejam sempre a mudar em função do grupo de interesse que os coloca ou os altera, e têm de ser controlados para se manter um núcleo factual. E mesmo assim a maioria dos artigos nesta área são inaceitáveis pela investigação e devem implicar todos os cuidados. Na maioria dos cursos em universidades sérias é proibido usar a Wikipédia como fonte de um qualquer trabalho escolar ou de investigação.

Se isto é assim com a Wikipédia, imaginem o que a tribalização acelerada dos nossos dias conduz disciplinas como a História, que se tornam palco de uma guerra civil interpretativa ao serviço da propaganda política, e do conflito político e ideológico. Este processo tem vindo a dominar qualquer debate sobre factos históricos em Portugal, muitas vezes com a colaboração de autores e de académicos que não têm pejo de usar os seus trabalhos para legitimar posições políticas que precisam de novas formas de revisionismo para se legitimarem quando o seu lado tem uma "má" história.

Os temas do espelho

Os temas do espelho do tribalismo histórico são a ditadura, a guerra colonial, o 25 de Abril, a construção da democracia, o comunismo e o socialismo. Nalguns casos a guerra começa logo nos nomes, onde está ditadura coloque-se Estado Novo, onde está guerra colonial coloque-se "guerra do ultramar". O 25 de Abril é o "golpe" do 25 de Abril, ou a "Abrilada". A democracia é cada vez mais tratada como o regime da corrupção, e o comunismo e socialismo são-no sob a forma de "anti".

Na verdade, nada disto é novo, se caminharmos para o início do século XIX, nas lutas entre absolutistas e liberais, existia a mesma dicotomia e a mesma posse de nomes. Mas aí a guerra não era apenas verbal, incluía a luta armada, terminologia actual, ou seja, as pessoas matavam-se umas às outras, nalguns casos com requintes de crueldade. Felizmente ainda não estamos assim, mas já estivemos mais longe. Exagero? Espero bem que sim, mas em vários momentos da nossa história os portugueses mostraram como a frase salazarista sobre a bondade "dos nossos costumes" é completamente falsa.

Estivemos em guerra civil durante anos no início do século XX, tivemos a nossa quota de assassinatos políticos na Monarquia e na República, andámos aos tiros uns aos outros nas incursões monárquicas, a implantação da ditadura foi dura e feroz, depois houve o Tarrafal, violências e torturas sistemáticas, uma guerra colonial com milhares de mortos, terrorismo esporádico à direita e à esquerda, até que tudo assentou para já. De facto, no meio disto tudo o 25 de Abril, mesmo com o PREC, foi manso.

Os milionários sobem ao espaço

E muita gente critica-os por gastarem assim o seu dinheiro, mas eu tenho genuína inveja da forma como o gastaram. Subir até a altitudes quase sem gravidade, flutuar no espaço, experimentar novos engenhos espaciais, ver a Terra como um planeta do alto, tudo isto eu sempre desejei fazer. Mais: ir à Lua ou a Marte, também. Eles certamente também o desejam. Nenhum de nós o vai fazer, mas com pena. Haverá tempos em que passear pelo nosso sistema solar sem ser através de máquinas, poderá ser trivial, mas ainda há muito a fazer com máquinas, que com a actual tecnologia é a forma mais sensata e razoável e barata e eficaz. Voos tripulados têm um pequeno papel e poderão ser uma distracção com pouco valor científico. Enfim…

Tenho, no entanto, um prémio de consolação, o meu nome foi junto com muitos outros num disco duro na sonda Dawn para o grande asteróide Vesta. Já não está mal…

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A melancolia de esquerda revisitada



Por estatuadesal
António Guerreiro, 
in Público, 
06/08/2021


Como se viu recentemente, pela morte de Otelo Saraiva de Carvalho, a cultura de esquerda pode integrar hoje o “romantismo”, na sua “visão do mundo”. As aspas, num caso e noutro, têm funções diferentes: na palavra “romantismo”, elas servem para dizer que não se trata do movimento literário, na sua definição e delimitação históricas, mas de uma atitude, um modo de pensar, sentir e agir que atravessa os tempos e torna-se uma categoria do pensamento. Quanto a “visão do mundo”, as aspas servem para dizer que é uma expressão problemática e uma inevitável citação. Por mais naturalizada que esteja, por muito vulgar que se tenha tornado o seu uso, ela pertence a uma tradição escondida. Na verdade, quando analisada de perto, ela revela-se como a tradução de uma palavra forjada em data e por autor incertos (Kant? Schelling? Os estudiosos da sua história semântica divergem na atribuição) mas que irradiou com vigor precisamente no contexto histórico do romantismo alemão: Weltanschauung. A curva semântica desta palavra, como mostrou Victor Klemperer no seu famoso estudo sobre a língua do Terceiro Reich, vai da configuração intuitiva do mundo à ideologia. Na fraseologia nazi, Weltanschauung substituiu “Filosofia”.



A atenção às palavras — às palavras do poder e ao poder das palavras — é um gesto crítico que deveria anteceder todos os outros porque é pelas palavras que começa a confiscação. Assim, prestando a devida atenção à frase inicial deste texto, percebemos que, levando a análise a um certo limite, é relativamente fácil definir uma “cultura de direita” (precisamente porque ela tende a cristalizar-se num vocabulário clássico), mas é difícil definir uma “cultura de esquerda”, não só porque a esquerda se declina no plural, mas porque a partir do momento em que se cristaliza num vocabulário, por conseguinte numa cultura, começa a trair-se a ela própria e a abandonar o seu núcleo crítico. E quanto ao “romantismo” — e, ainda mais, o romantismo revolucionário — que pensamento potencial, que relação com o devir, pode ele conter? Deve-se a um filósofo franco-brasileiro, filho de judeus da Europa Central, chamado Michael Löwy, uma análise e interpretação deste romantismo transhistórico que o subtrai à ideologia reaccionária ou mesmo fascista (a identificação do romantismo com o nazismo, ou o pré-nazismo, é uma questão importante), redescobrindo nele um lado revolucionário — progressista e não conservador, para utilizarmos o esquema que serviu para dividir o universo político. Neste sentido, o romantismo não é uma reacção ao Iluminismo.

Mas a revolta dos românticos, que concedia um papel importante à imaginação, está impregnada de melancolia. Daí a ideia de uma melancolia de esquerda, de que se ocupou o historiador italiano Enzo Traverso num livro de 2016, cuja edição original, publicada em França, se chama precisamente Mélancolie de gauche. Traverso atribui a essa melancolia “a força de uma tradição escondida” desde o século XIX. A sua análise é muito interessante e faz-nos perceber coisas pouco evidentes. Mas é possível verificar que essa tradição está cada vez menos escondida, já pouco tem de romântica e abandonou as suas potencialidade: são apenas cristalizações mitológicas, ficções fechadas, palavras semanticamente capturadas.

Difícil é hoje descobrir aquilo que sempre definiu a tarefa da esquerda: a construção de plataformas de onde se vislumbrem horizontes de expectativa, possibilidades de transformação que contradigam o regime do “presentismo” e os respectivos cenários da fatalidade.

O que é, afinal, a melancolia? É um processo psicológico que, levado ao extremo, subtrai o melancólico a toda a prova da realidade e o faz habitar entre fantasmas. Na teoria freudiana, a melancolia opõe-se ao luto (que é uma perda real que pode ser superada através de um “trabalho” — o “trabalho do luto”), hipertrofiando uma perda imaginária e entrando numa estratégia fúnebre. A melancolia tem o efeito de negação do mundo exterior, que é narcisicamente introjectado como objecto de amor. A esta alucinada cena onírica dos fantasmas devemos grandes obras literárias e artísticas, assim como importantes construções culturais. Mas a “força da tradição escondida”, que Traverso viu, na esteira de Walter Benjamin, na melancolia de esquerda arrisca-se hoje a ser um uso ruminante da memória que não tem nada do potencial que Benjamin descobriu na “rememoração”.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O PRR e as Autarquias

 

Por
03 Agosto 2021


A Habitação é uma das alavancas da recuperação económica do país pelos múltiplos impactos que tem em diversos sectores da Economia. Como tal, funciona de barómetro da “saúde económica” do país.



1. Estamos a caminho das eleições autárquicas de 26 de Setembro e a sermos “inundados” com a propaganda dos candidatos, na sua maioria, de má qualidade.

Sophia de Mello Breyner, na Cantata da Paz, alertou-nos: “Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar”.

Não poderemos ignorar nem esquecer as promessas ou a falta delas dos candidatos que, de todas as formas, estão a procurar entrar em nós, mas, em especial, de quem, nos próximos tempos, irá gerir os destinos dos territórios onde nos situaremos, para lhes exigir cumprimento.

2. Trago o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para tema das eleições autárquicas e não a discussão do Plano em si, porque essa já não tem sentido. O PRR existe, está aprovado e dotado financeiramente com 16,6 mil milhões de euros, sendo 13,9 mil em subvenções a fundo perdido e 2,7 mil milhões de empréstimos em condições especiais.

O Plano é este. Podia ser outro, com certeza. Mas é este. Então, resta executá-lo.

O Plano tem margem para a criatividade dos actores chamados a intervir na sua concretização (e são muitos e de várias frentes), aos quais devemos exigir competência, empenho, rigor, programação, garra e velocidade de execução.

3. O primeiro-ministro António Costa, numa das suas múltiplas sessões públicas em que falou do PRR, penso na apresentação em Coimbra em Abril passado, enfatizou: o sucesso dependerá da execução descentralizada, a realizar através de parcerias com um conjunto diversificado de actores. Entre eles, destacou de sobremaneira as Autarquias, relevando dois pontos:

As autarquias vão ter um papel crucial na execução de várias componentes do PRR, por exemplo na descarbonização dos transportes públicos, em certos investimentos sociais como os cuidados de saúde primários, em estreita ligação com outros actores, como as misericórdias, mutualidades, IPSS, sem esquecer as áreas económicas de localização empresarial, estas, sobretudo no interior do País.

E, em especial, o financiamento a custo zero no acesso à Habitação, designadamente através do Programa 1º Direito a executar de forma contratualizada.

O 1º Direito é um Programa de Apoio ao Acesso à Habitação criado pelo Decreto-Lei nº 37/2018 de 4 de Junho, definido no artigo 2º como “programa de apoio público à promoção de soluções habitáveis para pessoas que vivem em condições indignas e que não dispõem da capacidade financeira para suportar o custo de acesso a uma habitação adequada”.

4. O 1.º Direito é, sem dúvida, um programa básico, necessário, do maior relevo, mas a Habitação requer muito mais.

Há as pessoas vulneráveis, visíveis em termos habitacionais. Basta um simples passeio por qualquer aglomerado populacional e essa situação salta à vista, bem mais grave nas cidades maiores. Para essas, vai o 1º Direito.

Mas atenção aos “vulneráveis invisíveis”! São muitos, abrangem vastas camadas da população, como estratos da classe média, muita juventude em princípio de carreira ou de vida, certamente muitos mais que as 26.000 famílias identificadas de carecem de habitação minimamente condigna.


A Habitação no centro da recuperação da economia do País


5. A Habitação é uma das alavancas da recuperação económica do país pelos múltiplos impactos que tem em diversos sectores da Economia (serviços de arquitectura e engenharia, madeira, mobiliário, cerâmica, vidro, cimento, tintas, produtos siderúrgicos, produtos metálicos, electrodomésticos, têxtil, gestão de condomínios, banca, seguros, e serviços como telecomunicações, água, energia, etc.).

A Habitação é um segmento da Construção importante, “mexe” com a economia no seu todo. Funciona de barómetro da “saúde económica” do país.

Mas, há a juntar àquele estrato populacional sem condições mínimas de habitação, impõe-se um investimento de monta para que todo o parque existente no País e nas Autarquias atinja uma dimensão que proporcione a colocação no mercado de casas de renda acessível a toda a população. E acessível tem um significado preciso. Uma percentagem padrão a pagar de acordo com o rendimento de cada um.

Os meus receios …

6. Vamos ter, nos termos do PRR, um montante volumoso de fundos públicos a fundo perdido a aplicar na Habitação, um montante da ordem de 3 mil milhões de euros e ainda uma outra rubrica significativa para a eficiência energética de edifícios de 610 milhões de euros, aplicando-se na Habitação cerca de metade.

Sabendo-se que a Habitação em Portugal tem limitações graves de raiz em termos de construção (temperatura e isolamento), desconheço medidas governamentais, tendentes a melhorar estas deficiências. Também não vi abordada a questão de preparar a Habitação para o problema em crescimento do fenómeno do teletrabalho que o Covid-19 tanto pôs a nu, bem como da flexibilização do uso da casa a impor-se cada vez mais.

A Habitação não é apenas um local onde “dormir”. Deverá responder a condições de bem estar, de trabalho, de estudo, pelo menos para aquelas camadas da população que não terão capacidade para dispor de escritório próprio.

E agora os problemas de enquadramento

7. A Constituição consagra o direito fundamental de acesso à Habitação dos portugueses. Há cerca de dois anos, a AR produziu uma lei de bases, cuja regulamentação ainda não viu a luz do dia.

E as questões de fundo que se colocam na aplicação destes dinheiros públicos na Habitação necessitam de uma lei enquadradora onde o papel do Estado e das Autarquias não deixe dúvidas.

O Estado central e as Autarquias devem ter uma política pública que oriente a aplicação destas verbas, ou seja, o seu papel não pode cingir-se a um simples agilizar do mercado. O Estado deve ter sob a sua orientação o domínio das peças todas, para impedir que estas verbas ainda vão parar ao mercado especulativo de Habitação. As empresas terão necessariamente um papel muito importante na qualidade de produtores da habitação e de fornecedores de material e equipamento.

Voltando às Autarquias

8. As Autarquias neste próximo mandato terão ao seu dispor fundos reforçados para levar a cabo uma política de Habitação no respectivo concelho.

Um dos indicadores interessantes para se avaliar a campanha passa, sem dúvida, pelas ideias articuladas que as listas candidatas apresentam neste domínio.

Para além do grande contributo para o país, uma estratégia habitacional para o concelho traduzir-se-á na melhoria das condições de vida dos habitantes.

Se tudo se desenvolver de forma conjugada, o parque habitacional do país e por município ficará muito Mais rico e modernizado em 2026 de forma a servir as reais necessidades do País. Será um grande passo em frente, mas que não pode parar. Melhorar a Habitação é um processo dinâmico.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 1 de agosto de 2021

Que triste campeonato da ignomínia na direita portuguesa


Por
Francisco Louçã,
in Expresso Diário, 
27/07/2021

Ramalho Eanes foi adversário de Otelo em quase todos os dias do pós-25 de Abril. Prendeu-o após o 25 de novembro. Representou contra ele, nas eleições presidenciais de 1976, o campo político que veio a ganhar a hegemonia política no nosso país. E, no entanto, foi a voz mais digna da direita portuguesa no momento da morte do seu adversário e amigo, mostrando o que os aproximava e o que os separava, sublinhando o papel histórico do organizador da ação militar que derrubou a ditadura e não deixando de criticar a sua ação posterior. Há nesta atitude uma grandeza e um equilíbrio que merece respeito.



O contraste entre Eanes e a cacofonia das direitas sobre Otelo não podia ser mais evidente. Enquanto Ventura e Melo disputam encaloradamente o campeonato da ignomínia, rastejando em ajustes de contas em que se fantasiam de heróis em batalhas que não disputaram, Eanes, que unificou a direita de então e o PS nas escolhas que definiriam o regime, teve uma palavra certa, reconhecendo a Otelo um lugar histórico que é só dele. A diferença entre uma vingança parola e a justiça que não quer falsificar o passado é monumental.

No entanto, no atual campeonato mesquinho entre as extremas-direitas há mais do que uma reveladora falta de carácter, ou até de uma saudade da ditadura que agora é exibida como uma medalha. Embora a tentativa de usar a morte de uma figura pública para certificar uma tese ou para criar um espantalho ideológico não tenha sido inventada por Ventura ou por Melo, ou pelos que correm atrás deles, as invectivas usadas contra Otelo, ou o silêncio de algumas figuras de que se esperaria o mínimo de dignidade, dizem muito sobre o que é hoje essa direita. Ventura tocou a rebate para explicar como aplicaria a sua pena de prisão perpétua (ou pena de morte?), sem sequer se dar conta da cobardia que constitui nunca o ter dito enquanto Otelo era vivo. É um valentão que insulta um morto, desafiando quem não lhe pode responder. Melo, que repete sempre Ventura em versão fidalga, explicou candidamente que Otelo só conseguiu ser um chefe militar “por um dia” porque a ditadura lhe ensinou o mando com a paciência dos santos. É a isto que estão reduzidas as vozes mais gritantes da direita, a disputar a escala da injúria, se não mesmo a da falta de imaginação. Os outros, a pretexto de não haver um consenso histórico, como se alguma vez tal coisa aparecesse no cimo de uma azinheira, preferem esquecer o assunto: Rio ficou por umas palavras de circunstância, Chicão não faço ideia do que tenha dito.

Que o passado está sempre em disputa, disso não restam dúvidas. Que os vencedores procuram freneticamente fabricar a memória e justificar-se, tão pouco há nessa constatação alguma surpresa. Talvez por isso a dignidade de Eanes, ao reconhecer o papel histórico de Otelo, contrasta com o modo como as direitas de hoje se agitaram para fazer da própria morte do capitão de Abril uma nova vítima. Em tempo de política da raiva, olhar para trás para domesticar a revolução de Abril é uma prioritária missão cultural da direita que quer fazer a ponte com o regime repressivo e colonial. O que nessas manobras está em causa não é a aventura criminosa das FP25 (ou sequer compará-las com outras bandas políticas, como se o paralelo fosse justificativo para uns ou para outros) ou as frases soltas de um período em que a intriga se fazia no Procópio e as ruas estavam cheias de gente, de ilusões e de paixões; o que verdadeiramente importa é que o povo se revoltou contra uma ditadura e a sua burguesia pindérica e essa falta não pode ser perdoada por quem olha para o futuro como a promessa da ressurreição desse Velho Portugal. Homenagear Otelo, ou reconhecer o facto da sua coragem determinante na revolução fundadora da vida democrática, é por isso mesmo a única forma de respeitar, viver e conviver agora com a liberdade.