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quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Fusão nuclear, uma grande pedrada nos inimigos do futuro


Por
26 Dezembro 2022

2022 foi o ano de maior consumo de carvão no mundo, com maior emissão de CO2. O Mundo andou para trás com a descarbonização ou, para ser mais benigno, fez compasso de espera.



Esta semana havia um bom lote de assuntos de elevado interesse político, económico e social para artigos de opinião:
O Catargate e a União Europeia, por exemplo, numa vertente da muita regulamentação existente e da pouca monitorização;
O porquê do mercado negro do petróleo estar tão próspero e dinâmico com o embargo e a fixação (60 dólares/barril) do preço de aquisição do petróleo russo;
As cheias e em especial as de Lisboa comparadas com as de Tóquio e outras cidades, onde as condições atmosféricas são de um modo geral mais desfavoráveis;
As falências em curso de um número significativo de empresas nos países europeus devido à crise energética numa Europa em perda de competitividade;
A ONU e a multiplicação de COPs (a COP27 no Egipto e a COP15, poucos dias depois, no Canadá). Encontro de lóbis? Coordenação de interesses? Ocupação de pessoas que vivem destes eventos…?

Uma mão-cheia de temas. Era só optar.

A fusão nuclear

1. Bem ou mal, aderi ao tema da fusão nuclear que até nem consta dos elencados antes.

Caiu-nos uma excelente notícia sobre esta vasta temática. Pela primeira vez na História, uma experiência de fusão nuclear dos cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Livermore da Califórnia (LNLL) “conseguiu produzir mais energia do que a consumida no uso da produção”.

Não sendo um especialista na matéria, bem longe disso, estou convicto de há algum tempo que a energia nuclear civil desempenhará um papel estruturante no progresso da Humanidade, seja sob a forma de fissão, a energia hoje existente com todos os seus avanços dinâmicos recentes, seja sob a forma de fusão que, quando passar à industrialização, não emite CO2 – aliás como a fissão –, mas acrescentará a não geração de resíduos radioactivos, ou quaisquer riscos de acidentes graves como Fukushima ou Chernobyl. Efetivamente, não resisti a partilhar e comentar esta boa notícia que nos abre mais futuro.

Projectos experimentais de fusão nuclear estão em andamento, designadamente nos EUA, China e Reino Unido, para não falar do ITER, instalado em Cadarache, no sul de França, uma iniciativa internacional de vários países (China, Coreia do Sul, EUA, Índia, Japão, Rússia e União Europeia), mas infelizmente com atrasos sucessivos. Tido como muito importante na implementação da fusão, não está a cumprir os fins para que foi desenhado.

E, assim, ainda bem que surge a concorrência e com resultados expressivos. Aliás, experiências anteriores na China e EUA que estão no sucesso desta, anunciada a 13 de Dezembro, já tinham sido mais consistentes que o desempenho do ITER. Até parece que a localização (europeia) e a sua gestão não acomodam uma dinâmica adequada!

2. A fusão nuclear deu agora um grande passo, embora haja quem queira denegrir esse avanço, alegando que se trata de um acontecimento menor ou então que muitos séculos hão de vir até aparecer a electricidade via fusão.

Segundo li em jornais estrangeiros, o LNLL “causou fusão nuclear controlada libertando 2,5 Megajoules de calor com apenas 2,1 Megajoules de energia fornecida”. É evidente que ainda se está distante da consolidação industrial desta experiência. Bastantes mais serão necessárias e certamente vários Laboratórios irão continuar este trabalho de investigação.

As previsões para a aplicação industrial, ou seja, o seu uso na produção de electricidade continuada é uma incógnita, embora cientistas, certamente com algum grau de voluntarismo e optimismo, apontem para 15/20 anos.

O laboratório da Califórnia, ao dar este passo decisivo, está ciente do muito caminho a percorrer. O seu anúncio tem um propósito claro: consolidar o financiamento por parte da Administração americana. Para a mentalidade americana, a apresentação de resultados concretos, independentemente do grau de inovação em que se encontre, abre caminho à concessão de mais financiamentos e, nesta fase, é fundamental afastar escolhos dessa natureza.

3. Quanto às opiniões “cépticas”, sobretudo de origem europeia, permito-me registar algumas interrogações.

Não terão os descréditos apontados em artigos de opinião e comentários origem nos defensores das energias renováveis? É um dado adquirido que alguns tipos de renováveis, como a eólica, atravessam incertezas devido a irregularidade do vento, antevendo-se situações de futuro, menos boas. E da produção das terras raras usadas estar muito concentrada na Ásia não poderá nascer uma linha de dependência nestas energias…?

Por outro lado, as energias renováveis, como se sabe, não resolvem per si a descarbonização devido à sua intermitência, precisando sempre de energia compensadora e, neste caso, para os antinucleares, de energia fóssil.

A velha questão que divide a União Europeia

4. Infelizmente, existe uma velha questão, no âmbito da União Europeia, que muito tem contribuído para a profunda divisão na União Europeia (UE) E entre os defensores das renováveis e os da nuclear. Esta realidade é a base de efeitos nefastos profundos como os que estão a ocorrer agora com os elevados preços da energia e o seu contributo para a inflação que nos domina.

Vejo na abordagem por certas forças desta experiência no processo de fusão nuclear uma reedição dessa herança, designadamente por parte da Alemanha e de algumas ONG, que temem avanços porque têm interesses muito fortes em jogo.

Não nos podemos esquecer que há lóbis alemães poderosíssimos sobretudo do lado dos fabricantes de equipamento que com o avanço da nuclear e agora com a Fusão perdem a argumentação da nuclear como energia perigosa. O medo da desgraça ficaria enterrado. Mas atenção, há que olhar para o futuro com os pés assentes no chão. A energia de fusão é futuro, embora esta situação não corresponda a abandonar a fissão.

2022 foi o ano de maior consumo de carvão no mundo, com maior emissão de CO2. O Mundo andou para trás com a descarbonização ou, para ser mais benigno, fez compasso de espera. A Europa foi uma das zonas mais poluidoras, exactamente porque accionou várias centrais a carvão para escapar a eventuais roturas de energia neste Inverno, apesar de haver quem considere que a situação no ano de 2023 possa ser pior (Agência Internacional de Energia).

Por outro lado, a UE continua a ser parcial pois trata a energia nuclear em plano de secundariedade face às renováveis, contrariando os avanços da ciência cada vez mais favoráveis para esta, e quanto às renováveis os problemas avolumam-se.

As dúvidas sobram sobre as influências de muitos dirigentes da UE. Destas más políticas e estratégias enviesadas já conhecemos bem os efeitos. Perda de poder de compra e de competitividade. A Europa está em perda e cada vez mais tenderá, por este caminho, a ser uma potência de segundo nível, pelos erros que acumula e divisões internas não superadas. Um entendimento na energia é fundamental a uma Europa forte.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

Nota complementar

O Joule é uma unidade de medida tradicionalmente usada para medir a energia mecânica ou a energia térmica; numa outra aproximação: 1 Joule corresponde a 1W¨*s (Watt-segundo); o Megajoule corresponde a um milhão de Joules.


domingo, 18 de dezembro de 2022

NATAL - A minha mensagem, o meu desabafo!


Gostaria que fosse diferente, mas é o que é. Por isso, mantenho a utopia no seu significado mais profundo, essa utopia, na esteira do escritor Eduardo Galeano e do cineasta Fernando Birri, aquela que está no horizonte e que se distancia à medida que para ele avançamos, o que significa que ela serve, exactamente para isso, para que não deixemos de caminhar. Caminhar com sentido, com objectivos e convicções claras e não vendáveis. 


Por isso, o Natal, aquele que eu gostaria que fosse, não é. Ficamos pela boa azáfama, embora rotineira, que ignora o lado dos verdadeiros e intrínsecos princípios e valores da Humanidade. Não sou pelo Natal rico, mas muito menos pelo Natal pobre. Em todos os sentidos. Sou pelo significado do Nascimento e pela semente deixada entre os Homens. Essa semente que tornaria esbatidos o mundo dos ódios e de perversidades, religiosos, políticos e outros, um mundo de equilíbrios, de liberdade, tolerância, de paz, de amor, de fraternidade e irmandade entre os Homens e as nações. Um mundo onde não fosse necessário pregar a fé e apregoar a caridade, porque implícita nos nossos valores humanos. 


Este, não é, portanto, o Natal que desejaria viver. Nunca foi. Vivo as tradições culturais, sinto-as e esforço-me por transmiti-las, arrebata-me a tão deliciosa proximidade da família, mas, questiono-me, isso bastará quando inalamos o cheiro da pobreza que passa ao nosso lado, o desespero do suicídio (na Madeira são três por mês), o som da guerra que se espalha, a destruição sem dó nem piedade, os povos em fuga, as mortes no mediterrâneo, o sofrimento de milhões de refugiados, o tráfico e exploração de seres humanos, a fome, o desespero, a emigração forçada, a magreza dos salários e das pensões, o desencanto relativamente a políticos que roubam e que nos esbulham, a corrupção tornada modo de vida, o desemprego, as várias violências, a hipocrisia, a mentira, a fortuna de uns à custa da maioria, mais, ainda, a própria destruição do planeta? Há, convenhamos, um certo amargo, quando passamos em revista o que nos rodeia, reflectindo sobre a realidade local e global. 

Não é este o Nascimento que ambiciono e que, estou certo, a esmagadora maioria dos povos deseja. Prevalece a existência de mais direitos do que justiça. E o que não faltam são textos aprovados pelos Homens que servem para emoldurar e a eles se referirem sempre que dá jeito e a necessidade apela. O que não faltam são Constituições de países com artigos e alíneas repletos de direitos sociais. Mas falta-nos o essencial: repudiarmos o egoísmo, a maldade, a ganância, a mentira servida de forma sorridente e convincente, a ostentação, o falso altruísmo, políticos sem visão e especialistas em mediatismo, os ditadores, os que fazem da política uma profissão, a globalização da indiferença, os fraudulentos negócios da banca, entre tantos outros, a punição exemplar de quem se serve de mão-de-obra escrava, os crimes de colarinho branco, os que carregam nos impostos por obediência a essa desorientada União Europeia dos "mercados" e dos favorecimentos, os que se servem de países pobres para sugarem as suas riquezas, enfim, tudo aquilo que ofende a dignidade do Homem que por aqui passa umas escassas dezenas de anos. 

O Nascimento aponta nesse sentido, penso eu. Não passa por matar a fome, por exemplo, aos sem-abrigo na noite de Natal, mas em devolver-lhes a vida. Não passa, apenas, pelo espectáculo das festas de Natal nos hospitais, mas em garantir o pleno direito à saúde, sem milhares nas várias listas de espera. Não passa, apenas, por visitas de circunstância a instituições de crianças, distribuindo-lhes brinquedos, mas em garantir-lhes futuro. Não passa por um sistema educativo caduco que mata o direito ao sonho, à felicidade e que, ao contrário de constituir-se um meio de combate à pobreza, continua a atirar milhares para as margens. Não passa, apenas, por almoços e jantares entre colaboradores de empresas, por momentos de alegria e de esquecimento de tropelias, pressões e angústias. Não passa, apenas, por uma noite do mercado, uns copos e umas sandes de vinho-e-alhos. Não passa, apenas, pelas visitas de cortesia, entre governantes e instituições, onde, amistosa e de sorriso largo, declaram Bom Natal uns aos outros. Porque o Nascimento deveria residir em nós, nos outros onze meses do ano. Utopia? Não. Fraqueza dos Homens, sim.

No coração citadino cruzamo-nos com milhares de pessoas, cada uma na sua vida, correndo de um lado para outro, adquirindo isto e aquilo, mas quantos, questiono-me, nessa azáfama, sofrem em silêncio as vicissitudes da vida? Tudo ou quase tudo aparências, quando Janeiro aí estará com a vida a voltar à doentia normal anormalidade, segundo dizem, um ano de 2023 que só será fácil para uma minoria. Os outros carregarão o fardo das extremas dificuldades. Gostaria que fosse diferente, mas é o que é! Tomemos consciência. E se digo isto é porque acredito no Pai-Natal! A utopia, enquanto caminho, não morrerá em mim.

Para todos um Bom Natal.

Ilustração: Arquivo pessoal

Nota
1. Texto reescrito de um outro que publiquei em 2015 
2. Só voltarei à escrita em Janeiro de 2023

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A propósito de uma "algália"


Eram cerca das 17:00 horas. Saí do supermercado e liguei o rádio. Escutei não mais de três, quatro minutos. Desliguei. Na Assembleia Legislativa da Madeira, falava o Senhor Presidente do Governo no debate do Orçamento da Região para 2023. Eu sei que uma cópia não passa de uma cópia. O original é de difícil imitação. Não suportei o fraseado, neste caso dirigido ao representante do PCP, onde até falou da função de "algália" que este partido teve durante o acordo de incidência parlamentar entre o PS, PCP e BE. Palavra sem sentido e se tem, é tão pejorativo que não atingi.



"Algália" foi o mínimo, porque todos os da oposição foram presenteados. O anterior presidente batia forte e feio, "contava anedotas", distraía do assunto sério e, infelizmente, ainda animava. No meio daquilo dizia coisas com algum grau de assertividade. Este não, a cópia sai esborratada. Não gosto. Detesto. 

O debate do Orçamento deve ter elevação, deve ser um momento solene de exercício da democracia, de contraposição com argumentos consistentes e de demonstração da verdadeira face de um projecto político. O debate não deve permitir a desconversa, o bate-papo de mesa de café entre uma "milhada" e outra a ver quem paga a rodada.

O debate sério dispensa o pensamento pacóvio, a animosidade sem sentido e a gritaria insolente. A Assembleia é o primeiro órgão de governo próprio desta Autonomia e, desde logo, mesmo perante um povo desligado da coisa pública, deve ser educadora e séria. Mas não, parece que naquele metro quadrado de espaço de cada um, a soberba toma conta do racional e aquilo torna-se repelente, o que conduz ao afastamento, não sei se intencional, do ambiente político por parte dos cidadãos.

Azar meu, talvez como prova do dia anterior, hoje, quase nas mesmas circunstâncias, voltei a ligar e zás, dou com um secretário do Turismo e, imagine-se, da Cultura, a atirar-se, não percebi a quem, mas onde falava da escola primária e de reguadas, mas certamente não as podendo dar, ficava pelo seu discurso de contraponto. Voltei a mudar de estação.

Sinceramente, é que já não há pachorra para aturar vilipêndios seja lá de quem for. Aprendi ao longo da vida que o melhor improviso é o que está escrito. Isto é, parecendo improviso, sobre as diversas matérias, os tópicos dos raciocínios estão escritos e fundamentados. E sobretudo a consciencialização do que não deve ser dito. 

A Assembleia é um espaço nobre, pressupostamente, ali deveriam estar os melhores da sociedade (infantilidade a minha), debatendo os assuntos que a todos diz respeito. Não é um espaço de discussão (diferente de debate), de marginalidades, de generalidades, de banalidades e de infantilidades. A Assembleia não tem de ser, necessariamente, uma arena de gladiadores, de ofensa e "sangue". É preciso erudição, ironia cáustica, ponderação e maioridade nas atitudes e comportamentos.

Finalmente, regresso à "algália", apenas para questionar se a palavra e o seu significado também se aplica ao parceiro (legítimo) da sua coligação?

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Dra. Sofia Escórcio - Abordagem ao Doente Crítico Num Prisma Internacional


Um orgulho.

Ucrânia: Preparar o saque


Por
Carlos Matos Gomes, 
in Medium.com 
12/12/2022)
 A Estátua de Sal

“Botín de guerra” — um termo antigo para um procedimento sempre atual — é a designação dos bens de uma nação ou exército que devem constituir um troféu e recompensar os vencedores. A palavra parece ser de origem alemã e significava “presa”. A divisão do botín de guerra é geralmente acordada antes do início do assaltos.





Os senhores da guerra vão realizando análises de custos e benefícios ao longo das campanhas até chegar ao momento em que decidem terem mais a perder do que a ganhar com a manutenção das hostilidades, que chegou o tempo de negociar o saque. No caso da Ucrânia, estão em jogo os milhares de milhões de euros de “ajuda à reconstrução”! Os franceses deram sinal de vida e já estão em campo, de dente afiado, informa do Le Monde: “Guerre en Ukraine, en direct : 500 entreprises françaises réunies mardi à Paris pour reconstruire l’Ukraine.” Estas sociedades participarão na segunda gonferência que terá lugar em 13 de Dezembro e leiam-se os bondosos propósitos: “ responder às necessidades criticas da Ucrânia, contribuir para a reconstrução do país e investir a longo prazo no potencial da economia ucraniana” — segundo o Eliseu. (Do jornal da União Europeia).

Após a reunião do Conselho Europeu de 20 e 21 de outubro de 2022, a Comissão propôs hoje (9/Dec) um pacote de apoio sem precedentes para a Ucrânia de até 18 mil milhões de euros para 2023. Isso será feito na forma de empréstimos altamente concessionais, desembolsados ​​em parcelas regulares a partir de 2023. Esta assistência financeira estável, regular e previsível — com uma média de € 1,5 mil milhões por mês — ajudará a cobrir uma parte significativa das necessidades de financiamento de curto prazo da Ucrânia para 2023, que as autoridades ucranianas e o Fundo Monetário Internacional estimam em € 3 a € 4 mil milhões por mês. O apoio apresentado pela UE necessita de ser acompanhado por esforços semelhantes de outros grandes doadores, a fim de cobrir todas as necessidades de financiamento da Ucrânia para 2023. Graças a este pacote, a Ucrânia poderá continuar a pagar salários e pensões e manter em funcionamento serviços públicos essenciais. Também permitirá à Ucrânia garantir a estabilidade macroeconómica e restaurar as infraestruturas críticas destruídas pela Rússia. O apoio europeu será acompanhado de reformas para “reforçar ainda mais o Estado de direito”, a boa governação e as medidas antifraude e anticorrupção na Ucrânia.

O aprofundamento do Estado de Direito na Ucrânia está mesmo no comunicado da Comissão Europeia, não é piada. (https://ec.europa.eu/commission/presscorner).

Da parte dos Estados Unidos, Joe Biden propôs um reforço de 275 milhões de dólares para a defesa aérea da Ucrânia. Mais 53 milhões para a recuperação de infraestruturas e felicitou o discurso de Zelenski de abertura para uma paz justa baseada nos princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas. (The Guardian 12/12/2022). Vários líderes europeus e o secretário-geral da NATO introduziram os riscos da escalada da guerra nos seus discursos.

Em resumo, o “Ocidente” está a preparar o futuro e a anunciar o fim das ações militares na Ucrânia. O plano parece claro: estabilizar a situação no terreno, não permitindo mais avanços da Rússia, através do reforço da defesa aérea que limita novas conquistas e tratar dos negócios da reconstrução. Os Estados Unidos atingiram o seu objetivo principal: subordinar a União Europeia e bloqueá-la na sua órbita, separando-a da Rússia e destruindo a sua coesão e veleidades de autonomia.

Contudo os estados ocidentais irão para o saque do futuro da Ucrânia em ordem dispersa, cada um por si e contra os outros para abocanhar o que puderem dos fundos atribuídos à “reconstrução” da Ucrânia: os franceses estão a preparar-se, assim como os alemães. A Polónia deverá ser recompensada do seu apoio como base logística com uma parcela da Ucrânia, o Reino Unido servirá de sócio principal dos EUA, e a Turquia venderá caro os seus bons ofícios de intermediação e na manutenção de pontes entre as partes, que deverão ser pagos pelo Ocidente e pelos curdos. Os Estados Unidos através das suas empresas serão os grandes “reconstrutores”, como já foram no Iraque!

A dúvida é o comportamento da Rússia. O que consideram os russos “atingir os seus objetivos”? O fornecimento pelo Ocidente de grandes quantidades de armamento à Ucrânia tem por finalidade limitar as suas pretensões.

À Ucrânia de Zelenski resta o papel de carne para canhão e de tesouro de guerra.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Narendra Modi na presidência do G20


Por
12 Dezembro 2022


Esperemos que esta presidência do G20 consiga ir além dos sentimentos e plante algumas sementes, no sentido de uma distribuição mais equilibrada de poderes entre os países.



No dia 1 deste mês de Dezembro, a Índia assumiu a presidência do G20 pelo período de um ano, sucedendo assim à Indonésia, cuja última cimeira se deu em Bali (14-16 Novembro).

1. Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, no discurso proferido em Bali, já na antevisão de futuro timoneiro do G20, pintou um quadro negro do Planeta (mudanças climáticas, Covid19, acontecimentos na Ucrânia, mau funcionamento das cadeias de distribuição…), atribuindo a instituições multilaterais como a ONU e seus diferentes Órgãos (Banco Mundial, FMI, PNUD, OMC…) falhas graves nas decisões de índole política e económica, que muito contribuíram para esta realidade.

Para Modi, as instituições multilaterais continuam a agir e a privilegiar os interesses do Ocidente em desfavor das economias emergentes.

O Ocidente continua, de facto, a tentar perpetuar-se, ou seja, a determinar o rumo do Mundo de acordo com o seu pensamento e interesses, quando, na realidade, desde há muito, deixou de reunir as condições para essa preponderância mundial.

2. A ordem mundial, constituída no pós – 2ª. Guerra, encontra-se perfeitamente desfasada dos temas e problemas de hoje. Tudo tem vindo a mudar nas mais diversas frentes, na economia, no social, no político, na demografia e até no campo das tecnologias do futuro. O Mundo transformou-se, mas continua manietado pelo poder do Ocidente que, no limite, não hesita no recurso à força militar para manter os privilégios.

Narendra Modi falou, assim, da necessidade firme de reconstruir a ordem mundial vigente. Neste contexto, disse, vai usar a presidência do G20 para desafiar o Ocidente e lançar de modo concertado e pacífico as alterações de fundo conducentes a uma distribuição mais equilibrada do poder político e a um novo figurino de governação do Planeta, de forma que as economias emergentes venham a ocupar, no xadrez político mundial, a posição que lhes compete e até ao presente nunca reconhecida.

Ninguém gosta de perder poder. E esta é a situação real. O Ocidente está em perda continuada de influência em várias frentes e resiste a isso por todos os meios (legítimos e ilegítimos).

3. A Índia, a China, o Brasil, a Arábia Saudita, a Indonésia e outros países emergentes do G20 opuseram-se, na Cimeira de Bali, à decisão dos países ocidentais de incluir na declaração final a condenação da Rússia a respeito da guerra da Ucrânia. O presidente da Indonésia, anfitrião da Cimeira, solicitou aos dirigentes ocidentais moderação na sua retórica contra a Rússia.

O primeiro-ministro da Índia considera que “o G20 é um fórum destinado a construir consensos em torno do desenvolvimento, do crescimento e das questões financeiras” e “a questão da guerra e dos conflitos deve ser discutida no Conselho de Segurança da ONU” tema, no entanto, dominante em Bali.

Narendra Modi e o G20

4. Modi tem referido várias prioridades para a presidência do G20. A segurança energética, a segurança alimentar, o financiamento pelas economias mais ricas (Norte) da transição ecológica das economias emergentes, bem como a transição digital têm merecido acentuado destaque.

No dia 1 de Dezembro, Narendra Modi fez publicar no jornal “L’Opinion”, em França, a título exclusivo, um documento enquadrador da presidência da Índia do G20, com o desígnio de “Uma Terra, Uma Família, Um Futuro”, em que afirma: “Os maiores desafios que enfrentamos – mudanças climáticas, terrorismo e pandemias – podem ser resolvidos não lutando uns contra os outros, mas apenas agindo conjuntamente”.

Fazendo uma curta referência às 17 presidências anteriores do G20, em que salienta o seu contributo para a estabilidade macroeconómica, a racionalização da tributação internacional e a redução dos encargos da dívida dos países, entre muitos outros resultados, questiona-se se o G20 não poderá ir mais longe, catalisando uma mudança fundamental de mentalidade, em benefício da humanidade como um todo.

Modi é afirmativo, mas refere que, por enquanto, a norma ainda é o confronto. “Vemos isso quando os países competem por territórios ou recursos. Vemos isso quando bens essenciais são transformados em armas. Vemos isso quando as vacinas são monopolizadas, enquanto milhões de pessoas permanecem vulneráveis”.

Modi aponta no documento que a Índia é um microcosmo pois para além de representar mais de 1/6 da população mundial é um país com uma diversidade de línguas, religiões, costumes e crenças vivendo numa certa harmonia, e daí poder projectar as suas experiências de forma a fornecer pistas de eventuais soluções mundiais.

“No decurso da nossa presidência do G20, apresentaremos as experiências, os ensinamentos e os modelos da Índia como modelos possíveis para outros países, em particular os países em desenvolvimento”.

O documento termina com um apelo de futuro.

“Para dar esperança às gerações futuras, encorajaremos negociações honestas entre os países mais poderosos, sobre a atenuação dos riscos colocados pelas armas de destruição massiva e o reforço da segurança mundial. A agenda indiana para o G20 será inclusiva, ambiciosa e orientada para a acção e será decisiva. Unamos os nossos esforços para fazer da Presidência Indiana do G20 uma presidência de transformação, harmonia e esperança. Trabalhemos em conjunto para moldar um novo paradigma, o de uma globalização centrada no Humano”.

Excelentes sentimentos e ideias!

Esperemos que esta presidência do G20 consiga ir além dos sentimentos e plante algumas sementes, no sentido de uma distribuição mais equilibrada de poderes entre os países, que alguns passos aconteçam e as presidências seguintes, a cargo também de economias emergentes, consolidem alguns degraus. É determinante para a pacificação mundial que algum progresso concreto aconteça nestes domínios.

Notas de complemento

i) Os países do G20 em número de 19 a que se junta a União Europeia incluem a África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, EUA, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia.

Destes 19 países, Alemanha, Canadá, Coreia do Sul, EUA, França, Itália, Reino Unido e Rússia são considerados desenvolvidos. Os restantes são economias emergentes.

ii) O conjunto dos países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) são todos membros do G20 e como se referiu em artigo sobre este tema, os BRICS contestam o funcionamento das Instituições Multilaterais por não respeitarem os interesses das economias emergentes. A Índia traz para a presidência do G20 algumas dessas ideias, o que é natural dado pertencer aos dois agrupamentos.

iii) Após a Índia seguir-se-ão na presidência do G20, o Brasil, seguido da África do Sul os dois, países BRICS.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sábado, 3 de dezembro de 2022

O pecado - Foi quiçá o maior «negócio» da história


Por
José Luís Rodrigues 
Padre
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Foi quiçá o maior «negócio» da história.
Serviu para sacar enormes fortunas. Serviu para enfeitar altares com peças requintadamente douradas e prateadas. Serviu para vender pedaços de céu com indulgências e outras «graças» que consolavam as almas malévolas, sanguinárias, cruéis e profundamente injustas para os seus semelhantes, mas depois do «milagre» do vil metal, estavam concertadas para entrar no bem bom dos céus.



O pecado tal como nós o concebemos não existe. Muito menos existe aquela ideia tão comum entre as pessoas de que quase tudo é pecado. E muito do que comumente designamos de pecado não interessa nada ao Menino Jesus. A consciência perante as injustiças, a corrupção praticada e a indiferença da maioria perante os praticantes dela, os ódios pessoais e coletivos que levam à morte, o abandono dos frágeis e etc… São talvez os verdadeiros pecados que ninguém se importa e muito menos confessa.

Nas Vinhas da Ira, John Steinbeck, colocou na boca de um dos seus personagens esta frase: «pecado é ter fome e frio» (pag. 386). Nesta fase do livro a reflexão sobre o pecado é magnífica e devia ser afixada nas portas das igrejas.

O «negócio» do pecado levantou basílicas sumptuosas, catedrais requintadamente faustosas, vestes clericais bordadas a ouro e prata, imagens de santos riquíssimas contrastando com a pobreza real enquanto viveram historicamente e objetos para guardar o Senhor Jesus - que foi um pobre de Nazaré. Os bens mais ricos que alguma vez a humanidade criou, serviram para luxos e para voluptuosidades do clericalismo - essa casta privilegiada e autorreferencial que se intitula de os chamados e eleitos Deus para O servirem esplendidamente.


Mas par deste «negócio» astronómico, cujo produto era o pecado e todos os medos e ameaças de condenações eternas às penas do inferno a ele inerentes, o povo na sua larga maioria morria de fome e de frio, e tudo, exatamente, como ainda hoje acontece. Uma larguíssima maioria de pessoas humanas morre de frio. Este pecado, ninguém confessa.

O pecado nos nossos dias tem um sentido mais lato, porque mais social e comunitário, porque é a esse nível que situamos a verdadeira desgraça da humanidade e do planeta. Por exemplo, o pecado dos atentados contra ecologia e o meio ambiente, são graves e afetam todos.

Se concebemos Deus dentro de determinados parâmetros, mais de acordo com o Evangelho do amor e da misericórdia, também devemos encarar de modo distinto a forma como nos relacionamos com o transcendente.

Nunca pode o pecado ser encarado como um negócio, uma arma para meter medos com vista a domesticar e dominar as pessoas. O pecado existe, é um mal corrosivo das sociedades, das famílias e das relações interpessoais. Porém, a ninguém é legítimo servir-se das quedas humanas para enriquecer, incutir medos, tecer condenações e fazer de Deus um justiceiro ou merceeiro que concede dons e graças como moeda de troca.

Muito menos a forma de reconciliação e remedeio do pecado pode ter por uma única via e por uma única entidade. Porque tal seria ilegítimo e pior seria que aceitássemos que pecadores andavam a salvar pecadores, como cegos a conduzir cegos ou cambados a carregar à costas outros cambados.
O pecado para ser remediado, implica arrependimento e o propósito de emenda, depois Deus e a consciência de cada pessoa ditarão e farão o que é preciso fazer. Quanto ao caminho e a forma de lá chegar, cada um procure a melhor forma de se reconstruir interiormente. Não há uma única via e o reino de Deus tem muitas portas.

Por isso, pecados verdadeiros, que devem inquietar o Deus da misericórdia, da paz e do amor, devem ser todas as atitudes desta vida que violentem tais qualidades. Neste sentido, só temos para «confessar» a gravidade que assola este mundo onde tantos ainda morrem de frio e de fome. Por causa da guerra, do negócio das armas e todas as estupidezes que a humanidade teima em fazer valer contra o bom senso e a razão autêntica das coisas.

Ter fé não é ter sossego, é viver desassossegado. Quando há sossego é sinal que deixamos de nos considerar responsáveis do frio e da fome que ainda existe no mundo. O pecado não é mais importante que a fé, a esperança e a caridade.

Um grande pecado é ser escravo de medos. E estragar a felicidade própria e a dos outros, é o caminho certo para cair no inferno. E a Deus só pode interessar que não violentemos a vida de forma nenhuma. JLR

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Economias emergentes acusam UE do aumento de preço do gás natural


Por
João Abel de Freitas, Economista 
28 Novembro 2022
 

A anarquia de preços e quantidades nos mercados internacionais do gás natural decorre do desnorte europeu das sanções económicas contra a Rússia, muito mal concebidas porque contra os interesses dos países-membros, mas afetando de sobremaneira os países emergentes de menor poder de compra.



O ano de 2021 constitui um marco disruptivo na estruturação dos mercados de gás natural com um duplo efeito: elevado aumento da procura e uma vertiginosa subida de preços. Nesse ano, o preço do gás natural bate recordes na Europa, atingindo taxas imprevisíveis da ordem dos 1000% (atenção, acentuo 1000%!) face a 2020.

Em Agosto de 2021, a agência noticiosa Bloomberg anuncia “a era do gás natural barato acabou, dando lugar a um período de energia muito mais cara que deverá criar um efeito de cascata na economia global”. E tudo isto porquê? A Covid-19 provocou uma quebra do consumo energético, devido fundamentalmente à paralisação, ou quase, da economia em vários sectores, energético, industrial e serviços como a hotelaria, a restauração, os transportes…

Nos finais do primeiro semestre de 2021, a retoma económica gera um profundo caos. As cadeias de reabastecimento, com os seus vários estrangulamentos (dificuldades de produção, carência de meios de transporte, rarefacção de mão-de-obra…) não reúnem as condições devidas a uma resposta atempada, provocando escassez de bens nos mercados e atrasos de meses na satisfação das encomendas, tudo isto agravado por uma subida de preços que se estende a sectores como os bens alimentares e as componentes electrónicas (semicondutores), nomeadamente de origem asiática.

2. Este caos já de si complexo é apanhado no turbilhão da guerra da Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022), a que a União Europeia (UE), sem estratégia própria clara, decide responder com sanções económicas sobretudo de cariz político, ou seja, sem uma análise de medida dos impactos na sociedade, dando dimensão ainda maior à anarquia reinante em termos dos desequilíbrios procura/oferta e, por conseguinte, provocando a especulação de preços.

A UE deixa-se arrastar na onda das sanções veiculadas pelos EUA, quando a sua situação de dependência energética real nada tem de comum com a realidade americana. O mesmo tipo de sanções em duas realidades tão distintas (falha de recursos energéticos próprios na UE) dificilmente poderia ter os mesmos efeitos.

3. A Comissão Europeia para “sustentar” estas sanções inventa um simulacro de plano logo em Março, designado de RePowerEU, com umas frases “sugestivas” do género: “eliminar a nossa dependência de combustíveis fósseis da Rússia até 2027“; o “REPowerEU procurará diversificar o abastecimento de gás, acelerar a implantação de gases renováveis e substituir o gás no aquecimento e na geração de energia”.

Em termos práticos, este plano (pouco pacífico entre os países-membros) resumia-se no concreto ao corte de 2/3 das compras de gás russo até finais de 2022.

Até António Guterres se manifesta contra “a pressa de substituir petróleo e gás russos” por outros combustíveis fósseis, alegando que pode precipitar o aquecimento global (Lusa, 21 Março 2022). Pelo contrário, a porta-voz dos EUA, Jen Psaki, exorta a mais produção de gás de xisto para lançar nos mercados internacionais.

De forma simpática, o que se pode dizer é que a UE entrou num raciocínio pouco elaborado, esquecendo que neste contexto de escassez de oferta era fácil à Rússia encontrar países compradores alternativos. Por outro, o plano apresentado colocava a descoberto as intenções europeias, nem faltando a quantificação expressa no corte de compras de gás à Rússia. A uma “simplicidade” tão primária era de esperar que a Rússia respondesse. E fê-lo, nomeadamente, através da redução do fornecimento de gás via gasodutos.

Esta situação (mais que previsível) gerou pânico nos países europeus, nas empresas e na população em geral, sem produzir, contudo, os efeitos desejados na economia russa como admite o FMI: “mesmo com sanções, a economia da Rússia está melhor que o esperado” (imprensa internacional 26/07/2022).

O “Le Monde Diplomatique”, por sua vez, olha este plano apontando-lhe dois erros grosseiros: a redução de forma precipitada da dependência do gás e do petróleo da Rússia sem plano alternativo de fiabilidade e custo equivalente e, segundo erro, à luz dos interesses europeus o alinhamento da Alemanha e da Comissão Europeia pela bitola americana era muito prejudicial. Washington podia decretar o embargo que entendesse sem consequências de maior, enquanto para os países europeus, admite o FMI. “os efeitos nas principais economias europeias foram mais negativos que o esperado”.

A traição europeia às economias emergentes

4. Os países europeus avançam para as sanções, como se referiu, sem um plano pré-definido de substituição do gás e petróleo russos.

Perante a pressão social e das empresas, nomeadamente através das organizações patronais alemãs e temendo a reacção das populações que começa a levantar-se em quase toda a parte, os países europeus, acossados ainda pela proximidade do próximo inverno, desatam a comprar gás a todo o vapor e a qualquer preço, a outros fornecedores (EUA, Qatar e outros) para recompor os stocks.

Os países emergentes, devido a este apetite voraz dos países europeus, vêem-se envolvidos numa guerra de preços com a Europa e em posição difícil de obter energia nos seus mercados tradicionais e a preços convenientes. Neste contexto, têm de recorrer a energias fósseis mais poluentes, mas mais baratas, como o carvão, porque, admitamos, o inverno não é um fenómeno apenas europeu. As economias emergentes também precisam de energia para enfrentar o inverno.

E como afirma S. Kavonic, analista de energia do Crédit Suisse Group, “a Europa suga o gás de outros países, a qualquer preço”, para suprir a falha de gás russo.

Mesmo assim, as compras não bastaram e alguns países europeus com realce para a Alemanha tiveram que accionar as suas centrais a carvão, aumentando a emissão de gases com efeito de estufa (GEE). Por quanto tempo? – pergunta-se. E, deste modo, as economias emergentes tiveram de se confrontar com problemas de abastecimento em quantidade e aumento imparável de preços.

Quem não se recorda de barcos metaneiros, ancorados aqui e ali, à espera de ordens para se dirigirem para o comprador que oferecesse o melhor preço!.

Toda esta anarquia de preços e quantidades nos mercados internacionais do gás natural (GNL) decorre do desnorte europeu das sanções económicas contra a Rússia, muito mal concebidas porque contra os interesses dos países-membros, mas afectando de sobremaneira os países emergentes de menor poder de compra. Não incluo aqui a China e a Índia que negociaram condições bem favoráveis com a Rússia.

5. A finalizar este artigo de opinião uma nota telegráfica sobre o COP27. Uma paragem no tempo enquanto concretização de objectivos. Mesmo a criação do fundo para apoio aos países mais vulneráveis não passa de uma intenção.

O que realço como bem marcante e promissor na COP27 é a realização, pela primeira vez na história, de uma reunião sobre a energia nuclear num dos seus pavilhões. Alguma comunicação social deu a notícia desta reunião sob a designação de “uma discreta revolução nuclear na COP27”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

domingo, 27 de novembro de 2022

"A POBREZA NÃO PODE SER LUTA IDEOLÓGICA"



Não devia ser, mas é Senhor Padre Jardim Moreira (presidente da secção portuguesa da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAP). Li a entrevista concedida ao DNotícias, publicada na edição de hoje. Uma entrevista que tem muito que se lhe diga. Fixo-me, apenas, numa excelente pergunta do jornalista Victor Hugo: "Havendo já um plano regional, este estudo (sobre a pobreza) não chega tarde? A resposta: "(...) Para Bruxelas conceder os fundos comunitários, exigiu à Madeira - um timing, uma estratégia, para poder avalizar verbas dos fundos comunitários. A verdade é que não estava feito o diagnóstico. Para não perder os fundos comunitários o governo avançou com uma estratégia. Fiz-me entender?"



Senhor Padre, pela comunicação social, conheço a sua luta desde há muitos anos, perante a qual me curvo. Mas digo-lhe: obviamente que se fez entender. Para quem, em qualquer sector, navega à vista, não haver diagnóstico dá sempre jeito. Se não se sabe onde está, não é possível determinar onde se quer chegar e, daí, os passos que têm de ser dados para lá chegar. A lógica tem sido esta: venha o dinheiro porque somos gente que conhece bem os cantos à casa. Por isso, quando o quadro político é este, o Senhor Padre Jardim Moreira sabe que de pouco valem os "estudos aturados, profundos e cientificamente sustentáveis que dê a visão da problemática, para depois ajustar as propostas às políticas públicas (...)", disse.

A pobreza tem dado jeito, Senhor Padre. Sou eu, agora, que lhe pergunto: fiz-me entender?

Mais, Senhor Padre Jardim Moreira, não devia fazer qualquer sentido um estudo numa Região Autónoma, região dotada de órgãos de governo próprio, estudo que irá custar entre 100 e 150 000,00 euros. Com 46 anos de governo ininterrupto, as CAUSAS mais profundas da pobreza, onde deviam radicar todos os programas, tinham a obrigação de estar minuciosamente estudados e há muitos anos implementados, com rigor, determinação, eficiência e eficácia. Nas questões sociais e em todos os sectores da governação, digo eu. Às exigências de Bruxelas, o governo regional devia responder com os estudos que justificaram as "políticas públicas" e os resultados conseguidos. Só que não havia "diagnóstico", não é?


E não se iluda Senhor Padre Jardim Moreira, mesmo que o Senhor presidente do governo da Madeira tenha dito que "espera muito deste estudo", depois de conhecida a situação real e propostos os caminhos para uma situação ideal, por aqui será sempre feito aquilo que dá jeito em todas as circunstâncias, inclusive, no campo "ideológico". Há uma alta probabilidade de assim ser, porque repito, por muito que me custe a perversidade desta afirmação, "a pobreza tem dado jeito". Fiz-me entender, distinto Padre?
E para realizar o estudo serão necessários dezoito meses? Eu sei que se trata de uma "encomenda" a uma empresa com natureza privada, mas sempre lhe digo que há teses de doutoramento realizadas em menos tempo! Neste caso, a conjugação de todas as variáveis da pobreza, as causas a montante e a jusante estão identificadas e constam de estudos já realizados, isto para além de todos os dados proporcionados pelos Institutos de Estatística e das centenas de intervenções políticas na Assembleia Legislativa da Madeira. Basta consultar o Diário das Sessões.

Ainda recentemente (27.10.22) o Senhor Padre Jardim Moreira sublinhou: "Se as famílias forem pobres, os filhos vão sofrer as consequências". A pergunta a fazer ao senhor presidente do governo regional devia ser esta: "então o senhor não sabe, 46 anos depois de Abril, que "se as famílias forem pobres, os filhos vão sofrer as consequências"?

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

"Estudo sobre a pobreza avança este ano". Que pobreza política!

 

Trata-se de uma investigação, dizem, para "conhecer a fundo a realidade social da Região". Isto é espantoso! Dezoito meses para estudar o drama. Não é espantoso, pelo menos para mim é ininteligível, inexplicável e muito obscuro.



Desde o longínquo ano de 1976, há 46 anos, que a Região é, estatutariamente, Autónoma, com Estatuto próprio, Assembleia e governo próprios. Significa isto que ao longo de quase cinco décadas, existem secretarias regionais, direcções regionais e muitos, muitos mesmo, directores e chefes, directamente ligados aos assuntos sociais, e muitos outros, com responsabilidades indirectas, embora não menos importantes. 

Para além dos órgãos de governo próprio, juntam-se os das autarquias, as casas do povo, a própria Igreja Católica (e outras) com toda a sua rede de proximidade e de apoio claro e inequívoco junto dos mais vulneráveis, o Banco Alimentar, as diversas instituições que, discretamente, apoiam os das margens e, como se tudo isto não bastasse, ao longo de 46 anos, repito, foram sucessivamente produzidos e publicados indicadores estatísticos transversais. "(...) Em 2020, por exemplo, na Região Autónoma da Madeira, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social foi de 32,9% (...)". Mesmo assim, ao que parece, não é conhecida a "realidade social da Região".

Eu sei que houve um tempo que a Madeira foi "apresentada como Região rica (consequência de um PIB irreal) e que, por isso mesmo, fez com que tivesse perdido o estatuto que a colocava em Região Objectivo 1, passando para Objectivo 2 e, por isso mesmo, tenha perdido, nesse tempo, 500 milhões de Euros". Em 2010 escrevi sobre este assunto. Eu sei que houve um tempo durante o qual foi negada a necessidade de instalação do Banco Alimentar. Eu sei que houve um tempo em que foi negado um apoio regional aos mais vulneráveis. Eu sei, também, que tudo se faz para esconder a miséria e as desigualdades que chocam e que o discurso político, sistematicamente, pinta de cores garridas aquilo que é tendencialmente negro. Vive-se muito das aparências, de uma comunicação social que não escarafuncha e, pior, de túneis intencionalmente construídos na cabeça das pessoas. Eu sei que o receio existe (ia dizer medo) e daí que, para muitos, o aforismo faz sentido: "mais vale um "euro" na mão que dois a voar". Enfim... o silêncio.

Perante este quadro, concluo, das duas uma: ou é gritante a ausência de consistente e permanente estudo e planeamento ao conjunto do tecido social, ou os pobres têm dado jeito. É lógico que se pergunte, como e com que critérios têm sido atribuídos os subsídios e todos os apoios previstos nos sucessivos Orçamentos de Estado. Certamente, presumo, que há estudos e critérios! Ou será que não existem?

Leiam, por favor, antes de mais, tudo quanto escreveu o Dr. Alfredo Bruto da Costa (1938-2016), doutorado com uma tese no domínio da pobreza, tendo sido, ainda, coordenador do estudo: "Um Olhar Sobre a Pobreza". Tive a oportunidade de escutá-lo em diversas ocasiões, uma delas, em 2010, aqui na Madeira. Escrevi sobre o seu testemunho:

"(...) "a causa da pobreza não está nos pobres", está nas mudanças sociais que são de natureza política. "Tudo o que seja combate à pobreza mantendo o padrão da desigualdade" não tem sentido, pois apenas mantém tranquila uma parte da consciência. Mais, ainda, a solução não está na CARIDADE. É uma palavra que não gosto. Respeito e muita consideração nutro pelas mais diversas instituições que combatem a pobreza, de dia e de noite, respeito o notável trabalho das paróquias que matam a fome e esbatem casos muito sérios de carências várias, mas entendo também que não é pela via da caridade que os problemas se resolvem. É pela via política, com deliberações que "ofereçam o peixe, mas também a cana", em simultâneo, como salientou o Professor Alfredo Bruto da Costa. A "caridade" deve ser o fim da linha, o ataque às margens, para quem mergulhou tão fundo que experimenta dificuldades em se erguer. A caridade não resolve, a prazo, problema algum, apenas se destina a esbater os erros dos políticos. O governo tem de se convencer que a "armadilha da pobreza é a armadilha das desigualdades" e, portanto, na esteira do que disse o Professor, não se pode cair no círculo vicioso de que "os pobres são pobres porque são pobres", antes "os pobres são pobres porque os ricos são ricos".

Dezoito meses para estudar o drama social na Madeira. Inexplicável este empurrão para a frente dos problemas que são de ontem e que são de hoje.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

O iminente desastre energético da Europa


Por
14 Novembro 2022

A ausência de uma estratégia europeia para a energia, que é o problema de fundo, vai manter-se por muitos anos, devido a divergências profundas entre França e Alemanha que ninguém tenta desbloquear.



Este título é roubado a um artigo recente de Jean Pisani-Ferry, um conceituado Professor de Economia na Universidade Sciences Po de Paris e na Hertie School de Berlim, publicado no Project Syndicate. Pisani-Ferry, economista francês, com vários livros e artigos sobre política económica e política europeia, foi fundador do Instituto Bruegel e seu presidente até 2013, além de Director de programa e ideias da primeira campanha presidencial de Emmanuel Macron (2017).

1. Se bem li o artigo, Pisani-Ferry manifesta uma profunda desilusão perante a incapacidade dos líderes europeus em se entenderem em matéria de energia. Ainda na cimeira europeia de 20/21, em Outubro, longas “conversas” mas decisões significativas, zero. Anunciaram “intensificar” as compras conjuntas de gás – tema, aliás, há muito proposto por Espanha –, decisão essa incapacitante pelas múltiplas reservas que contém, o que se traduziu até agora numa não concretização.

Refere que as desinteligências políticas na União Europeia são uma constante, mas aquando do Covid-19, França e Alemanha entenderam-se em três meses e, dois meses mais, os Estados-membros tinham acordado o sistema de empréstimos comuns e não houve problemas de maior com a compra conjunta das vacinas e a sua distribuição de forma equitativa, na base da população.

Quase nove meses após a invasão da Ucrânia, o problema arrasta-se e França e Alemanha “encarnam essa incapacidade de concordar com um regime comum”. Ora, nesta crise, “as divergências não se limitam apenas a declarações públicas e respostas possíveis. Os dados revelam enormes diferenças económicas substanciais entre os países-membros da UE”, refere Pisani-Ferry. Por exemplo, a inflação anualizada a Setembro último era de 6,2% em França e de 24,1% na Estónia.


Por outro lado, a Alemanha avançou com um envelope de 200 mil milhões de euros de apoio a famílias e empresas, decisão que chocou os parceiros comunitários. Esta medida é vista como uma quebra de solidariedade, porque desmesurada face à capacidade financeira dos outros países membros. Pisani-Ferry acrescenta que os comentadores têm razão: “esta decisão emite um mau sinal num mau momento, porque evidencia a ausência de uma estratégia comum”. Este pacote permite que os níveis de subsídios variem de menos de 1% do PIB na Suécia e Estónia até 7% na Alemanha.

Mas, em muitos outros domínios da energia, França e Alemanha estão de costas viradas. Na fixação do preço do gás para a produção de electricidade, por exemplo, a França apoia o chamado “regime ibérico”, em que o governo estabelece um limiar para o preço. A Alemanha opõe-se alegando que tal procedimento tornaria o gás mais caro para os industriais e geraria vencedores e vencidos nos Estados-membros.

Para Pisani-Ferry “estas respostas tão díspares não devem ser criticadas por uma questão de princípio, mas porque manifestamente desadequadas perante um choque comum”. Há um mercado de gás europeu aproximadamente unificado e, neste contexto, as respostas deveriam ser comuns, até porque as decisões de um Estado afectam quase em simultâneo os outros e quanto maior for o Estado, pior, acrescento.

A não definição de medidas comuns para as políticas energéticas acarreta pesados encargos financeiros, mina a desconfiança entre os Estados-membros e o risco do embargo de gás russo causar divisões profundas dentro da União Europeia (UE) permanece muito grave, admite Pisani-Ferry.

Vai este artigo à raiz do problema energético na Europa?

2. O entendimento entre os Estados-membros a que apela o artigo seria muito positivo para minorar a situação presente de descalabro dominante na Europa, onde cada país tenta “atacar” a realidade consoante pode. Mas não resolveria o problema de raiz.

A ausência de uma estratégia europeia para a energia, que é o problema de fundo, não é focada no artigo. Uma ausência que vai continuar por muitos anos, devido a divergências profundas entre França e Alemanha que ninguém tenta desbloquear, apesar das alterações substanciais entretanto determinadas pela guerra.

E, por outro lado, os principais dirigentes de órgãos comunitários pouco ou nada estão empenhados nessa situação, pois como escrevia há dias o “El Mundo/Madrid”, Ursula von der Leyen, Charles Michel e Joseph Borrell dedicam-se mais “a competir em fazer anúncios e representar a Europa no exterior”. O “Courrier Internacional” comenta esta notícia como uma saborosa análise de guerra do ego europeu.

3. Voltando à raiz da temática em análise, a ausência de uma estratégia para a energia na UE.

A transição energética que está na ordem do dia – estamos em plena COP27 que pouco vai acrescentar, até porque a Europa entra muito fragilizada com o estigma de que está a fazer tudo ao contrário do que defendeu na anterior (activação das centrais a carvão, hipótese de exploração do gás de xisto na Europa e ainda investimentos em gás natural fora da Europa) – tem como paradigma a substituição a prazo das energias de origem fóssil, que ainda representam uma quota muito elevada do consumo no mundo de hoje (75%), por não fósseis de baixa emissão de gás de efeito de estufa (GEE). É preciso um prazo robusto para que os investimentos se realizem (30/40 anos), período em que vão coexistindo os dois tipos de energia.

E isto com uma tripla finalidade: responder ao aumento de consumo de energia que o desenvolvimento social requer, descarbonizar as economias para responder à crise climática e, muito importante, permitir que a UE ganhe autonomia face às energias fósseis, de que tem fracos recursos, e aos outros espaços político-económicos. Ganhar uma posição própria num domínio ícone de soberania é fundamental para a consolidação da Europa como potência mundial. E sem esta transformação não adquire essa capacidade.

Constrangimentos culturais e interesses de grupos económicos estão a bloquear este caminho e a atrasar, com prejuízo, a elaboração de um plano à altura. Eis a grande questão. E aqui residem as grandes divergências que impedem, na Europa, bases energéticas comuns.

A solução consiste em articular energia nuclear e energias renováveis.

A França concilia e a Alemanha não concilia, estando o movimento dos verdes cindido. Há os que aceitam cada vez mais a nuclear, nomeadamente face aos progressos tecnológicos que têm reduzido o risco, e a ala que continua na sua condenação. Muita incoerência nisto, até porque a renovável eólica está a enfrentar sérios problemas de viabilidade. As renováveis per si, porque de produção intermitente, nunca deixarão de contar ou com as energias fósseis ou com a nuclear.

A energia nuclear, com os avanços tecnológicos e com a diversificação em curso, terá no futuro um papel cada vez mais importante, até porque os reactores, sobretudo os SMR, poderão vir a ter um papel crucial na dessalinização da água.

Há assim que avançar numa linha de fundo, reunindo energia nuclear e renováveis num mix que cada Estado-membro saberá qual o melhor para si, ou mesmo não investir na nuclear e importar quando necessária energia de outros países membros. Este é o caminho que, no actual contexto tecnológico, poderá dotar a Europa de grande independência no sector energético.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O fute



Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
11/11/2022
estatuadesal


Eu tinha estado no Cairo há uns vinte e tal anos e guardara uma recordação de uma cidade imensa, fervilhante, caótica, imunda e, porém, fascinante. Sempre me atraíram os lugares onde os povos, a história, a geografia e as civilizações se cruzaram para formarem esses cross­roads onde diversos mundos tiveram de abrir passagem uns aos outros porque estavam ali, no lugar por onde uns e outros tinham de ir e vir: o Egipto, a Turquia, Marrocos. Há vinte e tal anos a paragem no Cairo antes de descer ao Alto Egipto tinha como consolação para o tamanho desgaste que isso implicava a inevitável visita às pirâmides, ao Museu do Cairo e às mesquitas mais importantes, sempre na expectativa do outro Egipto desafogado do deserto, do Nilo e dos oásis, com templos ao longo do deserto. Lembro-me de que era Maio e estavam 42 graus à sombra e que eu tirei o lenço que levava ao pescoço para limpar uma gota de suor que escorria do rosto de âmbar de Nefertiti. E que mais tarde ela retribuiria o meu gesto no Museu do Cairo com uma noite de luar entre as colunas da ilha de Philae, um longo olhar ao Nilo, ao pôr-do-sol, no cais de Luxor ou uma inesquecível limonada no terraço do Hotel Old Cataract, em Assuão. Mas tudo isso aconteceu antes. Agora, de regresso ao Cairo, dou-me conta de que não houve salvação possível. Esta é uma cidade impossível.



Hoje o Cairo são 20 milhões de habitantes: 10 milhões no centro e o resto nas periferias, das quais a mais importante é El Giza (Gizé), separada das pirâmides por uma extensa cerca de barras de ferro, para não as abocanhar. Tirando o centro em volta da Praça Tahrir, onde ficam os grandes hotéis e o velho Museu do Cairo (o novo tem visto a sua inauguração sucessivamente adia­da), quase todo o resto da cidade é um aglomerado caótico de casas e prédios clandestinos que cresceram à revelia de qualquer planeamento ou projecto arquitectónico: onde se autorizaram cinco andares, construíram-se sete; onde se autorizaram sete, construíram-se nove, e, como resultado, quase todos estão a desfazer-se aos bocados, mostrando interiores esventrados e paredes em vias de desabamento. E como o IMI só é devido após o licenciamento e a conclusão da obra, nenhum prédio está acabado, todos permanecem em tijolo sem reboco nem pintura ou telhado. Ao nível do piso térreo, como em todo o mundo árabe, a rua é integralmente preenchida pelo comércio de tudo e mais alguma coisa, com destaque para as inúmeras oficinas de pneus e jantes de automóveis. O que logo se percebe quando se mergulha no célebre trânsito do Cairo, que eu, pessoalmente, só consigo comparar ao de Bombaim ou Deli.

Tudo o que se diga sobre o trânsito do Cairo fica muito aquém da imaginação e da capacidade de descrição. Mas talvez se possa começar por enunciar as regras do jogo: mesmo nas avenidas mais largas, não há faixas de rodagem traçadas no piso, pelo que cada um inventa as suas; não há rotundas; não há semáforos; não há sinaleiros; não há lugares marcados para estacionamento; não há controles de velocidade, e, coisa extraordinária, não há passagens de peões, os quais atravessam as ruas e avenidas entre os carros e as motas, arriscando a vida a cada metro. Finalmente, todos — automobilistas, motociclistas e peões — estão ocupados ao telemóvel cada minuto do santo dia (cheguei a ver motociclistas com as duas mãos no volante e a cabeça inclinada para encaixar o telemóvel entre o ombro e a orelha, e todos, claro, sem capacete). Como resultado disto, uma densa nuvem castanho-avermelhada de mortal poluição paira permanentemente sobre a cidade e os seus infelizes milhões de sobreviventes. Talvez haja cidades que não têm solução, sobretudo quando à sobrepopulação se acrescenta a miséria e absoluta degradação das condições de vida e de habitação. E talvez o Cairo seja uma delas. E talvez também seja isso que levou o Presidente-general Abdel Fattah el-Sisi a congeminar uma solução radical. Grandiosa e, segundo os críticos, delirante e ruinosa: uma nova capital.

Sisi chegou ao poder por golpe militar em 2014, depondo o radicalismo islâmico do Presidente eleito Mohamed Morsi e, de caminho, sufocando também as aspirações democráticas da população, que, três anos antes e durante 18 heróicos dias, tinha levado a Primavera Árabe à Praça Tahrir e às ruas do Cairo. Em troca de uma repressão sem contemplações, ele prometeu progresso, desenvolvimento, modernidade. Começou por alargar o Canal do Suez, a segunda maior fonte de receitas do Egipto a seguir ao turismo. Nisso gastou oito biliões de dólares, mas as receitas esperadas foram metade do previsto. Então, congeminou outro plano, digno de um faraó dos tempos modernos: uma “New Cairo”, ou “Nova Capital Administrativa”, ou “5th Setlement”, até se fixar no nome definitivo e oficial: “Wedian”, o plural da palavra árabe wadi, que quer dizer um vale no deserto que retém água das raras chuvas.

Mas o primeiro problema da Wedian de Sisi é exactamente a água. Fica a 45 km a leste do Cairo e mais longe ainda do delta do Nilo, a única fonte de água mais próxima e já bastante explorada. Não obstante, a New Cairo terá um rio artificial, lagos e mais lagos, milhares de árvores, que estão a ser plantadas em pleno deserto, e um parque que terá o dobro do tamanho do Central Park, em Nova Iorque. Porque tudo está pensado para esmagar estatísticas: a superfície total de Wedian é de 714 km2, igual a Singapura e quatro vezes Washington, D.C.; terá 700 hospitais e clínicas e duas mil escolas, num país tão carenciado de uma e outra coisa; 1200 mesquitas e igrejas e um complexo militar, o Octógono, com quatro vezes o tamanho do Pentágono; o ­maior arranha-céus de África, e, cereja no topo do bolo, 40 mil camas de hotel, obviamente destinadas às moscas, pois não se alcança que turista queira visitar o Cairo para se instalar a 45 minutos do Nilo e da cidade antiga, num arranha-céus com vista para torres e deserto. Todo este imenso delírio, cujas obras se iniciaram em 2015 e estão agora oficialmente em fase de conclusão, está enxameado de urbanizações e bairros com nomes tão apelativos como Utopia, Belle Vie ou Palmar Hills, e por todos os lados pululam centros comerciais, malls e stands de todas as marcas de automóveis, pois aqui não há outro meio de transporte acessível e de futuro que não esse. Para lá, Sisi vai mudar também todo o poder executivo, legislativo e administrativo — segundo os críticos, para não ter de enfrentar novos embaraços como manifestações na Praça Tahrir. E, obviamente, também lá terá o seu imenso palácio, digno de um faraó, e cujas críticas rebateu com toda a naturalidade: “Qual é o mal de ter palácios? Eles são de todos os egípcios!”

O mal, está bem de ver, são os custos do delírio do general-Presidente. Na última década, o Egipto multiplicou por quatro a sua dívida externa e recebeu 20 biliões de dólares de ajudas do FMI, estando já a pedir novo auxílio. Mas o sonho de Sisi vai custar, em números oficiais, mais 60 biliões — a serem custeados pelos amigos do Golfo, pelos chineses e pela emissão de mais dívida em condições que vão onerar o futuro do país por décadas. Entretanto, com a construção da nova capital, não só o Governo abandona o Cairo à sua sorte — procedendo, por via administrativo-urbanística, à maior separação de classes da idade moderna — como não se percebe como irá conseguir povoar com sete milhões de pessoas a nova capital. De facto, num país onde o rendimento médio per capita é de 220 dólares por mês e a taxa de juro 12% ao ano, quem conseguirá ir viver numa cidade onde o apartamento mais barato custa 80 mil dólares e a renda de um T2 vai de 400 a dois mil dólares por mês?

O território do Egipto é formado por 95% de deserto e a sua única fonte de vida é o Nilo, que percorre 3500 km dentro do Egipto até à foz. Ao longo das suas margens e à vista dele, no Alto Egipto, os antigos faraós construíam, há milhares de anos e com trabalho escravo, templos que, desenterrados da areia, irão permanecer para a eternidade: deles ficou o nome dos que os mandaram fazer, não a história dos que viveram e morreram na miséria para que eles fossem feitos. E em 969 d.C. os otomanos fundaram, mais acima, a cidade que seria a sua capital: o Cairo.

Hoje, um general que também aspira à eternidade constrói uma nova capital na areia, um templo ao luxo, contrastando com a miséria do povo. E nos cartazes de rua sorri, esperando que o povo lhe agradeça. Enquanto, por estes dias, recebe nas praias de Sharm el-Sheikh os dirigentes do mundo inteiro na COP27, para, todos juntos, fingirem, mais uma vez, que se preocupam com o futuro dos povos que governam e a salvação do planeta.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Entre todas as tempestades


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
04/11/2022
estatuadesal


No próximo dia 20 começa no Catar o 22º Campeonato do Mundo de Futebol, envolvendo 32 selecções, entre as quais a nossa. Antes que as nossas varandas se cubram de bandeirinhas nacio­nais e as crianças se vistam de camisolas do Ronaldo, antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial. Não sei se a nossa Federação de Futebol fez parte das que votaram contra o Mundial no Catar, das que votaram em consciência a favor ou daquelas cujos dirigentes se deixaram comprar para votar a favor. Espero bem que não tenha sido a última hipótese, mas todas são possíveis, pois só através da corrupção do colégio eleitoral — em grande parte provada — foi possível atribuir o Mundial a um país que, por razões climáticas, é forçado a organizá-lo pela primeira vez no Outono do Hemisfério Norte, forçando a alteração dos calendários estabelecidos na Europa para as provas nacionais e internacionais. Um país cujos nacionais se estão nas tintas para o futebol e cuja selecção (classificada no ranking da FIFA em 102º lugar e com o recurso a 17 estrangeiros em 23 jogadores) jamais conseguiria, não sendo anfitriã, apurar-se para um Mundial.



Em 24 de Outubro, o dirigente vitalício do Catar, o emir Tamin bin Hamad Al Thani, explodiu de indignação com as “críticas feitas de invenções e duplos padrões” dirigidas ao seu país e “sem precedentes em relação a qualquer outro país organizador”. E com razão. Além da questão da corrupção na escolha do Catar, da questão do clima e das nulas credenciais do país em matéria futebolística, e apesar de toda a cobertura dada pela FIFA, o Catar tem sido alvo de um rol de críticas relativas à forma como conseguiu pôr de pé este Mundial e, designadamente, construir de raiz 10 estádios, que, a seguir ao evento, não servirão para nada, num país em que não há memória de um jogo de futebol alguma vez ter tido mais do que mil espectadores num estádio. Mas, em contrapartida, o Catar tem muito, muito dinheiro: tem, por exemplo, a maior reserva mundial de gás natural, agora tão precioso. E consta que o emir, ao contrário dos seus súbditos, gosta muito de futebol, tanto que, através da Qatar Sports Investments, além de patrocinar a Roma e o Bayern de Munique, é dono do PSG — onde, troçando das regras do fair-play da FIFA e UEFA, que só se aplicam a pobres, juntou um trio atacante composto por Mbappé, Neymar e Messi, que custam em salários, sem contar com direitos de imagem, mais de €250 milhões por ano. Mas para organizar este Mundial, que o extasiado presidente da FIFA, Gianni Infantino, afirma que será o melhor de sempre, o emir não olhou a despesas: foram €330 mil milhões de custos, o equivalente a toda a riqueza produzida em Portugal durante um ano inteiro. Só que Portugal tem 10 milhões e meio de habitantes e o Catar tem três milhões, dos quais só 320 mil são catarianos, gozando de todos os direitos de cidadania, como o de não pagar impostos. Todos os restantes são emigrantes asiáticos, dos quais 72% homens trabalhando na construção civil e 28% mulheres trabalhando como empregadas domésticas. Claro que foram estes homens que o regime empregou para construir os estádios e tudo o mais, trabalhando oito a 12 horas por dia, seis dias por semana, debaixo de temperaturas extremas e em condições iguais aos que nós contratamos para as estufas de Odemira ou os olivais e amendoais do Alqueva: entregues à protecção de um kafala, com o passaporte retido, amontoados como gado, sem quaisquer direitos sindicais ou sociais. 6500 deles morreram a construir os 10 estádios onde as vedetas e os seleccionadores pagos a peso de ouro e especializados na fuga aos impostos se vão exibir para o mundo inteiro, não se esquecendo de cantar os respectivos hinos a plenos pulmões para que o povo em casa ou nas bancadas pense que eles se batem pela pátria.

Antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial


Pois, o emir está zangado com tudo isto. O emir não percebe como é que as melhores empresas de consultadoria de imagem inglesas e europeias ou vedetas como Xavi Hernández ou o pateta do David Beckham, que só sabia marcar cantos e variar de penteados, não conseguiram mostrar ao mundo como o Catar — que até sedia uma televisão, a Al Jazeera, tantas vezes melhor do que as grandes marcas internacionais — não era aquilo que um relatório da ONU de há um par de anos classificava como “uma sociedade de castas de organização medieval”. É verdade que o próprio Governo do emir não ajudou muito quando começou a divulgar conselhos ao milhão de visitantes previstos para o Mundial de que deveriam “respeitar os costumes do país” e aos milhares de jornalistas que irão cobrir o evento avisos de que não poderão entrevistar pessoas na rua ou em suas casas, em especial os trabalhadores estrangeiros, ou entrar em edifícios públicos. Acontece que entre os costumes do país está a proibição da homossexualidade, que lá é crime, e o Governo fez saber que tolerará a sua entrada (como não?) mas não tolerará as suas manifestações. Quanto às mulheres, estão autorizadas a conduzir automóveis mas não se aconselha que saiam à rua sozinhas: Alá não gosta e, além disso, o Catar é suspeito de tolerar, sim, simpatizantes da Irmandade Islâmica e do Daesh.

Eis, a traços largos, o retrato do país que albergará o próximo Mundial de Futebol. Mas o futebol não tem culpa nenhuma disto. Algures, em estádios do antigamente, como o La Bombonera, em Buenos Aires, onde Diego Armando Maradona começou a elevar-se aos céus ao serviço do Boca Juniors, ainda hoje a multidão enche o estádio sem precisar de ir ao engano, porque aí ainda o futebol é genuíno. Feito de arte, geometria, dor e alegria. A toda a volta, onde estão os ídolos que as televisões e os jornais promovem e as massas idolatram, há toda uma teia de sanguessugas — na FIFA, na UEFA, nas federações nacionais, nos grandes clubes — que explora a “festa do povo” em seu benefício próprio e que de há muito perverteu tudo. O jogo agora chama-se dinheiro. E a cobiça é tanta que, depois de a UEFA ter inventado um outro Campeonato da Europa de Selecções a que chama Taça das Nações e que alterna com aquele a cada dois anos, é a vez de a FIFA querer também um Mundial de dois em dois anos e de os grandes clubes da Europa congeminarem outra Champion’s League só para eles e com lugar cativo para eles todos os anos. Tudo isto, claro, é feito à custa de uma overdose de jogos absurda e de uma exploração extrema do esforço dos jogadores. Mas os grandes jogadores aceitam porque também a eles só uma coisa verdadeiramente lhes interessa: o dinheiro. Já alguém viu um jogador de futebol, nas imensas viagens que faz ou nos intermináveis estágios em que tem de permanecer, ocupado a ler um livro ou um jornal que não seja desportivo? Já alguém o viu de visita a um museu, um monumento, umas ruínas históricas? Não, ocupam todos os tempos livres a jogar futebol na PlayStation, a postar imagens das férias no Instagram ou a debitar banalidades para os seguidores no Facebook.

E tudo isto, claro, alimenta-se do terceiro factor: o público. No dia em que não houver público nos estádios o futebol definhará até morrer, como se viu durante a covid. E é uma pena se o que nos leva ao estádio, seja tanto a beleza do jogo como a descarga de adrenalina e tudo o mais que precisamos de descarregar e que um jogo de futebol permite como poucas coisas mais, não seja também uma oportunidade para descarregar contra todo o universo sujo escondido por detrás do jogo.

Se os espectadores soubessem (se os jornalistas desportivos lhes contassem...) o luxo em que vivem e viajam os dirigentes dos clubes, das organizações de futebol, das federações, os agentes que chulam os clubes, os da UEFA e da FIFA, a riqueza que acumulam enquanto eles, espectadores, só gastam o seu dinheiro a manter o negócio milionário dos outros, talvez as coisas fossem diferentes.

Se a multidão que enche os estádios com o seu amor à camisola (o único que é genuí­no) tivesse o mesmo espírito crítico para com jogadores e dirigentes — em matéria de corrupção, de fiscalidade, de negociatas — que tem para com os políticos, talvez o futebol fosse menos indecente. Ou, ao menos, mais envergonhado. Não estou a ver as opiniões públicas a engolir um prémio das Nações Unidas para os direitos humanos atribuído ao Catar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia