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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

FMI e Banco Mundial a caminho da “Trumpização”

 

Por

No que toca à OMC, Trump continuou o “trabalho” de Joe Biden, mantendo a organização paralisada. Isto constitui uma “janela de oportunidades” para os EUA, pois permite à administração não cumprir regras fundamentais e processuais de funcionamento do comércio internacional.



1. Roubei a ideia deste título ao artigo do “Le Monde” de 15/10/2025: [Le FMI et la Banque mondiale sur la voie de la “trumpisation”, avec l’abandon des questions climatiques et sociétales].

Porém, interrogando a Inteligência Artificial (IA), a visão desta “trumpização” em movimento aparece distorcida, pois o texto IA tenta dizer-nos que FMI e Banco Mundial são Instituições que Trump não tentou “dominar” ou das quais não tentou sair, contradizendo a campanha eleitoral em que essa afirmação foi por demais proferida. (Atenção ao uso acrítico desta fonte de informação!)

Na Presidência Trump2, iniciada em 20 de Janeiro de 2025, raras são as Instituições Internacionais em que Trump, através sobretudo daqueles seus aparecimentos televisivos a “fantasiar” ordens executivas, não tenha tentado ou dito intervir. Anunciou sair do acordo de Paris sobre o clima, da UNESCO, da OMS (organização mundial da saúde), paralisou a OMC (organização mundial do comércio), não nomeando técnicos para lugares-chave para que a Instituição saísse da letargia a que se acomodou. Neste aspecto concreto, limitou-se a ser um continuador do “trabalho” de Joe Biden, mantendo a OMC paralisada pelas mesmas razões, o que, para os Estados Unidos, constitui uma “janela de oportunidades”, porque lhe permite não cumprir regras fundamentais e processuais de funcionamento do comércio internacional, estabelecidas há muito.

Aliás, a este propósito, o think-tank Bruegel, (Bruxelas), num dos seus últimos estudos, refere que Trump veio agravar ainda mais a situação porque: [abalou os alicerces do sistema multilateral de comércio ao implementar tarifas unilaterais sobre importações da maioria dos seus parceiros e ao assinar “acordos” com alguns deles. É impossível conciliar legalmente essas ações com a letra e o espírito da Organização Mundial do Comércio], levando o Bruegel a questionar-se: “a Organização Mundial do Comércio poderá (assim) sobreviver?”

Mas, contrariando a IA, o FMI e Banco Mundial, durante a campanha eleitoral, estiveram sob a ameaça de saída dos Estados Unidos, duas Instituições de Bretton Woods, formatadas, (com esse tratado de 1944, ainda com a Segunda Guerra a decorrer), para governar a economia mundial, permitindo aos EUA serem os “Senhores do Mundo”, nomeadamente pela imposição do dólar americano como moeda padrão no mundo dos negócios internacionais, apesar de, nas negociações de então, se terem defrontado com a oposição do Reino Unido e do seu economista assessor J.M.Keynes, sem resultado algum, pelo magro peso político, uma saída muito enfraquecida da guerra.

E Scott Bessent, investidor e gestor de fundos hedge, nomeado por Trump Secretário de Estado Americano do Tesouro (2025), continuou, por algum tempo, a insistir que estas duas instituições aplicam recursos e tempo em finalidades pouco próprias como o clima e temas sociais e, não, certamente, a financiar investimentos na área dos combustíveis fósseis.

Dan Katz, nº 2 do FMI

2. Agora, Donald Trump não necessita de continuar a acenar com a saída dos EUA do FMI e BM, pois certamente, dentro de algum tempo, poderá impor-lhes as orientações financeiras que entender, pois acaba de nomear Dan Katz, membro do seu governo (antes Chefe de Gabinete do Departamento do Tesouro dos EUA e banqueiro no Goldman Sachs), para número dois do FMI e o financiamento dos combustíveis fósseis já aparece agendado, repondo, assim, as suas ideias de governação para estas Instituições. Neste contexto, já deixam de fazer sentido as ameaças de saída, contidas no ultraconservador projecto de campanha eleitoral 2025, elaborado pelos apoiantes de Trump …

Mas, nem tudo são “rosas” para Trump…

3. “A visão dos EUA sob Trump – refere o estudo Bruegel – “parece ser a de que a legalidade não deve atrapalhar a conveniência política, quando se trata de promover os interesses dos EUA, conforme entendidos pelo atual governo americano”.

Assim, a legalidade não é problema. Só é cumprida quando serve. E no caso da OMC, os EUA não podem esquecer que, apesar de Instituição criada e orientada na defesa dos interesses dos EUA em primeiro lugar, foi útil a outros países do “Sul Global”, devido a ter instituído regras de funcionamento no comércio mundial e esses países através do comércio externo hoje conseguiram outra dimensão no contexto mundial e estão a organizar-se sob diferentes formas com a ideia de disputar ao Ocidente a governação da economia mundial, porque entendem e, bem, que a situação da governação mundial é desequilibrada.

Nessas organizações, muitos desses países têm vindo a mostrar que discordam do Ocidente e apresentado e defendido modelos de governação, com base em princípios diferentes e mais ajustados ao peso de cada grupo de países no seio da economia mundial. Destacam-se, entre essas Organizações, os BRICS e a SCO (Organização de Cooperação de Xangai).

Ainda, recentemente, na 25ª Cimeira da SCO, realizada em Tianjin, de que se falou aqui, em artigo anterior, Xi Jinping, perante duas dezenas de Chefes de Estado e do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, avançou com uma reconfiguração alternativa de governação mundial com vista a “construir um sistema mais justo e equitativo”, enunciando os cinco conceitos base que deveriam enformar essa mudança estratégica de reconfiguração:

Igualdade de soberania
Estado de direito internacional
Multilateralidade
Primazia do povo
Acções e projectos concretos

Mas Xi Jinping não se ficou por aqui e com veemência apontou grandes falhas que caracterizam a governação mundial: a sub-representação dos países do “Sul Global” nas organizações internacionais, o desajuste e erosão das Nações Unidas, designadamente do seu Conselho de Segurança, dando como exemplo a sua ineficácia na situação de Gaza e a questão do desenvolvimento económico, onde poucos avanços há a registar.

Quanto a esta última falha, a Cimeira colocou grande ênfase no desenvolvimento económico e a sua recusa em alianças militares por troca duma segurança comum e a concepção pluralista de “coexistência harmoniosa”.

Foi ainda preconizada pela China a eventual constituição de um banco de desenvolvimento ligado à SCO, destinado a contornar os efeitos do dólar americano no enviesamento da economia mundial que vai permitindo aos EUA disfrutar de uma importância que já não detêm, desde há muito, no Mundo da Economia global.

E aqui nota-se uma grande aproximação aos BRICS, onde a desdolarização da economia é um dos seus grandes temas, para já pelo recurso às moedas nacionais, assunto de discussão entre Narendra Modi, Vladimir Putin e Xi Jinping, designadamente no domínio da energia, onde as transações entre estes três países, (membros dos BRICS), assumem elevado significado e uma sintonia de ideias muito articulada.

A concluir, estas formas “atrabiliárias” de Trump agir, com avanços e recuos, criam múltiplas incertezas, contribuem para descredibilizar os EUA, nomeadamente minando a confiança e estreitam cada vez mais a margem de negociação que se impõe na abertura de caminhos para o encontro de novas formas de governação a nível mundial. Por outro lado, ajudam a fortificar as diversas Organizações em desenvolvimento, ligando-as aos países do “Sul Global” que, em comum, têm uma visão alternativa à do Ocidente sobre a governação do Mundo, designadamente, ao nível de uma nova dinâmica e recomposição dos diferentes “órgãos” da ONU.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Triliões


Por
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 04/11/2025)
estatuadesal, Novembro 4, 2025


(Em tempos idos a Dona Clara era visita assídua da Estátua de Sal. Depois foi perdendo gaz e brilho, vieram as guerras, veio ao de cima o seu "americanismo" meio blasé, pelo que tem andado arredada. Só que, a Dona Clara sempre foi grande escriba e, confesso, este texto surpreendeu-me pela positiva. Fala de uma realidade de que ninguém fala, nem partidos políticos, nem sindicatos, nem a esquerda e muito menos a direita: os "excluídos" em contraponto com a riqueza pornográfica dos bilionários.

Pelo que só me resta publicar esta incursão da Dona Clara. Para a Estátua valem as mensagens, independentemente dos amores ou antipatias de estimação que tenha pelos mensageiros.

Estátua de Sal, 04/11/2025)

Os sentimentais e divulgadores de piedades, os cantores e artistas melancólicos, gostam de dizer que é o amor que faz mover o mundo, mas não é verdade. É o dinheiro.



Um a um, meia dúzia de homens e uma mulher deitaram-se encostados a um edifício abandonado na principal rua de Madrid. A Gran Via. O edifício, uma monstruosidade em vias de reabilitação e muito investimento, estava entaipado na face que dava para a rua, num dos cruzamentos mais concorridos, e durante o dia não tinha ninguém em frente. Não sei se o primeiro a chegar foi um rapaz loiro de uns 30 anos, com um cartaz que dizia que tinha uma doença mental e tinha fome. Deem qualquer coisa para comer. Esse aparecia durante o dia, ao contrário dos outros que viajavam a coberto da noite. A noite estava fria, aquele frio seco que faz gretas nas mãos e na boca e envelhece as caras. Muito diferente do verão é o inverno de Madrid.

Estenderam umas mantas ou sacos-camas sujos e velhos no chão, sujo e velho também, e aninharam-se em fila. O do cartaz era agora outro com outro cartaz também sobre doença mental. Numa das camas improvisadas, aninhavam-se dois sem-abrigo que se aqueciam um ao outro. Por trás, a decoração era de graffiti e slogans, com preponderância para Free Palestine. As cidades europeias são agora iguais às cidades americanas nos anos 80, quando os pavimentos, cantos e vãos foram invadidos por vagabundos e restos de humanidade caídos para fora da malha social. Veteranos da guerra com trauma, alcoólicos, drogados, desempregados, doentes, sobretudo os doentes mentais que os asilos e hospitais despejaram na rua de um dia para o outro, em nome da liberdade e da proibição do encarceramento. E por razões económicas.

As operações de limpeza do mayor Giuliani completaram o quadro. Nas ruas e subúrbios da América tropeçava-se nesta população que acabaria a construir cidades dentro das cidades, em tendas e tetos improvisados. Assim aconteceu em Los Angeles, Skid Row, ou em São Francisco, hoje uma metrópole onde os techies ocuparam as casas e inflacionaram as rendas e os preços, ajudando a expulsar os antigos habitantes que não acompanharam. A distância entre a miséria e a opulência é pequena se medida em metros.

As cidades da Europa são agora assim. O Estado social arranjou um nome para esta gente, os excluídos, e continuam a enxamear as ruas e becos, os vãos das pontes e viadutos, os cantos dos bancos desertos de noite. Ou bancos de jardins, mais expostos às intempéries. Alguns penetram nos aeroportos, donde são expulsos. De manhã, mudam de poiso e disfarçam a condição para não serem perseguidos. Os samaritanos entregam comida e tentam ajudar, e as instituições oficiais do Estado, os abrigos dos sem-abrigo, são repudiados pela insegurança e pelo ambiente perigoso e insalubre. As mulheres temem as violações. Preferem a rua e a liberdade.

Há doentes mentais, desencarcerados, desacompanhados, alcoólicos, desempregados, adolescentes fugidos, refugiados, toxicodependentes, velhos sem família e sem dinheiro, imigrantes, tal como naquela rua de Madrid. Na Gran Via, um destes vagabundos era uma mulher da América Latina, que de dia se escondia dentro do saco-cama com uma criança lá dentro e dormia o tempo todo com um copo de plástico ao lado para as moedas. Há sempre uns que escrevinham em bocados de papel, nada frustrados com a falta de esmola, que a digitalização tornou mais difícil. Ninguém, a não ser os mais pobres, carrega moedas.

Embora sejam inofensivos, o cheiro e o medo da visão desta solidão ou da loucura fazem com que as pessoas não se aproximem. São hoje tantos e tão banais que passaram a ser ignorados. Nos anos 80, quando não se podia caminhar no centro de cidades como Filadélfia sem tropeçar em dezenas de vagabundos, eram uma excentricidade. Nas cidades europeias havia pedintes, mas não havia a crise da habitação e a crise das migrações, e a economia capitalista ainda não tinha evoluído para o ponto em que hoje está.

Ninguém representa a gente sem voz nem voto, e ninguém os quer representar. São os “excluídos”, excluídos até pelas esquerdas que defendem sempre os pobres, os funcionários do Estado e os imigrantes com toda a virtude, mas nunca se pronunciam sobre os “excluídos”. Os excluídos não votam. Restam os samaritanos e a Igreja, mais os restos do Estado social que trata destes assuntos sem grande empenho. E sem dinheiro.

O problema tem-se agravado, como se vê por qualquer passeio pelas nossas cidades. Durante a guerra civil síria, nas ruas de Paris viam-se famílias inteiras a dormir na rua. No rescaldo da guerra do Afeganistão, viam-se tendas montadas num canto de Hyde Park, com refugiados afegãos lá dentro. Foram varridos.

Na outra ponta do espectro social está o dinheiro, muito dinheiro, muito mais dinheiro do que alguma vez a Humanidade deteve ou acumulou. O capital, a única força que faz mover o mundo. Os sentimentais e divulgadores de piedades, os cantores e artistas melancólicos, gostam de dizer que é o amor que faz mover o mundo, mas não é verdade. É o dinheiro.

E o dinheiro deixou de ser contado em milhões, é agora em biliões ou milhares de milhões. Nasceu a novíssima unidade, o trilião. O trilião é comum. Elon Musk pretende ser aumentado para um trilião antes da reunião de acionistas da Tesla. Se não for, deixa o cargo de CEO. Um trilião em “performance-based compensation package”. Este o nome. E quase de certeza ganhará, porque sem Musk as empresas valeriam muito menos e os acionistas perderiam. Um trilião é um valor incontável, incalculável, e fácil de torrar em aventuras espaciais ou nas aventuras da IA, que nesta fase precisa de torrar biliões para recolher triliões, tal como vaticinou Bill Gates.

Gates deixou de se preocupar com as alterações climáticas porque a Microsoft precisa de investir biliões na parceria com a Open AI de Sam Altman. E sabe que a IA precisa de água e de energia sem fim, consumindo recursos naturais finitos. Recomendou às Nações Unidas que se deixassem de climas e se preocupassem com a “pobreza” e a “doença” sabendo bem que as alterações climáticas trarão ainda mais doença e mais pobreza.

A benemerência acaba aqui e acaba assim. A IA é hoje o suporte fundamental da economia americana, ao ritmo de triliões. Quantidades de dinheiro em que se move uma empresa como a Nvidia. E em breve se moverão a Apple. Ou a Meta. Ou a Alphabet, mais conhecida por Google. O bilião é manifestamente insuficiente para quantificar a realidade. Os seis bilionários da tech, Elon Musk, Larry Ellison, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin já ultrapassaram os 200 biliões da riqueza pessoal e juntos detêm 1,7 triliões. Musk sozinho tem 475 biliões. E faz o ultimato para o trilião. As grandes tecnológicas valem mais do que muitos países. Portugal podia ser comprado por eles, e nem tem valor residual. Bezos é agora o terceiro mais rico, ultrapassado por Musk e Ellison, que está a comprar os media americanos porque os filhos se interessam por cinema e televisão.

É claríssimo que nenhum político, liberal ou não, controla este universo opaco e virtual, que não compreende ou pode compreender. A plebe, com os dados capturados sem resistência, não se importa de ser pastoreada pela tecnologia, que lhe facilita a vida e vai criando empregos e subempregos e cada vez mais inovação. E dinheiro. E destituição.

O poder político é como o amor. Pensa que o mundo se move pela sua força, não é verdade. Musk enfrentou e combateu Trump e nada aconteceu, desiludindo os liberais que viam ali um mortal combate de gladiadores com mútua destruição. Cada um ficou no seu canto e Trump pode ameaçar verbalmente Musk mas não o pode contrariar ou impedir. O poder está no dinheiro e um tem mais dinheiro do que tem o outro. Todo o Napoleão tem o seu Waterloo.

À esquerda, defunta e faminta, restam as causas remotas, Palestina, migrações, uma teoria universal dos direitos humanos, e, se a História se repetisse, a revolução. Mas não se repetirá. A esquerda, como toda a gente, é ignorante sobre este dinheiro e sobre a ciência, a sapiência, as técnicas que o sustentam, e está capturada pela tecnologia. Incapaz de parar o futuro.

Os vagabundos irão morrer longe, longe da vista. O darwinismo social pode ser pseudocientífico sem deixar de ser uma experiência humana.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Breve reflexão



Que saudades tenho de Francisco!

O Papa que iluminou e tocou nas feridas mais profundas dos homens e do Planeta que habitamos. Dir-me-ão que nem sempre tão longe quanto teria sido necessário, mas no quadro de uma Igreja normalmente bloqueada ao debate de questões sensíveis, abriu portas, contextualizou a Palavra com a Vida, saiu da "clausura" do Vaticano e foi pelo Mundo, sensibilizando ecumenicamente e tentando construir novas pontes de puro humanismo: "(...) O único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se", disse.

Por isso foi respeitado e milhões reconciliaram-se porque, como sublinhou, "A vida é real, não virtual. Não acontece numa tela, mas no mundo!". Ele preocupou-se com o Mundo real, o mundo das pessoas.

Na minha vida passaram oito papas. Quando esperava que o sucessor de Francisco viesse alimentar essa chama do amor, da tolerância, do respeito, da irmandade entre as nações, da fraternidade entre os povos, o cumprimento dos desígnios "da nossa casa comum" tão degradada e instável que está, Leão XIV parece-me desaparecido em combate. A sua intervenção é pobre, desajustada dos problemas, oferecendo alguns sinais de retrocesso e fechamento. Não percebo onde quer chegar com lengalengas que pouco dizem ao Mundo ávido de quem ajude na correcção dos graves desequilíbrios económicos e sociais, das devoradoras e insensatas guerras que semeiam a morte em tantos espaços do planeta.

A voz e o contagiante sorriso de Francisco apagaram-se. Jorge Mario Bergoglio ficará na História. Que saudades tenho desse Papa que "veio do fim do Mundo".

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Produtores de soja sentem-se traídos


Por
João Abel de Freitas,
Economista

O Brasil, país integrante dos BRICS, tem vindo a trocar o mercado dos EUA por fornecimentos de bens agrícolas à China, que se tornou, assim, o principal parceiro comercial do Brasil, em substituição dos EUA. Um processo que está cada vez mais consolidado.



Donald Trump, ainda antes de se tornar Presidente dos EUA pela segunda vez, já eleito mas ainda sem posse (Janeiro 2025), declarou que o termo mais bonito, que encontrara no “seu” dicionário, era a palavra “tarifas”, isto na sua tão propagandeada “política económica das tarifas” como o seu grande instrumento para revitalizar a indústria e na linha de que todos os países devem pagar um “tributo” à economia dos EUA, porque têm passado o tempo a “explorá-la”, sem reconhecer os “bons serviços” que lhes são prestados, a diversos níveis.

Foi na aplicação em concreto de “palavra tão bonita”, as já tão conhecidas “tarifas aduaneiras”, que Trump tramou o negócio da soja aos agricultores dos EUA, que tinham por várias décadas ajustado as suas terras ao cultivo da soja para exportação.

Quem está a perder muito neste processo intempestivo de decisões à Trump?

Sem dúvida, os produtores de soja dos EUA que, até Setembro de 2025, não exportaram um único Kg deste produto para o mercado da China. Mas Donald Trump não se encontra em bons lençóis porque tem as suas hostes de apoio divididas. Por um lado, grande parte dos agricultores de soja, que sempre deram o voto aos republicanos, exige a renegociação das tarifas com a China. Mas um outro grupo de apoiantes defende a aplicação de tarifas por diversas razões, como a do combate ao consumo da droga Fentanil. Trump embaraçado!

Trump embaraçado porque não encontra saídas para esta situação, e aflito, com a sua imagem em recuo acentuado, a última coisa que deseja.

O produto agrícola de maior exportação

1. Acontece que a soja é tão somente a maior exportação agrícola dos EUA. E Trump com a aplicação impulsiva, impensada e prepotente de tarifas à China (e anunciou que ainda as vai agravar a partir de 1 de Novembro) contribuiu para a perda de mais de metade da exportação deste produto agrícola que, de há vários anos, sempre teve mercado assegurado e na agricultura dos Estados Unidos provocou, desde meados dos anos 90 do século XX, investimentos graúdos na reconversão de terras de cereais e tabaco para o cultivo de soja, cuja sustentabilidade de crescimento era garantida, sem esta intervenção desastrada do Presidente.

E agora os agricultores americanos sentem-se angustiados e traídos. Não vêem no horizonte o que fazer com estas terras, onde certamente não vão produzir soja porque o mercado esgotou-se. Para os produtores o que os espera são as hipotecas e as falências das propriedades rurais, pois ninguém as vai comprar sem perspectivas de rentabilidade e muitos ainda não amortizaram os investimentos realizados. E daí as pressões sobre Trump para renegociar com a China.

2. Esta sustentabilidade tinha fundamento. O consumo de carne de porco e de aves no mercado chinês continua a apresentar margem de crescimento significativa, atendendo aos rendimentos em crescendo da classe média da China, com propensão para o consumo daqueles tipos de carne, sendo que a sua produção requerer o uso de soja.

Vejamos um exemplo. No ano agrícola 2023/24, os EUA realizaram com a exportação de soja 31.2 mil milhões de dólares, sendo 52% para o mercado chinês, 20% para os mercados da UE e os restantes 28% para países diversos Japão, Coreia do Sul, México. Uma elevada concentração nas exportações americanas deste produto! Encontrar colocação de perda de quota tão grande não é possível. A saída é mesmo reduzir a produção de soja.

Trump aplicou uma tarifa de 20% à exportação de soja para o mercado chinês. Em contrapartida, a China respondeu também com a aplicação de taxas generalizadas, mas prescindindo da soja dos EUA e, substituindo-a, quase de imediato, pelo abastecimento em outros mercados, principalmente o Brasil, país integrante dos BRICS que, em grande parte, tem vindo a trocar o mercado dos EUA por fornecimentos de bens agrícolas à China, que se tornou, assim, o principal parceiro comercial do Brasil, em substituição dos EUA, um processo que está cada vez mais a consolidar-se.

Esta situação com a soja só vem aprofundar a situação das relações comerciais e de investimento em progresso entre os dois países BRICS. Tanto assim é que outros investimentos chineses já estão a aportar ao Brasil, neste contexto ligados, designadamente a terminais portuários, com a finalidade de proporcionar melhores condições de embarque e desembarque na troca de produtos e do lado da China, significa a concretização de mais um investimento no contexto do grande plano estratégico no âmbito da Nova Rota da Seda (Road&Belt).

É a cooperação no grupo dos BRICS a desenvolver-se e, ainda a funcionar sem recurso ao dólar, pois os contratos são em moeda dos países e assim preenche e se coaduna com um dos grandes objectivos BRICS: a redução sempre que possível da dependência do dólar dos EUA, o que está a acontecer lentamente por diversos meios e o comércio sem recurso ao dólar (sempre que possível) é um deles.

Duas vezes o mesmo erro

3. Já na sua primeira passagem pela Presidência, Trump havia cometido este erro, taxando a soja. O problema acabou por ser resolvido sob pressão dos produtores que, entretanto, durante algum tempo, usufruíram de subsídios à produção, mas se queixam de não ter recuperado a taxa de exportações total, tendo de facto sofrido uma quebra na ordem dos 20%.

Trump, desta vez, encontra-se em pior situação. As suas hostes estão divididas: os agricultores de soja contra outras camadas de apoiantes. Trump certamente terá que enveredar por subsídios, aliás já admitiu isso, e apoiar investimentos para readaptação da produção agrícola, o que se torna bem difícil a curto prazo. Os agricultores também pressionam Trump a negociar com a China, sendo o sucesso duvidoso, uma vez que já se operou o desvio de mercado para o Brasil.

4. Por outro lado, não é só com a China que Trump está a encontrar dificuldades com a exportação da produção agrícola. Embora em menor escala, com a Índia, a exportação agrícola americana está a enfrentar resistência por causa dos produtos transgénicos, onde a lei indiana é muito rigorosa, admito que por questões religiosas.

A soja é um produto transgénico na ordem dos 90%, segundo os especialistas. Nesta situação, o mercado indiano está vedado por lei e Narendra Modi já respondeu segundo a lei.

As decisões irrefletidas do Presidente só lhe criam problemas e a sua notoriedade que muito preza entrou em quebra, o que o perturba. É preciso saber reagir a Trump como tem feito a China: em tempo, de forma pensada e sem hesitação. Exactamente aquilo que a Europa não sabe ou não quer fazer, tanta a subordinação aos EUA.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Padre José Luís Rodrigues, uma voz livre que aponta o caminho

 

Parabéns, querido Amigo Padre. Parabéns não apenas pelo facto de hoje celebrar, no seio da sua comunidade, 25 anos como Pároco de S. José. Sublinho, não apenas por isso, mas muito mais. Sabe, meu distinto Amigo, esta Igreja de Leão não o merece. A de Francisco, sim! Porque este soube contextualizar a Palavra com a vida real; pelo contrário, Leão não faz sequer jus ao nome, tampouco aos princípios de Assis, quando, nestes cinco meses na cadeira de Pedro, tem vindo a transmitir a ideia de um conservadorismo que amarra. É por isso que lhe digo que esta Igreja não o merece.



Como o compreendo quando há dias escreveu, sobre os seus medos: "medo dos que não distinguem a diferença entre a dignidade e a chafurdice humana (...) medo daqueles que acham que podem vencer até os mortos, quando está determinado, os únicos invencíveis, são precisamente os que já morreram (...) medo de quem vai morrer sem perceber que deve lutar a todo o custo para sobreviver e nunca permitir ser tratado como um animal". Como o compreendo!

Desde há muitos anos que aprecio a sua frontalidade, assente na sua vasta cultura, a sua liberdade de pensamento, a sua tenacidade, a sua capacidade de transmitir o Evangelho não como qualquer coisa repetitiva e oca, mas plena de Vida, apontando caminhos e chamando os bois pelos nomes. Pois, percebo, que há quem não goste, todos os que se sentem incomodados com as suas posições, mesmo quando é público e notório que não confunde nem mistura, a Palavra com posicionamentos político-partidários. O Senhor é um Homem livre que apenas acredita na importância de uma Igreja de valores humanistas.

Faz, por estes dias, dez anos que escrevi um texto sobre o seu apostolado, baseado no que então escreveu: "(...) A Igreja da Madeira devia alto e bom som, proclamar por justiça e denunciar claramente todas as artimanhas que se vão implementando contra as pessoas indefesas. A coragem do Papa Francisco devia ser inspiradora e animar-nos no mesmo Espírito. Há tanta propaganda a promover gente medíocre contra o bem comum que deve ser denunciada. Se estudarmos os 500 anos da Diocese do Funchal na sua vertente sócio-caritativa não encontraremos nada além daquela ideia do pobrezinho a quem se devia dar esmola para salvar a alminha. Nunca existiu nem existe uma prática forte de denúncia das injustiças, uma rede organizada que ajudasse à criação de emprego, que não fosse além da caridadezinha esporádica, porque se «vendia» com redobrado sucesso a ideia que as paróquias não eram lugar de caridades nem muito menos misericórdias. Por um lado, era promovida a caridade da esmola, mas, por outro, alimentava-se a ideia de que os pobres não resultam da disparidade da distribuição dos bens, da desigualdade social, mas são uns malandros que não querem trabalhar, uns preguiçosos que não fazem nada e vivem à conta da boa vontade alheia. (...)"

Dez anos depois continua tudo igual, porventura, pior. Porque a hierarquia não quer, ela exige obediência cega e silêncios, está dependente, retida na sua torre ou sacristia e tem medo do saudável confronto entre a Palavra e a práxis política. Falavam de Francisco, e ainda o citam, mas sem qualquer convicção social. Prefere surfar as ondas do imobilismo, fazendo-se de morto, pregando aquilo que já não pega. A Igreja de Jesus assenta noutros pressupostos. É a Igreja da solidariedade, do amor, da justiça, da fraternidade entre os povos e da irmandade entre as nações. Estas razões, obviamente, deviam implicar determinação, custasse o que custasse e doesse a quem doesse. 

Caríssimo Padre, o Senhor foi muito Amigo do Padre José Martins Júnior. Para si, ele foi sempre uma inspiração. Eu sei. Isso ficou muito claro na comemoração dos 86 anos de vida e, passados uns meses, na Homilia da Missa de corpo presente. A consideração dele por si, também sei, porque tantas vezes me testemunhou, funcionava como um farol de esperança numa Igreja insubmissa, lutadora e atenta aos direitos humanos. Cerca de um mês antes da sua morte, ali para os lados do Santo da Serra, num rotineiro almoço, onde o que valia era o vendaval de pensamentos, disse-me que a Madeira precisava de "mais alguns como o José Luís". Foi nesse encontro, como que sentindo próxima a sua partida, a páginas tantas, molhando o pão no vinho, disse-me de forma pausada e sentida: "quando morrer quero ter uma conversa com Jesus e sua Mãe". Nele existia, claramente, um sufoco por tanta injustiça e tanta maldade. Ele que preferiu sempre o chão à ostentação. 

Tal como Martins Júnior, o Padre José Luís é um insubmisso, é um Homem que escolheu o sítio certo... ao lado do povo. Só que o lado do povo embaraça a hierarquia, logo, eu não diria que os irreverentes sejam proscritos, mas são tolerados e colocados no adro do sofrimento. Que pena tenho da verdadeira Igreja de si não se lembrar para Bispo da Diocese! Teríamos, com toda a certeza, uma Igreja "aberta ao mundo, a este mundo concreto da nossa vida" (JLR), portanto, próxima do Povo. Até porque, na esteira de Martins Júnior "(...) Ninguém pode servir a dois Senhores. Ou se serve a Cristo ou se serve o Poder (...)".

Querido Padre, passaram-se 25 anos. No seu blogue, "O Banquete da Palavra", assume que "gosta muito do que faz". E pergunta: "Ora bem, e o que se há-de esperar de quem é feliz! Assim, o que mais desejo neste mundo é que os outros também sejam muito felizes". Continue feliz, de sorriso largo, atento e obstinado pela divulgação dos princípios e valores que o Evangelho anuncia. Todos precisamos de si.

Um abraço.

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Sinais para o mundo da Cimeira25 da SCO


Por
João Abel de Freitas
Economista


Entre as várias mensagens que a cimeira deixou ao mundo, destacamos esta. ‘Estamos, aqui, empenhados em lançar as bases de uma organização mundial diferente. Queremos um mundo onde a Multipolaridade seja o guião estruturante dessa nova ordem’.



A 25ª. Cimeira da SCO – Organização de Cooperação de Xangai (sigla em inglês), realizada em Tianjin/China de 31/08 a 1/09 (2025), não foi abordada, na devida altura, infelizmente, porque aconteceu a tragédia do Elevador da Glória, em Lisboa, que mereceu a prioridade, apesar da muita informação preocupante que continua a ser ocultada, por quem não devia, na tentativa deste período eleitoral passar incólume. Depois, deu-se a revolta da Geração Z no Nepal e o seu tratamento, por pouco se ter falado nos media, em Portugal.

1. A Cimeira25 constituiu o maior encontro de líderes organizado pela SCO até à data. Presença de 20 Chefes de Estado (os 10 Estados fundadores[1] e outros tantos parceiros) com a presença de António Guterres, Secretário-Geral da ONU.

A mais importante, dinâmica e resolutiva Cimeira, desde a sua fundação em 2001, marca um ponto de inflexão importante: gerou-se um espaço onde a convergência e a partilha de valores constituíram o foco principal, que ficou materializado num Manifesto de conteúdo Multipolar, na afirmação da necessidade de reforma das Instituições mundiais ligadas à ONU (linhas próximas da posição defendida pelos BRICS), um pacto de segurança e a definição da cooperação na cultura como um ponto chave. Quase podemos falar na “metamorfose” de uma organização de cooperação regional numa outra de natureza internacional, “não ocidental”.

Esta Cimeira25 emitiu um sinal estratégico ao Mundo que, talvez, se possa sintetizar da seguinte maneira: estamos, aqui, na disposição de questionar e combater as taxas alfandegárias impostas que, em nada, contribuem para o progresso e bem-estar regionais e mundial e nada têm de racionalidade económica. Estamos, aqui, no combate às medidas dos EUA que ferem os interesses das populações de todos os continentes, e vão contra a inteligência. Estamos, aqui, empenhados em lançar as bases de uma organização mundial diferente. Queremos um mundo onde a Multipolaridade seja o guião estruturante dessa nova ordem.

Na verdade, Trump não dita as suas decisões por razões económicas, mas por razões claramente políticas. A título de exemplo, as taxas impostas ao Brasil decorrem de os tribunais brasileiros terem decretado uma pena de prisão a Bolsonaro, amigo de Trump, contra a tentativa fracassada de golpe constitucional ou à India porque não seguiu a vontade de Trump de não comprar petróleo à Rússia mais barato ou ameaças à União Europeia neste mesmo sentido. Este último exemplo merece um comentário. A UE ficou toda a tremer e logo correu a agradar ao chefe. A submissão europeia, apesar de maltratada, é um dado.

Ainda há dias, lia num estudo de um think-tank europeu sobre as relações EUA/UE que o afastamento dos EUA que, aliás, já vem de trás, só agora explicitada sem requintes por Trump, será para continuar com presidentes republicanos ou democratas. Desde há muito se conhece que a União Europeia é tida como parceiro, de segundo nível, para os EUA. A Europa “sabendo” isso, devia ter assumido uma estratégia de autonomia para quebrar “o enredo” em que se deixou cair e agora não consegue dele sair, com inteligência. Anda perdida e quem assim anda, de uma maneira geral, só comete erros graves e não aproveita as janelas que se abrem, por hipótese, fazendo alianças, para responder às taxas de Trump.

Para os EUA o que conta é a Ásia e, mesmo aí, a agir de forma bruta está em perda de terreno no Mundo e, cada vez mais, porque trocar a diplomacia pela força não é um bom caminho.

Pelos meandros da Cimeira Índia - China

2. É de relevar que a reunião entre Narendra Modi e Xi Jinping, durante a Cimeira – depois de 7 anos – tem de ser analisada com bastante mestria. Os dois países pouco se falavam desde as tensões fronteiriças de 2020.

Mas as mudanças a nível planetário e as consequentes incertezas estão a levar as relações entre estes dois países num caminho de aproximação, a indicar para outra realidade mais ajustada às circunstâncias actuais e futuras. Aliás, esta reunião foi preparada previamente por uma visita do ministro dos negócios estrangeiros da China à India, o que revela uma maior atenção das duas partes aos tempos em mudança.

Na reunião que decorreu entre os dois políticos contam os Media que Xi disse a Modi: “A China e a Índia devem ser parceiros e não rivais”. E Modi destacou que, entre os dois países, existe, agora, “um ambiente de paz e estabilidade” e, logo, medidas concretas foram anunciadas como a retoma normal de voos entre Índia e China, suspensos desde 2020. Xi, por seu lado, avançou com a necessidade de as duas nações desenharem uma estratégia de cooperação a longo prazo, reforçando que serem amigos é “a decisão correcta para ambos os lados”. Há informação de que as terras raras também foram assunto alvo da reunião, dados os recursos potenciais da Índia e o domínio da tecnologia chinesa da fileira.

China, Índia e Rússia

3. Vários analistas conhecedores da matéria entendem que estes três países estão a aprofundar as relações de forma eficaz. Até há quem os denomine de “triângulo de potências unidas em desafio”.

Contudo, esses mesmos analistas avançam que, apesar das múltiplas críticas comuns à política externa de Trump, não se poderá dizer que o triângulo constitua uma aliança anti Washington, pois a diplomacia de cada país cultiva um amplo espaço de manobra próprio.

Também neste domínio à margem da Cimeira, foram estabelecidos acordos bilaterais designadamente nas áreas da energia, designadamente o estabelecimento de contratos de longo prazo na compra e analisada a problemática do seu transporte por terra e mar.

Breve resumo

4. Esta Cimeira25 da SCO proclama um modelo futuro para o Mundo, assente na Multipolaridade/Multilateralidade, o que exige alterações substanciais ao nível da ONU e suas Instituições como o FMI, Banco Mundial, apresentando-se estas reformas como uma forma alternativa de governação.

Aliás, vários documentos foram aprovados neste contexto, que vão nesse sentido. Desde logo, a Declaração de Tianjin, a Estratégia de Desenvolvimento da SCO para 2035 e 24 documentos sobre temas diversos como a segurança, cooperação económica, intercâmbios culturais e institucionais.

A orientação e efeitos desta Cimeira certamente não ficaram indiferentes ao Ocidente, aos seus políticos, mas ainda a várias instituições como a Banca, onde se destacam os bancos suíços que dedicaram algumas análises divulgadas em publicações a que estão ligados, como a “Allnews”, realçando o seu impacte em termos de mudanças a nível global.

Cada vez há mais organizações a funcionar que “incomodam” o Ocidente, designadamente porque lhe são autónomas e lhe reduzem o espaço de manobra, não podendo deixar de referir, entre elas, os BRICS, agora denominados de BRICS+, devido à integração recente de novos membros e à sua cada vez maior influência no Mundo.

[1] Os 10 países membros da SCO são: Bielorrússia, Cazaquistão, China, Índia, Irão, Paquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Irã.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Do PREC nos Açores e na Madeira

 

Memórias de Abril (3)

Por 
Henrique Sampaio*

Quer no Arquipélago dos Açores quer na Madeira, o período posterior ao 25 de Abril de 1974, é profundamente marcado, por um lado, por movimentações populares visando assegurar direitos e conquistas a que a ditadura do Estado Novo tinha vedado o acesso a diferentes sectores profissionais, e por outro, quase em simultâneo, a tentativas várias por parte dos sectores mais reaccionários de manutenção dos seus privilégios, através designadamente do recurso à ameaça separatista.



Com efeito, ao mesmo tempo que os trabalhadores dos meios urbanos e os camponeses se organizam, transformando os sindicatos corporativos em organismos reivindicativos ou criando associações de classe representativas, instrumentos fundamentais para o desencadear de lutas de âmbito laboral e não só; primeiro nos Açores e posteriormente na Madeira vão surgir movimentos de cariz independentista que nos anos subsequentes se caracterizarão pelo recurso à violência bombista e não só.

Nos Açores, como recorda Carlos Enes, no livro “A violência da FLA quase tomou conta da Ilha”, o designado MAPA (Movimento para a Autodeterminação do Povo Açoriano) “manifestou-se a partir da ilha de São Miguel através de um texto de quatro páginas policopiadas, com a assinatura de uma comissão micaelense em organização e com data de 7 de Maio de 1974”. Um texto onde já transparecia qua a opção independentista poderia vir a estar em cima da mesa, uma vez que o MAPA advertia: “Não tenhamos ilusões: para se pensar como ilhéu é preciso nascer ilhéu e viver-se como ilhéu (…) Não sejamos ingénuos: Possuir ilhas é hoje um luxo a que ninguém se pode dar”.

Enes, natural da ilha Terceira e licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa, acrescenta que “tanto neste documento como noutros que se seguiram, vai ficando clara a intenção de afastar as ilhas do processo democrático instaurado no país, abrindo a porta para a dependência dos Estados Unidos da América” – a este propósito, refira-se que Victor Cruz, um dos fundadores do MAPA, era funcionário do consulado americano. De resto, como sublinha Enes “depois da saída do primeiro documento do MAPA, a revista Newsweek publicou um artigo, que foi transcrito pel’A Capital, onde se afirmava que os separatistas haviam pedido auxílio político e financeiro aos EUA”.

Inexistente na Terceira e nas outras ilhas, em Ponta Delgada, no primeiro dia do ano de 1975, o MAPA seria alvo de uma manifestação de protesto que congregou forças de esquerda, a que se seguiram outras acções que conduziram ao encerramento da sua sede, no mês de Março.

Na Madeira, porventura surpreendentemente, quem primeiramente alude a uma hipotética «autodeterminação do Arquipélago» é o MDM (Movimento Democrático da Madeira). Na edição de 15 de Junho de 1974, o “DN” local refere que a Assembleia do referido movimento - cujos principais fundadores foram os drs. Fernando Rebelo e António Loja , futuros, respectivamente, governador civil e presidente da Junta Geral -, “considerando a necessidade de um processo com vista à consecução da autodeterminação (autonomização autêntica ou independência em confederação) do Arquipélago, delibera que seja criada uma comissão para o estudo sobre as reais possibilidades sociais, económicas e políticas do Arquipélago, no sentido da determinação dos limites duma autonomia autêntica do Arquipélago” – entretanto, e ainda antes, a 31/5/74, em reunião, o MDM deliberara que o novo jornal do movimento teria o nome de «Madeira Livre». Uma publicação que não surgiu, mas, como é sabido, anos volvidos, o PPD/Madeira editaria um jornal, precisamente com aquele nome, «Madeira Livre», dirigido pelo seu líder par(a)lamentar, Jaime Ramos (parafraseando o jornalista, Fernando Pessa, «e esta, hein?». MDM que, também, reclamou junto da Comissão Nacional encarregue da elaboração do projecto de Lei Eleitoral que a mesma “preveja a constituição de partidos de defesa regional numa base de autodeterminação”.

MDM que, em 19 de Outubro de 1974, voltaria ao assunto, emitindo um comunicado em que admitia a “independência, pela via da autodeterminação”. Desta feita, instalar-se-ia a polémica entre as diferentes forças políticas, tendo o PS local reagido violentamente, inclusive denunciando que o aludido comunicado fora assinado por “dois estrangeiros” (os signatários não eram naturais da Madeira), enquanto o PPD declarava que poderia também vir a agitar a bandeira da independência: “a mais ampla autonomia ou até a independência são, também, desideratos que o PPD se proporá alcançar se for a solução que melhor satisfaça os verdadeiros interesses de todos os madeirenses” – um outro movimento sem expressão popular, denominado MAIA, que tinha sido entretanto criado, advogava também a independência. Integravam-no, entre outros, os drs. José Maria da Silva, José António Camacho e Crisóstomo de Aguiar que posteriormente adeririam ao PPD, chegando a ocupar funções de relevância, quer parlamentares, quer governativas. Aguiar ficaria particularmente conhecido por ter proposto a criação de uma moeda regional, designada a «pataca».

O mesmo jornal, o “DN” da Madeira, igualmente em Outubro (dia 27), citando a então existente agência de notícias Lusitânia, revelaria que, há cerca de um mês, elementos do movimento «autonomista» açoriano ter-se-ão deslocado, secretamente, à Madeira, mantendo reuniões com os «autonomistas» madeirenses.

Ao contrário do que eventualmente seria expectável, tendo em conta a circunstância de ter sido candidato pela oposição nas eleições de 1969 para a Assembleia Nacional, o mandato de Fernando Rebelo como governador civil seria particularmente contestado por diferentes sectores populares, quer citadinos quer rurais. Uma contestação que decorreu em grande parte, não só da inércia na tomada de decisões que respondessem favoravelmente às reivindicações populares, mas também das escolhas a que procedeu para lugares nas autarquias locais. Neste aspecto, sobressaíram Machico e Ponta do Sol: em Machico cederia às pressões do Bispo da diocese, Francisco Santana, não nomeando o Padre José Martins Júnior, presidente da respectiva Comissão Administrativa, conforme era a vontade popular, e na Ponta do Sol nomeou um cacique local, José Egídio Pita que, ainda por cima, tinha sido na década de 60 vice-presidente da comissão de freguesia da União Nacional nos Canhas. Outras escolhas completamente descabidas foram as de Gregório Figueira de Faria, em Câmara de Lobos e de David Canha Jardim, no Porto Moniz, tendo quer um quer outro se envolvido em acções separatistas.

Contestação que envolveu não só os trabalhadores, em particular os operários da construção civil e dos bordados – chegou a proibir a realização de uma manifestação em 21 de Outubro de 1974 por decorrer em horário laboral, tendo sido desautorizado -, mas também os caseiros que em Novembro desse mesmo ano (dia 17) exigiram o seu afastamento e que, de resto, se estendeu à generalidade dos partidos e movimentos políticos, com a excepção do PPD local – não por acaso, nas primeiras eleições locais ocorridas em 12 de Dezembro de 1976, o PPD candidataria Egídio Pita e David Canha e aproveitaria outras duas escolhas de F. Rebelo, Luís Mendes, na Ribeira Brava e Virgílio Pereira, no Funchal.

O isolamento do governador F. Rebelo acentuar-se-ia com a autorização que concedeu para a efectivação no dia 15 de Fevereiro de 1975 de uma manifestação-comício, anunciada como sendo a favor da «autonomia da Madeira», convocada pelo auto-proclamado MLAM (Movimento de Libertação do Arquipélago da Madeira ), tendo em resposta o UPM (União do Povo da Madeira) apelado a uma contra-manifestação-comício – a autoridade militar, novamente sob o comando de Carlos Azeredo que havia regressado à Madeira em Dezembro do ano transacto, acabaria por proibir as duas iniciativas, mas o UPM manteve-a , tendo as forças militares e militarizadas recorrido ao uso da força e à utilização de gases lacrimogéneos, o que não obstou à sua realização.

Azeredo, assumido monárquico e oficial pertencente à corrente spinolista das forças armadas, responsável pelas intentonas de 28 de Setembro de 74 e 11 de Março de 75, seria, aliás, pródigo no recurso ao uso da força para reprimir movimentações populares. Voltaria a fazê-lo por diversas vezes em Machico ao longo desse ano de 1975 e faria o mesmo em 9 de Abril de 75, quando os produtores de cana sacarina reivindicavam junto ao quartel-general, no Palácio de São Lourenço, o aumento do preço do quilo do produto e acesso ao controlo da pesagem.

Tal como sucedera no passado anterior ao 25 de Abril, o poder político em Lisboa continuava a não prestar a atenção devida ao que se passava nos Arquipélagos. Uma indiferença e um protelar de decisões que obviamente favoreciam quem conspirava contra o «processo revolucionário». Isso mesmo já havia ocorrido aquando da questão da aplicação do salário mínimo nacional e manter-se-ia durante o mandato dos sucessivos governos provisórios.

Porém, curiosamente, quando, finalmente, começam a haver sinais (notícias) de que se preparam mudanças na governação da Madeira, eis que a 14 de Fevereiro de 1975, em comunicado a Comissão Política Distrital do PPD declara “não aceitar qualquer mudança nos quadros da administração local, sem se conhecerem os resultados das eleições” (as eleições para a Assembleia Constituinte, inicialmente marcadas para 12 de Abril, acabariam por ser adiadas para 25 de Abril, na sequência do golpe militar de 11 de Março) – de acordo com o que veio a público, F. Rebelo permaneceria em funções, passando a presidir a uma «Junta de Planeamento» composta por três vogais. Contudo, a 19 de Março de 75, pediria a exoneração do cargo, exactamente no dia em que uma manifestação contra “o desemprego e os despedimentos” culmina com uma concentração junto ao Palácio de S. Lourenço, em que é reclamado o saneamento do governador civil.

A queda do regime motiva igualmente mudanças na imprensa diária local. No diário então propriedade da família Blandy, o seu director Alberto de Araújo solicitara a exoneração e no início de Junho ocupa o lugar o então padre e sociólogo Paquete de Oliveira que exprime abertamente adesão à mudança política em curso; enquanto que no órgão da diocese, o novo bispo, Francisco Santana – fora ordenado a 21 de Abril de 74, na Sé Patriarcal de Lisboa, sendo que na assistência pontificava o seu amigo desde os tempos da «Stella Maris», Almirante Henrique Tenreiro, um dos ultras do regime – decide, no final de Outubro, entregar o “Jornal da Madeira” nas mãos de Alberto João Cardoso Gonçalves Jardim, sobrinho do director e proprietário do semanário “Voz da Madeira”, o dr. Agostinho Cardoso, por sinal, colaborador destacado do mesmo. Registe-se que na sequência da tentativa de golpe de 28 de Setembro de 74, na documentação encontrada na sede de um dos partidos organizadores, o Partido do Progresso, na «imprensa contactável», figuravam quer o “Voz da Madeira” quer o jornal da diocese. E quando, designadamente a partir de 1975, o separatismo passa a ser usado como arma política, enquanto o “Jornal da Madeira” reproduzia (7/2/75) o documento constitutivo do MAPA e foi dando assinalável destaque à causa independentista açoriana, através nomeadamente da publicação de declarações e entrevistas com alguns dos seus dirigentes, como José de Almeida e outros; no “DN” a postura adoptada foi abertamente a oposta, transcrevendo, por exemplo, o artigo «Açores: uma armadilha para Portugal?», da autoria do jornalista António Figueiredo, originalmente publicado no britânico “ The Guardian” e inserto na edição de 21 de Janeiro de 1975 do vespertino lisboeta “Diário de Lisboa”.

No rescaldo das eleições para a Assembleia Constituinte, na Madeira, o «Diário da Madeira» (10/5/75), através de três textos, associa a vitória do PPD (elegeria 5 dos 6 deputados em disputa em ambos os arquipélagos) à defesa da independência. Num deles, pôde ler-se: «Em fase dos resultados obtidos nas eleições à A. C., na Madeira e Açores, é caso para perguntar: se não será isso uma razão fundamental, além de outras existentes, para ser concedida a independência total às ilhas do Atlântico?». E numa carta ao director (o médico António Castro Jorge) era reclamado o corte com o «Terreiro do Paço». Simultaneamente, um denominado «Movimento Emancipalista da Madeira” procederia a leitura idêntica dos referidos resultados eleitorais. E no início de Maio, coincidindo com a visita do ministro do Trabalho, major Costa Martins, em várias ruas da cidade do Funchal surgiram inscrições murais em defesa da «independência da Madeira». Ainda em Maio, é divulgada a detenção de indivíduos que estavam a fazer inscrições nas paredes «caluniando o derrubamento do fascismo e apoiando a independência da Madeira» (um dos presos, César Barros fora candidato a deputado na lista apresentada pelo CDS – a comissão executiva provisória local do referido partido apressar-se-ia a esclarecer que o aludido candidato, «a seu pedido, foi desligado do CDS, em data anterior à sua detenção»). Já agora, anote-se que, então, na denominada «Tribuna Livre», AJJ também rejeitou a opção independentista. Posteriormente, como é do domínio público, recorreria, bastas vezes, como forma de chantagem junto do poder central, à ameaça separatista e chegou inclusive a catalogar como «patriotas» aqueles que covardemente recorrendo à violência bombista, destruíram bens públicos e privados e puseram em causa vidas humanas.

Tal como sucedera com o MAPA, a FLA fará o aparecimento público em São Miguel no mês de Maio, com inscrições e distribuição de comunicados por ocasião das festas do Senhor Santo Cristo. Carlos Enes, no já citado livro, acrescenta: “A projecção regional e nacional ocorreu com a manifestação dos lavradores micaelenses, a 6 de Junho de 1975, reclamando contra a situação de abandono a que haviam sido votados pelo governo. Por detrás da manifestação estavam elementos da FLA que canalizaram esse descontentamento para acções de violência inusitadas, com apelos à independência”. Uma manifestação que fora proibida pelo governador militar, general Altino Pinto de Magalhães por a data coincidir com a estada no porto de Ponta Delgada de uma esquadra da NATO.

Obtida a demissão do governador civil, o advogado António Borges Coutinho, militante do MDP/CDE – que aliás já havia colocado o lugar à disposição face aos resultados eleitorais -, os manifestantes dirigiram-se aos estúdios do Emissor Regional dos Açores da Emissora Nacional, que invadiram, exigindo a demissão do locutor João Coelho, militante do MES (Movimento de Esquerda Socialista) e o aeroporto foi também ocupado por camiões na pista, a fim de impedir o movimento de aviões.

Um modus operandi a que, a 7 de Setembro de 1974, poucas horas depois da assinatura em Lusaca do acordo de cessar fogo e de independência de Moçambique, colonos brancos já haviam recorrido ao assaltar as instalações do Rádio Clube de Moçambique, ocupando-as com a conivência da força de comandos que tinha a missão de as proteger. Os técnicos em serviço nos estúdios foram obrigados, sob a ameaça de armas, a colaborar na emissão de comunicados considerando nulos tais acordos. Ao mesmo tempo, são abertas as portas da prisão da Machava e libertados duzentos pides. Uma tentativa de golpe que não atingiu os objectivos pretendidos, mas que se saldou por um elevado número de vítimas, negros e brancos.
Gustavo Moura, director do jornal «Açores», em editorial (7/6/75) exultaria: «Os gravíssimos problemas da lavoura, a exigência de demissão do chefe do distrito, tudo depressa passou a segundo plano, para a uma só voz, se gritar independência» – Moura seria detido dois dias depois, juntamente com 30 militantes da FLA. Contudo, nas semanas seguintes, várias sedes de paridos de esquerda foram atacadas e muitos militantes tiveram de abandonar S. Miguel.

Pouco mais de um mês depois, a 18 de Julho, em Angra do Heroísmo ocorreria uma outra manifestação de características idênticas, que culminaria com a invasão do Rádio Clube de Angra. Na sequência, verificam-se diversas demissões, nomeadamente do governador civil, do presidente da Câmara de Angra e de elementos da direcção do Rádio Clube, todos identificados como «progressistas». E em Agosto, verificar-se-á uma nova escalada na acção separatista: a 12, a FLA anuncia que vai recorrer à violência para conseguir os seus objectivos,; a 18 são aprovadas moções exigindo a transferência para fora dos Açores dos militantes do PCP e «seus satélites», incluindo um padre e a 19, a sede do PCP em Ponta Delgada é destruída por uma bomba, tal como as sedes do mesmo partido, do MDP-CDE e do MES, em Angra do Heroísmo. Ainda em Agosto, é criado o Exército de Libertação dos Açores, braço armado da FLA e, numa reunião do movimento efectuada nas Ilhas Canárias, é decidido que o caminho para a independência pode ser abandonado, se em Portugal se consolidar a linha do conjunto de militares designado por «Grupo dos Nove».

O próprio Mota Amaral – que a 20 de Maio de 1974 fundara o PPD nos Açores e que foi presidente do governo regional entre 1976 e 1996 – confessaria em declarações insertas na edição da revista «Notícias Magazine» de 16 de Outubro de 2016, a simpatia pela causa independentista: «Nessa altura foi-me simpática a ideia de independência, e os meus caminhos cruzaram-se com os da FLA naquele período em que o governo de Portugal andava à deriva. Com o fim do Verão Quente, foi-se perdendo o momento. O país organizava-se e importante era a ideia de uma autonomia eficaz, de uma administração livre dos Açores pelos açorianos». Ou seja, não foi por acaso que José de Almeida acusara Mota Amaral de «traição», referindo designadamente que a declaração de princípios da organização separatista açoriana fora redigida pelo antigo deputado da nação pelo distrito de Ponta Delgada, no período compreendido entre 1969 e o 25 de Abril de 74 – Almeida, também ele deputado, pelo distrito de Viana do Castelo.

Na Madeira, Agosto de 1975 é também o mês em que a violência bombista perpetrada pela FLAMA faz a sua aparição. Um dos primeiros alvos (27/8) é a sede do UPM, situada na Rua do Castanheiro, num prédio, pertencente à família Aragão de Freitas, que, estando devoluto, havia sido ocupado pouco tempo antes. Um local que haveria de ser objecto de outras tentativas de assalto e de destruição. Meses antes dois dos seus principais dirigentes, Milton Morais Sarmento e Paulo Martinho Martins tinham sido intimados pelo braço armado da FLAMA, o ELAM (Exército de Libertação do Arquipélago da Madeira) a abandonar o País, sob ameaças à integridade física. Uma hostilidade que decorria do facto do UPM por via da sua implantação popular ser a única força política de esquerda com capacidade de mobilização, em resultado da ligação estreita que mantinha com várias estruturas sindicais, nomeadamente as da construção civil e dos bordados.

Anteriormente, a 22 de Agosto, haviam destruído o Centro Emissor da Emissora Nacional, localizado na freguesia do Monte, no Funchal e, ainda antes (madrugada de 9 de Agosto) rebentaria um petardo nas instalações da mesma, na Rua dos Netos. Mais tarde (2 de Setembro), o próprio Palácio de S. Lourenço, sede dos governos, civil e milita, seria também atacado. Pelo meio, Carlos Azeredo, o titular desses cargos, já tinha declarado publicamente que não obedeceria a ordens do V Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves.

Todos estes actos bombistas surgiam pela calada da noite, de modo cobarde, na medida em que, ao contrário do que sucedeu nos Açores, designadamente na ilha de S. Miguel, o separatismo na Madeira nunca conseguiu tomar conta da rua, nunca foi rei e senhor nesse particular. É certo que obtiveram sucesso numa ou noutra acção, designadamente nos incidentes que envolveram o sequestro do professor Francisco Simões (posterior ao 25 de Novembro de 1975) e na deslocação de uma comissão de saneamento de trabalhadores bancários (29/9/75). Num e noutro caso, tratavam-se de pessoas afectas ao PCP, partido que não dispunha na Madeira de capacidade de intervenção capaz de as neutralizar.

Respaldadas com os resultados registados na eleição para a Constituinte e contando com o suporte do anticomunismo primário que caracterizava a tríade Carlos Azeredo – Francisco Santana – Alberto João Jardim, essas forças julgaram que poderiam replicar na Madeira os acontecimentos de 6 de Junho em Ponta Delgada. Vai daí, quatro meses depois, a 7 de Outubro de 1975 ocupam os estúdios do referido Emissor Regional da Emissora Nacional. Para disfarçar fazem-se acompanhar de um grupo de alegados retornados. Desatam a colocar no ar, repetidamente, a música do bailinho da Madeira e procedem à difusão das suas principais exigências: saneamento imediato de cinco dos trabalhadores daquele posto emissor e expulsão, também imediata, do Arquipélago de três pessoas: o padre José Martins Júnior, o advogado Milton Morais Sarmento e o presidente do Sindicato da Construção Civil, Diamantino Alturas. Os primeiros – os jornalistas Gualdino Rodrigues, Alberto Andrade e Henrique Sampaio (o signatário do presente artigo), a locutora Graça Vasconcelos Coito e o intendente da estação, dr. Oliveira Pires – eram acusados de produzir uma “informação desonesta, demagógica e habilmente manipulada”, enganando a população local e orientando-a a favor de “minorias extremistas sem qualquer expressão” no arquipélago (Gualdino e Andrade tinham sido colaboradores do suplemento desportivo do jornal da diocese e Sampaio era redactor do “Comércio do Funchal”).

Por sua vez, Martins júnior, Milton Sarmento e Diamantino Alturas eram considerados “fomentadores ou patrocinadores das desuniões já verificadas no seio da comunidade madeirense”.

A ocupação prolongou-se durante a tarde por mais de quatro horas, ao longo das quais foram feitos apelos para o encerramento do comércio e para a adesão à ocupação. Entretanto, Azeredo que se encontrava na cidade do Porto foi negociando à distância com uma delegação dos ocupantes que se deslocara até ao Comando Militar. Viria a saber-se que já tinha dado o seu aval à 1ª das exigências: o saneamento dos trabalhadores e manifestara disponibilidade para, no regresso ao Funchal, tratar da segunda. Ou seja, o mesmo militar – que sempre que se tratou de lidar com lutas populares por direitos políticos ou sociais – não tinha hesitado em recorrer à força bruta, predispunha-se a comportar-se exactamente com a mesma benevolência e conivência demonstradas pelo seu congénere governador militar dos Açores, general Altino de Magalhães.

Uma vez que a autoridade política e militar não só não repunha a ordem no emissor regional da E. N., procedendo à desocupação do edifício, como estava disposta a satisfazer os objectivos pretendidos, a quem discordava destes acontecimentos só restava uma alternativa: recorrer aos meios ao seu alcance para evitar que o separatismo tomasse conta da Madeira. Foi isso que fizeram os operários da construção civil, tanto mais que em causa estavam também as pessoas do presidente do seu Sindicato e do consultor jurídico.

Nas reacções verificadas, vale a pena recordar que no dia seguinte (8 de Outubro), no órgão da diocese, em destaque na 1ª página, em jeito de lamentação, lia-se: “Elementos ligados à construção civil contra atacaram quando o grave incidente estava resolvido”, enquanto que o seu director consideraria a ocupação um acto de “flagrante inoportunidade” (sic), isto é, não estava em causa o saneamento que defendia, mas tão somente o processo a utilizar. De resto, na «Tribuna Livre», não se cansara de atacar a informação veiculada pela emissora pública ao mesmo tempo que se confessava adepto do pluralismo que não só não praticou como abominou.

* por opção, o presente artigo foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post-Scriptum: Oportunamente, tenciono revisitar com detalhe a actividade separatista/bombista. Há muita história que vale a pena relacionar…

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Geração Z faz cair o regime das forças de esquerda no Nepal

 

Por

A interdição das plataformas digitais caiu mal e desencadeia a revolta da juventude, mas as grandes causas estavam acumuladas: as frustrações e as perspectivas de um não futuro.



1. O Nepal, com uma história bem diferente de um processo tradicional de independência, criou, em 1768, o Reino do Nepal, juntando e unificando territórios, formatando o Estado-Nação que ainda hoje vigora. Porém, só 155 anos depois, o governo britânico reconheceu formalmente (1923) a sua independência. Foi necessário, contudo, esperar pela Segunda Guerra Mundial para se iniciarem algumas pequenas alterações na orgânica obsoleta deste Estado-Nação.

A vida desta monarquia, que durou 240 anos, foi agitada, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, com períodos de guerra civil longos (onde a tendência rebelde maoista, como é conhecida, teve um papel de destaque), aliados a eleições multipartidárias, aqui e ali.

Maio 2008. Proclamação da República

2. O Nepal, com cerca de 30 milhões de habitantes é um país jovem, onde 2/3 da população tem menos de 34 anos. Um país ensanduichado entre os dois maiores colossos da demografia mundial, a China e a Índia, conhecido pela sua capital Katmandu – cidade cruzamento de vários povos e comércio – e uma das rotas de acesso ao Monte Evereste.

Certamente, menos conhecido por, desde a implantação da República, em 2008, ter vindo a ser governado por partidos da esquerda, regime que acaba de cair por uma revolta designada nos Media internacionais de revolta da juventude (geração Z) contra a interdição pelo Governo, em Junho de 2025, de 26 redes sociais, designadamente Facebook, Instagram, WhatsApp e Youtube, porque recusaram se submeter às leis nacionais, que exigiam o seu registo como empresas do país. Apenas 5 das 31 empresas existentes tinham aceite fazê-lo até 1 de Setembro, data para o cumprimento.

A revolta da Geração Z

3. Os jovens revoltam-se contra a interdição das plataformas digitais, alegando que 1/3 da população vive no exterior e as redes são o veículo de comunicação entre si e encaram a decisão do governo um atentado à liberdade de expressão.

Durante dias, a revolta traduziu-se em incêndios e ocupação de edifícios públicos, casas de políticos e manifestações de rua com elevado número de baixas mortais. O primeiro-ministro Sharma Oli (dirigente máximo do PC) é obrigado a demitir-se, o Parlamento dissolvido pelo Presidente Poudel do centro-esquerda e as forças armadas intervêm para manter a Ordem.

Depois de 3 dias de negociações de algum melindre entre Presidente do País, forças armadas e representantes da juventude revoltosa foi designada como primeira-ministra interina, a Presidente do supremo tribunal (Sushila Karki) com currículo político desalinhado dos partidos tradicionais. A juventude vê nela a pessoa certa para levar a cabo as eleições de 5 de Março 2026, marcadas pelo Presidente.

Causas da revolta

4. Na sociedade nepalesa, as distorções de desenvolvimento económico e social continuam muito chocantes, onde sobressai uma elite pouco numerosa, o que não abona a favor da governação do país pelas forças de esquerda, apesar do Nepal ter registado, no após República, avanços notáveis na área da escolaridade:

Taxa de alfabetização a ultrapassar 71%, quando era de 54% em 2001.
Ensino superior a acolher, em cada ano, mais de 400.000 estudantes.

Porém, estes avanços geraram um paradoxo. O mercado de trabalho formal só tem dimensão para absorver cerca de 40 000 trabalhadores/ano. Assim, uma elevada percentagem qualificada de jovens fica sem hipóteses de aceder a trabalho produtivo, ou seja, impedida de ascender socialmente. A sua janela de oportunidades foca-se no digital e na emigração.

No Nepal há mais de 17 milhões de nepaleses utentes do Facebook e cerca de 90% dos jovens conectados diariamente. As plataformas sociais são, assim, uma fuga para a falta de emprego e também para a concretização informal de pequenos negócios que sempre vão gerando algum rendimento que atenua o fraco nível de vida do país onde, segundo alguns dados, cada pessoa sobrevive, em média, com um dólar/dia.

A estrutura económica do país, segundo estimativas do Banco Mundial, com a agricultura a empregar 63% da totalidade das pessoas em idade activa, quando não gera mais de 24% do PIB; a indústria, por seu lado, a gerar cerca de 12% do PIB e os serviços (sectores formal e informal) 63%, é bem a imagem do que se referiu, pondo ao vivo as estruturas semifeudais de produção dominantes, impeditivas de qualquer progresso.

Se a isto se acrescentar o fluxo das receitas da diáspora que entraram no Nepal, em 2023, equivalendo a 27,6% do PIB, temos o quadro perfeito de um país muito atrasado em termos de desenvolvimento. Acentue-se que não é por falta de condições objectivas que o arranque económico ainda não se deu – pois, pelo menos no que toca a qualificação da população – um vector chave em qualquer processo de desenvolvimento, ela existe.

Algumas causas do insucesso

5. Desde a implantação da República, as forças comunistas (tendência maoista e PC do Nepal) batem-se entre si pelo controlo do aparelho do Estado e aí esgotam as suas energias.

A coligação entre o partido do Congresso/partido comunista do Nepal no poder nos anos mais recentes “cercou” os maoistas que até saíram vencedores nas eleições pós implantação da República e desenvolveu na sociedade nepalesa uma campanha anti-maoismo, levando-o a se aproximar sem sucesso da juventude urbana.

Por seu lado, o maoismo ia insinuando que o governo de coligação pouco fazia para combater a corrupção sobretudo de elementos com influência no poder e que se opõem a reformas que permitam abrir a economia à criação de riqueza em benefício da população.

A juventude, contudo, não aderiu a este trabalho de sapa dos dois lados, acusando os dois partidos de serem iguais, muito ineficazes em todas as frentes, incluindo o combate à corrupção e apontando o subdesenvolvimento, decorrente do desentendimento entre os partidos que perdiam o seu tempo a negociar arranjos interpartidários para continuarem no poder.

Em síntese, a juventude entende que o governo e os partidos falharam na resolução dos três grandes problemas do país:
Criação de emprego e estagnação económica
Combate firme à corrupção
Liberdade aos diferentes níveis.

A revolta como explosão

6. A violência que explode em princípios de Setembro é contra os políticos dos três partidos: Partido do Congresso e os dois partidos Comunistas (Maoismo e Partido comunista do Nepal). A rivalidade entre as forças comunistas foi sendo potenciada pelas sucessivas levas de regulamentação, saídas ao longo de 2024, sobre as redes. A interdição das plataformas digitais caiu mal e desencadeia a revolta da juventude, mas as grandes causas estavam acumuladas: as frustrações e as perspectivas de um não futuro.

Expectativas

7. Há expectativas por parte da juventude de que as eleições possam levar a um novo modelo de governo “livre de vínculos dos partidos tradicionais”. Defendem que essa liderança deve ser independente e escolhida na base da competência, integridade e qualificação”.

Apesar do consenso encontrado, teme-se que o país, em situação de graves conflitos que não estão afastados, possa cair para uma direita radical ou mergulhar numa instabilidade incontrolável. Contudo, há confiança na Primeira-ministra interina para levar o país a bom porto.

Notas finais:

i) Não existem números oficiais, mas uma associação de Nepaleses estima que residam 50 000 nepaleses em Portugal.

ii) Geração Z = nativos da era digital.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Esclareçam...

 

Na gíria do futebol e não só, vezes várias ouve-se: "equipa que ganha não se mexe". É evidente que isto tem que se lhe diga, no entanto, arrasta consigo a ideia que a mudança radical de uma equipa pode não corresponder a um bom resultado. Se bem que, no exercício da política, os contornos sejam distintos porque ali, no tabuleiro do jogo partidário os interesses sejam múltiplos, sem grande esforço podemos, por aproximação àquela frase, especular sobre alguns aspectos que qualquer cidadão, atento às autárquicas, gostaria de tomar consciência.



E isto coloca-se sob a forma de perguntas. Aqui as deixo:

1. Que razões subjazem ao facto da equipa do PSD, no seu tronco central, ter sido completamente afastada? Todos têm o direito de assumir que não estão interessados em continuar, mas a verdade é que, pelo menos um se disponibilizou a assumir uma candidatura e, mais tarde, uma respeitada figura do partido veio falar que estaria em preparação uma "golpada", que terá levado a primeira figura, publicamente convidada para liderar a equipa concorrente, acabasse por abdicar da sua candidatura. O que estará por detrás de tudo isto, pergunto? "Golpada", qual? E a "limpeza" deveu-se a quê?

2. Acompanhei, pela comunicação social, ao longo dos últimos quatro anos, o trabalho de oposição feito pelos vereadores da "Confiança". Do Engº Miguel Silva Gouveia, que já foi presidente da Câmara, com quem falei, presencialmente, uma única vez, a ideia que retive, é que desempenhou uma tarefa de oposição consistente, permanente, educada no relacionamento político e com propostas de significativo alcance. Ele e a sua equipa não se perderam na baixa política. Pelo contrário. Mas, quando tudo levava a crer que estariam na primeira linha de recondução, eis que foram postos a andar, exactamente numa altura de clara fragilidade dos seus mais directos opositores. Também aqui seria interessante conhecer os meandros da história.

O pior de tudo isto é que, nem uma nem outra candidaturas têm uma proposta profundamente pensada para o Funchal. Enquanto cidadão sinto que andam atrás dos "casos do dia".

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

BRICS+ em movimento


Por
João Abel de Freitas,
Economista

A Declaração da última cimeira dos BRICS, este ano, destaca a reconfiguração da Ordem Internacional, consubstanciada na exigência de uma Governação Global mais justa e plural.



Antes da interrupção de Verão, razões várias nos impelem a falar dos BRIC/BRICs, BRICS e BRICS+. Uma simples referência a ligar aos dias de hoje, onde as incertezas económicas, ao lado de grande instabilidade política, se acumulam cada vez mais no Horizonte, para o que muito contribui a “imprevisibilidade” chantagista de Trump.

Os BRIC, a caminhar para a sua maioridade de existência informal, pois os contactos de arranque entre os países fundadores, Brasil, Rússia, India e China (BRIC) deram-se por volta de 2005/2006, conquanto a formalização do grupo só tenha tido lugar, em 2009, com a Primeira Cimeira de Ekaterimburgo, na Rússia.

Em 2011, de BRIC passou-se a BRICS, com a inclusão da Africa do Sul (South Africa), por sugestão da China de integrar o continente africano, para ampliar a representatividade geográfica e a diversidade cultural. E, 12 anos mais tarde, surgem os BRICS+, como resultado da 15ª Cimeira de Joanesburgo (22 a 24 de Agosto2023), que decide o alargamento, a partir de 1 de Janeiro 2024.

Muito tempo foi passando, com a economia mundial, aqui e ali, muito titubeante, a rodar sobre as Instituições (FMI e Banco Mundial), saídas da Conferência de Bretton Woods (Julho 1944), impostas pelos EUA, com a oposição do Reino Unido e seu representante, o economista John Maynard Keynes.

Assim, desde a Segunda Guerra Mundial, têm estas duas Instituições vindo a cunhar o andamento da economia mundial, com o dólar americano como moeda-rei.

No período anterior aos contactos entre os futuros BRIC, por vezes, também se escreve BRICs (este s é plural), ou seja, desde os finais dos anos 90 (século XX), o desempenho destas Instituições, com relevância para o FMI, não apresentava boas performances e, menos ainda, simpatia, apesar de, desde 1944, não haver equívocos dos interesses que serviam: o Ocidente, sob a tutela dos EUA. Daí, a sua imagem face ao restante Mundo, [hoje, denominado “Sul global”] ser deveras pouco apreciada. Mas quem tem poder militar vai impondo, a bem ou a mal, o mando do Mundo.

Quem não se recorda dos programas de Ajustamento Estrutural (chapa 4 do FMI), no “chamado apoio” aos países do então terceiro mundo e mesmo de países europeus em crise?! Portugal tem memória disso, até em períodos diferentes. Quem não se recorda da politização dos empréstimos de que beneficiavam, em condições e rapidez de concessão, os países mais afectos aos EUA!!

Mas pensamos que o demérito a sério, símbolo do maior descrédito, consubstanciou-se em duas situações em que a incapacidade institucional dos EUA, através dos seus instrumentos financeiros (FMI e BM), ficou bem demonstrada: a crise asiática (1997/8) e a crise dos “subprime” 2008.

Na crise asiática, com base na da Coreia não debelada, o Japão tentou avançar com sugestões de fortalecimento da missão do FMI na Ásia. Foi completamente trucidado pelos EUA que não aceitaram nenhuma das propostas, mostrando assim a sua incapacidade ou interesse em agir fora da esfera americana.

Na crise dos “subprime”, os EUA, através do FMI, mostram uma vez mais que não reúnem capacidade institucional para agir, dentro do seu próprio espaço, pois não atalhou, a tempo, uma crise gerada em torno do dólar, deixando-a alastrar à economia no seu todo, com maior ou menor impacto, consoante as condições das regiões e países.

Neste contexto, se constituem os BRICS em linha discordante com a Governação do Mundo, assente nas Instituições saídas de Bretton Woods e de algumas outras constituídas, posteriormente, como a Organização Mundial do Comércio, mas funcionando na mesma onda de defesa da economia do Ocidente, quando cada vez esta estava em perda contínua de representatividade na economia global.

Aparecimento dos BRICS

Há várias leituras sobre se os BRICS nasceram para reivindicar a partilha de poder na Governação mundial com uma representatividade correspondente à sua importância ou se como alternativa de, a prazo, construir um outro tipo de Governação, assente em novos princípios e Instituições.

Talvez uma leitura não exclua a outra. O certo é que o Ocidente não admitiu partilhas, mesmo as mais normais, por exemplo, uma maior influência das economias emergentes no Banco Mundial ou a reforma do FMI, tornada necessária, com a crise dos “subprime”.

Não havendo abertura, naturalmente outros caminhos se impuseram. Os BRICS vão-se fortificando com suas análises e debates, na criação de comissões com vida própria produzindo propostas/recomendações e pela realização de uma Cimeira anual em que se procura integrar o trabalho desenvolvido nas diversas frentes.

No seio dos BRICS, a dinâmica de cooperação e debate tem criado um património comum de ideias, base e fundamentação de mudanças que vai materializando ou operacionalizando com mais ou menos dificuldades, até porque os BRICS desde início tinham definidos três grandes áreas de acção: “reforma das instituições financeiras internacionais; fortalecimento do comércio entre os países membros; promoção do crescimento económico sustentado e inclusivo”. A questão estava/está em “saber” consensualizar, entre países nada homogéneos, o modelo de os concretizar.

Não podemos deixar de referir o muito trabalho que levou à criação do Banco dos BRICS (Novo Banco de Desenvolvimento), em 2014 na Cimeira de Fortaleza, tornado operacional, em 2016, com sede em Xangai. Uma etapa certamente marcante da sua vida futura.

Importante ver se esta Instituição nasce diferenciada das congéneres ocidentais apenas por não ser de sua iniciativa, ou se foi além, desenhada com princípios diferentes mais favoráveis aos países emergentes?

Do que tem funcionado, são notórias as diferenças. Desde logo a composição do capital (igualdade nas quotas) e a concessão dos empréstimos com liberdade na definição de prioridades (contrariando os métodos FMI), o que tem suscitado uma enorme empatia pelos BRICS e, neste contexto, surgiu a figura nova de “país parceiro”, na Cimeira 2024, em Kazan, na Rússia. Mas atenção, falta muito a percorrer!

Este ano, sob a Presidência do Brasil, realizou-se a 17ª. Cimeira, em 6 e 7 de Julho2025, em situação algo complexa, no xadrez mundial. A Declaração, que marca sempre as Cimeiras não falhou tendo como destaque principal, o que não é estranho, a reconfiguração da Ordem Internacional, consubstanciada na exigência de uma Governação Global mais justa e plural, com ênfase na Modernização do Conselho de Segurança da ONU (exigência de novos países) e expresso repúdio dos ataques contra o Irão – país que integra os BIRCS+.

Hoje, vigora a tese de que os BRICS, como actor coletivo, têm vindo a ganhar poder no tabuleiro mundial o que, a prazo, os levará a influenciar mudanças determinantes na organização mundial da economia. Pena é que a União Europeia, mais uma vez, tenha claudicado perante Trump, de forma até pouco digna, sujeitando-se Von der Leyen a ir a um campo de golfe do próprio, quando as negociações exigiam formalidade. Desta forma perde lugar nesta disputa mundial.

Trump, por seu lado, está “a facilitar” este crescendo dos BRICS que cada vez mais se identificam com os interesses do “Sul Global” e estão a reunir em vários domínios condições de consolidação, como as terras raras, onde o Brasil vai entrar a marcar pontos, contribuindo para o reforço dos BRICS, e nas tecnologias de ponta. Tudo isto terá o seu tempo. Mas o Ocidente está, de facto, em causa, com um mundo multipolar a caminho.