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sábado, 26 de fevereiro de 2022

Guerra e paz


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
26/02/2022

Sim, invadiu. Vinte e quatro horas depois de ter insistido que estava ainda aberto a negociações “sérias e honestas”, Putin invadiu a Ucrânia e, pelo que se sabia até ontem à tarde, em larga escala.



Faço ideia da satisfação intelectual de tantos que passaram semanas a anunciar a invasão, às vezes parecendo mesmo desejá-la para poderem ver as suas previsões confirmadas. Não é o meu caso: sempre acreditei que Vladimir Putin não daria este passo extremo, com o qual tem muito mais a ganhar do que a perder, e que semanas e semanas de tensão a acumular-se eram pretexto e tempo suficiente para que os tão falados “esforços diplomáticos” conseguissem evitar uma guerra desta dimensão na Europa.

Porque, talvez ainda não tenham percebido bem, mas esta guerra não vai doer apenas aos ucranianos, com os seus mortos e o seu país ocupado, vai doer a todos na Europa e para além dela — e se a coisa ficar pela Ucrânia. Não tardará muito tempo até que aqui mesmo, em Portugal, o comum das pessoas se interrogue por que razão os que podiam não fizeram todos os esforços para evitar esta guerra e as suas consequências.

Em 19 de Janeiro passado, escrevi aqui isto: “Tudo o que a Rússia pede é a garantia de que nem a Ucrânia nem a Geórgia, nas suas fronteiras, vão aderir à NATO. Em troca, o que a NATO pode exigir à Rússia é a garantia de que não invadirá a Ucrânia. Custa assim tanto evitar a guerra?” Passaram cinco semanas desde então e o único esforço diplomático visível feito pelo Ocidente foi a ida de Macron a Moscovo. Veio de lá com algum optimismo, depois de ter ouvido Putin dizer que aceitava como base negocial o regresso aos Acordos de Minsk-2 (que, por si sós, impediam a Ucrânia de aderir à NATO sem o acordo das províncias russófonas). Mas logo no dia seguinte Putin lembrou que Macron não respondia pela NATO e a verdade é que da parte da organização nem uma palavra foi dita ou um avanço foi feito no sentido de negociar a questão com base nos Acordos de Minsk. E nada mais foi feito do lado de cá em matéria de esforços diplomáticos: apenas ameaças de sanções, reforço de meios militares nas fronteiras da Ucrânia e constantes avisos de que estava iminente a invasão russa, enquanto toda a gente continuava sentada, de braços cruzados, pronta a assistir. 

Particularmente chocante, quando ouvimos agora Ursula von der Leyen falar da diplomacia tentada, é pensar na absoluta inércia da União Europeia, prestes a enfrentar uma guerra no seu território, a arcar com o grosso das consequências económicas e políticas, e que não mexeu uma palha para a evitar, para se colocar como mediadora do conflito e que, como sempre, só sabe acenar com dinheiro a posteriori. E enquanto nada se passava na frente diplomática, ainda tivemos, segunda-feira passada, a ida do Presidente ucraniano, Zelensky, à cimeira da Segurança e Cooperação Europeia, em Munique, lançar a última acha na fogueira, queixando-se das armas nucleares (soviéticas) que afirmou lhe terem sido retiradas quando a Ucrânia se tornou independente e exigir a sua entrada imediata na NATO, desafiando os países recalcitrantes a assumirem-se ali e então. (Duas horas depois, talvez por ter chegado atrasado ou se ter perdido na tradução, o nosso ministro da Defesa dizia que essa questão “não estava em cima da mesa”, pelo que não havia fundamento para uma invasão russa.) Insisto: a invasão russa talvez pudesse ter sido evitada se tivesse havido uma vontade e um esforço sério de negociação do lado ocidental, que não houve.


E digo talvez porque não posso saber o que ia e vai na cabeça de um homem perigoso como Vladimir Putin. Mas a todo o tempo e em todos os lados se negociou com homens perigosos a benefício de um bem maior, que é a salvaguarda da paz — Kim Jong-il, da Coreia do Norte, ou os imãs do Irão são apenas os últimos e mais óbvios exemplos. O facto é que, não tendo negociado antes, deixando apenas a Putin a opção de se retirar publicamente humilhado e conformado a ver a Ucrânia juntar-se aos 14 países que antes faziam parte da URSS ou do Pacto de Varsóvia e que a NATO já juntou à sua colecção, assim cercando a Rússia de alto a baixo, do Báltico até ao Bósforo, o Ocidente vai agora ter de negociar com ele em posição de força. A menos que um dos lados, ou ambos, tenha endoidecido e esteja disposto a arriscar uma guerra total na Europa.

Negociar com Putin em posição de força não vai ser fácil. Na sua declaração de guerra, ele disse que a Rússia estava preparada para enfrentar as consequências e, a médio prazo, está economicamente bem mais preparada do que a Europa em matéria de abastecimento de energia, cereais e matérias-primas essenciais.

São as consequências políticas da invasão o grande preço a pagar.

Não tardará muito tempo até que aqui mesmo, em Portugal, o comum das pessoas se interrogue por que razão os que podiam não fizeram todos os esforços para evitar esta guerra e as suas consequências.

Apesar daquilo a que chamaram a sua “lição de história sobre a Ucrânia” conter muito mais verdades do que falsidades ou invenções, ele sabe que isso não lhe acrescenta qualquer validade política para invadir o que outrora foi terra russa: os tempos mudam, a vontade dos povos também e a poeira da História fica nos livros. Recuperar militarmente e manter a Ucrânia toda na Federação russa é um projecto politicamente insano, que a longo prazo sairá caro a Moscovo e ao povo russo.

Mas agora vamos entrar numa nova dimensão, chamada realpolitik — não sei se se lembram do que era, antes de alguém ter declarado que a História tinha acabado quando a URSS implodiu e a Guerra Fria terminou com a vitória do Ocidente. O Donbas, Odessa, Mariupol, pelo menos, nunca mais voltarão à posse da Ucrânia e esta nunca poderá ser membro da NATO — isto será o mínimo que Putin vai exigir. O resto, desde que Putin não queira uma Ucrânia “normalizada”, talvez seja negociável — é isso a realpolitik. Aquilo que resta quando se andou a brincar à guerra e paz com análises simplistas de aplicação universal e intemporal, como nos nossos livros de infância, em que os bons éramos sempre nós e os maus os peles-vermelhas.

Tenho lido e escutado vários “especialistas” na matéria a defender que negociar com Putin terá o mesmo e funesto efeito que teve negociar com Hitler em 1938. É mais uma análise de aplicação universal e intemporal cuja utilidade está agora a ser provada pelos ucranianos. Para começar, e embora haja historiadores para todos os gostos, Putin não é Hitler. E, depois, a situação não é igual nem comparável: em 38, Hitler já tinha consumado o Anschluss sobre a Áustria, queria os Sudetas, que Chamberlain e Daladier lhe deram em Munique, e não escondia que a seguir engoliria toda a Checoslováquia. Mas, sobretudo e diferentemente da Rússia de 2022, era a Alemanha que ameaçava a Europa, e não a Europa que ameaçava a Alemanha, com um cordão de países unidos numa aliança militar cercando-a por todos os lados.

Há dias, numa das suas proclamações “ao mundo”, Joe Biden dizia sobre Putin: “Quem pensa ele que é?” Bom, agora já deve saber quem é e do que é capaz. É pena que antes disso não lhe tivessem explicado: “O Putin, sr. Presidente? É Presidente do segundo maior país e da segunda maior potência nuclear do mundo, com quem ao longo de décadas temos mantido negociações e tratados de limite de armas nucleares, graças aos quais o mundo evitou uma terceira guerra mundial devastadora nos últimos 50 anos. Ele agora está furioso porque a Ucrânia se quer juntar a 14 outros paí ses membros da NATO que já cercam a Rússia e que, a partir daí, podem atingir território russo com mísseis nucleares em questão de minutos. Eu aconselho a que fale com ele.”

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Famosos...


O big qualquer coisa é agora de "famosos". Nunca assisti a qualquer episódio, de fio a pavio, nem desta versão como de qualquer outra. Respeito quem goste. Eu, felizmente, tenho essa notável ferramenta que me permite mudar de canal. Ainda por cima "famosos", por outras palavras, ditos ilustres, invulgares, célebres e extraordinários. Pergunta-se, em quê? "Famosos inúteis" (não pelas respeitosas profissões que têm) talvez fosse mais adequado para título genérico do programa. Deixam-se, voluntariamente, "prender" numa casa que dizem ser "a mais vigiada do país", para ali viverem o nada, a vulgaridade e a mediocridade, durante várias semanas. É espantoso.



Onde pára a dignidade e o respeito pelos próprios? À custa, julgo eu, da promessa de uns euros como prémio, participam num jogo (jogo?) que me leva a ter dificuldade em perceber como é que um ser, minimamente pensante, se deixa ficar pela cerca que desmiola. Futilidade absoluta. E, depois, lá vem a gala em horário nobre! Eu, sinceramente, substituía a palavra gala por embrutecimento. Palavras ocas, mexericos e mexeriquices, gente aperaltada e uma enorme plateia que segue a "liturgia" dos comportamentos vulgares e toscos. No meu "zapping" passo, espreito e sigo. Não tenho nem estofo nem paciência.

Entretenimento é outra coisa. E a televisão, por excelência, devia ter esse cuidado de separação da trivialidade relativamente àquilo que diverte ou distrai. O problema é que aquilo, infelizmente, vende. É na publicidade, nas revistas rosa ou negras de conteúdo, certo é que se não vendesse não constataria de um alinhamento sério. E porque é que vende? Eis a grande questão! Eu tenho a minha leitura, mas cada um que faça a sua sobre os elevados à distinção de "famosos".

Em 2021 escrevi um outro texto. Pode ser lido aqui.

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Plano do futuro primeiro-ministro para Portugal


Por
João Abel de Freitas, 
Economista 
15 Fevereiro 2022

É fundamental que o Plano para a Legislatura contemple e dê relevo a linhas de fundo como a demografia, a água, a energia e a reindustrialização, em termos de actuação imediata, mas sobretudo de prospectiva.



1. Tenho ouvido e lido que António Costa, com esta sua maioria absoluta, tem todas as condições para executar o Plano de António Costa.

Só não encontrei ainda, dos que falam ou escrevem, que Plano é esse, que frentes estruturantes vão ser privilegiadas pelo novo Governo. As frentes escolhidas devem, para além de, por si próprias, serem determinantes no lançamento da transformação radical da sociedade e economia portuguesas, impulsionar importantes dinâmicas noutros domínios e, articularem-se numa linha coerente de País do futuro.

O País precisa de se projectar num ritmo sustentado de desenvolvimento qualitativo, muito acima da média europeia, vencer bolsas de pobreza que persistem e gerar riqueza e distribuí-la de forma mais equitativa. Aqui também caberia interrogar-se sobre os trunfos de que dispomos e antecipar as dificuldades a vencer no longo percurso do caminho delineado.

Será pedagógico saber o que sabem os comentadores que tanto falam do Plano. Pelo menos, registem o que têm na cabeça sobre o mesmo e contraponham.

2. Dizer que o futuro primeiro-ministro, António Costa, vai aplicar ao máximo os fundos comunitários e, nomeadamente, pôr de pé a tão conhecida “bazuca”, cujo pai, mãe, padrinho conhecemos, acrescento eu, escrever/dizer isto só, é pobre, como também títulos de primeiras páginas a anunciar que o Governo vai estar recheado de super ministros, embora reconheça que as pessoas são importantes, se trouxerem diferença pelo seu peso político, competência e capacidade de decisão. E títulos de primeira página em que se confundem orçamento e plano, piora ainda um pouco.

3. Existe o PRR já negociado e aprovado em Bruxelas. Um PRR que diferencia três dimensões: a Resiliência Económica, a Transição Climática e a Transição Digital.

A Resiliência é a dimensão mais consistente porque incorpora a saúde e a habitação, duas áreas ligadas a direitos básicos e onde muito está por fazer. Espero que o Plano do Governo vá um pouco além, em temas estruturantes e, ainda, articule as verbas do PRR com as do Programa 2030 numa programação financeira coerente.

Assim, é fundamental que o Plano para a Legislatura contemple e dê relevo a linhas de fundo como a demografia, a água, a energia e a reindustrialização, em termos de actuação imediata, mas sobretudo de prospectiva.

Notas avulso

4. A saúde. O grande problema da saúde são os recursos humanos e a gestão, diz-se. Resolver o problema dos recursos humanos da saúde no âmbito da filosofia da Administração Pública é, diria, tarefa impossível. Porque não uma ruptura de paradigma? O Ministério da Saúde tem de se guiar pelos padrões rígidos da Função Pública?! Porque não ensaiar um novo modelo e com essa experiência partir em novos moldes para a Reforma de grandes fatias do aparelho de Estado, como a educação, a ciência… a cultura. Faz algum sentido continuar a falar de Administração Pública como no tempo de Napoleão?!

Perspectivo, no entanto, a Saúde muito para além das carreiras. Por isso, há a economia da saúde. Esta dimensão enquadra tudo quanto circula à sua volta, como os consumos e equipamentos. Detectar as capacidades de Portugal nos mercados sobre estas potencialidades. Raciocinar e agir como cluster, ligando todas as peças. Pensar ligando é quanto a mim a melhor forma de fortificar e ampliar o SNS. E, sem mitigar o papel das empresas, compete ao Estado a missão dirigir. E o Estado para isso necessita de criar estruturas técnico-científicas de produção de pensamento e acção (estruturas de prospectiva e planeamento). Mais uma componente importante que “mexe” com a Reforma de Estado.

5. A habitação. Outra área chave, que nunca fica resolvida em definitivo. A habitação envolve todo o país, embora seja nos grandes centros urbanos que as carências são mais acutilantes. Para atingir um patamar digno na habitação é preciso investir muito. O PRR afectou um montante significativo que permite abrir caminho.

Na habitação, a grande questão prende-se com os protagonistas que são vários, mas o Estado e as autarquias deverão ter um papel relevante a diferentes níveis. A contratualização Governo/Autarquias na base de programas concretos é um bom caminho.

É importante para a economia consolidar a construção civil que hoje se debate com problemas de mão-de-obra e de acesso à aquisição de materiais e componentes em tempo. Um diálogo constante governo/associações será importante no encontro de soluções.

6. A energia. Um tema estruturante para o desenvolvimento e transição climática. Face à escalada dos preços da energia urge atacar o problema no curto prazo, pelo menos, neutralizando os aumentos ou mesmo fazendo-os recuar, mas o lançamento de bases de desenvolvimento futuro, onde o hidrogénio merece relevo e reflexão especiais, designadamente na sua relação com a geração de electricidade de que precisa é fundamental e pode ser de ruptura de modelo e aqui até se liga à reindustrialização do País.

Difícil encontrar, a nível da União Europeia, uma matéria com divergências tão profundas entre os governos dos países membros. É um campo minado por grandes lóbis.

7. A reindustrialização é quase tudo. É uma matéria transversal que merece ser trabalhada até em termos de conceptualização. Para mim, a revolução digital, a inteligência artificial e como antes referi a energia nela se enquadram. Merece uma estrutura de Missão acima do ministério tipo.

8. A demografia e a água. Dois temas que nem precisam de justificação para constarem como linhas de fundo. A água porque é o recurso mais necessário para a vida do ser humano. A demografia analisa o ser humano. E pelos estudos que se vão conhecendo quer a demografia quer a água não se encontram de boa saúde… e, por isso, há que recorrer a quem lhes trate da saúde e, como são temas globais, compete aos governos dos países interessarem-se por lhes devolver a saúde.

9. Os temas de um plano para uma legislatura não têm de ter todos o mesmo tipo de explanação. Têm de contemplar uma linha estratégica de longo prazo e pensados e programados por fases, de acordo com os passos que se pretendam, com realismo, no período do plano.

Assim, alguns dos temas referidos, se eventualmente contemplados, apresentar-se-iam, pela sua natureza, com níveis de desenvolvimento desiguais. Óptimo seria que aparecessem tratados para o público. Fundamental, no entanto, é a bússola que defina para onde queremos ir.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

António Trancoso - Um livro, uma história de vida

 

Acabo de ler o livro do meu Amigo Dr. António Trancoso com o título de capa Se não tivesse sido assim... Uma deliciosa história de vida, desde o nascimento até ao seu "quadro de honra" que ostenta, neste momento, 4x20! É obra. São oitenta anos de história pessoal com muitas e muitas peripécias que me levam a concluir que só poderia ter sido assim. Porque, conhecendo-o há muitos anos, nunca nele vi o Homem portador de uma coluna de plasticina. Foi inteiro, foi ele próprio. E pagou por isso, só que a consciência tranquiliza-o e transmite-lhe, estou certo, que voltaria a viver os mesmos momentos, onde se misturaram a irreverência com o sentido de justiça.



Fui lendo e lendo páginas de um tempo marcado por uma insana obediência a valores políticos, educativos (nos Pupilos e na Academia Militar) e sociais que nem faziam sequer sentido  na esfera da disciplina militar, tempos marcados, também, por uma massacrante pobreza (os Senhores e os outros), mas onde, apesar de tudo, fica indisfarçável o amor de António Trancoso pelos Pupilos do Exército.

Tempos, como também assinala, de "covardia" e de "maldade", acompanhados de uma perceptível insensibilidade para alguns senhores perceberem que a "disciplina conquista-se pela compreensão das pessoas" - disse-me, em 1973, um Brigadeiro no decorrer da guerra na Guiné-Bissau. E assim, António Trancoso e outros camaradas de curso tiveram de abandonar a Academia Militar a poucos meses de terminarem o curso. A quantos, pergunta, "filhos e afilhados" foram "perdoadas" as tropelias da idade? E diz bem, recordando o Cardeal de Retz: "Quando os que mandam perdem a vergonha, os que obedecem perdem o respeito". É isso. É o caso daquele comandante, certamente um exemplar aluno da Academia, mas que nas suas altas funções em Moçambique comprou "manilhas de esgoto", quando outras foram as aquisições para satisfazer interesses pessoais. António Trancoso relata o episódio, a trafulhice acompanhada da ameaça de 15 dias de prisão senão as mandasse pagar! Ao falar de manilhas, creia António Trancoso, que me assaltou o "esgoto" de tantas situações. Enfim...

A páginas tantas acabei por recuar no tempo, aquando da sua descrição no "paraíso de Macaloge" em Moçambique, para onde foi destacado na estúpida guerra colonial. Algumas passagens permitiram-me trazer à memória a constrangedora Guilége (Guiné-Bissau), por onde passei e onde nada existia, ou melhor, apenas o medo de não regressar. Trancoso conta as peripécias de uma guerra criada "por um regime deliberadamente criminoso" onde narra uma série de episódios de sacrifício e morte.

Depois, o regresso, a docência e a análise ao exercício da política, onde escalpeliza inúmeras situações de "lucrativos negócios e de rendosos lugares", da participação da Igreja, situações que deixaram um rasto de milhares de milhões ainda em pagamento e subtis perseguições que, ainda hoje, marcam um certo medo ou receio das represálias do poder.

Caríssimo Amigo e Colega António Trancoso, este seu testemunho contado na primeira pessoa, deu-me prazer em toda a extensão das 264 páginas de leitura. Apenas junto um pormenor: o facto de me ter sido grato recordar o Professor Capitão Robalo Gouveia de quem também fui aluno, pela sua exigência, rigor e mestria na arte de formar ginastas.

Parabéns Amigo Trancoso.

Ilustração: Fotos publicadas no livro.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Esta guerra que nos querem vender


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
12/02/2022


Parece que o mundo não tem suficientes problemas globais urgentes, com a pandemia, as alterações climáticas, as migrações do sul para o norte, a crise do preço das matérias-primas e a inflação, e ainda precisa de lhes acrescentar uma guerra — uma guerra a sério, capaz de destabilizar tudo, de causar a morte a muitos milhares de seres humanos, lançar o caos na economia e relançar em força o espírito da Guerra Fria, que ainda alimenta tantas nostalgias.




Putin, garantem-nos há meses os nossos “especialistas” ocidentais, prepara uma invasão iminente da Ucrânia: marcada primeiro para Janeiro, depois adiada para o início de Fevereiro e agora garantida para a semana que vem. Mas desconfiem também disto: de cada vez que alguém fora do círculo belicista NATO-Estados Unidos-Inglaterra inicia diligências paralelas para encontrar uma saída que evite a guerra (o chanceler Scholz ou o Presidente Macron), ou de cada vez que é o próprio Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a pedir aos seus aliados ocidentais que parem com a “histeria” da guerra iminente, logo aumentam as “notícias” na imprensa ocidental sobre novas movimentações de tropas russas com vista à invasão. Sim, é verdade que Putin tem os meios para iniciar a invasão de parte ou de toda a Ucrânia quando o quiser e se o quiser. Mas ainda ninguém respondeu cabalmente a esta pergunta: porque haveria Putin de querer invadir a Ucrânia, o que teria a ganhar com isso, no curto e no longo prazo? A Ucrânia não será nunca, para o Exército russo, um passeio na Crimeia: é 25 vezes maior do que a Crimeia, e a sua população de 43 milhões de pessoas é dividida entre 73% de ucranianos e 22% de russos, contra apenas 2,4 milhões de habitantes na Crimeia, dos quais 65% de russos e 15% de ucranianos. Mesmo que o referendo posterior à anexação russa de 2014, que Moscovo sustenta ter-lhe sido favorável com 94% dos votos, não seja credível, é óbvio que na Crimeia — que Potemkin conquistou para Catarina, a Grande, em 1783, e que o ucraniano secretário-geral do PCUS Nikita Khrushchov deu à Ucrânia, em 1954 — Moscovo está em casa, enquanto na Ucrânia teria pela frente umas Forças Armadas poderosas, uma resistência feroz e um povo maioritariamente hostil, que transformaria a ocupação num inferno permanente. E por mais que Putin seja um saudosista do Império russo e soviético, também é suficientemente pragmático para compreender os custos que tal aventura lhe acarretariam, com a Rússia mergulhada em nova Guerra Fria, cercada de inimigos por todos os lados e reduzida à condição de pária entre as nações, só com o cordial inimigo chinês como potencial aliado.

Não, é muito provável que Putin não queira invadir a Ucrânia, nem queira uma guerra. Que queira outras coisas, paras as quais é preciso ouvi-lo com atenção. Para começar, isso mesmo: ser escutado. Lembrar que, apesar da actual guerra latente Ocidente-China, continua a existir uma terceira superpotência chamada Rússia, o segundo maior país do mundo, com o segundo arsenal nuclear, maior fornecedor à Europa de gás natural (agora considerado “energia verde” pela UE), e cujos interesses estratégicos não podem, pura e simplesmente, ser distratados, como se não merecessem qualquer consideração. Quem conhecer a história da Rússia sabe que no subconsciente de todos os russos está o medo ancestral do cerco. Putin vê nos sucessivos alargamentos da NATO aos ex-países da órbita soviética e aos vizinhos da Rússia uma manobra de cerco, e, ao opor-se a ela, ele não está, necessariamente, a manifestar um saudosismo imperial, mas a defender aquilo que os russos pensam: é política interna, não é política externa.

E a verdade é que, se a NATO foi criada para enfrentar a ameaça soviética, uma vez dissolvida a URSS e extinto o Pacto de Varsóvia, foi preciso uma grande ginástica política para justificar a sua continuidade — que, aliás, e por outras razões, Donald Trump pôs claramente em causa. Mas não só a NATO não se extinguiu como se foi alargando a novos membros e a novos territórios, abraçando e cercando a Rússia, mas não só. Na sequência do 11 de Setembro, e torcendo de forma clara os princípios da sua carta fundadora, a NATO foi intimada pelos Estados Unidos a segui-los na caça à Al-Qaeda e a Bin Laden, no Afeganistão. Mas como a Al-Qaeda era uma ameaça planetária e o 11 de Setembro chocou todos, abriu-se pacificamente o precedente. Porém, não havia Al-Qaeda no Afeganistão, e Bin Laden foi capturado e morto comprometedoramente no Paquistão, um aliado americano. E, depois de anos de inúteis e mortíferos esforços de nation building, os EUA, logo seguidos pelos seus fiéis aliados, bateram em retirada daquele vespeiro, entregando-o à barbárie dos talibãs. Mas aprendemos a lição? Não.

Quando se tem uma organização que deixou de ter como fim a preservação da paz através da dissuasão para passar a ser um instrumento de guerra sempre latente, comandada por um pistoleiro irresponsável e tão sensível aos interesses dos grandes fabricantes de armas, a qualquer guerra falhada segue-se invariavelmente uma nova tentativa de guerra feliz — como se isso pudesse existir.

Eu conheci a NATO em 1979, no seu quartel-general em Bruxelas, numa das minhas primeiras viagens como jornalista ao estrangeiro. A ordem de trabalhos da reunião extraordinária não podia ser mais dramática: discutia-se que resposta dar à iniciativa da URSS de colocar mísseis de curto e médio alcance — os SS-20 — na Alemanha Orien tal, Polónia e Checoslováquia. Aquele passo, tomado pelo louco do Brejnev, era uma escalada determinante que rompia o periclitante “equilíbrio do terror” em que se vivia na Europa. Significava que, em lugar de esperar que um míssil disparado da Rússia demorasse 20 ou 30 minutos a atingir uma capital europeia, bastariam agora 5 minutos para isso, não dando tempo ao lado de cá de tentar interceptar os mísseis e até de ripostar — o mesmo que Khrushchov tentara 16 anos antes, em Cuba, e que Kennedy travou com a ameaça de uma terceira guerra mun dial. Fora do edifício da NATO, uma multidão de manifestantes, vindos de toda a Europa, gritavam e ostentavam cartazes dizendo “Better red than dead” (“Antes vermelhos do que mortos”) — o mesmo que apregoava essa organização pró-soviética chamada Conselho Mundial da Paz, em Portugal representada pelo ex-PR Costa Gomes e um patético personagem de seu nome Silas Cerqueira. Pelo contrário, eu não tive dúvidas algumas de que, se a NATO não respondesse, não só acabaríamos vermelhos como também provavelmente mortos. Mas a NATO não vacilou, apesar das resistências em contrário: ripostou com a instalação dos Cruise e Pershing II junto às fronteiras do Pacto de Varsóvia, e esse gesto de resistência viria a apressar o fim da URSS.

De então para cá assistimos à 1ª Guerra do Golfo, que George Bush pai desencadeou, com toda a legitimidade, para expulsar Saddam Hussein do Koweit, que ele acabara de invadir, e que terminou cumprida a missão. Mas depois a NATO envolveu-se na guerra civil da ex-Jugoslávia, na infame guerra de bombardeamento aéreo de Belgrado, cujo objectivo primeiro foi escoar material militar americano em vias de ficar obsoleto e permitir à indústria militar nova geração de contratos com o Pentágono.

E envolveu-se na 2ª Guerra do Golfo, desencadeada pela vaidade oca de George Bush filho, “a President at war”, com o pretexto de aniquilar as armas de destruição maciça de Saddam, cuja existência não estava provada e cujas “provas irrefutáveis”, de que falava Durão Barroso, se revelaram grosseiramente forjadas.

Uma guerra em que a NATO (e Portugal) se envolveram contra o voto do Conselho de Segurança da ONU e que teve como consequência, até hoje, a disseminação do terrorismo islâmico por todo o Médio Oriente. Lembrem-se disso. Lembrem- -se das aventuras desastrosas, das guerras ilegítimas e das suas consequências trágicas em que a NATO já nos envolveu desde que ficou sem inimigo natural e passou a procurá-lo algures. Lembrem- -se de como o Ocidente respondeu, e bem, às tentativas da URSS de o cercar de mísseis de alcance próximo, em Cuba e na Alemanha, em 1962 e 1979. É isso mesmo que a NATO pretende fazer agora com a Rússia. Cercá-la de aliados seus e posteriores inimigos da Rússia — à força, se necessário, pois ninguém ainda ouviu a Ucrânia ou a Geórgia pedirem para aderir à NATO. E depois armá-los para os defender da ameaça russa. O que, aliás, já estão a fazer, sem esperar sequer pela adesão. Porque, se até há umas semanas o discurso, do lado de cá, é que em caso de invasão russa se responderia com sanções económicas e financeiras nunca vistas, agora, e no meio da gritaria permanente com os 100 mil soldados russos do lado de lá, ninguém fala dos soldados e armas que se vão colocando no terreno do lado de cá. “São apenas manobras defensivas”, explicava há dias um “especialista” português.

Defensivas? Trazer dos Estados Unidos a 82ª Divisão Aerotransportada, a unidade de combate de elite do Exército americano, para a Polónia, será uma manobra defensiva ou a preparação de uma sanção económica? Acordem, europeus! Porque Biden e Johnson precisam de tensão ou guerra para subir os índices de popularidade interna e a Polónia precisa de transfigurar a sua imagem de pior parceiro europeu em tempo de paz para parceiro indispensável em tempo de guerra, querem vender-nos uma guerra sem causa.

Uma guerra que os ucranianos suplicam que não lhes imponham, que os russos pedem que evitem e que nos fará, a nós outros, na melhor das hipóteses, retroceder anos, em vez de avançar em direcção ao que importa.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

O Estado da Educação


 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A ESCOLA É UMA SECA


 

À venda na Livraria Esperança - Rua dos Ferreiros/Funchal

Ou através dos sites:

Coitadinho do Pacheco de Amorim, tão maltratado


Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
08/02/2022


Ventura, matreiro, quer fazer da disputa pela vice-presidência do Parlamento uma telenovela que se arraste pela amargura da vitimização, quanto mais longa melhor, para lhe dourar os galões de antissistema. Escolheu para isso o candidato que lhe dava mais garantias de ser chumbado. Hic Rhodus, hic salta, eis não sei quantos dos profetas da direita a responderem a este apelo e a rasgarem as vestes pela elevação do Pacheco de Amorim a vice, ora apresentando-a como uma obrigação estatutária, ora terçando pela conveniência educativa da iniciativa.



Como seria de esperar, é do Observador que chegam os mais enfáticos, e o seu chefe, José Manuel Fernandes, apresenta numa emissão de rádio o argumento definitivo: “Se querem discutir a eleição de Pacheco de Amorim, discutam a Constituição, pois é lá que está prevista. O que a Constituição não prevê e não devia ser tolerado é uma ‘socranete’ como presidente da AR.”

“Está prevista” a eleição de Amorim na Constituição, curiosa escolha de palavras. De facto, o que o texto constitucional determina é que os deputados têm o poder de “eleger por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções o seu presidente e os demais membros da Mesa, sendo os quatro Vice-Presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares” (Artigo 175º, alínea b).

Seria demais pedir ao ideólogo alguma atenção à redação, que atribui o poder de “proposta” aos quatro grupos parlamentares e o poder de “eleger” aos deputados, que são naturalmente livres de exprimirem o seu voto. Tavares, no Público, apimenta a coisa com uma alegada tradição: teríamos um problema se os deputados exercessem o seu voto de modo a produzirem um “corte com a tradição parlamentar desde 1975” (o que, a talhe de foice, é uma “tradição” frequentemente “cortada”, ou seja, sempre que os deputados entenderam diversamente dos proponentes).

Pode-se perguntar em que mais assuntos transcendentes é que esta defesa da “tradição” ou da “previsão” constitucional obrigaria os deputados a abdicarem do seu direito de opinião para aprovarem de cruz o que lhes é proposto. O resultado seria uma estranha democracia, mas certamente obediente.

A rapidez com que os dois ideólogos se escapulem para a eventual proposta de Edite Estrela para a presidência do Parlamento não deixa de ser reveladora de algum desconforto com a sua adesão à candidatura de Amorim. Aliás, os termos em que o fazem denunciam o estratagema, pois seguem a máxima dos aflitos: se a conversa corre mal dispara depressa noutra direção. Acresce que Fernandes não se coíbe de usar uma grosseria que só mobiliza por se tratar de uma mulher. Ela é uma “socranete”, pois claro.

Imagine quem lê esta prosa se alguma vez o diretor do Observador escreveria de Pacheco de Amorim que é um “venturete”. Já sabe a resposta: nunca, afinal o dito cujo é um homem, homens não são majorettes, quanto a mulheres bem podem ser, não é? Tavares, que é mais prudente na escolha das palavras, limita-se a atirar contra “a madrinha do Sócrates”. Veremos se Estrela é mesmo a candidata à presidência do Parlamento pelo PS, o que pareceria uma escolha infeliz – mas compará-la com alguém que fez carreira numa organização responsável por atentados e que se orgulha desse passado, isso é uma abominação. Nesse plano, nenhuma confusão é possível.

Temos então, na direita, três atitudes sobre o Chega, que se vão consolidando e que este episódio volta a revelar. A primeira é de quem quer a extrema-direita para o porradismo social. É, por exemplo, a de Fátima Bonifácio, que explicou que, como “a direita não se conseguiu impor com boas maneiras e falinhas mansas”, um avanço do Chega será o início de “uma barrela de alto a baixo” no país. A segunda é a de quem lhe quer garantir um estatuto na direita, eles que se entendam. Ao que se percebe, é a do Observador. Finalmente, a terceira é a de quem prefere abrir a porta da sala de aula, esperando que os rufias do recreio se sentem sossegadinhos, como parecem ser os casos de Marques Mendes e Lobo Xavier ou, mais enfático, de Pinto Luz.

Para Ventura é um gosto aliar-se com as duas primeiras versões da direita e usar a terceira a seu bel-prazer. Fica a saber que a cartada Pacheco de Amorim mete em sentido uma parte daquela ala e desbarreta outra, afinal foi fácil. Com isso, já ganhou alguma coisa.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Demografia: Portugal na parte negra da História futura


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01 Fevereiro 2022

A Demografia é bem ou mais importante que a Transição Climática, que tantas entidades e pessoas mobiliza. Estas duas forças globais, que se cruzam em muitos aspectos essenciais, vão determinar o futuro da Humanidade.



Notas breves

1. Demografia, um tema “não lembrado” na campanha eleitoral cujos resultados se apuraram no domingo, 30 de Janeiro, com o PS a obter uma vitória retumbante contra as expectativas das sondagens e alguma inquietação nos meios da esquerda não alinhada.

Só as projecções à boca das urnas admitiram este possível desfecho.

A população votou na boa gestão do Governo na Covid-19, valorizando a estabilidade. O País espera que, para além da gestão eficaz e eficiente do dia-a-dia, o novo Governo PS pense, lance e operacionalize linhas de um percurso estratégico de futuro, entre elas, a da Demografia.

Portugal bem precisa. E dispõe de meios financeiros avultados com os quais pode avançar para uma profunda transformação da sociedade portuguesa, que até a evolução expectável da Demografia impõe.

Certamente, pelas dificuldades em apontar soluções para a problemática da Demografia, todos os partidos fugiram à questão. Até parecia haver um conluio!

2. A Demografia, como conceito amplo, abarcando os movimentos de aumento ou de redução da população, bem como os fluxos dos grupos populacionais dentro da espécie humana, é, e vai ser ainda mais, uma questão maior, profunda e de futuro incerto e “negro” em Portugal, na Europa e no Mundo.

Ultrapassar este futuro “negro” exige um novo modelo, onde o desenvolvimento jamais possa assentar apenas no crescimento da população, como tem vindo a suceder desde a Revolução Industrial. O novo modelo tem de perspectivar a redução sucessiva e acentuada da população após atingir o pico de crescimento populacional [algures neste século, data (s) sobre que reina polémica] e o envelhecimento em curso das sociedades.

A Demografia é bem ou mais importante que a Transição Climática que, no entanto, tantas entidades e pessoas mobiliza. Estas duas forças globais, que se cruzam em muitos aspectos essenciais, vão e já estão a parametrizar e a determinar o futuro da Humanidade.

Alguns dados da evolução demográfica – século XX

3. Há quem refira que, no século XX, a Demografia mundial disparou de forma vertiginosa e os números dos serviços estatísticos demográficos da ONU confirmam.

O Planeta para atingir os primeiros mil milhões de habitantes levou cerca de 12 mil anos, ou seja, todo o período desde “a descoberta” da agricultura até aos anos de 1800 da nossa era (inícios da primeira revolução industrial). Em 1930, 130 anos depois, regista-se o segundo milhar de milhão de habitantes. De esse ano até ao final do século XX (1999), a população mundial é acrescentada em mais 4 mil milhões de habitantes, perfazendo, assim, os seis mil milhões, através de períodos de tempo cada vez mais curtos por cada mil milhão.

Estes ritmos diferenciados do crescimento da população mundial devem-se a múltiplos factores, melhores serviços de saúde, produção de novos medicamentos, redução da taxa de mortalidade, melhor nível de vida e consequente aumento da esperança de vida, embora desde os anos 1970 se assista ao declínio da taxa de fecundidade.

Em 1960, criou-se a ideia de que a população mundial ia crescer indefinidamente, tendo surgido alguns novos malthusianos, como o demógrafo americano Paul Elrlich, que alertou para “a fome massiva” no decorrer dos anos de 1980.

Na segunda metade do século XXI

4. A população mundial estimada para 2021 é de 7,8 mil milhões de pessoas. Isto significa que, nos dois primeiros decénios deste novo século, o ritmo de crescimento da população mundial pouco se alterou, embora acuse um lento decréscimo de ritmo que entre meados do século anterior e hoje passou de 2,05% para 1,1%.

As projecções para o período a partir de 2040/50 estão a gerar controvérsia, cimentando-se a ideia de que a tendência de crescimento da população mundial sustentada no cenário central da ONU (2019 – 7,7 milhares de milhões, 2050 – 9,7 e 2100 – 10,7 milhares de milhões) não incorpora algumas transformações em curso nas sociedades.

Desde logo, a taxa de fecundidade que, sendo muito variável por país, está a baixar mais repentinamente nos países em vias de desenvolvimento do que se esperava, a esperança de vida em recuo em países significativos como os EUA, desde 2012, devido à obesidade e ao consumo de drogas e a Covid-19, em geral, com impacto na diminuição do número de nascimentos, em que Portugal não foi excepção.

Produziram-se vários estudos/projecções de demografia para estes horizontes. A ONU tem tradição e excelente trabalho neste domínio e costuma actualizar os trabalhos todos os dois anos.

Estudos recentes como os da revista “The Lancet”, Universidade de Washington, Universidade de Viena vieram defender que o pico de crescimento da população mundial se dará antes de 2100, na década de 2060, embora não coincidindo todos no ano de início do declínio. Segundo os estudos, o pico ocorrerá em 2064/2070, com 9,3/ 9,7 mil milhões de habitantes, com a população mundial em 2100 a não ultrapassar 8,8 mil milhões, uma diferença significativa de dois milhares de milhões para o cenário central da ONU. Refira-se que a ONU no seu cenário baixo apresenta também um valor mais reduzido.

Independentemente dos valores destes estudos, há algo comum a todos. O reconhecimento do pico de crescimento da população com declínio a partir de uma data, pondo em causa a ideia reinante do crescimento contínuo do século XX.

Portugal a perder metade da sua população

Em todos os estudos são, em geral, os países mais desenvolvidos, os mais afectados na queda. Portugal não escapa e até no estudo da “Lancet” aparece enquadrado num conjunto de mais de 20 países que verão a sua população reduzida de metade ou até mais no horizonte 2100.

Embora sem enumerar exaustivamente os países, o estudo realça o Japão, Coreia do Sul, Espanha, Itália, Portugal e Polónia, com perda de 50% da população no horizonte 2100. É assustador.

Salienta o mesmo estudo que a China, hoje com mais de 1,4 mil milhões de habitantes, passará para 730 milhões, enquanto a África subsariana triplicará a sua população, tornando-se a Nigéria o segundo país mais populoso do Planeta com 800 milhões de habitantes.

Revolução demográfica

O Mundo vai passar por uma transformação radical da sua Demografia nos próximos 40/50/60 anos, Revolução que porá em causa as estruturas sociais, organização dos Estados, segurança social, empresas, economia, cultura e sociedades no seu todo. Tudo isto merece muita reflexão e uma visão de futuro. Termino com uma provocação: para quê agir sobre as alterações climáticas, se não houver população a beneficiar das mudanças?!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.