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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Universo, o mundo, a minha paróquia


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
30/12/2021

1 O James Webb partiu para o seu posto de observação no espaço exactamente no dia de Natal e essa foi practicamente a única notícia boa que o planeta Terra teve neste Natal. De resto, o bom Papa Francisco repetiu os seus apelos, que ninguém escuta, à concórdia em lugar dos conflitos e à solidariedade entre nações em lugar dos egoísmos; mais uns quantos imigrantes morreram a tentar atravessar o Mediterrâneo da miséria para a esperança e a covid continuou a condicionar, envenenar e adiar as nossas vidas, enquanto alguns idiotas persistem em exigir que se faça como se nada se passasse. Talvez daqui a seis meses o James Webb nos possa começar a explicar, mais uma vez, como somos insignificantes habitantes de um planeta precioso, num universo demasiado vasto para a nossa capacidade de entendimento. Como somos um frágil milagre num imenso céu pejado de luzes por decifrar.



2 Em Janeiro, depois da sua conferência virtual com Vladimir Putin, Joe Biden iniciará conversações bilaterais Estados Unidos-Rússia, à revelia dos “Doctors Strangelove” da NATO — esses falcões histéricos que todos os dias colocam artigos supostamente sé­rios na imprensa ocidental, incluindo a nossa, sobre a iminente invasão russa da Ucrânia, mas que nunca se detêm a meditar naquilo que Putin disse na sua tradicional conferência de imprensa de Natal para os correspondentes estrangeiros: “Eles só falam de guerra, guerra, guerra. Mas não fomos nós que colocámos tropas nas fronteiras de Inglaterra ou dos Estados Unidos e que planeamos colocar lá mísseis nucleares; foram eles.” Há poucos anos, de visita a Moscovo, conheci alguém próximo de Vladimir Putin — não um empresário, mas um operacional. Ofereceu-me, a mim e à minha pequena comitiva, um fabuloso jantar no Pushkin, um dos mais sofisticados restaurantes da Europa. Quando lhe perguntei por que razão a Rússia pós-soviética não se assumia como potência europeia de pleno direito, respondeu-me, soberbo: “Porque nós não somos uma potência europeia; somos uma potência euro-asiática.” A tal Rússia dos 12 fusos horários, 60 etnias, 30 nações e 20 religiões de que falou Gorbachov uns anos antes, na Gulbenkian. Uma Rússia que só se pode entender verdadeiramente lendo a sua história, e não os artigos encomendados pelos generais e políticos avençados da NATO. Uma Rússia imperialista, sim, como o são, hoje ainda, os Estados Unidos, a China, a Turquia, Inglaterra ou França. Uma Rússia que esmaga, como sempre o fez, os seus opositores, até no estrangeiro, e que interfere quanto pode no processo democrático das sociedades ocidentais, mas que também não tem um Trump, nem um QAnon ou outras ameaças igualmente graves às democracias liberais. Uma Rússia que vive no terror milenar do cerco e na obsessão da independência. E que, por isso, devia ser compreendida e escutada, e não desprezada — ou porque não significa nada no grande conflito sino-americano ou porque nada mais é para a Europa do que um gasoduto, que, todavia, tem o poder de a condenar ao frio e à paralisia. No “Público” desta terça-feira, Teresa de Sousa — de longe a nossa melhor colunista em temas internacionais e de leitura obrigatória — alinhava pela tese ofi­cial da ameaça russa sobre a Ucrânia e a Europa. Segundo ela, o “problema é que Putin não aceita o status quo actual nem tenciona cumprir as regras” (quais regras — as ditadas pela NATO?). Na explicação de Teresa de Sousa há duas razões por detrás da atitude do Presidente russo: “Ser reconhecido como o chefe de uma grande potência mundial” e “redesenhar a arquitectura de segurança europeia, garantindo o congelamento das fronteiras da NATO”. Se tivermos em conta que estamos a falar de um gigante mundial em termos geográficos, e não só, e da segunda potência nuclear do mundo, não vejo como é que qualquer das razões pode ser descartada como “inaceitável” sequer para discussão.

3 Assisti, entre o divertido e o apiedado, ao vídeo de Natal protagonizado por Francisco Rodrigues dos Santos, o “Chicão”, tendo como tema a direita e as eleições. Algum cérebro de propaganda iluminado pela quadra pariu um cenário de mesa de Consoada em que na cabeceira estaria o CDS, como anfitrião, em frente o Chega, à direita do anfitrião o PSD e à esquerda o Iniciativa Liberal. Depois, entre árvore, musgo e presépio, um sorridente “Chicão”, disfarçando a angústia que lhe deve ir na alma, percorria a mesa, explicando: aqui, o Iniciativa Liberal não pode ser convidado, porque, embora tenha algumas ideias boas (iguais às nossas), não se preocupa com os pobrezinhos como nós; aqui, o Chega também não pode ser convidado, porque não tem maneiras à mesa; e aqui, o nosso velho amigo, o PSD, não pode vir porque este ano resolveu baldear-se com novos amigos so­cialistas. Conclusão do vídeo: o CDS passou o Natal sozinho. Olha, que descoberta! E se fosse só o Natal...

Há um telescópio gigante no espaço, uma mesa de patetas vazia na Consoada e uns patos a provocarem um urso.

André Ventura espera que o Chega tenha entre 8% e 12% dos votos e entre 15 a 25 deputados em 30 de Janeiro. A minha aposta é de que nunca passará dos 10% e a minha esperança é de que a campanha eleitoral sirva para mostrar que o Chega é um partido de um só discurso, de nenhuma solução e de um só homem. E que, uma vez saídas as tropas para o terreno, o país se dê conta do imenso vazio e da indigência intelectual e política daquela gente. Mas, se não for agora, será depois: o pior que pode acontecer a André Ventura, a prazo, é eleger e expor perante o país um grupo parlamentar de simples idiotas de extrema-direita.

O mesmo, acredito, acontecerá com Rui Tavares e o seu Livre: os eleitores terão ocasião para se dar conta de que, tirando um conhecimento adquirido em alguns dossiers europeus durante a sua passagem pelo PE, ele nada mais tem para dizer que valha a pena ouvir. E espero que o PAN se comece a esvaziar como um balão de vacuidades e demagogia e uma simples muleta de ocasião que é e está disposto a continuar a ser. Divertido, divertido mesmo, vai ser continuar a assistir às piruetas que o BE e o PCP fazem para se lamentarem das “inúteis eleições” que eles próprios provocaram e do perigo do bloco central que agora espreita. Mas todos podem espernear em vão: tudo o centro vai esmagar.

4 António Costa foi esclarecedor e directo em muitas coisas na sua entrevista à CNN Portugal: quer maioria absoluta; não renovará o acordo com as esquerdas, pelo menos agora; não aceita o acordo de mútua viabilidade de governação proposto por Rui Rio, pelo menos a dois anos; demitir-se-á de secretário-geral do PS se não ganhar as eleições, e jamais será candidato a Presidente da República (assim contrariando as previsões de algumas pitonisas ofi­ciais da nação). Porém, não esclareceu ainda com clareza: a) o que é não ganhar as eleições; b) o que fará se as vencer sem maioria absoluta, e c) o que recomendará que o PS faça se for o PSD a vencê-las sem maioria absoluta. E deixou uma previsão, a de que é provável que um dia Pedro Nuno Santos chegue a primeiro-ministro, “se for essa a vontade da generalidade dos socialistas”. Mas aqui sou eu que faço de pitonisa: tal jamais acontecerá. Até pode acontecer que a generalidade dos socialistas queira um dia fazer prova de garotice, mas daí até os eleitores fazerem também prova de instinto suicidário vai uma enorme distância: pelo menos um milhão de votos, os dos que pagam impostos a sério.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Paes Mamede: “Vivemos uma situação que pode dar origem a grandes convulsões políticas”


Entrevista a Paes Mamede
 in Público, 
26/12/2021


O ano três da pandemia poderá caracterizar-se por “uma certa desglobalização”, isto é, por um movimento de relocalização da capacidade produtiva para dentro da Europa, de que Portugal poderá sair beneficiado, diz o economista Ricardo Paes Mamede.



Se os problemas de interrupção da produção e do fornecimento continuarem, e a inflação galopar, corremos o risco de voltar às políticas de austeridade de há dez anos, alerta o também professor de Economia Política no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, para quem as desigualdades tornadas mais evidentes pela pandemia deveriam estar no centro das atenções, “porque as sociedades não aguentam níveis muito elevados de desigualdade durante muito tempo sem fortes problemas de instabilidade política”. Quanto aos milhões do PRR, deveriam ser aplicados fundamentalmente no ataque ao problema das baixas-qualificações.

Conseguiremos escapar a uma nova crise social e económica em 2022?

A evolução da pandemia vai ter um papel fundamental. É completamente diferente a economia estar a funcionar sem ou com restrições. As perspectivas relativamente optimistas sobre as questões da pandemia fazem-nos pensar que vai haver um maior retorno ao normal, como já houve um bocadinho em 2021 por contraste com 2020. Se assim for, haverá mais actividade económica e algumas das tensões em termos da evolução dos preços podem-se desanuviar.

Diria que o cenário global neste momento é relativamente positivo, mas há vários factores de risco e, se alguns deles se realizarem, as coisas podem não correr tão bem.

Admitindo que teremos um 2022 ainda intermitentemente marcado pela pandemia, como mede o risco de os governos retomarem as políticas de contenção que marcaram a resposta à crise de 2008?
Aquilo que vai determinar a acção dos governos e dos bancos centrais, que no fundo são quem decide as políticas económicas relevantes para lidar com as crises, dependerá muito do que for a evolução da inflação, que, por seu lado, também tem alguma relação com a pandemia.

Neste momento, os preços estão a subir bastante mais do que era costume, em parte porque a pandemia está a causar alguma alteração dos padrões de consumo (há produtos que eram pouco consumidos e que estão a ser muito consumidos, e outros com os quais se passa o contrário), e isso cria alguns problemas de fornecimento: sabemos que há postos que estão a funcionar a meio-gás e que há fábricas que fecham e não fornecem os produtos que deviam fornecer. E não há tantos movimentos migratórios, o que também afecta algum tipo de produção que vive muito de mão-de-obra migrante.

Não estou totalmente convencido de que 2022 vá ser um ano em que tenhamos um reforço substancial do poder de compra de quem vive do seu trabalho. E o motivo fundamental é a inflação.

Se estes problemas associados à pandemia continuarem, e a inflação continuar elevada, o que também depende da evolução do preço do petróleo, os bancos centrais vão estar numa situação muito difícil, porque não será possível manter a inflação muito acima dos níveis habituais sem aumentar as taxas de juro, que é uma medida habitual para contrariar a subida dos preços.

Mas se aumentarem as taxas de juro, teremos um grande problema, até para o comum dos mortais: quem deve dinheiro ao banco sabe que, quando as taxas aumentam, tem de pagar mais. E os juros a pagar pela dívida pública custarão mais ao país e implicarão mais impostos.

Os sinais que temos dos bancos centrais é que vão manter os juros baixos, mas se a inflação começar a galopar, isso não será possível. E também há riscos de política económica associados a factores não monetários. A União Europeia (UE), durante estes dois anos de pandemia, decidiu suspender as regras orçamentais, isto é, aquela pressão feita sobre os governos para manterem os défices baixos e reduzirem a dívida pública. O que está previsto é que em 2023 essas regras voltem. Ora, para alguns países, isso representará um grande esforço ao nível da política orçamental, e poderá significar o regresso a algo muito parecido com as políticas de austeridade que tivemos há dez anos.

Esta tensão ainda não está resolvida. Ainda não há sinais claros de que, caso a crise pandémica continue, a suspensão das regras europeias vá ser prolongada no tempo. E, portanto, há aqui algum risco, mas para já ainda é só isso.

Nesse sentido, 2022 será um ano de transição e de clarificação das incertezas?

Pode ser que seja o ano em que tudo isto se resolve, mas também pode ser que, por causa do prolongamento dos problemas, quer na saúde pública, quer na economia, surjam tensões sociais e políticas, porque há um limite para o que as populações são capazes de suportar e para os custos que isto está a ter. Para mim não seria uma surpresa se 2022 fosse um ano de grande instabilidade política associada a estas tensões que foram sendo acumuladas nos últimos dois anos. E isto pode afectar o desempenho económico. Portanto, 2022 é, nesta fase, um ano muito imprevisível do ponto de vista da evolução da economia.

O mundo será menos global em 2022, nomeadamente por causa das perturbações nas cadeias de distribuição?

A crise pandémica constituiu um marco importante no processo de globalização. Foi um momento em que se percebeu que o excesso de interdependência pode constituir um risco grande, não apenas para a saúde pública, porque os vírus se espalham mais rapidamente, mas também para o funcionamento das economias, porque quando as economias estão muito dependentes umas das outras e do que se passa do outro lado do mundo, uma crise de saúde pública ou outra qualquer que ponha em causa os transportes, a circulação de mercadorias, pode causar grandes disrupções.

E, portanto, é relativamente expectável que uma das consequências desta crise seja uma tendência para uma certa desglobalização, pelo menos em alguns domínios estratégicos. Parece-me que esta tendência para algum recuo na interdependência vai existir, mas francamente não sabemos, porque pode haver algum desbloqueio dos estrangulamentos que têm existido.

Como é que Portugal sairá desse eventual recuo para lógicas mais locais?

A vontade de realocar capacidade produtiva para dentro da Europa, evitando uma dependência excessiva dos mercados asiáticos, por exemplo, fará com que os países que têm melhores condições para acolher esse tipo de investimentos possam beneficiar. E Portugal tem vantagens relativas, no quadro da União Europeia, para receber alguns deles.

Estamos a falar da mão-de-obra barata, uma vez mais?

Não. Na Europa existem países com níveis salariais muito inferiores aos portugueses e seria absurdo achar que a solução é descermos os salários para metade, na esperança de ficarmos mais competitivos.

Portugal poderá conseguir atrair investimentos por ter condições favoráveis a um certo tipo de produção, que não exige mão-de-obra muito barata, mas requer custos competitivos e, fundamentalmente, pessoas qualificadas e boas infra-estruturas. E existem, no país, boas infra-estruturas de transportes, de comunicações, de energia. E ainda competências específicas na indústria transformadora, nas tecnologias da informação e em diferentes áreas da engenharia.

Antevê mudanças expressivas em 2022 no mundo do trabalho? Vamos ter um novo aumento do salário mínimo nacional (SMN), mas continuamos a ser dos países da Europa com uma maior proporção de trabalhadores pobres.
A evolução que tem havido nos últimos anos no SMN é muitíssimo expressiva. E 2022, já sabemos, vai ser um ano em que haverá um novo aumento para os 705 euros. Isto é muito importante, porque significa que a probabilidade de termos pessoas que, apesar de trabalharem, são pobres (o que não é aceitável), se vai felizmente reduzindo.

A existência de desigualdades muito grandes (às vezes não apenas materiais, mas também simbólicas) e a falta de coesão social contêm os elementos fundamentais para a explosão de revoltas.

Mas não estou totalmente convencido de que 2022 vá ser um ano em que tenhamos um reforço substancial do poder de compra de quem vive do seu trabalho. E o motivo fundamental é a inflação. Podemos ter aumentos nos salários mais baixos, mas se forem insuficientes para compensar o aumento generalizado dos preços, serão na realidade fictícios, porque o que resta ao fim do mês vai ser igual ou menor.

Em 2022 o teletrabalho estará desestigmatizado?

Creio que o teletrabalho vai ser o grande legado desta pandemia, para o bem e para o mal. Não é que não existisse antes, mas foi massificado e deixou de ser um bicho estranho às organizações.

Tenderia a apostar que 2022 será um ano em que mais organizações, públicas ou privadas, assumirão o teletrabalho, não já como uma resposta necessária e obrigatória face à pandemia, mas como algo que pode ser incorporado nas práticas organizacionais, em benefício quer das pessoas quer da dinâmica das organizações.

O mundo posterior à covid-19 será mais ou menos igualitário?

A pandemia tornou mais claras as desigualdades, e algumas eram bastante invisíveis, como o nível de desprotecção dos trabalhadores informais, mas os problemas já vinham de trás e, se a pandemia se prolongar, vão acentuar-se.

No acesso à saúde, que já era um problema, os estrangulamentos no SNS tornaram ainda mais difícil o acesso à saúde a pessoas sem meios para recorrer a alternativas privadas.

Em alguns domínios houve um agravamento, mas, na verdade, os factores que determinam a desigualdade não são sanitários, são políticos, são decorrentes de decisões quanto à forma de organização da nossa sociedade, de distribuição de recursos, de regras laborais, da forma como funcionam os serviços colectivos.

Espero que os decisores políticos tenham consciência de que, a cada dia que passa em que haja pessoas que, pelas desigualdades a que estão sujeitas, têm menos acesso a serviços essenciais, maior é o risco de perturbação do funcionamento das sociedades democráticas.

Portanto, mesmo que as desigualdades sejam agora mais visíveis, não significa que sejam estruturalmente mais graves: elas já eram graves, e felizmente que agora são mais óbvias. Isto será um problema se não houver respostas eficazes, porque as sociedades não aguentam níveis elevados de desigualdade durante muito tempo sem fortes problemas de instabilidade política.

Não sei se 2022 vai ser um ano com respostas mais eficazes. Espero que os decisores políticos tenham consciência de que, a cada dia que passa em que haja pessoas que, pelas desigualdades a que estão sujeitas, têm menos acesso a serviços essenciais, maior é o risco de perturbação do funcionamento das sociedades democráticas.

O seu colega francês Thomas Piketty considerava há dias, numa entrevista ao El Pais, que vivemos hoje uma situação similar à que levou à Revolução Francesa, em 1789, aludindo aos privilégios dos detentores de grandes fortunas e ao facto de, sobretudo desde a crise de 2008, se ter acelerado a tomada de consciência dos excessos da desregulação financeira. Concorda com este diagnóstico/aviso?

Eu acho que a comparação não é totalmente devida, na medida em que já não vivemos em sociedades em que temos pessoas completamente desprovidas e a morrer à fome. Pelo menos na Europa, as pessoas têm acesso a um conjunto de bens e serviços muito mais dignificantes do que há 250 anos.

Dito isto, a existência de desigualdades muito grandes (às vezes não apenas materiais, mas também simbólicas) e a falta de coesão social contêm os elementos fundamentais para a explosão de revoltas, para o surgimento de extremismos, de populismos. E vivemos, portanto, numa situação que pode dar origem a grandes convulsões políticas. E quando elas começam é muito difícil voltar atrás. Não tenho a certeza de que os responsáveis políticos mundiais tenham percebido isto devidamente, e se perceberam, a verdade é que não estamos a ver medidas suficientes para regressar a uma sociedade mais coesa e igualitária. Gostaria muito de pensar que 2022 vai ser um ano em que a urgência da promoção da igualdade volta a estar no centro das preocupações políticas.

Não está muito convencido disso?

Não estou, não.
Mas a pandemia não pôs a nu precisamente a impossibilidade de manutenção destas desigualdades?
Isto é um pouco um paradoxo, porque é cada vez mais claro que vivemos num mundo em que dependemos todos uns dos outros. Já era claro com as guerras ou o terrorismo, e depois com as alterações climáticas, e agora também com as questões de saúde pública.

Sabemos que não vamos conseguir controlar esta pandemia enquanto a generalidade da população no mundo não tiver acesso a vacinas. Há sinais, às vezes, que parecem indicar que, de repente, os líderes mundiais se aperceberam disto e estão a tomar decisões mais colectivas. Mas do ponto de vista da distribuição de recursos a nível internacional, não vemos isso acontecer.

O que acontece pontualmente é a concessão de alguns apoios acrescidos para ajudar a custear as vacinas, ou subsídios para financiar a transição para modos de produção menos poluentes, mas o problema fundamental da distribuição da riqueza mundial está muito associado ao facto de termos sectores que acumulam cada vez mais poder e riqueza e são capazes de impor regras que lhes são favoráveis.

Há uma ausência de mecanismos de redistribuição e de criação de oportunidades de desenvolvimento sustentado à escala mundial, e nenhum sinal de que isto esteja a ser invertido. E, portanto, temos aqui medidas que se arriscam a ser essencialmente paliativas, por muito impacto simbólico que pareçam ter.

Os problemas que a economia e a sociedade portuguesa têm não se resolvem numa década, lamento informar. São problemas que têm um século.

Os 16,6 mil milhões do PRR vão mudar o país?

Os políticos mais entusiasmados dizem que o dinheiro do PRR vai alterar estruturalmente o país, os mais cépticos dizem que isto vai ser outra oportunidade perdida. Eu tendo a não ver as coisas nem de uma forma nem de outra.

Os problemas que a economia e a sociedade portuguesa têm não se resolvem numa década, lamento informar. São problemas que têm um século: temos um século de atraso na educação e na industrialização; há problemas em termos de qualificações e de capacidade produtiva que demoram décadas a transformar. Mas temos vindo a fazer uma trajectória positiva nos níveis de qualificações e nos tipos de actividade económica que se desenvolvem no país. O que a “bazuca” europeia pode fazer, se o dinheiro for bem aplicado, é contribuir para que este processo continue.

Agora, não esperemos que daqui a oito ou nove anos o país esteja radicalmente diferente. Não estará. Espero é que tenhamos a capacidade de ir, a cada momento, perguntando como está a ser utilizado esse dinheiro, porque, apesar de tudo, ele pode ajudar a encaminhar o nosso futuro colectivo numa direcção mais favorável.

Resolver o problema das baixas qualificações exige que, para lá escola, haja vários mecanismos a funcionar na sociedade portuguesa que permitam que as pessoas não tenham que trabalhar tantas horas e consigam ter mais rendimentos, outro tipo de aspirações, outra auto-estima.

Quais deveriam ser as áreas prioritárias de investimento?

Há na sociedade portuguesa um problema central, que é o das baixas qualificações. E não se resolve facilmente. Não basta decidir que agora toda a gente é obrigada a ir à escola, porque o desempenho escolar das crianças e dos jovens é muito determinado pelo contexto que têm em casa. Ora, se partimos de uma sociedade que é altamente desigual, em que temos famílias completamente desestruturadas, com salários muito baixos, em que os pais não podem dar apoio porque eles próprios não tiveram formação escolar, não podemos esperar que estas crianças e jovens tenham o mesmo desempenho e a mesma capacidade de adquirir competências quanto crianças e jovens de famílias que já são à partida altamente qualificadas.

Portanto, resolver o problema das baixas qualificações exige que, para lá escola, haja vários mecanismos a funcionar na sociedade portuguesa que permitam que as pessoas não tenham que trabalhar tantas horas e consigam ter mais rendimentos, outro tipo de aspirações, outra auto-estima. São problemas complexos e que só conseguimos resolver construindo uma sociedade que seja mais dignificante para as pessoas.

Essa seria a minha preocupação fundamental. Não tenho a certeza, para ser franco, que, não apenas o PRR mas o conjunto de instrumentos de política pública já hoje planeados, dêem a devida prioridade a este assunto e consigam abranger todas as dimensões necessárias para ultrapassarmos estes obstáculos e termos uma sociedade mais igualitária, mais escolarizada e mais produtiva.

Em 2022, quais serão as palavras-chave no sector económico?

As três primeiras palavras são: incerteza, incerteza, incerteza.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O LUÍS CALISTO FOI UM AMIGO


Sento-me para ler as últimas notícias e zás... dou com a morte do meu querido Amigo Luís Calisto. Uma amizade que vem dos anos 60 quando integrámos as equipas de juvenis e de juniores do Marítimo. Desde então ficou sempre uma relação de consideração e estima. Não uma amizade selada em convívios (apenas jantou uma vez na minha casa) ou através de tertúlias, mas porque a palavra Amizade tinha para ele e para mim um significado mais vasto, de pessoa em quem se pode confiar e onde existe uma relação de afecto e respeito mútuos. Frequentemente, entrávamos em contacto, mais que não fosse para apenas perguntar: como estás?



Tem poucas semanas, estava eu no Porto e apeteceu-me falar-lhe. Segui a sua doença e isso bastava para saber do Amigo. Intencionalmente, deixava essa questão para o final do nosso paleio. Passávamos em revista a actualidade política, ele sempre com um humor corrosivo, mas profundo na sua análise. E, no momento certo, questionava-o de forma subtil: "Luís, e o resto, está tudo controlado?" Respondeu-me que sim. Que estava em permanente vigilância, mas que se sentia bem. Era o que eu gostava de ouvir, porém, da minha parte, sempre com algumas dúvidas. A voz não me agradava, confesso.

Mas, perante as suas palavras, nós que somos do mesmo "escalão", disse-lhe que ainda iríamos ver o fogo pelo menos 25 vezes. Respondeu-me: "André, se alguém tiver a paciência de nos levar à varanda!" Rimos, passando ao lado das questões de saúde.

Pois, Luís, estamos sempre na fila e agora a tristeza invade-me. Foste um Amigo. Tinhas entre mãos vários e muito interessantes projectos para publicação e, ainda assim, não esqueço, arranjaste tempo para ler um livro da minha autoria que em breve chegará ao mercado. Pacientemente o leste, aconselhaste-me sobre vários pontos, corrigi-os e, portanto, Amigo Luís, ele tem a tua mão. Obrigado Luís.

O Luís foi um Jornalista brilhante. Os seus textos em livro são de uma leitura doce, onde pontifica a narrativa cuidada. Deixa um legado por onde passou e isso será sempre lembrado. Curvo-me perante a morte de um Amigo.

A toda a sua família apresento as sentidas condolências.

Nota
Em Maio de 2020, no início da sua doença, escrevi um texto subordinado ao título: "Luís Calisto, por favor, não chutes para fora"

domingo, 19 de dezembro de 2021

É NATAL... sonhar com o impossível!


Então, D. Isabel, como vai? Olhe, como Deus quer que eu ande! Ela uma mulher que não perde uma Missa, agora pela televisão. São os joelhos que me atormentam e, pelas dores, já nem vou à fazenda. Pois, a idade, não é D. Isabel? Todos caminhamos para lá. E o seu Natal? O habitual. Disse-lhe, certamente com "Semilhas do Caculo"* na noite de Natal para as duas, depois da Missa, claro. Referia-me à irmã, mais velha, com vários problemas de saúde, o pior, o da visão. É isto e que Deus permita que para o ano aqui esteja - disse-me ainda ontem! 



Tenho pela D. Isabel, a minha vizinha na Atouguia, Calheta, uma enorme amizade. Gosto dela, da sua maneira de ser, da sua simplicidade e humildade, pela vida que teve emigrada em Aruba, a simpatia que irradia e o seu esforço para que a terra continue a dar o que a sobrevivência exige. Há tempos mostrou-me uma batata de tamanho anormal. Aprecio e gosto de gente assim. As suas queixas não vão além do desconforto das "juntas", como lhe digo para riso dela. Olho-a, como se estivesse a mergulhar nos seus pensamentos e antevejo-lhe a solidão, apenas atenuada pelo carinho do filho emigrado e dos familiares mais próximos que a visitam e mantêm laços de verdadeira família solidária. Mas a solidão está lá pela incapacidade de fazer o que outrora era possível. A televisão é o refúgio.

E dou comigo a reflectir nas muitas solidões, sobretudo entre os seniores da nossa sociedade. Porque também as há entre jovens. E que são muitas e preocupantes. Por estes dias, quando assisto e sinto tanta azáfama, apesar dos constrangimentos impostos pela pandemia, não deixo de ter um olhar de desassossego, de inquietação perturbadora do pensamento, relativamente aos mais vulneráveis, onde se incluem os sem-abrigo, os que se encontram nas margens e no labirinto das dificuldades, dos cêntimos contados, da saída que não encontram e da saúde precária que não permite a plena vivência deste período festivo. Fica-lhes, talvez, a Mensagem desse Homem, Jesus, onde cada página da Palavra apela ao amor, à partilha, à solidariedade entre os povos e à irmandade entre as nações. Convenhamos que é pouco. Se outro fosse o Mundo, se o exercício da política apontasse no sentido do esbatimento das graves assimetrias, se não houvesse mais direitos do que justiça social, se a incessante e desmesurada busca pelo lucro não conduzisse ao espezinhamento dos demais, se outra fosse a mentalidade humana construída por muitos, alguns que até capela em casa têm, talvez outro fosse o Homem que, circunstancialmente, habita o planeta. 

Mas isto é sonhar com o impossível, por melhores que sejam as mensagens "Urbi et Orbi" lançadas da cadeira de Pedro. As gritantes desigualdades estão para durar, os ódios e a violência contra a mulher andarão por aí, a guerra e o sangue continuará a manchar a nossa existência, a terrível história de morte dos migrantes persistirá, os crimes ambientais, idem, eu sei lá o rosário de dramas e de assimetrias consequentes da louca corrida por hegemonias e vitórias sem sentido. Sempre foi assim, dirão alguns! É verdade, mas vergonha deveriam ter na cara todos quantos a este beco sem saída conduziram e conduzem milhares de milhões de seres humanos. Desde que estejam bem, os outros que se desenrasquem!


O Natal traz-me tudo isto em memória activa. Vivo-o na tradição, nos princípios e valores herdados, mas fica-me o amargo, confesso, de olhar para o Mundo a partir de casa e questionar-me: se sou feliz, por que razão milhões não são. Uma análise que leva a tantos e complexos campos de observação e debate. 

Fico por aqui, apenas desejando a todos quantos por aqui passarem, aos meus Amigos e a todos os que não concordando comigo ajudam-me a reflectir, os mais sinceros votos que este Nascimento, independentemente da certeza da data, seja pontificado por uma Mensagem de Amor.  

                                                                    ****

* SEMILHAS DO CACULO - Receita recolhida na Calheta/Madeira. 

  • Um tacho com 1,5 l. de água
    • sal, massa de tomate, vinho, louro, alho, caril e outros a gosto.
    • Camada de cebola às rodelas e pimento cortado em tiras.
    • Carne vaca em bife com cerca de um centímetro
    • Nova camada: semilha vermelha pequena inteira.
    • Camada de cebola às rodelas com pimento.
    • Camada de carne de porco em bife.
    • Semilha vermelha pequena inteira.
    • Nova camada de cebola às rodelas com pimento.
    • Camada de frango partido em oito.
    • Termina com uma nova camada de cebola às rodelas com pimento.
Já experimentei e gostei.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O juiz certo


Por
José Sócrates, 
in Diário de Notícias, 
15/12/2021


No episódio da prisão de Manuel Pinho não sei o que é mais difícil de suportar. Se a violência ilegítima do Estado, se o cinismo de quem assiste a tudo isto limitando-se a dizer que "é difícil compreender". Na verdade, não é nada difícil perceber porque as razões estão bem à frente dos nossos olhos. Os senhores procuradores decidiram aproveitar a janela de oportunidade para agir. Entre a decisão do juiz Ivo Rosa ficar em exclusividade com o processo BES e a próxima entrada em vigor da lei que alarga para sete o número de juízes do tribunal de instrução, este era o momento. Agora têm a certeza de ter o juiz certo. 



Dez anos depois, em vez de apresentarem a acusação e as provas para que os cidadãos se possam defender, resolvem prender. Prender para humilhar, para ferir, para poderem exibir a prisão como prova. Nada disto é novo. Tudo isto começou com o governo de Passos Coelho que decidiu criminalizar as políticas do governo anterior, declarando, pela boca da então ministra da justiça, que tinha acabado a impunidade. Depois foi o festival de processos - os gastos de gabinetes, as parcerias público-privadas, a EDP e finalmente o processo marquês, onde constavam as políticas do TGV, da Parque Escolar, da diplomacia económica com a Venezuela, de Vale do Lobo, da Opa da Sonae e do veto à venda da Vivo. Pelo caminho construíram a narrativa da fortuna escondida e da proximidade a Ricardo Salgado. Todas estas acusações foram consideradas fantasiosas, especulativas e destituídas de coerência, para usar as próprias palavras do tribunal. Mas que importa? O que realmente importa é o serviço de difamação que está feito. Durou sete anos.

A operação exigia um Presidente, uma maioria, um governo e uma procuradora geral. Mas precisava também de um juiz. Assim sendo, a distribuição do processo marquês foi viciada e o juiz escolhido de forma fraudulenta. Estes são factos confirmados por decisão instrutória que, nesta parte, já transitou em julgado. Quanto às consequências estamos para ver. No entanto é hoje possível afirmar que naquele tribunal, entre setembro de 2014 e abril de 2016, as normas legais que regulam a distribuição de processos não foram cumpridas. Um ano e meio. Durante um ano e meio aquele tribunal funcionou como tribunal de excepção. E nenhum dos dois juízes que ali prestavam serviço fez nada para corrigir a situação. Os processos simplesmente caíam-lhes nas mãos e era quanto bastava. E, no entanto, os dois juízes conheciam a lei - sabiam que a lei impõe a presidência de um juiz na distribuição e sabiam que a lei manda que esta seja "realizada por meios eletrónicos, os quais devem garantir aleatoriedade no resultado". Os dois juízes sabiam que o sistema de distribuição estava viciado e que garantia constitucional do juiz natural estava a ser negada a dezenas e dezenas de cidadãos. Sabiam e nada fizeram.

E, já agora, talvez devamos ir um pouco mais longe na descrição do escândalo: no mais importante tribunal de combate à corrupção, as regras legais e as garantias constitucionais foram pervertidas em favor de interesses espúrios. O combate à corrupção começou por corromper a lei. Naquele tribunal escolhia -se o juiz de forma ad-hoc. Naquele tribunal, escolhia-se o juiz que mais interessava à chamada "dimensão mediática" do processo.

Tal como nas ditaduras, o juiz era escolhido de acordo com os visados no inquérito. Esta é a dimensão da vergonha do que se passou naquele tribunal. Agora, mais de sete anos depois, voltamos ao mesmo. Agora já nem é preciso fraudar a distribuição porque só está um juiz em serviço no tribunal. Difícil de compreender? Não. Os procuradores simplesmente escolheram o momento em que podiam também escolher o juiz. O juiz adequado ao caso. O juiz que garante aos procuradores o uso de medidas de excecional violência que nada tem a ver com o estado de direito. Difícil de compreender? Não. Agora têm o juiz certo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Para quê?

 

Para quê tanta opulência? Para quê tanta ganância, tanta luta pela riqueza, muitas vezes mal explicada? Para quê, é a pergunta(s). Um grande Amigo meu, infelizmente já falecido, o Franklim, nas nossas longas noites de conversa em redor de um frugal petisco acompanhado de um copo, dizia-me, de forma tão simples quanto eloquente, "para quê, quando temos um só estômago"? Queria ele atingir não apenas o âmbito das necessidades do corpo como a noção de finitude da vida. 



Ele tal como eu não olhávamos de forma enviesada para quem muito tem, por herança, por investimento certo no momento exacto, por criatividade e sentido de risco. Nada disso. Desde que criem postos de trabalho, sejam cumpridores da lei e paguem os impostos devidos, nada a opor, era essa a nossa convicção. 

O problema, na altura conversávamos, situava-se no exagero, na ambição descontrolada, nos passos superiores à perna, nas situações que mereciam uma cabal explicação, na infame exploração dos que trabalham para regozijo pessoal, na opulência desmedida e nos sinais exteriores de uma riqueza de duvidosa fundamentação. Se, hoje, estivesse à conversa com o Franklim certamente que ele me diria: "há muitos rendeiros em Portugal" ou melhor, muitos a "fabricar rendas". Então, pergunto, para quê viver numa permanente ilusão, no vício da nota fácil, no olhar para o cofre recheado, bastas vezes sem um mínimo pudor relativamente à forma como ele encheu. Quanto mais têm, mais desejam. Para quê?

São tantos os exemplos que choca todos aqueles que fazem da vida a viagem da honestidade. O que se encontra em Durban, viveu na ostentação, na exaltação dos bens à custa de outros, luxo que não durou para sempre. Antes, transportado pelo motorista, confortavelmente no banco traseiro, agora, numa viatura celular que mais me pareceu de transporte de gado; antes, protegido pela vigilância particular, agora, deambula por um espaço com polícias armados até aos dentes; antes, no hotel de todas as estrelas em comodidade e atenções, agora, no espaço nauseabundo compartilhado e ameaçado por dezenas de bandidos; antes, à mesa sumptuosa dos restaurantes, servido com todas as atenções, agora, na angustiante cantina prisional que tantos documentários mostram a frieza dos comportamentos.   

Para quê a riqueza insustentável, volto a questionar. Para quê? De facto, Amigo e sempre presente Franklim, "só temos um estômago".

Ilustração: Google Imagens.   

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Eu, estátua, indefesa e silenciosa


Por 
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
11/12/2021

“Eu, Diogo Cão, navegador,
deixei este padrão ao pé
do areal moreno
E para diante naveguei”

Fernando Pessoa, in “Mensagem”


Mário Lúcio de Sousa, natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados), músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança... para além das estátuas. Mas isso é o menos, o fundamental é o seu argumentário.

Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes, hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora, segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro, orgulhosamente africanos em África e no Brasil... Assim, a minha pergunta é: que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo Verde?

Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os “‘novos portugueses’ conti­nuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que, só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses” ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo, tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?

Terceira questão: o que querem eles derrubar ao certo? Mário Lúcio não esclarece esta questão, dizendo apenas que “a história é tanto a erecção das estátuas e monumentos como a sua demolição”, e o “Público” ilustra o seu texto com uma fotografa do Padrão dos Descobrimentos — cuja demolição, aliás, já foi defendida por uma luminária do PS. E, numa infeliz comparação, Mário Lúcio diz que os alemães, pelo menos, “não expõem as estátuas dos nazistas”. Passe o insulto, decerto imponderado, a verdade é que eu não conheço por cá nenhuma estátua a esclavagistas — a não ser, assim se achando, as que houver ao Infante D. Henrique, que foi, historicamente, o primeiro importador de escravos em Portugal. Mas uma vez derrubado o Infante, um dos maiores homens do seu tempo e um visionário da História da Humanidade, tudo o resto que tenha que ver com aquilo que ele iniciou e a que chamamos a epopeia das Descobertas Portuguesas terá de ser varrido do olhar e da memória, actual e futura. Estátuas, monumentos, Padrão dos Descobrimentos, Torre de Belém, Jerónimos, Mafra, Queluz, e não só aqui: por todo esse mundo fora, onde, desde 1415 até à independência de Macau, alguma vez os portugueses pousaram pé, e onde, com bússolas ou sextantes, com mapas ou sem mapas, com escravos, sem escravos ou com índios, ergueram castelos, fortes, igrejas, feitorias, sinais do Ocidente europeu e do seu tempo entre “gente remota”. Aquilo que esses países preservam como património histórico e como fonte de receitas turísticas, mas que o buldozer da história “limpa” deveria derrubar, em consequência e por igual.

Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português, confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia, coerentemente, ficar sacia­da. Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.

Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que específico pergaminho?

2 Os Estados Unidos, a União Europeia e a NATO dizem que a Rússia se prepara para invadir a Ucrânia, como fez com a Crimeia, e porque nunca desistiu dos seus sonhos imperiais. Putin responde que aceitará uma garantia firme do Ocidente de que a Ucrânia não se tornará membro da NATO e não acolherá no seu território armas nucleares capazes de atingirem Moscovo em cinco ou sete minutos. Putin tem toda a razão. Há 30 anos, a Rússia “imperial” fez aquilo que só em sonhos o Ocidente podia esperar: dissolveu a União Soviética e o Pacto de Varsóvia, devolveu a independência aos Estados Bálticos, às repúblicas russófonas e à Ucrânia, província russa durante séculos, sede de uma importante base naval e de silos nucleares. A NATO respondeu não só não se dissolvendo, como ainda alargando sistematicamente as suas fronteiras para leste, em direcção à Rússia. E se é verdade que Putin anexou a Crimeia, não é menos verdade que esta sempre fora uma província russa (como a Florida é dos Estados Unidos) — tanto que foi ali, em Ialta, que teve lugar a mais importante cimeira dos Aliados durante a 2ª Grande Guerra, entre Estaline, Churchill e Roosevelt, e que a sua anexação teve o apoio maio­ritário da população, pois a entrega à Ucrânia, durante o tempo da URSS, fora um gesto absurdo do ucraniano secretário-geral do PCUS, Khrushchov. E na questão da adesão da Ucrânia à NATO, com a consequente instalação de tropas da NATO e armas nucleares no seu território apontadas à Rússia, Putin está carregado de razão: por igual razão, Kennedy esteve à beira de desencadear a terceira guerra mundial quando o mesmo Khrushchov quis instalar mísseis russos em Cuba, apontados aos Estados Unidos. A mesma narrativa não pode ter duas leituras e duas morais diferentes.

3 Eduardo Cabrita devia ter-se demitido quando um serviço do Estado, sob a sua direcção, espancou até à morte um cidadão estrangeiro no aeroporto de Lisboa. Agora, quando o carro de serviço em que seguia atropelou mortalmente um peão que saiu inesperada e ilegalmente do separador central da auto-estrada para a pista, a única coisa que ele deveria ter feito era defender o motorista. Porque, não obstante toda a especulação mediática e o penoso esforço de aproveitamento político da situação, aquilo que é por demais evidente é que a tese da acusação de homicídio por negligência não tem a menor base de sustentação, de boa-fé. Basta imaginarmo-nos ao volante e não termos um ministro sentado atrás.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 11 de dezembro de 2021

José Miguel Júdice, “criptofascista”, advogado de Rendeiro (e seu representante em ‘off shores’), comentador da SIC…


Por estatuadesal
Alfredo Barroso, 
in Facebook, 
09/12/2021

Convém lembrar que o 'avocat d'affaires' José Miguel Júdice, que é também comentador na SIC, foi um dos mais activos membros do Movimento Federalista Português (MFP), criado após a revolução de 25 de Abril de 1974. O MFP procurou mobilizar o apoio daqueles que pretendiam a continuação de uma união de Portugal com o Ultramar colonial através de uma federação. Este movimento de extrema-direita converter-se-ia em partido político, designado Partido do Progresso, presidido por Fernando Pacheco de Amorim (1920-1999), (monárquico e “integracionista”, que presidiria ao Gabinete Político do MDLP, outro movimento de extrema-direita)…



De facto, com a extinção do Partido do Progresso, durante o chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso), em 1975, José Miguel Júdice seguiu Fernando Pacheco de Amorim, juntando-se a António de Spínola e a Alpoim Calvão, entre outros, na fundação do MDLP. Esta organização (política e militar) contra-revolucionária tinha por objectivo fragilizar o poder das forças de esquerda, realizando ações subversivas em território nacional através do seu braço armado bombista, o ELP (Exército de Libertação de Portugal) como resposta à atividade do COPCON, de Otelo Saraiva de Carvalho…

Com a estabilização democrática do país, e já no final da década de 1970, início da década de 1980, José Miguel Júdice resolveu aderir ao Partido Social-Democrata (PPD-PSD) influenciado pela liderança de Francisco Sá Carneiro. Na primeira metade da década de 1980, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, José Manuel Durão Barroso e Pedro Santana Lopes, 'conspirou' contra a liderança de Francisco Pinto Balsemão (na AD e no PPD-PSD) e depois contra o governo do ‘Bloco Central’ (aliança PS-PPD) como membro da 'Ala Nova Esperança', numa acção que viria a abrir portas à subida ao poder de Aníbal Cavaco Silva… Júdice viria a presidir à Comissão Política Distrital de Lisboa do PPD-PSD, entre 1985 e 1986…


Afastando-se progressivamente da estrutura social-democrata, Júdice resolveu, em 2005, apoiar a candidatura de Maria José Nogueira Pinto, pelo CDS-PP, à Câmara Municipal de Lisboa. Em 2006 desfiliou-se do PSD, era líder Luís Marques Mendes, não obstante ter apoiado nesse mesmo ano a candidatura de Cavaco Silva a PR… Em 2007, aceitou ser o mandatário da candidatura do PS, encabeçada por António Costa, à Câmara Municipal de Lisboa. Após a vitória eleitoral dos socialistas, foi nomeado, em 2008, para presidir ao Conselho de Administração da “Frente Tejo”, sociedade para a reabilitação da frente ribeirinha de Lisboa, mas acabaria por rejeitar o cargo antes de tomar posse…

Em 2016, apoiou publicamente a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa a PR. Perante as declarações de José Manuel Rodrigues Berardo ('Joe' Berardo) na Assembleia da República - em que este afirmou que não tinha que pagar qualquer dívida aos bancos que lhe emprestaram dinheiro – José Miguel Júdice ameaçou devolver a sua condecoração de Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique (que lhe foi atribuída pelo Presidente Jorge Sampaio) se o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não retirasse a 'Joe' Berardo as condecorações de Comendador e Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique. A desfaçatez deste oportunista não tem limites...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A União Europeia desunida na política energética


Por
João Abel de Freitas
Economista 


A grande luta de França é conseguir que, na União, a energia nuclear venha a ser considerada energia verde. Por outro lado, parece haver grandes avanços no domínio dos resíduos nucleares, o problema fulcral desta fileira.




Escrevi aqui, em 19 de Março de 2018, que “a Europa, numa deriva política de extrema-direita, vai fazer implodir a actual Europa, que se arrasta, titubeante e sem projecto a todos os níveis: humano, político, económico e social. Para escapar a este drama tem a Europa de pensar numa refundação em novos moldes e objectivos. Não é com pequenos arranjinhos políticos que se ultrapassa esta grave situação de deriva”.

Intitulei o artigo “Armas novas… que esta Europa tende a desaparecer”. Ora, em quase todas as áreas de decisão importantes da União Europeia, a deriva, a hesitação, o arrastamento de decisões, o conflito de ideias e de interesses tornou-se uma marca comportamental.

Com a Covid-19, houve um curto interregno nas hesitações, apesar de não isento de conflitos e ratoeiras na aplicação. Refiro-me à contratualização da compra das vacinas em comum e aos financiamentos (a fundo perdido e empréstimos) da União Europeia para apoio ao relançamento das economias dos países membros em resultado dos efeitos nefastos da Covid.

Em Portugal, estes fundos, que estão na origem do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), são conhecidos como os dinheiros da “bazuca”, como o primeiro-ministro António Costa os denominou. Mas estes montantes, em volume, deixaram muito a desejar, quando comparados com os atribuídos pelos EUA ou pela Alemanha a idênticas finalidades, já não referindo o tempo que levou a aprovar e a torná-los operacionais e o prazo curto da sua aplicação pelos países, o que tende à formulação deficiente de projectos e estratégias de desenvolvimento.

A União Europeia (UE) arrasta demasiado a tomada de decisões e quase sempre quando tem de as fazer, as reuniões prolongam-se até altas horas da noite, para depois decidir um “quase nada”, um amontoado na maioria das vezes de comunicações muito vagas.

A deriva na política energética

1. De momento, deve ser difícil encontrar um tema como a Energia que reflicta melhor o formato típico de decisão da UE.

Os preços da electricidade na Europa (e no Mundo) têm vindo a subir em flecha. Notícia péssima para a transição climática, empresas e bolso das famílias.

Alguns países, tentando avançar na linha da cooperação encetada pela UE na resposta à Covid-19 e às medidas “desencontradas e desarticuladas” que os vários países estavam a tomar para atacar a subida de preços propuseram a compra conjunta de gás. Mas outros, capitaneados pela Alemanha, opuseram-se afirmando que se tratava de um fenómeno temporário e, por isso, não tinha cabimento tal acção. Outros ainda, como França e Espanha, avançaram com a revisão do funcionamento do mercado europeu da formação de preços da energia por grosso.

A Comissária Europeia para a energia Kadri Simson contraria esta ideia dizendo que “alterar o modelo actual traz riscos para a previsibilidade do mercado, para a competitividade e para a nossa transição para a energia limpa”.

De forma simplificada, o modelo de funcionamento do mercado europeu de energia regula os seus preços pelos da unidade menos competitiva. A título de exemplo, a França produz o megawatt da electricidade à volta de 40 euros (via energia nuclear) e o preço marginal na Alemanha é de 100 euros. Nada justifica que a França ou qualquer outro país do sistema tenha de cobrar este custo marginal da Alemanha. Mas é o que vigora.

Não é preciso um raciocínio muito profundo para se questionar a “bondade” deste modelo de funcionamento (e a quem beneficia) e concluir que é um tema a merecer amplo debate e a exigir uma solução equilibradora. Como funciona, o modelo é um completo absurdo.

O mercado dos preços europeu é talvez aquele tema que na área da Energia, a par da nuclear, mais rupturas e controvérsia levanta entre os Estados-membros.

Os grandes desafios da energia nuclear na Europa

2. Os países europeus alinham segundo três variantes: os defensores da energia nuclear com a França em primeira linha; os países contra este tipo de energia com a Alemanha a liderar, e um terceiro grupo com posição de prudência onde se destaca a Itália.

França é uma grande potência mundial neste domínio, quer pela elevada capacidade de produção instalada (cerca de 75% da electricidade tem esta fonte), quer pelo domínio tecnológico, sendo que já se encontra na quarta geração, agora muito apostada nos SMR – pequenos reactores nucleares, onde espera que as startups e PME apostem fortemente.

O Presidente Macron tem como uma das linhas da sua campanha presidencial o desenvolvimento da energia nuclear nas suas diferentes configurações, diremos pesada e ligeira, e apostou investir nos SMR cerca de mil milhões de euros até 2030. A EDF, por seu lado, vai avançar com centrais nucleares de grande dimensão.

Mas a França não enjeita uma grande aposta nas energias renováveis e está a posicionar-se para ter um papel relevante no hidrogénio a nível mundial.

A grande luta de França é conseguir que, na União, a energia nuclear venha a ser considerada energia verde. Por outro lado, parece haver grandes avanços no domínio dos resíduos nucleares, o problema fulcral desta fileira.

A França é acompanhada por um grupo de países europeus, com alguns prestes a lançar investimentos de centrais nucleares como a Finlândia, onde até o partido dos verdes aceita de algum modo o investimento.

É evidente que, a nível de cada país, o ambiente é também de prós e contras. Em França, essa situação é muito premente, embora os estudos de opinião mostrem que a população é maioritariamente favorável à energia nuclear.

Controvérsia no financiamento

3. Há uma certa radicalidade no seio da UE sobre esta problemática, sobretudo há quem defenda nem um “tostão” de financiamento da União para a energia nuclear.

Havendo um projecto mundial ITER sediado em território europeu, mais concretamente no sul de França para a investigação da fusão nuclear (dois processos na produção de energia: fissão e fusão, sendo a primeira a mais dominada tecnicamente, mas sendo a fusão a mais segura quando vier a ser dominada), não será de afectar financiamentos pelo menos para já à investigação? Há medo dos resultados?

Parece-nos esta divisão radical pouco prudente e proibitiva de avanços. Comanda esta posição a Alemanha com Portugal e outros países como parceiros.

Em conclusão, a União Europeia para avançar com a sua consolidação e projecção mundial de primeiro plano tem de romper com “este tédio titubeante” e desunião latente e permanente. E nas grandes e pequenas questões tomar decisões bem assentes e rápidas. É fundamental encontrar caminho próprio e não se colocar permanentemente sob o chapéu dos EUA, nomeadamente em política internacional.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A falta de humanidade magoa!

 

Senhor Dr. João Cunha e Silva, permita-me, há coisas que se pode pensar em função do posicionamento ideológico, porém não devem, publicamente, ser escritas. Por respeito e até humanidade. Em todos os aspectos, quando sabemos que vamos tocar, eu diria ferir, os que pouco ou nada têm, parece-me que a palavra "contenção" na escrita deve ser observada.



O Senhor critica o aumento do salário mínimo, exaspera-se contra o facto de, em "oito anos, ter passado de 400.000 para 900.000 os que ganham o salário mínimo", o qual a partir de Janeiro será € 705,00. Tudo, escreveu, porque houve uma "ajuda dos partidos à esquerda". Este texto, sabe, meu Caro, chocou-me. Não pela época de Natal, caracteristicamente solidária, mas porque olho para a sociedade que o Senhor, politicamente, ajudou a construir, e confrontar-me com 32,9% de pobres, pensões de miséria, múltiplas iliteracias que condicionam a produtividade, emigração forçada, uma legião de recibos-verdes, alta taxa de desempregados e sem qualificação profissional para os tempos competitivos que atravessamos, com o abandono e o insucesso escolar, com dezenas de instituições, inclusive, as ligadas à Igreja, que mitigam a fome, Licenciados que ganham 500, 600, 700 euros por mês, tudo isto, sabe, magoou-me, porque a sua crítica à "proletarização do salário" não faz o mínimo sentido.

Viver com € 705,00 (brutos) é viver com muitas dificuldades. Toda a família se ressente. É a habitação, a alimentação, os encargos com os filhos, as despesas de água, energia consumida, os transportes, as prestações disto e daquilo, a farmácia, os familiares a cargo, enfim, digo-lhe eu, ainda bem que o salário mínimo tem vindo a aumentar.


Ah, pois, a sua preocupação pela aproximação ao salário médio nacional, blá, blá, blá... sabe, na minha modestíssima opinião, o que está errado não são os € 705,00 de salário mínimo, o que está errado é que o salário médio não aumente em função das habilitações literárias, profissionais, anos de trabalho e de desempenho. O erro está aí. Sabe, meu Caro, sou contra todo o tipo de exploração, defendo o trabalho com direitos, mas também com deveres. Não é só ganhar mais... é trabalhar MELHOR visando a produtividade que conduz à satisfação e êxito de ambas as partes, do trabalhador e do empregador. A contrária conduz-nos à eternização da pobreza.

Sabe, felizmente, nós os dois (eu e o Dr. João Cunha e Silva) não passámos pela pobreza extrema, mas devemos fazer um esforço de pensamento que conduza à pergunta: como seria a minha vida se apenas ganhasse € 705,00?

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 5 de dezembro de 2021

O escândalo do dia


José Sócrates, 
in Diário de Notícias, 
03/12/2021)

Nesta nova temporada televisiva do "cartão azul", o único crime de que temos a certeza que foi cometido é o crime de violação do segredo de justiça. Enquanto decorre tranquilamente em frente dos nossos olhos, este parece ser o elemento ausente- presente da história, o crime de que ninguém quer falar. O nosso sistema penal evolui assim por transgressão. A continuada infração acabará por criar a sua própria lei e o crime acabará consentido e reservado aos agentes estatais. Um crime institucional, por assim dizer. Eis no que que se transformou o nosso sistema penal - o Estado acima da sua própria lei.



A tolerância social a estes crimes tem sido habilidosamente promovida sob a alegação de que estas violações do segredo de justiça têm objetivos nobres e visam um respeitável interesse público. Nem uma coisa nem a outra. Desde logo, em razão dos autores. Os que dão as informações ou que sugerem as suspeitas, são aqueles a quem está atribuída a responsabilidade institucional de guardar o segredo do processo penal em nome dos direitos constitucionais. Por outro lado, se pusermos de lado a hipocrisia do discurso social dominante, facilmente verificaremos que não há aqui nenhum "superior interesse público", mas uma motivação muito mais humana, a venalidade. O que se passa é um negócio, uma troca de favores: dá-me informação que pago com elogios; eu ganho audiência, tu ganhas uma biografia.

Agora é o Porto, ontem foi o Benfica. Primeiro, as buscas, depois as suspeitas, depois a campanha de difamação, tudo devidamente encenado para o espetáculo televisivo. Eis o padrão que virou método. Aos visados nada mais resta senão assistir incrédulos à violência que lhes é dirigida no jornal das oito. Na verdade, nada podem fazer a não ser declarar que estão a colaborar com a justiça porque não sabem exatamente de que são acusados.

Por ora só sabem que são suspeitos. Mais à frente se verá, que os autos estão ainda em segredo de justiça. Fica também a sensação de que desta vez só não houve prisões por temerem que os aficionados do Porto não aceitassem, como aceitaram no Benfica, mudar a sua direção por decisão judicial. Seja como for, durante três dias é um festim - de maledicência, de infâmia, de covardia. Depois o silêncio. A violência simbólica do silêncio geral sobre o método e sobre o crime. O ministério público já nem se dá ao trabalho de disfarçar - fora de questão abrir um inquérito.


Há uns anos, num interessante episódio porventura já esquecido, o inspetor de finanças que liderava a investigação afirmava que uma certa notícia só poderia ter tido origem nele próprio, no procurador ou no juiz. Nenhuma consequência. Agora a nova operação desenrola-se com o mesmo inspetor, o mesmo procurador, o mesmo juiz e, de novo, nada acontece. A cumplicidade do sistema judiciário com estas práticas começa a ser absolutamente escandalosa. Não é apenas abuso de poder, mas a obscena exibição pública de um poder ilegítimo que acabará por corroer a confiança nas instituições de investigação. O que estamos a ver é um Estado a ajoelhar perante agentes que, em seu nome e por via de regra, violam a lei.

E, todavia, não deixa de ser extraordinário que com tanta gente a falar do assunto, sobre negócios que não conhecem e sobre pessoas publicas que têm uma reputação a defender, ninguém pergunte pelas provas do que afirmam com tanta certeza. Ninguém pergunte onde estão os factos que justificam as suspeitas. Ninguém pergunte nada. E, já agora, onde está a acusação do Benfica? Onde estão as provas contra o Benfica que justificaram as prisões e a mudança de direção? Silêncio. O escândalo de hoje como forma de esquecimento do escândalo anterior.

Ericeira, 2 de dezembro de 2021

sábado, 4 de dezembro de 2021

Cop26, incongruências e falta de substância


Por
João Abel de Freitas, 
Economista 


A energia nuclear é aquele tema escaldante. Ninguém o quer abordar quando à vista de todos está a ganhar novo ímpeto, e com mais ênfase após o início da subida de preços da electricidade ou da energia em geral.



1. A COP26 movimentou muita gente, as mais diversas instituições, entidades governativas e sobretudo muitos interesses contraditórios e escondidos. Na COP26 cerca de 40 mil pessoas de 197 países terão estado presentes. Apesar da situação da Covid-19 foi uma das mais movimentadas. Que bom, para o turismo de Glasgow! Muitas são as incongruências e a falta de substância que afectam estas Cimeiras do Clima porque não são orientadas para o fundo dos problemas, ao encontro de soluções e de formas realistas de as concretizar. Por vezes, nem uma abordagem pela rama de questões importantes se faz, o que já não seria de todo um desperdício. A questão ficava gravada e o mundo a reflectir.

A energia nuclear é um exemplo e uma grande hipocrisia. Ninguém fala. Receia-se uma realidade incómoda que está em crescendo. Mas, países importantes como EUA, China, França e outros, retomaram o investimento e a cooperação entre si.

2. Algumas dúvidas me assistem e registo-as.

 Será que não se está num “teatro enganador” a pretender entrelaçar actividades/interesses?
 Estas Cimeiras, e talvez muitas outras, tentarão ir além de um palco de vaidades?
 Não partem e assentam em bases pouco realistas?
 Não será que funcionam mais como uma plataforma de “cartelização” de interesses a nível mundial do que propriamente para os fins nobres que dizem defender?

Situação ambiental em risco

3. A situação ambiental está perigosa e, em diversas zonas do Mundo, o risco é mesmo grande a curto prazo. 

Certamente que para essas zonas pouco há a fazer. Talvez mesmo o programa mais adequado deva consistir em como agir para deslocar as pessoas que aí vivem. Sim, porque limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, meta do acordo de Paris, já parece não passar, pelos caminhos que estão a ser trilhados, de um sonho. Registo, a propósito, “o grito” da primeira-ministra de Barbados que, na abertura da Cimeira, dizia que o aumento da temperatura para 2° C equivalia a “uma sentença de morte para o seu país”.

4. A COP26 encerrou com um acordo “aligeirado”, face ao previsto, com formulações de última hora do uso do carvão como fonte energética, por proposta da Índia, que confrontou a legitimidade da eliminação do carvão ao afirmar que foi precisamente com o carvão que os países mais ricos, contribuindo para a situação climática presente, se tornaram ricos, e agora, quando os países em luta pela erradicação da pobreza precisam, não recebem em contrapartida os financiamentos acordados que lhes permitam desenvolvimento e criação de riqueza?!

Conseguiu manter na declaração final uma referência aos combustíveis fósseis prevendo “o fim dos subsídios ineficientes”, expressão que é uma espécie de saco onde cabe tudo. E será que os países mais ricos não continuam a dar subsídios “ineficientes” aos combustíveis fósseis?! Quem avalia “a eficiência”?

Os combustíveis fósseis

5. As economias continuam ainda indissoluvelmente dependentes dos combustíveis fósseis. Todo o desenvolvimento do século XX assentou na exploração e uso destes combustíveis sequencialmente passando por carvão, petróleo, gás, controlados por grandes grupos multinacionais. É a história. Estes grandes grupos também já estão no caminho das energias renováveis. Vejamos o caso da Galp que não é um grande grupo mas tem as suas ambições. É a dinâmica natural. Estas transições entre fontes energéticas trazem sempre problemas. Polémicas, diferenças na opção de investimentos, acabando no final por os grupos se entenderem, nem sempre com ganhos para a comunidade. Mas aí os governos dos países é que claudicam fazendo cedências, não marcando barreiras.

Resolver esta situação não é fácil. A estratégia ocidental para a transição energética, em especial a europeia, assenta em pés de barro. Basta olharmos para o comportamento recente dos países e nomeadamente da União Europeia (UE) com a subida dos preços energéticos nos últimos tempos. Foi o desnorte.

A Comissão Europeia ainda teve o vislumbre de compras em conjunto, mas depressa desistiu, tamanha a barafunda, ficando cada país com o menino nos braços. Foram “bater” à porta da Rússia para aumentar a produção de gás e dos produtores de petróleo a solicitar o mesmo. Uma situação dramática para o Ocidente que vai ter de ceder muito para obter alguma cooperação. Todos estes países produtores vão aproveitar a oportunidade para aumentar as suas rendas, tanto mais que os relacionamentos políticos não são mesmo nada favoráveis, dificultando as negociações de entendimento.

Mas levanta-se um problema: como se encaixa esta solicitação na transição energética de cada vez menos uso dos combustíveis fósseis? Envia-se para casa dos outros aquilo que, numa linguagem simples, poder-se-á chamar de entulho, de nocivo, de tóxico, para deixar o nosso terreiro limpinho?

Esta situação delicada vem fragilizar ainda mais a estratégia das metas a atingir com a transição energética. Daí que metas, como a redução drástica do consumo dos combustíveis fósseis até 2050, possam não ir além de uma miragem.

A energia nuclear – outra questão

6. A energia nuclear é aquele tema escaldante. Ninguém o quer abordar quando à vista de todos está a incrementar-se, e com mais ênfase após o início da subida de preços da electricidade ou da energia em geral. Há, pelo menos um país, a França, com tradição nesta energia a apostar decididamente nela, tanto assim que Macron vai fazer da energia nuclear uma linha de força da sua campanha à Presidência da República de 2022.

Macron e o seu governo, com destaque para o ministro da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, são assumidamente defensores da energia nuclear e este até já lançou o debate nos “Fora” dos ministros da Economia da UE, apresentando-a e defendendo-a como “energia verde” e a mais capaz de responder ao aquecimento global, o que a Comissão Europeia questiona e a Alemanha rejeita. Um tema ainda mais quente aquando da próxima presidência da União pela França, em janeiro de 2022. Mas não é apenas a França que, ao nível da UE, está empenhada nesta fonte energética. São já muitos os países. Por exemplo, fora da União, temos as grandes economias como os EUA e a China empenhadas no nuclear com projectos de investimento em andamento, embora em diferentes fases, e até um projecto conjunto de investigação, o ITER, sediado no sul de França.

O ITER é o resultado de uma colaboração entre a UE, EUA, China, Índia, Japão e Coreia do Sul. Os custos de produção partilhados atingem 20 mil milhões de euros. O objectivo é “o plasma” superaquecido necessário à produção de energia que os especialistas entendem que poderá vir a ser “uma fonte de energia limpa e ilimitada”, adequada, por conseguinte, para “combater a crise climática”.

Concluindo, perante estes factos é de questionar se não estão estes países todos comprometidos com o nuclear. E, se assim é, qual a razão do tema não ser abordado nas Cimeiras?

Pouca credibilidade me oferece toda esta movimentação. Com muita pena enquadro-os a todos, menos os jovens, onde ainda reina a utopia! Acho, no entanto, que as COP continuem, pelo menos, para ajudar a desmistificar o grande jogo que ensombra todo este “reino”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Um governo não governa para uns em detrimento dos outros...


FACTO

"(...) neste momento quer o governo da Madeira quer a Câmara Municipal do Funchal estão finalmente e perfeitamente articuladas (...)" - Declaração do Presidente do governo regional da Madeira, por ocasião de uma visita a um investimento imobiliário. Fonte: Dnotícias de 03.12.2021.

COMENTÁRIO

O Senhor presidente do governo pode, partidariamente, pensar o que disse, mas, politicamente, não deveria ter dito. Por uma simples razão: é presidente do governo e o governo está acima das autarquias, tenham elas a cor partidária que tiverem. Aquela declaração, do ponto de vista político, transporta uma velhíssima subliminar mensagem: quem não está connosco, contra nós está. Portanto, queda-se na frase que li algures: "para os amigos tudo, para os inimigos nada e, para os restantes, aplique-se a lei". É uma espécie de pensamento ditatorial, conducente ao pensamento único.

Sempre foi assim, dirão alguns. Pois, mas é contra isso que me insurjo, sobretudo porque é a Democracia que fica em causa e, sendo assim, torna-se no mais completo desrespeito pela decisão do povo quando faz as suas escolhas nas urnas. Um governo não governa para uns em detrimento dos outros. Não escolhe parceiros que foram eleitos. O seu olhar deve manter-se distante dos interesses partidários, pelo que se exige neutralidade, bom senso e respeito. Quando todos estão "finalmente e perfeitamente articulados" sobejará, sempre, qualquer coisa negativa para o povo. Seria bom que se pensasse nisto!

Ilustração: Google Imagens.