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quinta-feira, 30 de junho de 2022

A luta antiaborto é uma luta pelo poder político?


estatuadesal
Pedro Tadeu, 
in Diário de Notícias, 
29/06/2022

A discussão pública suscitada pela reversão de uma decisão jurídica de 1973, que permite aos estados dos Estados Unidos da América proibirem a interrupção voluntária da gravidez, está a falhar um dos múltiplos ângulos, complicados, de que se reveste: a utilização da sexualidade como instrumento de poder e de conquista do poder.




Michel Foucault estudou a relação entre poder e sexo na sua História da Sexualidade e na tese A Vontade de Saber, onde tenta demonstrar (e aqui faço, necessariamente, uma explicação grosseira da ideia, que é complexa) que a sociedade ocidental, a partir de determinada altura, mais do que reprimir ou condicionar a atividade sexual, criou mecanismos religiosos, políticos e científicos (e estes incluem a pedagogia, a psiquiatria, a psicanálise, a ginecologia, etc.) que não têm por objetivo fazer calar o sexo. Pelo contrário, todas essas estruturas fazem com que as pessoas falem de sexo e o tragam à tona na conversa com o padre, com o médico, com o mestre, com o amigo, com o familiar, e fazem-no contando os mais ínfimos detalhes, admitindo os mais diversos tipos de desejos, procurando um enquadramento moral, uma legitimidade política, uma certificação científica ou um abraço cúmplice que acarinhe a sua suposta intimidade.

Este impulso pode, para Foucault, ter origem numa prática de raízes cristãs: a confissão.

Para Foucault todo este dispositivo orienta e dirige as pessoas sobre quais as condutas sexuais que podem ser praticadas. Embora este sistema pareça que não atua sobre os desejos e os impulsos preexistentes dos indivíduos, afeta toda a vida humana pois normaliza os comportamentos e condiciona-os a determinados padrões considerados aceitáveis - mesmo que, aparentemente, "mais avançados" do que os hábitos sexuais que ficcionamos terem existido noutras épocas.

Do meu ponto de vista, a luta em torno da ilegalização do aborto, apesar de argumentado em nome da defesa da vida humana, é primordialmente uma discussão em torno de luta pelo poder de determinar as regras desse normativo da sexualidade, uma tentativa de ditar o que é "aceitável" nos comportamentos sexuais - e não é por acaso que a confrontação entre adeptos a favor ou contra o aborto quase (não completamente, mas quase) coincide com a confrontação entre adeptos a favor ou contra os direitos LGBTQIA+. Ambas as fações lutam por esse domínio, por esse poder de determinar a sexualidade aceitável.

Para os adeptos da "Defesa da Vida", a normalização sexual que procuram impor implica a sua limitação e a criminalização do aborto é um instrumento para o conseguir - por exemplo, ao punir com penas que podem ir até 15 anos de cadeia (como um dos estados norte-americanos está a pensar aplicar) mulheres e pessoal de Saúde que façam abortos, está-se, implicitamente, a tentar assustar as pessoas que levem uma vida sexual dita "irresponsável", impondo uma normalização de comportamentos sexuais mais restrita.

Claro que este não é o aspeto, no imediato, mais relevante da questão, mas convém não perdê-lo de vista - a reação do movimento antiaborto nos Estados Unidos que permitiu esta reviravolta é realmente reacionária, na definição política habitual, pois é a resposta direta, é a reação ao ascenso das causas identitárias de género (e, portanto, de prática sexual), cujos avanços na conquista pelo poder do normativo sexual e a tentativa de o tornar "progressista" acabaram por criar esta resposta de quem não quer perder o domínio do normativo "conservador" anterior.

Esta luta é, portanto, uma vertente da luta pelo poder político entre o "trumpismo" e seus satélites contra os liberais norte-americanos, mais ou menos progressistas.

Na Europa - e em Portugal - o espelho dessa reação norte-americana está a trabalhar para fazer o mesmo.

Escrevi que esta análise, que me parece relevante, não é, porém, sobre o ponto mais importante do debate acerca do aborto. Então qual é esse ponto?... Obviamente é este: as mulheres pobres, oprimidas, violentadas, desesperadas ou, simplesmente, infelizes que vão engravidar e, se nada se alterar, irão morrer a tentar abortar sem assistência médica adequada. Morrerão em nome da "Defesa da Vida".

Jornalista

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Ursula von Der Leyen pensa mesmo em democracia?


Por
estatuadesal
Pedro Tadeu*
in Diário de Notícias, 
22/06/2022

Fui ler a entrevista coletiva que a presidente da Comissão Europeia deu a vários órgãos de comunicação social. Logo na terceira frase, reproduzida pelo jornal Público, a senhora dispara esta pérola: "Tem de haver apoio militar (à Ucrânia) e estamos a fazer a nossa parte com cerca de 2000 milhões de euros canalizados pelo Mecanismo de Apoio à Paz".





A análise a esta frase de Ursula von der Leyen suscita-me algumas questões e permite-me retirar várias informações e ilações curiosas:

1 - A União Europeia tem um sistema de apoio às guerras que, hipocritamente, se chama de "apoio à paz".
Que belo conceito de paz tem Ursula von Der Leyen!

2 - A União Europeia, segundo esta declaração, já gastou com a Ucrânia dois mil milhões de euros em armas, a que se acrescentam as quantias que cada país europeu gasta por iniciativa própria... e os Estados Unidos, e a Inglaterra, e sei lá que mais!

3 - O ano passado o texto da Decisão do Conselho Europeu 2021/509, de 22 de março de 2021, dizia que este "Mecanismo de Apoio à Paz" só podia gastar 540 milhões de euros durante 2022. O valor apontado por Ursula von der Leyen é 3,7 vezes superior e resulta de uma sequência de decisões do Conselho Europeu tomadas entre 28 de fevereiro e 23 de maio, após a invasão russa.

4 - Para além da compra de armas para a Ucrânia, este "Mecanismo de Apoio à Paz" anda a financiar operações nos Balcãs, no Corno de África, na Somália, no Mali, na República Centro-Africana, na Líbia e em Moçambique. Em algumas destas operações há militares portugueses envolvidos.

5 - Na Líbia, como denunciou recentemente uma reportagem da revista New Yorker, para além de outras tarefas, este "Mecanismo de Apoio à Paz" serve também para impedir indiretamente a entrada de imigrantes na Europa, que acabam por ser levados para prisões em condições miseráveis na Líbia, sujeitos ao arbítrio de guardas violentos, corruptos e de traficantes de escravos.
Que belo conceito de direitos humanos tem Ursula von Der Leyen!

6 - O demérito da operação na Líbia (onde ocorre, na realidade, um crime contra a humanidade, ao nível dos crimes de guerra que estão a ser perpetrados na Ucrânia e do qual a União Europeia é, pelo menos, cúmplice por omissão) não invalida o eventual mérito das outras missões... Vou ser caridoso e admitir que sim.

7 - Com este dinheiro para armar a Ucrânia, retirado ao "Mecanismo para a Paz", há uma questão para a qual não encontrei resposta: se esta verba é diminuída ao valor total deste fundo (até 2027 podia gastar-se, em fatias repartidas ano a ano, um total de 5,7 mil milhões de euros), não vai faltar dinheiro para as outras missões?

8 - Em alternativa à pergunta anterior, surge-me esta: se os dois mil milhões são adicionados ao dinheiro que já existia no fundo, de onde é que vem essa nova quantia?
Que bela informação aos cidadãos europeus presta Ursula von der Leyen!

9 - Já agora, gostaria também de saber que parte dos meus impostos está a ser usado para comprar armas para a guerra na Ucrânia e, como o dinheiro é finito, em que áreas os meus impostos deixaram de ser usados para a Ucrânia poder ter estas armas?
Que belo conceito de transparência política tem Ursula von Der Leyen!

10 - Admitindo que é boa ideia dar armas ao governo de Zelensky (quem quiser discutir isto, hoje em dia, é logo cuspido e estou farto de ter de lavar a cara), gostava de saber, pelo menos, o seguinte: a quem se compram essas armas? Quem as fabrica? Que tipo de armas são? São armas novas ou em segunda mão? Há algum controlo para impedir a sua utilização contra civis? A informação que há sobre isto está dispersa e é contraditória.
Que belos negócios estão a passar-se sob o olhar de Ursula von der Leyen!

Mais à frente, nessa entrevista, a presidente da Comissão Europeia tem outra saída, brilhante, sobre os critérios para admitir a Ucrânia na União: o país, diz ela, "tem uma democracia parlamentar funcional".

Sim, realmente a Ucrânia tem um Parlamento que talvez funcione, pelo menos vão lá umas pessoas de vez em quando. Mas não tem lá, por exemplo, o nome do partido "Plataforma da Oposição - Pela Vida", que tinha eleito 47 deputados e acabou de ser proibido. É um entre onze, todos acusados de serem pró-russos, o que observadores independentes, em relação a grande parte deles, contestam.

Por acaso os partidos proibidos são é todos partidos eurocéticos, o que deve deixar Von der Leyen a sorrir com tão bom funcionamento institucional na Ucrânia. Tão bom, tão bom que, aliás, já em 2014, antes desta guerra, proibira todos os partidos comunistas!...

Que belo conceito de democracia tem Ursula von der Leyen!

*Jornalista

quarta-feira, 22 de junho de 2022

51356


Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 
17/06/2022

Como sempre acontece com tudo, a guerra na Ucrânia vai perdendo aos poucos o monopólio das atenções. Para tudo dizer em poucas e cruéis palavras, já estamos todos fartos da guerra na Ucrânia. Mas seguramente ninguém mais do que os ucranianos: mais de 4 milhões permanecem ainda exilados no estrangeiro e, embora muitos tenham já regressado, o que encontram em muitos casos e muitos lados é um país desfeito e cujo futuro próximo não parece ser outro senão o contínuo troar dos canhões e a destruição paulatina de qualquer hipótese de regresso a uma vida normal. 


Todas as noites as televisões repetem imagens de pré­dios, escolas, hospitais em ruínas, campos minados e cidades semidesertas, e servem-nos intermináveis entrevistas com habitantes que apenas pedem o fim da guerra e uma oportunidade para retomarem as suas vidas. Todavia, invocadas sondagens cuja origem é misteriosa garantem-nos o contrário: que a grande maioria dos ucrania­nos deseja que a guerra prossiga até à derrota total do invasor russo. E todas as noites Zelensky, o Presidente dos ucranianos, aparece-lhes na televisão, vestido com a sua eterna T-shirt verde-militar, a prometer mais guerra e a pedir aos amigos da NATO novas e mais mortíferas armas para combater os russos. Fora isso, e das raras vezes que vai ao terreno, curio­samente só vemos Zelensky entre militares — discursando-lhes, condecorando-os, exortando-os a prosseguir o combate —, mas jamais o vemos entre os civis, prometendo-lhes mais sangue, suor e lágrimas e encorajando-os a sofrer mais morte e destruição sem fim à vista. Uma falha na meticulosa operação de imagem do Churchill dos tempos modernos.

Ilustração Hugo Pinto

Há um mês, os EUA, a Inglaterra e a NATO tinham convencido Zelensky de que a vitória era possível e estaria iminente: a Rússia ficaria de tal forma debilitada que tão cedo não se atreveria a ameaçar a Ucrânia ou quem quer que fosse. Era esse o objectivo final, conforme explicou em Kiev o secretário da Defesa americano. A imprensa ocidental ajudava a essa crença, descrevendo, com base sobretudo em informações dos serviços militares ingleses, uma força russa desmotivada, desorganizada, mal abastecida e mal comandada. Assim sendo, qualquer veleidade de retomar negociações de paz não só seria um favor feito a Putin, como soaria até a traição. Mas, entretanto, a situação mudou no terreno e mesmo os mísseis de longo alcance fornecidos por Londres e Washington não conseguiram evitar a inversão da situação militar a favor dos russos. Mariupol caiu e o Donbas está praticamente todo nas mãos de Putin, o seu primeiro objectivo militar declarado. Neste momento, até “a necessidade de evitar a humilhação da Rússia”, a declaração de Macron que lhe valeu tantos insultos em Kiev, parece ultrapassada pelos acontecimentos no terreno. O que poderá aquele trio de falcões do lado de cá fazer a seguir? Fornecer armas nucleares tácticas à Ucrânia: dar o passo que falta em direcção à guerra total ou conformar-se, não com a humilhação da Rússia, mas da NATO?

Entretanto, como vamos reparando todos os dias e como era de prever, a Europa, 600 milhões de europeus, mais uns milhões indeterminados de africanos e, entre eles, os pobres entre os pobres estão prisioneiros desta guerra que não começaram, que não quiseram, mas que, segundo nos contaram, serviu para unir mais do que nunca a Europa e a NATO. Mas, arrostando outra vez com a fúria dos sapientes de olhos vendados, deixem-me recapitular a versão alternativa dos factos — que, dia após dia, vem emergindo à superfície até ao dia em que, tal como sucedeu com o Iraque, saberemos a verdade toda, apenas uns milhares de mortos tarde demais.

Esta guerra podia e mais do que devia ter sido evitada e houve tempo suficiente para o fazer. Pessoalmente, comecei a escrever isso dois meses antes do 24 de Fevereiro, impressionado com a estranha passividade com que toda a gente, ONU incluída, via rufar os tambores de guerra e nada fazia para a evitar, nomeadamente trazer as partes de volta aos Acordos Kiev-2, que Putin declarou aceitar como solução definitiva. Apesar disso, acreditei que Putin não invadiria a Ucrânia, de tal forma esse passo me parecia estúpido e desproporcionado. Mas fê-lo, em força e à bruta, que é a maneira russa, sendo que também não há maneiras brandas nem limpas de fazer a guerra. No início, Zelensky deu sinais de estar disposto a negociar e houve várias tentativas de entendimento directo entre russos e ucranianos, mas sempre mediadas ou intermediadas por potências “menores”, como a Turquia ou Israel, sem que os “grandes” se envolvessem — o que foi estranho. E quando os “grandes” finalmente entraram em cena, foi para apostarem abertamente na guerra — o que me tornou as coisas mais claras. A guerra na Ucrânia convinha e convém à Grã-Bretanha cujo primeiro-ministro precisa desesperadamente de causas externas — a Ucrânia, a violação dos acordos do ‘Brexit’, a expulsão dos emigrantes negros para o Ruanda — para que o seu patético desempenho do cargo lhe permita ainda flutuar durante uns tempos mais à tona da sua mediocridade política. Biden precisa da Ucrânia para fazer esquecer a vergonha da retirada do Afeganistão, para substituir junto dos europeus os fornecimentos de gás e petróleo de Moscovo e para lhes vender armas, pois que, desgraçadamente, toda a política americana está cativa dos fabricantes de armas: quer a política interna quer a política externa. E a NATO, nas mãos desse sinistro Stoltenberg, tem tudo a ganhar: importância acrescida depois de ter estado à beira da morte, novos membros e novas áreas de actuação, mais poder militar e mais poder político, recuperando os EUA como líder indispensável em troca de subscrever e acompanhar todos os seus interesses estratégicos, até aos mares da China, se necessário, e como Stoltenberg já foi avisando.

Parece-vos uma visão simplista das coisas? Pois, talvez. Mas não o é menos a visão oposta: a de que a Rússia, sem qualquer razão para ver na contínua expansão em direcção às suas fronteiras da NATO (uma organização puramente “defensiva”), sem nenhuma razão para se opor à adesão de mais um membro, a Ucrânia, lançou uma guerra que, se não for travada ali, irá pela Europa fora até ao Atlântico. Concedo que em Moscovo reina um louco, só não me convenço que do lado de cá reinem missionários da paz.

Mas, entretanto, aqui na Europa — cuja política se resume ao seguidismo em relação aos americanos, à NATO e a Zelensky — os cidadãos comuns vão agora começando a perceber o preço que tem uma guerra que não foi evitada quando o podia ter sido e que ninguém quer parar. A Rússia, que nos garantiram ser um ‘tigre de papel’ económico que se desmoronaria em três tempos com as sanções, está aparentemente bem melhor do que os europeus.

Os brilhantes estrategos deveriam ter meditado nas lições da História e ter-se lembrado de que, enquanto César conquistava a Gália, a Helvécia, a Germânia e a Bretanha inglesa, alargando os limites ocidentais do Império Romano até às fronteiras atlânticas, Roma estava à beira de se desmoronar pela revolta popular motivada pela falta de trigo para o pão. Esqueceram-se os estrategos de que “o tigre de papel russo” tinha duas armas determinantes: energia e cereais, e a possibilidade de cortar as exportações dos cereais da Ucrânia através do Mar Negro. E agora até há “analistas” que falam na “primeira guerra alimentar da História” — uma coisa tão velha e tão usual nas guerras como a própria História. Putin deve estar a rir-se contemplando o resultado das sanções na Europa: energia a preços sem controlo e inflacionando tudo em cadeia, falta de cereais, recessão ao virar da esquina e combate às alterações climáticas chutado para o caixote do lixo.

Mas não só: os próprios fundamentos da Europa e da União Europeia como referência do primado da lei e dos direitos humanos estão a ser afastados pela necessidade de se submeterem aos novos interesses dominantes.

Só o Parlamento Europeu impediu (para já...) Ursula von der Leyen de fazer tábua-rasa da recusa da Polónia em obedecer à legislação europeia em matéria de independência judicial e direitos individuais, dando-lhe €36 mil milhões como prémio de ser dos maiores apoiantes da NATO e da Ucrânia. Mas a mesma Von der ­Leyen foi a Kiev declarar que a Ucrânia, um dos Estados mais corruptos da Europa, “já antes da guerra cumpria os critérios de adesão à UE” e que o país, onde Zelensky acaba de ilegalizar oito partidos políticos, “é uma democracia parlamentar sólida”. E o já citado secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, que agora também já se imiscui na política interna dos paí­ses, declarou-se “muito feliz” porque a Suécia “está a levar muito a sério as preocupações da Turquia com a sua segurança e já começou a mudar a sua legislação antiterrorista”. Ou seja, para ultrapassar o veto da Turquia à adesão da Suécia e Finlândia à NATO, os suecos estarão a preparar-se para declarar o PKK curdo como organização terrorista, como pretende a Turquia, acabando com o asilo político que davam aos seus militantes perseguidos por Ancara. Os mesmos que na Síria foram aliados preciosos de europeus e americanos no combate contra os verdadeiros terroristas do Daesh. Para tudo isto, li algures uma extraordinária explicação “democrática”: estamos em guerra e em guerra funciona o estado de excepção — até para os direitos humanos.

Eis para onde caminha a Europa dos valores e da prosperidade. Eis o preço a pagar por esta guerra da qual somos todos prisioneiros.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

segunda-feira, 13 de junho de 2022

A guerra na Ucrânia marca o fim do século americano


Por
estatuadesal
Mike Whitney, in UNZ, 
07/06/2022, Trad. Estátua de Sal




"A ferocidade do confronto na Ucrânia mostra que estamos a falar de muito mais do que do destino do regime de Kiev. A arquitetura de toda a ordem mundial está em jogo. (Sergei Naryshkin, Diretor de Inteligência Estrangeira).


Eis o pensamento do dia sobre a "moeda de reserva": cada dólar americano é um cheque passado sobre uma conta com um saldo negativo de 30 triliões de dólares.

É isso mesmo. A "plena fé e crédito" no Tesouro dos EUA é, em grande parte, um mito mantido por um quadro institucional que repousa sobre fundações de areia. Na verdade, o dólar não vale o papel em que é impresso; é um IOU (isto é uma promessa de pagamento, "I Owe You") a lutar num mar de tinta vermelha. A única coisa que impede o dólar de desaparecer no éter é a confiança das pessoas ingénuas que continuam a aceitá-lo como moeda legal.

Mas porque é que as pessoas mantêm a fé no dólar quando as suas falhas são do conhecimento geral? Afinal, os 30 triliões de dólares da dívida nacional americana não é segredo, nem os 9 triliões de dólares adicionais acumulados no balanço do FED. É uma dívida furtiva que o povo americano desconhece completamente, mas pela qual é, no entanto, responsável.

Para responder a esta pergunta, precisamos de ver como o sistema capitalista funciona realmente e como o dólar é apoiado pelas muitas instituições que foram criadas após a Segunda Guerra Mundial. Estas instituições gerem o ambiente necessário para a fraude mais longa e mais flagrante da história - a troca de bens manufaturados valiosos, matérias-primas e trabalho árduo por pedaços de papel verde impressos com presidentes mortos. Só podemos maravilhar-nos com a genialidade das elites que inventaram este esquema e depois o impuseram às massas sem um grito de protesto. Naturalmente, o sistema é acompanhado por vários mecanismos de aplicação que eliminam rapidamente qualquer pessoa que tente libertar-se do dólar ou criar outro sistema. (Lembro-me logo de Saddam Hussein e de Muammar Gaddafi). Mas o facto é que - para além do quadro institucional e do extermínio implacável dos opositores ao dólar - não há razão para a humanidade permanecer apegada a uma moeda que está enterrada sob uma montanha de dívida e cujo valor real é praticamente desconhecido.

Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que o dólar era a moeda mais forte do mundo e merecia o seu lugar no topo. Após a Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos eram "o dono da maior parte do ouro do mundo". É por isso que uma delegação internacional "decidiu que as moedas do mundo já não estariam ligadas ao ouro, mas poderiam estar ligadas ao dólar americano", porque o dólar americano estava, ele próprio, ligado ao ouro. Sobre o tema, eis um artigo da Investopedia:

"O acordo ficou conhecido como o Acordo de Bretton Woods. Estabeleceu a autoridade dos bancos centrais para manter taxas de câmbio fixas entre as suas moedas e o dólar. Em troca, os Estados Unidos comprariam de volta os dólares americanos, pagando em ouro.

O dólar americano foi oficialmente adotado como a moeda de reserva mundial e foi apoiado pelas maiores reservas mundiais de ouro devido ao Acordo de Bretton Woods. Em vez de reservas de ouro, os outros países passaram a acumular reservas em dólares americanos. Precisando de um local para guardar os seus dólares, os países começaram a comprar títulos do Tesouro americano, que viam como uma reserva de dinheiro segura.

A procura de títulos do Tesouro, juntamente com os gastos deficitários necessários para financiar a Guerra do Vietname e os programas internos da Grande Sociedade, levaram os EUA a inundar o mercado com papel-moeda...

Tal foi a procura de ouro que o Presidente Richard Nixon foi forçado a intervir e desvincular o dólar do ouro, criando-se o sistema de às taxas de câmbio flutuantes que existe hoje. E embora tenha havido períodos de estagflação, definidos como inflação elevada e desemprego elevado, o dólar americano tem permanecido a moeda de reserva mundial." (Ver aqui o artigo original da Investopedia).

Mas hoje, o ouro desapareceu e o que resta é uma pilha fumegante de dívidas. Então, como é que o dólar conseguiu manter o seu estatuto de moeda proeminente do mundo?

Os apoiantes do sistema do dólar dirão que tal tem algo a ver com "o tamanho e a força da economia dos EUA e o domínio dos mercados financeiros". Mas isto é um disparate.

A verdade é que o estatuto de moeda de reserva não tem nada a ver com o "tamanho e força" da economia americana pós-industrial, orientada para os serviços, impulsionada por bolhas, com traços merdosos de economia do terceiro mundo. Também não tem nada a ver com a suposta segurança dos títulos do Tesouro dos EUA que – ao lado do dólar – são o maior esquema de Ponzi de todos os tempos.

A verdadeira razão pela qual o dólar continuou a ser a principal moeda mundial é a cartelização dos bancos centrais. Os bancos centrais ocidentais são um monopólio, de facto, dirigido por uma pequena cabala de corredores de fundo que coordenam e conluiam a política monetária a fim de preservar o seu domínio maníaco sobre os mercados financeiros e a economia mundial. É uma Máfia Monetária e, como George Carlin disse: "Tu e eu não fazemos parte dela. Tu e eu não estamos no clube grande. Em resumo: É a manipulação implacável das taxas de juro, previsões e flexibilização quantitativa (QE) que tem mantido o dólar no seu alto mas imerecido pedestal.


Mas tudo isso está prestes a mudar, inteiramente devido à política externa imprudente de Biden, que está a forçar os principais atores da economia global a criarem o seu próprio sistema rival. Esta é uma verdadeira tragédia para o Ocidente, que beneficiou de um século de extração ininterrupta de riqueza do mundo em desenvolvimento. Agora, devido às sanções económicas impostas à Rússia, está a surgir uma ordem inteiramente nova em que o dólar será substituído por moedas nacionais (tratadas por um sistema de liquidação financeira independente) em acordos comerciais bilaterais, até ao final deste ano, quando a Rússia lançar uma moeda apoiada por mercadorias para utilização pelos seus parceiros comerciais na Ásia e África. O roubo em Abril das reservas da Rússia no estrangeiro deu início ao atual processo, que foi ainda mais acelerado pelo banimento da Rússia nos mercados internacionais. Em suma, as sanções e boicotes económicos dos EUA expandiram a zona não-dólar em várias ordens de magnitude e forçaram a criação de uma nova ordem monetária.

Quão estúpido não é tudo isto? Durante décadas, os Estados Unidos têm gerido um esquema em que trocam a sua moeda de embrulhar peixe por coisas de valor real (petróleo, bens manufaturados e mão-de-obra). Mas agora a trupe de Biden abandonou completamente este sistema e dividiu o mundo em diferentes campos.

Mas porquê? Para castigar a Rússia, certo? Sim, é isso mesmo.

Mas se for esse o caso, não deveríamos tentar descobrir se as sanções realmente funcionam, antes de mudarmos imprudentemente o sistema?

É demasiado tarde para isso. A guerra contra a Rússia já começou e os primeiros resultados já estão a ser sentidos. Basta olhar para a forma como destruímos a moeda russa, o rublo. É chocante! De acordo com um artigo da CBS:

"O rublo russo é a moeda com melhor desempenho do mundo este ano"...

Dois meses após o valor do rublo ter caído para menos de um cêntimo de dólar, devido às sanções económicas mais rápidas e mais severas da história moderna, a moeda russa registou uma recuperação espantosa. O rublo saltou 40% em relação ao dólar desde Janeiro.

Normalmente, um país que enfrenta sanções internacionais e um grande conflito militar vê os investidores a fugir e o capital sair constantemente, provocando a queda da sua moeda...

A resiliência do rublo significa que a Rússia está parcialmente protegida das sanções económicas punitivas impostas pelas nações ocidentais após a sua invasão da Ucrânia... " (Ver o artigo da CBS NEWS aqui).

O quê? Quer dizer que o ataque ao rublo afinal não resultou de todo?

Parece que não. Mas isso não significa que as sanções sejam um fracasso. Oh, não. Basta olhar para o efeito que tiveram sobre os produtos russos. As receitas de exportação estão a cair, certo? Aqui está mais informação da CBS:

"Os preços das mercadorias estão muito elevados neste momento, e embora os volumes de exportação russos tenham caído devido a embargos e sanções, o aumento dos preços das mercadorias está mais do que a compensar estes declínios", disse Tatiana Orlova, economista sénior de mercados emergentes da Oxford Economics.

A Rússia ganha quase 20 mil milhões de dólares por mês com as suas exportações de energia. Desde o final de Março, muitos compradores estrangeiros têm cumprido a exigência de pagar a energia em rublos, aumentando o valor dessa moeda" (Ver o artigo da CBS NEWS aqui).

Está a brincar comigo? Quer dizer que o rublo está a subir e Putin está a ganhar mais dinheiro do que nunca em matérias-primas?

Sim, e o mesmo se aplica ao excedente comercial da Rússia. Veja este extrato de um artigo no The Economist:

"As exportações da Rússia... aguentaram-se surpreendentemente bem, incluindo as exportações para o Ocidente. As sanções não estão a impedir que as vendas de petróleo e gás para a maior parte do mundo continuem ininterruptamente. E a subida dos preços da energia aumentou ainda mais as receitas.

Como resultado, os analistas esperam que o excedente comercial da Rússia atinja níveis recorde nos próximos meses. O Instituto de Finanças Internacionais estima que até 2022 o excedente da balança corrente, que inclui comércio e alguns fluxos financeiros, poderá atingir 250 mil milhões de dólares (15% do PIB do ano passado), mais do dobro dos 120 mil milhões de dólares registados em 2021. Vistesen diz ser dececionante que as sanções tenham aumentado o excedente comercial da Rússia, e assim ajudado a financiar a guerra. A Ribakova acredita que a eficácia das sanções financeiras pode ter atingido os seus limites. A decisão de reforçar ainda mais as sanções comerciais deve surgir em breve.

Mas estas medidas podem levar tempo a entrar em vigor. Mesmo que a UE implemente a sua proposta de proibição do petróleo russo, o embargo será implementado tão lentamente que as importações de petróleo da UE da Rússia cairão apenas 19% este ano, de acordo com Liam Peach da consultoria Capital Economics. O impacto total das sanções só será sentido no início de 2023, altura em que o Sr. Putin terá acumulado milhares de milhões de dólares em receitas para financiar a sua guerra." (Ver artigo do The Economist aqui).

Deixe-me ver se percebi bem: as sanções prejudicam realmente os EUA e ajudam a Rússia, por isso os peritos pensam que devemos impor mais sanções? É isso?

Exatamente. Agora que alvejámos um dos pés, os peritos pensam que seria sensato alvejar também o outro.

Serei eu o único a ser atingido pela loucura desta política? Veja este excerto de um artigo de RT:

"A Rússia pode ganhar um rendimento recorde de 100 mil milhões de dólares em vendas de gás a países europeus em 2022 devido ao aumento dos preços da energia, informou esta semana o jornal francês Les Echos, citando analistas do Citibank.

De acordo com o jornal, as receitas projetadas das vendas de gás serão quase duas vezes mais elevadas do que no ano passado. A análise não tem em conta os lucros da venda de outras mercadorias, tais como petróleo, carvão e outros minerais.

Les Echos relata que, apesar das sanções e advertências de um embargo abrangente à energia russa, os 27 países da UE continuam a enviar cerca de US$ 200 milhões por dia para a Gazprom". (Artigo da RT aqui. Mas não deve ver devido à censura à RT).

Assim, as receitas das vendas de gás e petróleo estão literalmente inundando os cofres de Moscovo como nunca antes houvera sucedido. Enquanto isso, os preços da energia na UE e nos Estados Unidos dispararam para os máximos de 40 anos.

Você pode ver como esta política é contraproducente?

A UE está a afundar-se numa recessão, as linhas de abastecimento foram gravemente perturbadas, a escassez de alimentos está a aparecer regularmente, e os preços do gás e do petróleo dispararam. Qualquer que seja o prisma de análise as sanções não só falharam, como também tiveram um efeito contrário espetacular. Será que a gente de Biden não vê os danos que está a causar? Estarão completamente fora do contacto com a realidade?

Imagine os ucranianos usando a nova bateria de artilharia de Biden (HIMARS) para bombardear cidades na Rússia? E depois o quê?

Depois Putin tira as luvas e corta imediatamente o fluxo de hidrocarbonetos para a Europa. Isto é o que acontecerá se Washington continuar a escalar. Podemos ter a certeza disso. Se a "operação militar especial" da Rússia se transformar subitamente numa guerra, as luzes por toda a Europa apagar-se-ão, as casas começarão a congelar, as fábricas ficarão em silêncio, e o continente deslizará de cabeça para uma depressão prolongada e dolorosa.

Alguém em Washington está a pensar nestas coisas, ou estão todos tão bêbados com os seus próprios recortes de notícias que perderam completamente o contacto com a realidade?

Aqui está mais de um artigo de RT:

"Enquanto o Ocidente coletivo continua a insistir - contra toda a realidade observável - que o conflito na Ucrânia está a correr bem para Kiev, os principais meios de comunicação social sentem-se cada vez mais desconfortáveis com a situação na frente económica. Cada vez mais observadores estão a admitir que os embargos impostos pelos EUA e seus aliados não estão a esmagar a economia russa, como inicialmente previsto, mas sim a sua própria economia.

"A Rússia está a ganhar a guerra económica", disse Larry Elliott, editor de economia do Guardian, na quinta-feira. "Já passaram três meses desde que o Ocidente lançou a sua guerra económica contra a Rússia, e não está a decorrer como planeado. Pelo contrário, as coisas estão mesmo a correr muito mal", escreveu ele...

Num ensaio publicado a 30 de Maio, o colunista do Guardian Simon Jenkins também disse que o embargo tinha falhado...

Como Jenkins salienta, as sanções aumentaram efetivamente o preço das exportações russas como o petróleo e os cereais - tornando Moscovo mais rico e não mais pobre, deixando os europeus com falta de gás e os africanos com falta de alimentos." (Artigo da RT aqui que não se deve ver devido à censura)

Compreendeu a parte em que se diz que "a Rússia está a ganhar a guerra económica"? O que pensa que isto significa em termos práticos?

Significa que a tentativa mal sucedida de Washington de manter a sua hegemonia global, "enfraquecendo" a Rússia, está de facto a exercer uma enorme pressão sobre a Aliança Transatlântica e a NATO, o que desencadeará uma recalibração das relações que levará a uma rejeição desafiante do "sistema baseado em regras".

É isto que significa? Irá a Europa separar-se de Washington e deixar a América afundar-se sob o seu oceano de 30 triliões de dólares de tinta vermelha?

Sim, é exatamente o que isso significa.

Os proponentes da guerra por procuração de Washington não têm ideia da magnitude do seu erro ou dos danos que estão a infligir ao seu próprio país. O desastre ucraniano é o culminar de 30 anos de intervenções sangrentas que nos trouxeram a um ponto de viragem em que o destino da nação está prestes a piorar. À medida que a zona do dólar encolher, o nível de vida diminuirá, o desemprego aumentará e a economia cairá em espiral.

Washington subestimou grosseiramente a sua vulnerabilidade a um retrocesso geopolítico catastrófico que está prestes a levar o novo século americano para um fim rápido e agonizante.

Um líder sábio faria tudo o que estivesse ao seu alcance para nos livrar desta confusão.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Açores e Madeira na senda de Charles Darwin


Por
06 Junho 2022


Em 1996, mais de um século depois, a Igreja acaba por admitir que a Teoria da Evolução de Darwin não era incompatível com a “fé cristã”. A curiosidade orientada é, pois, uma grande ferramenta e virtude de procura do conhecimento.



1. A demografia, entendida como os movimentos de aumento ou de redução da população e dos fluxos inter-grupos da espécie humana, é considerada por alguns estudiosos como uma das quatro forças globais e motoras que têm vindo, a ritmos diferentes, a moldar o planeta Terra, ao longo dos muitos milhares de anos da sua existência.

As outras três forças são a procura de recursos, a globalização e as alterações climáticas, todas elas assumidas numa perspectiva dinâmica de conceito e de visão, em que as mudanças tecnológicas desempenham um papel de charneira e alavanca. São forças-chave que vão continuar a marcar o futuro da Humanidade.

Há quem adicione as tecnologias como uma quinta força, porque interage intrínseca e activamente com todas as demais, as impulsiona e, por vezes, faz alterar o patamar e a dinâmica no interior de cada força global e na relação entre elas.

O conceito de demografia é, aliás, abrangente. Para além do seu uso na análise da dinâmica da população humana, pode ser utilizada em outros domínios como nas espécies vivas e até na vida (demografia) das empresas de um país, de uma região ou de um sector. Em tudo quanto nasce e morre.

2. As dinâmicas demográficas da espécie humana colocam-nos uma série de interrogações e reflexões não resolvidas em grande parte ou, sendo mais preciso, levam-nos a temas alvos de grande controvérsia, uns que se arrastam desde sempre e a que a ciência continua a tentar dar resposta e a outros novos como o do crescimento.

Será que algures no tempo vai dar-se uma inflexão ou, utilizando uma linguagem muito conhecida destes anos de Covid-19, será que a população humana vai entrar em planalto deslizante? Tema este, aliás, importante pois fez aparecer o malthusianismo com Thomas Malthus com quem Darwin se cruzou na fundamentação da sua Teoria e outros mais recentes como Paul Elrlich, biólogo da Stanford University, os dos excessos da população mundial a preconizar que “centenas de milhões de pessoas iam morrer de fome”.


Mas o Quando, o Onde surgiu o ser humano e o Como são áreas bem aliciantes. E o Como é aquela que nos atrai de momento, porque tem directa e indirectamente a ver ou se prende com esta ligação aos Açores e à Madeira.

Charles Darwin

3. A existência do ser humano à face do planeta Terra foi, durante longos anos, rodeada de um grande obscurantismo. A ciência dedicou-lhe pouca atenção ou então não teve condições para melhor. Apenas nos documentos de pendor religioso, com ênfase para a Bíblia, se davam respostas a este enigma e numa linguagem que é uma espécie de união entre o simbolismo e a metáfora.

A ciência pouco tinha avançado até 24 de Novembro de 1859, quando Darwin aparece com o seu livro “Sobre a Origem das Espécies através da selecção natural”, mais conhecido e editado, em vários idiomas, simplesmente com o título, “A Origem das Espécies”.

Após 20 anos de aturada investigação, com cinco de visitas pelo mundo para testar pela observação in loco certas hipóteses de trabalho, Darwin veio baralhar a sociedade mundial pacificada e ancorada na criação divina da criatura humana. Numa palavra, deu um golpe radical na “ordem mundial divina”.

Darwin hesitou muito na publicação do trabalho, certamente, porque temia a reacção social e científica dos seus pares e da sociedade.

Com este livro veio demonstrar a tese das sucessivas modificações gradativas das espécies humanas, ou seja, a possibilidade do surgimento de novas espécies, através da selecção natural (a imposição da lei do mais forte) ou, se quisermos de outra forma, os seres vivos superiores desenvolvem-se a partir de formas menores, desta maneira validando o aparecimento dos seres humanos pela via natural evolutiva (Teoria da Evolução) e não pela criação divina.

Darwin, ao pôr em causa, com esta sua tese científica, a versão da criação divina da Igreja, torna-se o cientista mais “odiado” do mundo. A sua Teoria da Evolução sofre grande oposição por muito tempo e assim continuará. Refira-se, no entanto, que as estruturas supremas da Igreja foram um pouco mais comedidas, pois já tinham um precedente com a história “do sol em volta da terra” em que tiveram de recuar, após uma acirrada perseguição aos que discordavam da posição da Igreja.


Finalmente, em 1996, mais de um século depois, a Igreja acaba por admitir que a Teoria da Evolução de Darwin não era incompatível com a “fé cristã”.

Darwin e os Açores

A propósito de Darwin, refira-se que Francisco de Arruda Furtado, um jovem natural dos Açores, então com 26 anos, entra em contacto com o cientista inglês que lhe responde.

Furtado, um apaixonado pela história natural desde muito novo, tornou-se colaborador de Carlos Machado contribuindo para a fundação do Museu de Ponta Delgada, incluindo-se, assim, no grupo de naturalistas açorianos. Morreu cedo, com 33 anos apenas, tendo ainda trabalhado no Museu de Lisboa, para onde se transferiu em 1885, a organizar colecções e descrição de espécies.

Há uma obra recente em forma de peça de teatro – “O Português que se Correspondeu com Darwin”, de Paulo Renato Trincão, que se debruça sobre este caso e que no Prefácio diz: “O teatro é uma bela maneira de fazer cultura científica, uma bela maneira de, através da arte, levar a ciência – neste caso, a história da ciência – ao grande público, mostrando quais são e como são os seus processos e caminhos”.

Darwin e a Madeira

A obra foi levada à cena no Funchal pela Companhia Contigo Teatro em 2009 (meses de Novembro/Dezembro), no contexto da comemoração do ano internacional de Darwin, sabendo que a 24 de Novembro desse mesmo ano, se comemoravam 150 anos da publicação de “A Origem das Espécies”. Como se lê num documento da Contigo Teatro: “Este texto, de natureza didáctica, pretende não só divulgar a obra de Darwin e alguns conhecimentos científicos, mas também dar a conhecer um português, Francisco de Arruda Furtado (curiosamente oriundo também de um arquipélago, o dos Açores) que se correspondeu com o célebre naturalista”. E prossegue:

“Uma vez que também fazemos parte de uma ilha, cuja fauna e flora são mundialmente reconhecidas pelas suas especificidades e riqueza, este espectáculo assume ainda maior relevância. Não esqueçamos que a ilha da Madeira foi, na verdade, a ilha mais citada na referida obra de Darwin”.

Interessantes estas coincidências e fecho o artigo com uma outra passagem do Prefácio: “Se Darwin é hoje bastante divulgado, Francisco de Arruda Furtado não será suficientemente conhecido dos portugueses. Ele, que foi uma excepção à regra do atraso científico, merece sê-lo, em particular dos jovens interessados pela ciência. Tal como ele, embora longe da ciência, quem for suficientemente curioso, esteja onde estiver, poderá aproximar-se dela, pois tem-na ao seu alcance”. A curiosidade orientada, uma grande ferramenta e virtude de procura do conhecimento.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 7 de junho de 2022

HÁ MOMENTOS DE VIDA INESQUECÍVEIS


Acabo de viver um fim-de-semana face ao qual tenho muitas dificuldades em contar as emoções. Não as vou narrar. Ficam para mim. Talvez de forma egoísta, talvez, mas o que é pessoal deve ser preservado. Apenas adianto que foram momentos extraordinários, vividos e sentidos, profundamente, numa profusão de sentimentos que nem em sonho alguma vez me passou. Estou grato por isso a todos quantos fizeram parte da minha incontida felicidade. Aliás, a vida, toda ela devia ser construída assim, no equilíbrio, no respeito pela diversidade, serenamente e sem insultos ou provocações, subtis ou descaradas, no amor, na tolerância e na liberdade. 



Vivi dois dias fantásticos, no seio de familiares e amigos, ao todo vinte, de uma enorme espiritualidade, eu diria melhor, de uma interioridade que, em determinados momentos conduziu à lágrima traduzida numa pequena frase: valeu a pena. Foi um dos meus melhores momentos de vida, um "flash back" muito rápido, numa agitação de sentimentos saborosos, mesmo tendo em conta que a vida não é uma linha recta, assemelha-se, sim, a um sismógrafo cuja agulha regista oscilações normais com outras mais sensíveis e, algumas vezes, perturbadoras.

No meio desta abundância de energias vividas, um Homem, o meu distinto Amigo Padre José Martins Júnior. Um Homem fantástico, porque é diferente. Culto e simples, envolvente e de uma enorme sedução. A Palavra ecoa de uma forma penetrante, mexe e remexe, pela contextualização na vida, pela sabedoria traduzida de forma empática, pela eloquência e persuasão sem qualquer toque de ausência de generosidade. A beleza das suas palavras, o conhecimento transversal narrado "por miúdos", o humor e a história que complementa o raciocínio, leva-me a dizer que todo ele é som, é música e é poesia que contagia. Obrigado Padre. Com os seus 84 anos fico feliz pela sua energia e pela doçura do seu comportamento.


Num Mundo controverso, de inexplicáveis guerras, de fome, miséria, oportunismos e de muitos "ismos" que apavoram, estar com quem gostamos, é um bálsamo, é deixar-se envolver num perfume de vida e até num alívio face à maldade que nos rodeia e constrange. Confidencio: já a noite ia alta e o Quim aproximou-se, deu-me um sentido abraço e segredou-me ao ouvido: "já várias vezes estive em Roma e nunca vi o Papa, mas hoje vi-o!" Quis ele dizer-me com estas palavras que tinha reencontrado o sentido da verdadeira Igreja, aquela que parte da humildade de Cristo, que não espaventa e onde não existe pompa e fausto. Tenho andado a pensar naquela frase, compaginando-a com as muitas conversas que tenho com o Padre, trazendo para a minha vida aquilo que sinto nesta peregrinação terrena. Não basta bater no peito, importante é lê-lo no seu blogue "Senso e Consenso" ou então ter dois ouvidos e uma boca, bebendo o sumo da reflexão. Tornamo-nos melhores para compreender e enfrentar o tal sismógrafo da vida. 

Obrigado, Padre Amigo por ter deixado a mensagem: "(...) Onde ficou escrito que esta data memorável tem a marca do infinito".

O Padre Martins certamente que tem presente “A Chuva”, de Jorge Fernando:

“Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir”


Padre Amigo, o Senhor fica na História da gente. Da gente de toda a Madeira, pelo amor que sempre nutriu pelos outros. 

Ilustração: Baltazar Arezes.