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segunda-feira, 30 de junho de 2025

A doce cartinha de Rutte ao «querido Donald»



Por
José Goulão,
in AbrilAbril,
27/06/2025, 
Revisão da Estátua




O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.


Em boa hora o rei da NATO escolheu o cidadão holandês Mark Rutte como secretário-geral da Aliança, para substituir o sombrio norueguês Stoltenberg.

A Europa, a América e o «mundo livre» só ficaram a ganhar com a troca. Rutte trouxe cor e floreados ao cargo, numa NATO que já estava saturada do discurso burocrático, insípido, inspirado na linguagem de caserna do falcão e trabalhista norueguês.

Rutte não é nada disso. Ele veio demonstrar, uma vez empossado como funcionário número 1 da aliança, que o cargo pode ser desempenhado de maneira muito diferente e sentida. Rutte explica a arte de prestar vassalagem com alegria, emoção e gratidão. Ensina-nos a rastejar com estilo e elegância.

Isto é, demonstra que pode fazer-se o que sempre se fez na sua posição, quando se dirige ao bom padrinho das Américas, com sensibilidade e até com ternura, sem temores, nem dores de barriga. Ir de joelhos a Washington é duro, mas não há recompensa e glória sem sangue e sacrifício.

Algo que ninguém «se atreveria a fazer»

A história poderia passar despercebida, devido à modéstia do ex-primeiro-ministro holandês, para quem a pátria é a NATO e deus é americano. No entanto, o verdadeiro chefe da aliança, o mega-empresário da construção civil e presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, não aceitou que tão grande manifestação de afecto para com a sua pessoa, que o carteiro lhe entregou, ficasse no recato das excelsas submissões.

Como é habitual, Donald Trump recorreu às redes sociais para que o maior número de pessoas, não só da América e da Europa, mas de todo o mundo, ficassem a conhecer a devoção de Mark Rutte. A privacidade da correspondência é coisa caída em desuso, como nos ensinaram os Estados Unidos, e o seu presidente não hesitou em divulgar a cartinha que tinha acabado de receber do secretário-geral da NATO. E que este fez o favor de escrever em nome dos países da organização. Estejam os leitores descansados, porque todos ficámos representados em tão oportuno preito de vassalagem.

Não pode dizer-se que Trump tenha ficado impressionado com Rutte da mesma maneira que se sentiu tocado quando foi apresentado a al-Julani, o terrorista que sequestrou a presidência da Síria: «jovem, atraente e viril», apreciou, na ocasião.

À primeira vista percebe-se que Rutte não é muito dotado destes atributos. Mas sobram-lhe ternura, emoção e dedicação para tentar enternecer o coração do chefe.

Numa época em que as comunicações pessoais se baseiam na escrita telegráfica, desinteressante e depurada dos emails, e nas mensagens cifradas dos SMS, Rutte optou pelo tradicional, retro e romântico método da cartinha. Os seus talentos epistolares, hoje em dia apenas ao alcance dos predestinados, os que cultivam o digital, mas não esqueceram o analógico, chegam a ser comoventes.

«Senhor Presidente, querido Donald», começa a missiva. «Felicitações e agradecimentos pela tua acção decisiva no Irão, algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer». E mais escreveu: «Donald conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para América, a Europa e o mundo».

Dizem os cidadãos mais desconfiados, aqueles que desdenham, por vício, da opinião única, definidora do lado dos bons e da razão, que o feito «extraordinário» do presidente norte-americano, ao estabelecer um cessar-fogo com o Irão, se deveu, de maneira prosaica, ao facto de ter percebido, muito depressa, que iria entrar numa guerra nada curta e conveniente, com resultados bastante incertos.

Além disso, não necessitou de recolher muitas informações para deduzir, em três tempos, que o seu amigo e aliado, o carrasco Benjamin Netanyahu, incapaz de se ver livre do Hamas e do Hezbollah, estava outra vez em maus lençóis. Meteu-se com o tubarão, julgando que era sardinha. Nem o Irão se rendia, nem o regime caía. Pelo contrário, os golpes vibrados no território e na arrogância de Israel, nada tinham de superficiais.

Os mais prestigiados analistas militares de Israel foram, aliás, muito rápidos a lançar apelos lancinantes ao governo e às forças armadas para se apressarem a alcançar um cessar-fogo. Cedo perceberam que mais esta aventura militar em que o sionismo se meteu, transformada em guerra de atrito, poderia não acabar bem. O célebre «escudo de ferro» antiaéreo, afinal é de latão. Além disso, as bases do Irão parecem mais fortes do que se supunha. E Trump ficou aterrado com as primeiras respostas do mercado de hidrocarbonetos aos rumores sobre o encerramento do Estreito de Ormuz. Que se acabe a guerra, mandou o imperador, embora saibamos que o assunto não ficará por aqui. Como é indispensável dizer-se, falta sustentabilidade à suspensão do conflito.

«A Europa irá pagar-te EM GRANDE»

Os combates pararam, Trump recolhe os louros, Netanyahu canta vitória e Mark Rutte, em nosso nome, não lhes pode estar mais grato. «Conseguiu o que NENHUM presidente fez em décadas», escreveu na missiva. Um pormenor de bom aluno: Rutte não se esqueceu de realçar palavras completas em maiúsculas, como costuma escrever o chefe nas suas mensagens – um sinal da esmerada educação que o distingue.

A gratidão do secretário-geral não tem fim, e ele faz questão de manifestá-la com promessas assumidas em nome de todos nós. «A Europa irá pagar-te em GRANDE, como deve, essa será a tua vitória».

Ai vai pagar, vai, porque os nossos governantes amam os negócios da guerra e dispõem, como querem, das contas bancárias dos contribuintes. Vai pagar EM MUITO GRANDE, até. Cada um de nós irá desembolsar a respectiva fracção de pelo menos 15 mil milhões de euros do cheque que Montenegro, sem precisar de nos consultar, já começou a passar. Investir na morte é lucro garantido, dir-se-á.

«São trocos», apressou-se a dizer aquela que poderá ser considerada, entre nós, a decana, ou mesmo a bastonária da ordem do comentariado. E aproveitou para zurzir o mesquinho chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, por ainda ter a dignidade de pôr o seu país a salvo dos tais 5% do PIB, destinados a pagar «a vitória de Trump». E que este, desprendido como é, utilizará para nos abastecer com fantásticas máquinas de morte, compradas a preços de novas nos saldos dos refugos da indústria imperial de armamento. Tudo isso é indispensável para a nossa «defesa», para a nossa «segurança», diz a NATO. Lembrem-se das advertências do perspicaz Almirante vindo do fundo dos mares: temos de nos precaver, porque os bárbaros russos estão a chegar e, se não capricharmos, quando cá estiverem já será tarde. Se assim é, 5% deve ser pouco. Mais valia perder o amor a 10%, ou 15%, liquidar de vez a educação pública, o Serviço Nacional de Saúde e outras coisas desnecessárias quando sobre nós paira, como sempre, a «ameaça russa», agora reforçada com o «perigo amarelo».

Sánchez atreve-se a não contribuir com os sagrados 5%, «mas vai pagar o dobro», assegura o imperador Trump, o fiscal do funcionamento da democracia liberal. Para Sanchez e os espanhóis aprenderem que têm de sofrer pesadas consequências por teimarem no capricho de cultivar velharias, como a dignidade e a coluna vertebral.

A Espanha «é terrível», «é irritante», acusou Trump. Não se desafia assim a «ordem baseada em regras». Sánchez foi até mais longe na heresia, e atreveu-se a dizer que os gastos feitos pela Espanha para a NATO já são suficientes. O país está seguro e, ao mesmo tempo, pretende preservar o Estado social. «ESTADO SOCIAL?» Quem se permite falar nisso, nestes tempos da democracia neoliberal? Maus exemplos como o do chefe do governo espanhol não podem ficar impunes. Trump, o seu serviçal Rutte, os governos da NATO e a direita apátrida espanhola – que não descansa enquanto não derrubar o executivo –, não o permitirão.

Os Estados Unidos de Trump não chegam a gastar 4% para a NATO, mas isso deverá compreender-se. O papel de polícia do mundo exige despesas muito mais elevadas em tarefas que o país executa sozinho, ao desempenhar a sua missão filantrópica global «defensiva», para o bem de todos nós.

Com delicada sensibilidade, Mark Rutte esforça-se para que Trump não desampare a Europa e a NATO, o que deve ler-se nas entrelinhas da sua epístola. Ele compreende que, para «fazer a América grande de novo», o presidente terá de assumir opções susceptíveis de obrigar o Velho Continente a ficar mais por sua conta, o que há muito desaprendeu.

O «comprometimento» custa 5%

Rutte sabe também que, para o actual presidente dos Estados Unidos, a utilidade da Europa é a mesma que um rolo de papel higiénico. Compete-lhe limpar os dejectos que os Estados Unidos deixaram na Ucrânia desde 2014, e já não é pouco.

Ciente da orfandade que ameaça este lado de cá do Atlântico, Rutte engendrou uma barganha e, para isso, alimenta a esperança de que a velha vassalagem das colónias europeias ainda seja capaz de polir o ego do imperador, talvez amansar a fera.

O próprio secretário-geral da NATO desvendou um pouco a sua ideia, antes da cimeira da organização, em Haia. «Trump está comprometido com a NATO», disse ele, quando todos sabemos que, pelo menos até agora, o que o presidente dos Estados Unidos tem dito e feito é em sentido contrário.

O trunfo na manga de Rutte é o de garantir, em troca desse «comprometimento», os 5% do PIB de todos os Estados membros, para financiar o orçamento da aliança e aliviar, assim, a carga norte-americana. De maneira a que tudo regresse aos bons velhos tempos da absoluta tutela colonial. Isto é: os países da NATO pagarão cerca de três vezes mais caro pelas tropas, os mísseis, as bombas e o (decadente) know-how militar dos Estados Unidos. Ser uma colónia está a tornar-se uma comodidade cada vez mais dispendiosa.

Acreditamos que, ainda a bordo do «Air Force One», de regresso a Washington, Donald Trump teve novas ideias e tomou decisões contrárias aos seus «compromissos» assumidos em Haia. É assim que gere o império: hoje sim, amanhã não, depois de amanhã talvez. E todos marchamos, bem comportados (com excepção de Sánchez, a ovelha ronhosa), enjoados, por um arriscado caminho sinuoso e que vai sendo desbravado à beira de um abismo, que pode ser existencial.

Rutte pode escrever-lhe cartinhas delicodoces para lhe polir a vaidade. Costa pode oferecer-lhe, com vénias tão deslumbradas como basbaques, a camisola de Cristiano Ronaldo. Trump precisa de adulação como de ar para respirar, gosta de graxa, mas despreza os graxistas. O seu «comprometimento» com a NATO será o mesmo de antes da cimeira de Haia, mas assegurou que os súbditos serão generosos no momento de liquidar o dízimo imperial. Essa foi a sua vitória.

O que fica destes episódios humilhantes é a certeza de que na União Europeia, na NATO, nos nossos países, somos governados por indivíduos e indivíduas mesquinhos, traiçoeiros e sem carácter. Que rastejam perante o padrinho desta máfia sem limites, mas são uns valentes quando se trata de desprezar as pessoas e os seus povos.

A sabujice de Rutte não é uma característica pessoal. Afecta todos os comparsas da Europa e da NATO, com a já citada excepção. Os outros talvez não tenham, porém, os seus dotes epistolares para exercitar em cartas a que o chefe dará o destino habitual das coisas inúteis e desprezíveis.Salvé democracia liberal.

Salvé democracia liberal.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Homilia do funeral do Padre Martins Júnior - Em dia desigual soubemos do último poema «igual» do Padre Martins Júnior

 

Morreu como desejava. Igual à vida que levou. Morreu de pé como as árvores como comumente dizemos. Uma vida agarrada nas mãos com o pensamento em constante ebulição. No fim, feita a história, a sua história ao jeito do seu pensar e querer, abandonou o corpo e entrou na imensidão cósmica da existência, como defendeu o teólogo Teilhard de Chardin.



Parece coisa pouco. Mas não! É muito num tempo onde quem não abdica de si para se colocar aos pés e mãos dos dominadores parece que não sobrevive e que não tem futuro.

Permitam-me destacar a seguinte coincidência e curiosidade. Em 2020, a 6 de junho, há precisamente 5 anos, sucumbiu ao mundo da morte o Padre Mário Tavares Figueira, o seu indefetível amigo e apoiante, o homem mais humano e humanizante que encontrei em toda a minha vida.

Agora com a diferença de 6 dias e 5 anos, 12 de junho de 2025, o corpo do Padre Martins Júnior, desceu também a esse mesmo mundo inferior que é a morte.

Os dias 6 e 12

Vou fazer uma coisa muito querida ao Padre Martins e que ele frequentemente fazia, relacionando números e datas, com as suas respetivas coincidências e significados.

Dizem os ensinamentos que «O número 6 é frequentemente associado a caraterísticas como amor incondicional, compaixão e responsabilidade. Ele simboliza o lar, a família e a comunidade, enfatizando a importância das relações interpessoais saudáveis e do bem-estar coletivo. Além disso, o número 6 representa a harmonia, a fidelidade e a solidariedade, sendo um símbolo de apoio e nutrição para os outros» ou ainda, «destino, estabilidade, confiança e prestabilidade».

Serve este significado para ambas as figuras que aqui homenageamos combalidos pela tristeza humana, mas com o nosso ser interior em júbilo por termos sido bafejados pela sorte de termos feito parte da amizade e da história destas duas figuras, tão únicas e distintas bem longe do rebanho de tantos iguais.

O significado do nº 12, dia da partida do Padre Martins, adianta seis vezes mais em tudo que há na força das energias do amor, que geralmente influencia os que possuem o dom de amar tudo e todos.

12 meses tem o ano. Jesus teve 12 Apóstolos e Apóstolas. Os ponteiros do relógio passam duas vezes por dia sobre o nº 12. E o dia 12 de junho de 1514, foi o dia da criação da nossa Diocese do Funchal (quem quiser tirar ilações, pois que as tire, porque dá para fazer pensar a coincidência da morte do Padre Martins acontecer precisamente neste dia 12 de junho de 2025).


Enfim, o 6 e o 12, das meias dúzias e das dúzias, fazem parte permanentemente do nosso quotidiano. São a vida de todos nós todos os dias, foram a vida intensa e completa da vida do Padre Martins Júnior.

Perdoem-me esta incursão pelos números, mas serviu-me para aceitar e serenar o meu interior de mais esta perda que veio de chofre como se fosse um murro duro no estâmago.

Esta hora não é, não pode ser, para celebrar a morte. Mas a vida que derramou pela beira pelo Padre Martins Júnior, nos seus vários contornos: religioso como padre e pároco, político, cultural e intervenção social.

Vou destacar três vertentes que me inspiram e pelas quais mais nutro admiração: a liberdade, a cultura e o desalinhamento. Só para destoar de tantos que colocam a obediência e o apagamento de si mesmos à frente destes valores.

A liberdade

A palavra «transubstanciação», que aparece no romance «O Canto do Melro», é o nome dado na Eucaristia ao momento da consagração do Pão e do Vinho em cada Eucaristia que celebramos todos. Esta definição contida no livro definiu toda a ação e obra da investigadora Raquel Varela, acerca do Padre Martins Júnior. Na página 248, resposta dada pelo Ricardo, o amigo admirador da obra do padre Martins Júnior e que é também o narrador do romance, diz: «Aprendi aqui na Ribeira Seca. A transubstanciação das pessoas em pessoas, o reencontro com a própria humanidade, as pessoas a transubstanciarem-se em pessoas. Poderem ser finalmente o que eram, “o rio desaguou, porra!”».


Este é o epicentro da sua vida e da sua história. Este é o olho do furacão chamado Padre Martins Júnior e toda a história da comunidade paroquial da Ribeira Seca.

Nada disto seria possível sem um espírito livre, uma veneração quase «fanática» pela liberdade, a sua e dos outros.

O grande estadista inglês Winston Churchill dizia: «Todas as grandes coisas são simples. E muitas podem ser expressas em uma só palavra: liberdade; justiça; honra; dever; piedade; esperança». Estes valores cantam-se poeticamente e vivem-se convictamente, mesmo que por eles se derrame sangue, suor e lágrimas.

Cito um pensador: «Nem todos podem tirar um curso superior. Mas todos podem ter respeito, alta escala de valores e as qualidades de espírito que são a verdadeira riqueza de qualquer pessoa» disse o autor Alfred Montapert.

O Padre Martins Júnior bem expressou com vida e pela palavra poética esta realidade, com «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».

Mas também a sua dimensão profética fez jus ao pensador aqui citado, quando se viu e sentiu a sua profunda incursão profética e sabedoria nas suas riquíssimas homilias que podem ser testemunhadas pelos milhares de pessoas que as saborearam, mas hoje esfaimam-se delas pela falta que fazem e pelo vazio que deixaram.

Um espírito de ideias e pensamento próprio. Uma opção clara pela humanização, a libertação e pelo despertar das mentes que encontrou subjugadas ao espírito do tempo e à conceção completamente descabida de uma coisa chamada «vontade de Deus» para justificar injustiças, opressões e pobrezas miseráveis. Não deu tréguas à «tirania das ficções sociais» como denunciou o nosso querido poeta Fernando Pessoa, em «O Barqueiro Anarquista».
A liberdade foi a sua luz. A liberdade foi a sua primeira causa, como ele sublinhou em 2023 quando deixou a paroquialidade da Ribeira Seca: «Deus respeita a liberdade das pessoas. Depois cada qual tem de aguentar as consequências».


A luta pela liberdade centrou-a na sua comunidade concreta, Ribeira Seca, mas extravasou para o Concelho de Machico, para a Madeira inteira, para o país inteiro, e no dizer da sua biógrafa e amiga Raquel Varela, para o mundo.

A ninguém passou despercebido. Para o bem, que foram muitos a reterem e a saborearem o seu valor. E para poucos, que não o souberam entender e se ficaram no casulo do comodismo de não pensar e ver mais além da curta mediocridade da vida cercada em dogmas, «ficções sociais», no pensamento único e nos condicionamentos das pretensas facilidades que os silêncios estratégicos e o comodismo conferem.

O âmbito cultura

O Padre Martins Júnior era um homem culto. Não era apenas um literato, embevecido pela literalice vaidosa que dá prémios e rende muita fortuna monetária. Era um sábio com uma memória prodigiosa, que citava pensamentos e poemas inteiros de cor com as suas respetivas referências autorais e fontes. Não precisou de gravar nomes na lista do telefone, bastavam-lhe os números apenas que os descobria com a mestria de relacionar datas, acontecimentos e eventos para descobrir os seus respetivos donos.

A música foi umas das suas paixões, que não guardou para si, mas que a transmitiu ao povo, compondo e musicando a poesia do povo, para que o povo dedilhasse e cantasse o seu saber, o seu querer e o seu poder. Não há em Portugal, melhor exemplo, de figura que tenha feito mais e melhor pelo Evangelho inculturado, feito carne de povo na expressão mais rica que é o viver em comunidade experienciado no terreno como dinamismo democrático e sentido evangélico.


Morre o Padre Martins para este mundo nos tempos em que nada se pensa, em que o desrespeito pelo bem comum é motivo de orgulho, a natureza explorada até à saciedade é ato nobre e é «atrasado mental» que não o fizer ou defender a criação. E recrudesce como silvado a indiferença, a descriminação, a aceção de pessoas, o desrespeito pelo trabalho digno e todas as formas de violência que nos torna doentes e desumanos.

O Padre Martins é uma memória, um apelo e um grito contra toda esta desumanidade, esta alienação e todas as injustiças que ainda escurecem os nossos espíritos.

É um lamento que as suas capacidades tão criativas e tão entregues aos outros, não tenham sido reconhecidas e aproveitadas por quem devia reconhecer o seu altíssimo valor. Antes prevaleceu a intriga, a calúnia, maledicência e todas as guerras inúteis que se assistiu na história dos últimos 50 anos da Comunidade Ribeira Seca.

O desalinhamento

Tal como os pagãos dos tempos antigos que, por medo, lançavam os seus primogénitos para o fogo aos pés da estátua de Baal, também nós acreditamos que nos devemos sacrificar para ser agradável ao deus minúsculo. Incapazes de compreender a grandeza, a beleza e o amor infinito de Deus, adoramos assim um ídolo criado apenas por cada um (ou pelas tais «ficções sociais» de Fernando Pessoa) para alienar e não para libertar. Assim sendo, uma vida espiritual adulta e vivificante consiste em resistir e em recusar realizar qualquer prática religiosa cujo fundamento único seja o medo de um deus «deste circo ambulante», refiro-me ao poema da pag. 104 de «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».

Morreu de pé e até na hora da morte mostrou mais uma vez que não se encaixava dentro da normalidade como foi sempre a sua vida. Sublinha-se mais esta coerência, o seu inconformismo e a sua postura de resistência face às convenções políticas, sociais e religiosas.

Na vida de qualquer padre, mais tarde ou mais cedo, se verá confrontado entre dois caminhos, um que diz «Caminho da instituição madre igreja» e o outro «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Terá que fazer a escolha. Muitos seguem o primeiro, porque é mais fácil, pode dar mais prestígio e ajuda a fazer carreira nas hierarquias, mas perde o caminho da existência e da autonomia. Perde o pensamento próprio, perde a vida própria, numa palavra perde a liberdade, porque deixa de ser o que é para ser o que os outros pretendam que seja. O Deus verdadeiro não quer isto, «vomita» claramente esta tragédia.


O padre Martins, mesmo com condições intelectuais mais que sobejas para seguir o primeiro caminho, recusou-o pensada e deliberadamente. Esteve sempre no caminho que diz: «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Como ele várias vezes me confidenciou «a carne, os ossos e o sangue do padre é o povo».

Como é normal daqui vieram os beneficiados, os apoiantes e os admiradores, que foram muitos, milhares de pessoas, várias gerações. Mas também vieram os detratores com o vocabulário de «comunista», «vermelho», «desalinhado», «excomungado» e «suspenso» («ad divinis»)… Como se fosse possível um Deus, sendo Pai/Mãe, alguma vez suspendesse ou dispensasse um filho... Digam-me onde está esse deus para eu dizer-lhe que sou ateu olhos nos olhos.

Só aqui se compreende como é possível manter-se inquebrável durante tantos anos e só pode ser motivo de admiração tal fidelidade às causas, às ideias e ao povo. Os cravos que ostentamos são o símbolo cimeiro daquilo que aqui proferimos e o sinal de que o Padre Martins Júnior, parafraseando a frase que tanto gostava e tantas vezes pronunciou em tantos funerais que realizou dos seus amados paroquianos da Ribeira Seca: «Morrer é só não ser visto, é fazer a curva da estrada».

Conclusão

Termino com o que ele escreveu no seu último post de 18 de março de 2025, no seu riquíssimo e bem escrito «Senso y Consenso», pela ocasião dos «40 anos de libertação». Escreveu, «Faz hoje 40 anos! Foi uma madrugada de abril em março quase primaveril. A Páscoa antecipada» e continuou, «A religião, tantas vezes usada e abusada pelos oligarcas, foi nessa altura um esteio libertador, tendo em conta o êxodo dos hebreus escravizados após 40 anos pelo faraó do Egipto. E no Novo Testamento, a palavra do senador Gamaliel no Sinédrio, cujos juízes se preparavam para mandar matar os apóstolos. Disse Gamaliel:

“Não vale a pena, porque se a mensagem desses homens não vem de Deus, ela vai consumir-se por si mesma. Mas se vem de Deus, não há poder que a destrua”». E continuou, «O povo da Ribeira Seca venceu, porque teve resistência, autodomínio e vigilância sem termo».


Agora continuemos e sigamos o seu exemplo. A sua memória inspira-nos e frutificará das profundezas deste mundo ainda tão falho de humanidade.

Daqui e para aí onde estiver no lugar da plenitude vai o meu sentido obrigado padre Martins Júnior pelo seu exemplo, a sua amizade, por tudo o que me ensinou e por tudo o que me inspirou a ver mais longe para lá das medíocres circunstâncias voláteis do pulsar inconstante daqueles que se limitam a fazer da vida uma redoma, servida por pacotes de fé e de ideias baseadas em «ficções sociais», que alimentam a vã glória de mandar e de dominar.

Não somos uma terra de «abençoados indígenas», como considerou, quiçá desencantado, o nosso gigante poeta Herberto Hélder. Somos uma terra de paz com gente dentro, sedenta do melhor para si e para os outros. Esse sonho e direito não pode ser gorado por nada nem por ninguém, como ensinou com a sua entrega o Padre Martins Júnior.

A vida neste mundo do Padre José Martins Júnior valeu a pena. Muitos têm afirmado de muitas e variadas formas estes dias, precisamente, esse «valeu a pena». Por isso, parafraseando o pensador e filósofo Emanuel Kant que diz, «Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena». Obrigado e até um dia no festim da eternidade.

22 de junho de 2025
José Luís Rodrigues

domingo, 22 de junho de 2025

PADRE JOSÉ MARTINS JÚNIOR - FUNERAL


Esta manhã assisti, na Ribeira Seca, naquele adro que ele tantas vezes olhou e cruzou, à cerimónia do Adeus ao Padre José Martins Júnior, recentemente falecido.

Ali estiveram os seus Amigos, o Povo da Ribeira Seca, de Machico, da Madeira, para o mais sincero e profundo agradecimento a um Homem que marcou a Vida de todos quantos com ele se cruzaram, enquanto padre, professor e Homem de e da cultura.

Foi extremamente comovente. Deixou-nos, fisicamente, mas jamais será esquecido. Trata-se de uma referência que todos perdemos.

Partilho aqui algumas imagens que registei e que me ficarão como memória de um Padre de quem tive o privilégio de ser AMIGO.

Porque

 

No dia do seu funeral, deixo aqui a melhor caracterização do Padre José Martins Júnior. Trata-se de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Porque os outros se mascaram mas tu não 
Porque os outros usam a virtude 
Para comprar o que não tem perdão. 
Porque os outros têm medo mas tu não. 
Porque os outros são os túmulos caiados 
Onde germina calada a podridão. 
Porque os outros se calam mas tu não. 

Porque os outros se compram e se vendem 
E os seus gestos dão sempre dividendo. 
Porque os outros são hábeis mas tu não.
 
Porque os outros vão à sombra dos abrigos 
E tu vais de mãos dadas com os perigos. 
Porque os outros calculam mas tu não.



Francisco Fanhais, na apresentação do livro O Canto do Melro - A vida do Padre José Martins Júnior, de Raquel Varela, 2024. Nesse dia (16.11.2024) José Martins Júnior foi aniversariante - 86 anos.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Christine Lagarde em sonho por breves instantes “incita” à revolta contra o dólar

 

Por

Mas, alguém imaginaria que a Presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, viesse sugerir publicamente, numa intervenção, proferida em Berlim (22/05), “o papel da Europa num mundo fragmentado”, que o EURO poderá substituir o DOLAR, como pilar principal de reserva mundial!




Poderá o dólar norte-americano cair do trono que ocupa no xadrez mundial, desde a Segunda Grande Guerra, como moeda de referência, ou seja, perder pujança no comércio internacional, nas reservas dos bancos centrais e nas transações financeiras mundiais?!

O tema anda a fazer correr muita tinta, sobretudo, desde que Donald Trump chegou à Casa Branca pela segunda vez e começou a disparar políticas erráticas e atrabiliárias, desde as tarifas aduaneiras disparatadas, a deportação de imigrantes e a proibição de novos fluxos migratórios, os cortes de financiamento à Ciência e à Saúde (OMS)… que estão a gerar uma contestação interna explosiva. É Donald Trump, em modo de corrida, ao isolacionismo!

Mas, alguém imaginaria que a Presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, viesse sugerir publicamente, numa intervenção, proferida em Berlim (22/05), “o papel da Europa num mundo fragmentado”, que o EURO poderá substituir o DOLAR, como pilar principal de reserva mundial!

Sem dúvida, uma declaração algo inesperada, impensável de se ouvir alguns meses antes, só possível agora, porque a confiança no dólar americano entrou em crise por tempo incerto, devido a um Presidente em estado de frequente contrachoque com o tradicional imobilismo da Europa e com o mundo em geral. Só a China respondendo pronta e firme, com o condicionamento das exportações de terras raras, de que os EUA precisam, “como de pão para a boca”, fez vergar Trump, levando-o a solicitar negociações que tiveram lugar, em Londres, nos dias 9 e 10 deste mês e, com resultados, pelo menos para já.

O pensamento de Christine Lagarde, em certa medida, está em linha com o agir dos BRICS que, desde a sua constituição, sempre se bateram por uma reconfiguração das relações do poder monetário, a nível mundial. Para os BRICS, a perda de poder do dólar no Mundo é determinante, é, sem dúvida, instrumental na prossecução de um maior equilíbrio futuro entre as economias, pois conduzirá a uma melhor e mais adequada gestão do Poder nas Instituições com maior influência na governança do Mundo, a começar pela ONU (independente da qualidade do seu real poder).

Pugnar pelo Multilateralismo é para os BRICS assunto decisivo.

O discurso de Christine Lagarde, com um certo quê de novidade, dificilmente passará de um sonho, pois teria de mexer em muitos domínios complexos. De facto, encetar e prosseguir este caminho, (de revolta contra o dólar), defrontar-se-ia com múltiplas reservas ao nível da União Europeia e também no exterior, tanto mais num ambiente de tendência global da política para a direita radical que atravessa o Planeta.

Não creio que seja uma ideia com realização prática por inúmeras razões, a primeira das quais, como muitos analistas o dizem, o Euro estagnou há décadas. A formatação das suas Instituições Financeiras ficou inacabada e os governos dos principais países-membros não têm mostrado entusiasmo em avançar.

Arrancar com o Euro para uma posição mais forte no panorama mundial implicaria uma série de medidas sólidas em várias frentes, medidas que dessem folego e confiança no Euro, embora a moeda única já tenha um peso em torno dos 20% das reservas internacionais contra 58% do dólar. É a segunda moeda mundial dispondo, assim, de uma boa base de descolagem.

Com o exterior várias medidas se impunham, designadamente acordos com outros países ou blocos económicos, onde não poderiam deixar de estar a China, os BRICS, o Reino Unido, o Canadá, …

Mas dentro da UE, as transformações a implementar não teriam menor grau de dificuldade como a prática de financiamentos conjuntos (mutualização), a que países como a Alemanha são claramente avessos e a criação do mercado europeu de capitais, hoje, ainda muito fragmentado.

As palavras do discurso-as mudanças em curso criam a abertura “para um momento global do euro” -são aceitáveis, mas não funcionam sem medidas de cimentação da confiança no Euro. Tudo isto levaria tempo e a ultrapassagem de muitos escolhos.

Há analistas que pensam e escrevem que a equivocada guerra comercial do presidente Trump contra o resto do Mundo pode marcar o princípio do fim, tanto do seu domínio político quanto do seu movimento MAGA. Mas para isso, referem, será necessário que a Alemanha e a Europa coordenassem uma poderosa resposta internacional (ALLnews, Finanças suíças, 2/05/2025). Esta mesma revista assinala que o maior erro da Comissão Europeia foi sinalizar a sua disposição de ceder a Trump. Apaziguar Trump é o mesmo que acelerar o colapso do sistema multilateral do comércio mundial. A resposta da União Europeia é decisiva, neste contexto, para determinar quem prevalece: se Trump, se o Multilateralismo da China (que, neste caso, é acompanhada por muitos). Os líderes europeus estão perante uma escolha clara: ou defendem o multilateralismo ou ficam do lado de Trump. Não há outra opção, alerta a revista, ligada às Finanças Suíças.

A China está a avançar oficialmente com um plano para promover o seu próprio sistema internacional de pagamentos cujo centro nevrálgico é em Xangai. É aí que está sediada a rede CIPS, alternativa directa ao sistema do Ocidente SWIFT. Com este sistema, Pequim visa fortalecer o uso do Yuan nas trocas transfronteiriças e apoiar as suas empresas no exterior. É evidente que se trata de um sistema, por enquanto, de dimensão reduzida, com um longo caminho a percorrer.

Com este sistema procura a China fundamentalmente ir minando a desintermediação do dólar, primeiro no âmbito dos BRICS e depois nos países do Sul global.

É evidente que se se criassem entendimentos entre a UE e a China em oposição a TRUMP, como preconiza a revista da Banca Suíça, seria fácil retirar muita da interferência que os EUA detêm e, montar, de facto, o Multilateralismo com vários polos económicos e a concorrer entre si e, por outro lado, reverter certas instituições como a Organização Mundial do Comércio que se encontra em estado comatoso por interesse dos EUA, situação até anterior a Trump, que também não tem interesse em a reanimar. Como está, permite-lhe manobrar à margem das regras da OMC.

A concluir, não creio que esta linha potencial de cooperação tenha sucesso. Penso mesmo que as palavras de Christine Lagarde não passaram de um impulso momentâneo. E é pena.

Apesar das divergências que, nesta e em muitas outras matérias, há entre os BRICS, creio que mais facilmente serão eles os pais da desdolarização. Há troca de ideias e tomadas de decisão por entendimento e não por imposição. Com os BRICS e a China tenho confiança que o Dólar venha a perder “o privilégio especial” que, ainda, detém, como referiu Giscard d’Estaing, em 1962 e, assim, deixe de ser instrumento de domínio do Mundo.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O homem que apressou a história acreditando na Igreja que nasce do povo


Por
Edgar Silva*
13/06/2025
7Margens

Multiplicaram-se, desde ontem, dia da sua passagem, as reações da parte de tanta gente que reconhecia no padre José Martins Júnior aquele que apressa a caminhada para o Homem de amanhã, para a cidade outra. E foi esse compromisso que formou o seu rosto, a sua identidade, a sua opção fundamental. Com o povo. Com cada povo.



Quer com o povo de Machico ou com o povo do Porto Santo, para onde foi nomeado para ser pároco; quer com o povo maconde, na província de Cabo Delgado, a norte de Moçambique, onde esteve como capelão militar, onde aprendeu a língua e as tradições, para aí mergulhar nos cantares, naquela cultura de África; ou na forma como se inseriu na Ribeira Seca, e resistiu a tantas investidas por parte dos senhorios desta terra; nessas e em tantas outras etapas históricas, o padre Martins deixou-se nortear pelos “rubros clamores de amanhã”.

O padre Martins Júnior marcou a História pela forma como desenvolveu a trajetória da Igreja que nasce do povo. Mais do que para o povo, o padre Martins faz parte dessa memória viva da Igreja a partir do povo. A Igreja – Povo, no que comporta de compromisso com o mundo e com a História. A Igreja – Povo, que aprende a conviver diariamente com seus problemas, com suas lutas, com suas dores e sofrimentos.

O padre Martins assumiu “o povo” como princípio hermenêutico determinante da compreensão da sociedade e da História. Povo: com uma história comum; um estilo de vida; uma cultura; e um projeto de bem comum compartilhado. E em cada lugar da sua itinerância, o padre Martins exerceu uma invulgar capacidade de encontro com o povo. Com cada povo semeou a palavra, disponibilizou os seus saberes, a poesia, a música, as suas competências. Participou nas lutas dos povos e na promoção de sua integridade humana.

Talvez por isso, mas não só, o padre Martins fez parte de sectores do catolicismo que poderemos classificar como de um “catolicismo atuante”. Esses católicos teimavam em querer a transformação da sociedade, a resolução das desigualdades, a edificação do ‘Homem Novo’. Daquela intervenção militante resultavam exigências de natureza política, ou de alteração do regime político.


O padre Martins fez parte de uma memória acerca do modo de viver consequentemente a fé cristã e de um tempo em que no cristianismo uma teologia política exigia uma teologia da revolução. Fez parte de um contexto histórico contemporâneo em que fé e revolução confluíam na vida de diversos sectores do catolicismo.


Através do crescente entendimento de que os católicos deveriam tomar partido pela humanidade dos oprimidos, pela justiça social, pela paz, pela democracia, o padre Martins Júnior esteve na vanguarda de tantas iniciativas e desenvolveu uma linguagem da espiritualidade de presença e compromisso social e político na sociedade.

Em cada um desses processos em que esteve envolvido, o padre Martins Júnior dá-nos conta de uma linha de compromisso social e político dos católicos e, na revolução portuguesa nascida a 25 de Abril de 1974, evidencia um marcante contributo dos católicos nos processos de transformação do país ao longo das últimas décadas.

Essa memória nunca se apagará!

*Edgar Silva é madeirense, doutorado em História, com a tese Vendaval de utopias. Do catolicismo social ao compromisso político em Portugal (1965-1976). Os católicos da Revolução e o PCP e é coordenador do Partido Comunista Português – Madeira.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Valeu a Pena!

 

Valeu a Pena ter sido seu Amigo. "Nesta história os tempos confundem-se, não acompanham nem o Sol nem a Lua, nem os meses do calendário. Na Ribeira Seca, em dezanove meses avançaram-se quinhentos anos; os pobres decidiram, os analfabetos falaram, os surdos tocaram e os ricos esconderam-se; os professores ensinaram, os médicos curaram e um padre foi cristão como Cristo que mandou que nos amássemos uns aos outros". Do livro O Canto do Melro - A vida do Padre José Martins Júnior, de Raquel Varela, Bertrand Editora, 2024.



Valeu a Pena as lutas incompreendidas pelo poder político;

Valeu a Pena ter estado ao lado do Povo e não ao lado do carreirismo religioso;

Valeu a Pena, como ele salientou: que "Vida sem ideal é noite sem Lua, Onde a alma sem norte, nas vagas da incerteza, flutua".

Valeu a Pena calcorrear os caminhos e veredas da tristeza para lhes levar a Mensagem;

Valeu a Pena ter sido líder de um enclave em terra de senhorios e de amargurante pobreza;

Valeu a Pena ter sido atirado para as periferias, primeiro, Porto Santo, depois, Ribeira Seca, pela nobre missão de "abrir os olhos e educar". "(...) A Senhora do Amparo / Já está muito magoada / De ver os paroquianos / Beber água da levada (...) - Cancioneiro da Ribeira Seca.

Valeu a Pena ter sido Capelão em Cabo Delgado, Moçambique, convivendo com a morte e a injustiça;

Valeu a Pena ter sido insubmisso qb perante a hierarquia militar em função do sofrimento que via e das teses que defendiam;

Valeu a Pena a vergonhosa suspensão "ad divinis", durante mais de quatro décadas, imposta por um bispo que contrariou a Palavra por amor ao poder político;

Valeu a Pena, por paradoxal que pareça, o cerco à Igreja da Ribeira Seca;

Valeu a Pena a sua inteligente luta contra os bispos Teodoro e Carrilho; 

Valeu a Pena não ter sido "produto transacionável";

Valeu a Pena não confessar ditos "pecados", antes pedir aos irmãos que, junto de alegados ofendidos, estabelecessem a concórdia;

Valeu a Pena ter sido Amigo de Frei Bento Domingues, do Padre Doutor Anselmo Borges, do Padre Mário Tavares, do Padre José Luís Rodrigues e de músicos e cantores como são os casos de Francisco Fanhais, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco e tantos outros que escreveram e cantaram a vida com amor e dignidade; 

Valeu a Pena ter sido professor semeando a esperança;

Valeu a Pena, em 1962, frente aos governadores das ilhas, no púlpito da Sé Catedral, ter dito que "os maiores criminosos não estão nas cadeias. Jesus não precisa de adoradores que venham ajoelhar-se em fofas almofadas vermelhas";

Valeu a Pena ter fundado grupos folclóricos, incentivando a música, o canto e o teatro;

Valeu a Pena ter sido contra os "Azeredos", "Santanas" e de outros que a vida confrontou;

Valeu a Pena ter sido autarca e o deputado da denúncia contextualizada com a Palavra;

Valeu a Pena ter sido humilde porque, por aí, foi grande;

Valeu a Pena, porque "tudo o que no Padre Martins Júnior - de Machico - é passado nos convoca para o futuro" - Do livro O Canto do Melro;


Valeu a Pena, o nosso regular encontro nos restaurantes de Machico ou na minha casa, passando horas a perceber o Homem, o exercício da política e a Palavra;

Valeu a Pena ter celebrado, em Barcelos, os nossos cinquenta anos de casamento;

Valeu a Pena o passeio que demos e o almoço que desfrutámos, naquela aldeia de xisto da Pena, na Serra de S. Macário, onde vivem 13 pessoas, onde o fotografei e para sempre ficará na minha memória;

Valeu a Pena ter apresentado o meu livro sobre Educação.

Valeu a Pena nossa AMIZADE.

Uma enorme referência que fisicamente morre, mas que vive em nós.

Um disse-me: "(...) quando eu morrer desejo ter uma conversa com Jesus e Maria". Espero que já tenha acontecido.

Um abraço solidário a toda a sua família.

sábado, 31 de maio de 2025

Marcelo PR, o primeiro “telepopulista” a sério em Portugal


Por
Alfredo Barroso,
in Facebook,
30/05/2025
estatuadesal



O "beijoqueiro" em acção... Marcelo PR, o primeiro “telepopulista” a sério em Portugal e criador do caos onde irrompeu outro bem mais perigoso…


O 'telepopulismo” irrompeu a toda a força em Portugal com a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República. Ao pôr em prática aquilo a que chamou «política de afetos» – à falta de melhor criatividade, e de um módico de consistência e de substância políticas –, Marcelo PR tinha absoluta necessidade das televisões para explicar o que era, e para praticar, essa «política de afetos».

Consistia esta, essencialmente, em beijar, abraçar e em tirar ele próprio retratos (as famosas “selfies”) a todo o «bicho careta» que se acercasse dele, a quem passava a mão p’lo pelo e transmitia palavras, expressões teatrais, gestos de carinho, simpatia e solidariedade – e sobretudo de caridade beata – por aí se ficando, assim cumprida plenamente, aliás, superficialmente, a função de mera propaganda política e de satisfação da sua vaidade pessoal.

Marcelo PR fez durar a coisa o tempo suficiente para ser reeleito, ainda que com resultados bem aquém do que ele esperava obter. Mas o que mais o incomodou na primeira vez que decidiu dissolver a Assembleia da República, foi a maioria absoluta obtida pelo PS de António Costa, que lhe retirava o protagonismo. Por isso ameaçou logo – caso inédito e totalmente abusivo – que tal maioria só duraria enquanto Costa fosse Primeiro-ministro, ameaça que “caiu como sopa no mel” quando uma matrona PGR, para esquecer, aceitou referir que Costa também vinha ao caso, ainda que “à vol d’oiseau”, numa “investigação” em curso do Ministério Público.

Depois de balbuciar alguns protestos, dizendo que se demitia, mas que o PR devia convidar outro socialista pra o substituir, Costa “raspou-se” com grande ligeireza, para ir constituir em Bruxelas um triunvirato com duas fanáticas belicistas que muitíssimo mal têm feito à União Europeia, mergulhada numa guerra indireta contra a Federação Russa, na qual está empenhado um “clown”, o ucraniano Volodymyr Zelensky, político narcisista e oportunista altamente suspeito de corrupção (ver “Pandora Papers”) e grande protetor dos grupos armados neonazis entretanto incorporados no seu exército.

Cá pela pátria ficou Marcelo PR a “protagonizar”, como ele tanto gosta e já tardava. Mas bem depressa se pôs a dissolver, por mais duas vezes, a Assembleia da República, pondo o seu partido, o PPD-PSD, no poder, todavia disfarçado de AD e com um governo minoritário, e ao mesmo tempo dando um enorme impulso a um partido de extrema-direita, o CHEGA, que logrou obter 50 deputados em 2024, e 60 deputados em 2025, sob a liderança de um “telepopulista”, André Ventura, sem dúvida muito mais eficaz politicamente, e bastante mais perigoso, do que Marcelo PR...

quinta-feira, 22 de maio de 2025

O discurso da infâmia


Por
Nuno Morna, 
in Facebook, 19/05/2025), 
Revisão da Estátua

Num domingo à noite, febril, deitado de lado, com o coração aos gritos e a televisão ligada no volume errado.



Ontem à noite, o país sentou-se a ver o circo. Um circo de uma só figura, de um homem só, de um espetáculo monológico onde o palhaço também era domador, diretor, macaco amestrado, leão faminto e criança perdida que grita da plateia para que olhem para ele, só para ele, sempre para ele.

André Ventura falou. Falou como quem cospe. Falou como quem bate. Falou como quem quer ser amado mas só sabe odiar. E parte do país, a parte do país fatigada de esperar por Deus, ouviu. Ouviu como se ouve o padre numa missa a que se vai por obrigação, como se ouve a mulher que já não se ama ou o pai que já não se respeita. Ouviu com raiva, com cansaço, com culpa.

Disse que acabara o bipartidarismo. Disse-o como quem anuncia a queda de Roma, o fim dos tempos, a libertação do povo escolhido. E ali estava ele, o Moisés do populismo, de microfone à frente e a azia no bolso como quem esconde a vergonha, prometendo terra prometida a quem nunca teve jardim. Disse que a história tinha mudado, que agora o país era outro, um país dele, feito por ele, para ele, com ele ao leme e os outros calados, de joelhos, em silêncio. Ventura quer o país em silêncio. O país de joelhos. O país em medo. Ventura não quer governar. Ventura quer mandar. E o que há de mais grave é que há quem deseje ser mandado. Há quem precise.

O Chega não é um partido. É uma carência. Um sintoma. É o vómito do país que nunca curou a sua tristeza. Que finge que é alegre no São João, no Santo António, nas bifanas do domingo, nos copos do sábado, nas sardinhas do Junho. Mas que sangra por dentro. Que odeia por dentro. Que tem raiva de si, de tudo, de todos.

Ventura oferece isso: um inimigo. Um sentido. Um alvo. Se há um culpado, já não sou eu. Já não é o meu fracasso, o meu salário, a minha solidão. É o cigano, o negro, o comunista, o assistente social, o jornalista, o juiz, o reformado, o artista, o pobre, o estranho. Ventura dá um nome à frustração. E isso consola. E isso vicia. E isso mata.

O seu discurso foi uma lista de cadáveres simbólicos. “Matei o partido de Álvaro Cunhal”, disse, como se estivesse a caçar fantasmas no sótão. “Varreram o Bloco de Esquerda do mapa”, gritou, com o orgulho de quem limpa sangue do chão, e chama a isso arrumação.
Para Ventura, política é isso: uma limpeza. Uma desinfeção. Uma purga. Como se o país estivesse sujo e só ele, com a sua verdade puríssima, o pudesse lavar. E lavar com quê? Com insultos. Com medo. Com castigos. Com prisões perpétuas. Com castrações químicas. Com multas. Com violência.


E depois, claro, o momento cómico, se a comédia ainda tivesse graça. Atacou as sondagens. Sempre as sondagens. Sempre o mesmo coro: que o queriam calar, que o queriam derrubar, que lhe mentem, que lhe fazem armadilhas. Ventura não percebe que as pessoas votaram no seu partido com vergonha de o fazer, de o dizer às sondagens.

Ventura é o miúdo que jogava mal à bola e que ninguém quis na equipa e passou o resto da vida a sonhar ser capitão. E agora que lhe deram um apito, anda a expulsar todos os que correram mais depressa do que ele. Ventura não acredita em instituições. Acredita em si. Ventura não acredita em regras. Acredita no seu instinto. Ventura não acredita no país. Acredita no seu espelho.

E depois aquela frase. Aquela frase que soa a taverna com vinho barato e gritaria ao fundo. “A mama vai mesmo acabar”. Disse-o com o orgulho de quem faz justiça, mas com o tom de quem está habituado a mentir e a justificar-se com o cansaço. A mama vai acabar. A mama, quer dizer, o Estado. Os apoios. Os direitos. A solidariedade. Os serviços. A dignidade.

Ventura quer um país onde só os fortes sobrevivem. Onde quem não consegue, morre. Onde quem chora, se cala. Onde quem precisa, se esconde. Porque, para ele, a vida é uma luta de cães. E ele é o dono da trela.

Mas Ventura não quer que a mama acabe. Ventura quer ser ele a mamar. Quer o lugar do outro. Quer mandar nos subsídios. Quer mandar na televisão. Quer mandar na escola. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. E o país, esse país magoado, esse país velho que já não acredita em ninguém, esse país que se esqueceu como é que se luta, esse país votou nele como quem diz: “Toma, faz tu melhor”. E ele fará. Mas não será melhor. Será só mais triste. Mais cruel. Mais pequeno.

O que me espanta não é Ventura. Ventura é uma personagem de novela das seis: previsível, mal escrita, exagerada. O que me espanta é o silêncio. O silêncio dos outros. O silêncio dos bons. O silêncio dos sérios. Dos que deviam estar ali, naquele exato momento, a dizer: basta. Mas estavam calados. Com medo de perder votos. Com medo de serem insultados. Com medo de não parecerem “populares”. E assim se mata uma democracia: não com balas. Com medos. Com cobardias. Com silêncios.

Este discurso, o de 18 de maio, de ontem, não foi um discurso. Foi uma bofetada. Foi uma noite de gritos num quarto fechado. Foi o início de qualquer coisa escura. E se não gritarmos agora, se não dissermos agora, alto e claro, que isto não é normal, que isto não é aceitável, que isto não é o país que queremos, amanhã já não poderemos falar.

E depois? Depois virá o silêncio. O grande silêncio. O silêncio dos cemitérios. E Ventura sorrirá. Porque não há nada mais cómodo para quem quer mandar do que um povo sem voz. E nós estamos perigosamente perto disso. Perto de calar. Perto de baixar a cabeça. Perto de desistir.

E quando isso acontecer, será tarde. Será sempre tarde.

Post scriptum: 
Estarei sempre do outro lado da barricada. Com todos os que são, efetivamente, pessoas de bem, não os que se dizem, mas os que o demonstram, com os que amam a liberdade sem adjetivos e a democracia sem asteriscos. No combate a todos os radicalismos, venham eles mascarados de justiça ou de ordem, de povo ou de nação.

No combate aos que aparecem para dividir, para semear o ódio, para apagar a pluralidade, para transformar o medo em política. No combate, sempre, à intolerância, a intolerância dos gritos e a dos silêncios cúmplices. Quero viver com a noção de que "Combati o bom combate", (2 Timóteo 4:7). Da minha parte, não esperem outra coisa. Nem agora, nem nunca.