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quinta-feira, 30 de abril de 2020

1º de Maio, mudança e respeito por quem trabalha


A turbulência social e o facto de agora, amiudadas vezes, falar-se de mudança de paradigma organizacional, não é uma questão que surge na sequência da pandemia que o mundo está a viver. A década de 80 consolidou aquilo que já nas décadas anteriores se adivinhava como uma probabilidade, eu diria mesmo, uma inevitabilidade. Quanto muito, a pandemia veio despertar, ou melhor, pode tornar-se em um acelerador no despertar de um oceano de consciências para a imprescindibilidade de rompimento com processos que a evolução científica e tecnológica determinou e, de forma rápida, está a estabelecer.


Yuval Harari, no livro "Homo Deus - História breve do amanhã" (2015), refere, nas páginas 363/364 (8ª edição): "Em Setembro de 2013, dois investigadores de Oxford, Carl Benedikt e Michael Osborne, publicaram The Future of Employment, em que analisaram a probabilidade de, nos próximos vinte anos, várias profissões virem a ser substituídas por algoritmos informáticos. O algoritmo criado por Frey e Osborne para fazer os cálculos estimou que 47% dos empregos nos Estados Unidos estejam em elevado risco de desaparecer. Por exemplo, há 99% de probabilidades de que em 2033, os operadores de telemarketing e os mediadores de seguros percam os empregos para os algoritmos. Há uma probabilidade de 98% que aconteça o mesmo aos árbitros dos vários desportos, 97% para os caixas de supermercados e 96% para os cozinheiros. Empregados de mesa 94%. Assessores jurídicos 94%. Guias turísticos 91%. Pasteleiros 89%. Motoristas de autocarro 89%. Trabalhadores da construção civil 88%. Auxiliares veterinários 86%. Seguranças 84%. Marinheiros 83%. Empregados de balcão 77%. Carpinteiros 72%. Nadadores-salvadores 67%. E por aí fora. (...) É também evidente que até 2033 poderão surgir muitas novas profissões. (...) No início deste capítulo identificámos várias ameaças concretas ao liberalismo. A primeira é a possibilidade de os humanos se tornarem inúteis numa perspectiva económica e militar. É claro que isto é uma possibilidade, não uma profecia. (...)"

Ora bem, o ano de 2033 constitui, apenas, uma referência temporal ditada por um algoritmo. Tudo pode vir a acontecer mais tarde, mas é óbvio que o século XXI será de ruptura dos formatos tradicionais que enformaram a organização social como a conhecemos. Aqueles investigadores que Yuval Harari traz à colação só estão a "explorar projectos, sonhos e pesadelos que darão forma ao século XXI - desde o vencer da morte à vida artificial".

Ora, a luta gloriosa de Chicago (1886) pela conquista de melhores condições de trabalho, onde se incluía a redução da jornada de trabalho para oito horas, luta onde morreram muitos trabalhadores no confronto com as forças policiais, tem de ser vista como uma referência que "só perde quem deixa de lutar". Só que o mundo do século XIX não é o mundo do século XXI. Aquela apenas foi uma etapa de um processo. Exige-se, assim, uma redobrada atenção ao que se passa neste momento, é certo, mas sem descurar o futuro que está aí ao virar da esquina. E isso implicará substanciais mudanças nas posturas sindicais, que implicarão, necessariamente, uma visão estratégica mais alargada de toda a organização social, refiro-me, de todos os sistemas, económico, financeiro, político, educativo, saúde, social, cultural e até o religioso.

Porém, ao que assisto, não é à emergência de uma preocupação que o futuro se faz agora, mas a um constante adiamento que, obviamente, nos distancia daquele mundo que não pode ser travado. Olho para o trabalho de Carl Benedikt e Michael Osborne sobre o futuro do emprego, distancio-me das percentagens ditadas pelo algoritmo, e uma coisa parece-me evidente: a escola, em 2020, continua a formar para empregos que não vão existir com a dimensão e a importância que hoje ainda assumem. 

Há um sucessivo adiamento do que é essencial e prioritário, preferindo os políticos mascarar o futuro com tentativas de resposta que, contextualizando, logo se percebe serem de todo inadequadas.
Trago em memória o "Admirável Mundo Novo", escrito em 1931, por Aldous Huxley, o romance que prognostica sérios desenvolvimentos, entre outros, na tecnologia, que revolucionaria, profundamente, a sociedade. Um outro, mais recente, A. Tofller, em uma curiosa entrevista publicada na revista Executiv Digest, quando a páginas tantas se referiu aos estabelecimentos de aprendizagem:

“(...) o Sistema Educativo assemelha-se a uma fábrica que produz informações obsoletas de forma obsoleta; não por não ter os manuais académicos actualizados, mas porque, simplesmente, não estão relacionados com o futuro dos estudantes. Se o modelo de produção que lhes é ensinado é a produção em linha, eles ficarão preparados para trabalhar em processos de rotina, repetitivos, que ignoram o indivíduo. Já foi moda, mas nos últimos 100 a 150 anos”. E diz mais: quando iniciou a sua actividade profissional o seu chefe “não queria o seu cérebro mas sim os seus músculos”. Compaginado com este posicionamento, Tom Peters, um guru da gestão, sublinhou: “bem vindos ao mundo do soft e da massa cinzenta”. 

Não existe caminho alternativo às mudanças que estão a acontecer e à imperiosa necessidade de assumir dois aspectos cruciais: por um lado, a assumpção de uma atitude prospectiva, de antecipação do futuro, planeando e programando em função de um futuro desejável na interligação de todos os sistemas; por outro, o respeito pelos direitos de quem trabalha. 
A lucidez Yuval Harari, no livro "Homo Deus - História breve do amanhã", deve funcionar como uma campainha de alarme. Aliás, com outros enquadramentos, ele segue, por exemplo, entre outros, as construções teóricas que li em Charles Handy, Gary Hamel, Peter Senge, Peter Drucker, Michael Porter e Tom Peters, no quadro da excelência na construção do futuro. E quando escrevo, neste 1º de Maio, sobre a necessidade de um novo sindicalismo que antecipe o futuro e que por ele lute, é também porque, por paradoxal que possa parecer, não alinho em frases emblemáticas que cito de cor: "nada mais certo no futuro que o emprego incerto", ou "a empresa do futuro chamar-se-á Eu, SA", ou então, "só os paranóicos sobreviverão" ou então, ainda, "no futuro só existirão dois tipos de gestor: os rápidos e os mortos". Frases interessantes, que parecendo motivadoras e de espaço no despertar de um novo mundo global, acabam também por serem perversas quando se aprofunda sobre o que significam e o que elas escondem por detrás da sua apriorística leitura.  
Viva o 1º de Maio com mudança, mas com liberdade, equidade, dignidade e respeito por quem trabalha na "sociedade líquida" de Z. Bauman. Se é bom para as empresas, naturalmente que também terá de ser para quem trabalha.
Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Tudo é legal, mas...


Encolho os ombros ao valor porque lá diz a sabedoria popular que "palavras leva-as o vento". Estão em causa € 18.450,00  + IVA e todo o dinheiro que está em causa é público e, portanto, são os impostos que suportam. Mas, enfim... repito, encolho os ombros porque sei o que a casa costuma gastar! Porém, paradoxalmente, revolto-me porque é o princípio que está em causa. E esse princípio tem uma designação: prioridade estrutural.


Sem delongas, o governo regional, através da vice-presidência, assumiu um "contrato de aluguer de espaços de estacionamento para veículos da Quinta Vigia". O contrato, segundo o Dnotícias, realizado com a Sociedade Promotora e Gestora do Hotel Savoy Palace, prolongar-se-á até 2022 e  tem como contrapartida entre 10 e 20 lugares. 
Ora bem, ainda ontem escutei, na RTP-M, a presidente, na Madeira, do Banco Alimentar Contra a Fome, preocupada com o aumento de pedidos (216) desde meados de Março, quando a pandemia obrigou a novos constrangimentos. Isto significa que muitas famílias estão em desespero, não apenas aquelas que fazem parte dos dados da estatística oficial da pobreza (31%), mas os outros que caíram nesse aflitivo pântano. É, por isso, que me refiro a um dos princípios basilares do desenvolvimento: o da prioridade estrutural. No caso em apreço, porque a fome não pode esperar por amanhã.
Finalmente, "não basta ser, tem de parecer", adaptado a esta situação, vem do tempo do Imperador Romano Júlio César. E por que digo isto? Pois, para além daquele aluguer não ser prioritário, convinha que os governantes tivessem consciência da necessidade de uma rigorosa e transparente separação entre o verdadeiro interesse público e para quem ontem se trabalhou. Tudo é legal, não tenho a menor sombra de dúvida relativamente ao contrato, mas... 
Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Ninguém sabe


Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso
25/04/2020

1 Em 2008 e nos anos que se seguiram, tivemos todos de tirar um curso apressado de finanças públicas, gestão de défice, de dívida, mercados, austeridade. Desta vez, estamos em aulas intensivas de epidemiologia, infecciologia, saúde pública, matemática aplicada ou gestão hospitalar. De manhã à noite, ouvimos e lemos todos os especialistas de todas as áreas envolvidas, de todos os países, de todos os hospitais, de todas as Universidades, médicos, técnicos, cientistas, investigadores, e, em relação às questões essenciais, quase tudo permanece por esclarecer: é melhor a estratégia de contenção inicial à viva força ou a rápida obtenção da imunidade de grupo, através da contaminação livre de grande parte da população? Que medicamentos, dos existentes, são, de facto, eficazes, e em que fase, para conter a progressão da doença? Quanto tempo dura a fase de contágio? Os ditos recuperados podem voltar a ficar infectados?


Nunca tantos procuraram tanto e souberam tão pouco. E foi citando Churchill, após a Inglaterra ter ganho a primeira batalha contra a Alemanha, a meio da II Guerra, que Bill Gates — talvez o ser mais inteligente e mais útil do planeta (e que previu e avisou contra uma pandemia assim, em 2015) — resumiu acertadamente a situação em que estamos: “Ainda não é o princípio do fim, mas talvez o fim do princípio.” Para Bill Gates, há uma má e uma boa perspectiva. A má é que o Monstro só será dominado quando estiver disponível para a maior parte da Humanidade uma vacina eficaz, e isso não acontecerá tão cedo; a boa é que, depois disso, o mundo evoluirá para melhor, haverá melhores instituições internacionais, melhor espírito de cooperação e maiores avanços científicos partilhados.

2 Certas coisas, porém, nunca mudarão e, se calhar, como dizia o Príncipe de Salina, até é bom que assim seja. Por exemplo: no meio deste sufoco do coronavírus, até quase me passava despercebido o 150º aniversário do nascimento de um dos maiores malfeitores políticos da História: Vladimir Ilitch Ulianov, de seu nome. Não fosse a notícia de que Putin tinha aberto uma excepção ao estado de emergência em vigor na Rússia para autorizar os nostálgicos do PCUS a desfilarem na Praça Vermelha perante a mais célebre múmia conservada até aos nossos dias, a seguir à de Tutankhamon, e eu nem tinha dado por nada. Mas a data não escapou, claro, ao nosso PCP: Jerónimo de Sousa gravou um vídeo a proclamar a eterna lealdade dos comunistas portugueses a Lenine, essa “bússola para a orientação da nossa actividade”. 150 anos depois, e nada mudou. Mesmo no meio de uma catástrofe de saúde pública e de uma correspondente catástrofe económica, com as empresas paradas e fechadas por falta de procura e de mercado consumidor, a bússola leninista que orienta Jerónimo de Sousa em qualquer momento ou circunstância diz-lhe que não há nada de novo aqui: é uma ofensiva do “grande patronato, com toda a espécie de arbitrariedades, que tem de ser contrariada com opções que evitem o agravamento da exploração e do empobrecimento”. Venham daí as opções, caro Jerónimo de Sousa! Na certeza, porém, de que, não havendo almoços grátis e não nascendo o dinheiro debaixo da mesa, alguém terá de pagar a conta, no final. Seria interessante que explicasse quem pagará e como. Da mesma maneira que já vi dito que todo este dinheiro que o Estado agora terá de pedir emprestado jamais será pago. E eu pergunto: e, se assim é, quem é o que o vai emprestar?

3 Não é só o PCP que acha que não há razão alguma para pensar diferente do que sempre fez. A Ryanair, por exemplo, diz que se a obrigarem a voar com os aviões preenchidos só a 66%, o seu negócio não é rentável. A rentabilidade do negócio depende de aviões sempre a rebentar pelas costuras, tripulações sempre a voar no limite das horas, passageiros tratados como gado, prioridade de atendimento e tempos de espera mínimo nos aeroportos, e taxas mais baratas em troca da frequência dos voos. Em contrapartida, esta e as outras low cost proporcionam a milhões de passageiros a possibilidade, que de outra forma não teriam, de viajar a custos acessíveis. O seu negócio é a quantidade e não a qualidade. Mas os custos indirectos que acarretam, e que nunca são falados, são imensos: não apenas a poluição que acrescentam, mas também os novos aeroportos, como o do Montijo, que se tornam necessários por sua causa, ou a massificação turística das cidades para que contribuem decisivamente e que é um excelente negócio para a hotelaria e uma péssima existência para os habitantes locais.

Entre um mundo governado por um cientista ou por um estadista, eu prefiro sem hesitar o do estadista. Porque não basta salvar a espécie humana, é preciso que, no final, ela se mantenha humana nos seus valores

A questão que se vai pôr já de seguida, e a uma escala global, é que tipo de recuperação económica queremos e vamos ter. Empresas e empresários como a Ryanair e Paul Ryan vão defender e pressionar para que se regresse imediatamente ao business as usual, garantindo, e talvez com razão, que essa é a forma de assegurar uma recuperação rápida. Porém, há uma grande diferença: agora sabemos. Agora, ninguém pode dizer que não sabe, que não viu, que não aprendeu nada. Acreditar que podemos continuar a ter 14 milhões de pessoas em 230 mil voos nos céus todos os dias, que podemos continuar despreocupadamente a queimar recursos naturais que sabemos ser finitos e a envenenar o ar que respiramos, que podemos continuar indiferentes à sorte de milhões de pessoas que ainda morrem de fome no mundo enquanto tantos vivem no luxo e no desperdício, é acreditar que, depois disto passar, tudo ficará apenas como um susto e não como uma lição.

Talvez ingenuamente, eu acredito que desta vez vamos — as pessoas comuns, os consumidores comuns — querer ter uma palavra a dizer. Que não vamos ser carne para canhão, destinatários obedientes e amorfos de escolhas e gostos que outros fizeram em nosso nome e de que nos convenceram que não poderíamos absolutamente prescindir. Que vamos querer menos e que menos pode ser melhor. Que vamos querer estar mais bem informados, reflectir mais, olhar com olhos de ver, e que, uma vez que já aprendemos que por mais urgente que tudo seja, o tempo pode sempre ser suspenso, vamos ter menos pressa e mais tempo.

4 E ainda vamos ter saudades de Angela Merkel. Ela evoluiu muito desde 2008 e, agora, liberta daquele seu sinistro doutor Schäuble — que fazia lembrar o general Millán-Astray, do “Viva la muerte!” — Merkel tornou-se simultaneamente mais humana e mais inteligente. E, logo, mais estadista — talvez o único estadista de uma Europa voluntariamente pequena. No Bundestag, na véspera do Conselho Europeu, ao mesmo tempo que fazia o seu discurso “sangue, suor e lágrimas” aos alemães, dizia-lhes também que esta era a hora de “mostrar quem somos e quem queremos ser na Europa”. Mas não chegou para convencer os que acham que a Europa só lhes interessa como mercado único e território de caça fiscal: Holanda, Finlândia, Áustria e Suécia. Pessoalmente, tenho pena pela Suécia, que é um grande país, de notável gente. Os outros não interessam para nada: a minha ideia de Europa passava bem sem eles.

5 Regresso ao princípio: ninguém sabe. Ninguém sabe como isto acaba e nem sequer se acaba bem. Sendo que há diversas formas de acabar mal e acabar bem. A solução está na mão dos investigadores e dos cientistas, de quem todos esperamos a tão ansiada vacina. Mas isso não quer dizer, ao contrário do que já vi escrito, que a crise devesse ser gerida por cientistas e não por políticos. 

É justamente o contrário: não há crise mais política do que esta, em todos os aspectos que comporta. E, se dúvidas eu tivesse, elas desfizeram-se ao ler aqui, na semana passada, a entrevista à cientista Maria Manuel Mota, Prémio Pessoa, Prémio Pasteur, comendadora do Infante D. Henrique, etc. Diz ela que este é “um vírus bonzinho” porque só mata velhos e portanto a solução é trancar os velhos a sete chaves, proibi-los de ver os filhos e os netos, de sair à rua, de ter vida enquanto não houver vacina. O contrário, sustenta, daquilo que defendeu Angela Merkel, para quem não se pode libertar os jovens e os adultos e prender os velhos.
6 E, já agora, seria bom deixar de usar a horrível palavra idoso, que rima com ranhoso, sidoso, leproso, tuberculoso e outros estados a evitar. Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto que obriga a dizer recluso em lugar de preso, toxicodependente em lugar de viciado em drogas ou drogado, invisual em lugar de cego, arguido em lugar de réu, e que, no limite, levava a ex-Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a exigir ser tratada por “senhora Presidenta”, ou levou o partido espanhol de extrema-esquerda Unidos Podemos a mudar o nome para Unidas Podemos. Mas nem por isso deixa de ser ridículo, apenas o é mais: alguém diz “o meu idoso” em vez de “o meu velho”, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: “O Velho Que Lia Romances de Amor”, de Luis Sepúlveda, de que aqui falei a semana passada, passaria a “O idoso que lia romances de amor”; “O Velho e o Mar”, de Hemingway", passaria a “O idoso e o mar”; “Os Velhos Marinheiros”, de Jorge Amado, seriam “Os idosos marinheiros”, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no ‘idoso do Restelo’. Isto, para não rematar dizendo que “idosos são os trapos”. Tenham lá mais respeito pelos velhos!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A vacina é um mau negócio?


Por
Francisco Louçã, 
in Expresso, 
25/04/2020

(...) Uma reportagem do “Financial Times” desta semana apresenta declarações surpreendentes de alguns dos responsáveis das maiores empresas da indústria farmacêutica. Em resumo, põem em cima da mesa uma chantagem: precisamos de milhares de milhões de dólares nas nossas contas antes de começarmos a produzir qualquer vacina. E acrescentam um apelo, que os governos se entendam para tomar conta da distribuição mundial da vacina, quando ela existir. Esta curiosa combinação de capitalismo ganancioso e de socialismo planificador é o retrato da pandemia.


Começo pela ganância, afinal ela vem sempre primeiro. David Loew, vice-presidente da Sanofi Pasteur, quer rios de dinheiro antes mesmo da certeza de que uma vacina resulte: “Se a indústria não souber como vai estar o mercado daqui a 18 meses, não pode pagar todos os custos.” A preocupação com o mercado, explica Loew, é que se poderia repetir o que se passou com o ébola ou com a gripe de 2009, passado o susto a procura decresce. Ou seja, se os curamos, os doentes passam a ser um problema, não compram mais medicamentos. Christophe Weber, executivo da japonesa Takeda, explica que “o meu medo é que, depois da epidemia, toda a gente se desinteresse”. Yusuf Hamied, diretor da Cipla, grande produtor farmacêutico na Índia, reforça que “não podemos assumir todos os custos”, lembrando que, em 2009, estava a produzir um antiviral cuja procura caiu depois do susto da gripe. David Ricks, presidente da Eli Lilly, e também da Federação Internacional de Produtores Farmacêuticos, apela ao apoio dos governos, explicando com candura que “não deve haver quem obtenha vantagens, concordo a 100%. Mas os investidores dão-nos capital e esperam um lucro”.
O coro de dirigentes da Big Pharma descreve o seu receio. De facto, eles demonstram que a indústria privada é incompetente para conduzir a investigação científica de base. Sem o aguilhão do lucro fácil, os seus laboratórios resumem-se ao mercado imediato e não investem no que demora e mobiliza recursos para medicamentos cuja rentabilidade futura é desconhecida. E o mercado exclui: quando o Brasil e a África do Sul lutaram contra as multinacionais farmacêuticas para disporem de tratamentos para o VIH a preço comportável, foi só quando ameaçaram produzir genéricos sem autorização que as empresas aceitaram negociar. Considerando estas estratégias de lucro, percebe-se porque é que, apesar de a classe dos coronavírus ser conhecida há décadas, estamos ainda desprotegidos perante os seus riscos. O mesmo critério se aplicou a outras doenças: como o ébola ficou no Sul do planeta e não ameaçou os países do Norte, as pesquisas para o tratamento foram desvalorizadas. Assim, se não são laboratórios universitários e públicos a assumir a linha da frente da investigação científica, o mundo fica mais vulnerável.

O PÚBLICO É A NOSSA SALVAÇÃO

E é aqui que entra a versão socialista e planificadora das grandes farmacêuticas, pedem que os governos se entendam e dirijam a distribuição da futura vacina. Têm razão. No mesmo sentido, Seth Berkley, presidente da Gavi, um fundo internacional para as vacinas, diz que “precisamos de um acordo sobre o acesso e produção dado o risco, para comprar grandes quantidades a preços baratos para distribuir nos países com baixo rendimento”. Ou que, “se não houver solidariedade mundial, a pandemia afetará mais algumas regiões e levará a migração”. Severin Schwan, presidente da Roche, suíça, pede um acordo entre os governos para gerir a distribuição de medicamentos.
Considerando o que a Casa Branca já tentou fazer, apropriando-se de carregamentos em aeroportos internacionais e tentando adquirir o exclusivo de remédios preparados em empresas estrangeiras, a disputa pelo stock da futura vacina é um perigo. Só o evitamos se umas Nações Unidas dirigirem a sua distribuição. Não é fácil, mas se não for assim já sabemos quem serão os sacrificados. A ordem mundial do caos é a maior ameaça contra os pobres do Norte do planeta e contra todo o seu Sul. (...)

NOTA
Excerto de um artigo no Expresso.

sábado, 25 de abril de 2020

A propósito do COVID19, a quem o mundo está entregue!



FACTO

Trump sugeriu injectar lixívia para tratar a Covid-19, porque pode matar o vírus ou então submeter o corpo à luz ultra-violeta. "Os cientistas que investiguem os possíveis benefícios da ingestão ou injecção de desinfectantes no corpo dos pacientes". Bolsonaro, por seu turno, disse que não "era coveiro" para saber o número de mortos pela Covid-19. 

COMENTÁRIO

Ora bem, isto traduz a mais completa indiferença pelo ser humano. Um inacreditável desamor pelo semelhante, embrulhado, no caso de Trump, em um atestado de ignorância altifalante. Aquilo faz corar de vergonha toda a comunidade científica dos Estados Unidos (e não só). Ambos completam-se na ignorância e na impreparação para os lugares que ocupam no mais alto patamar da hierarquia política dos seus países. 
Bem esteve Petra Costa, indicada ao Óscar 2020 de melhor documentário: "Ser coveiro é uma profissão digna" (...) “Bolsonaro está mais próximo da figura do serial killer". Para Trump é difícil encontrar uma frase que o caracterize. O povo é que deveria utilizar lixívia pura para desinfectar e tornar mais branca e sem sujidade a casa que ocupa.
Um e outro explicam o ponto a que se chegou. Este é, de facto, o "ground zero" da política imbecil,  ignorante e sem qualidade. Que tristeza!
Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

A noite que matou o Estado Velho


Esta é a noite mais linda e duradoura. A noite da esperança. A noite onde acaba o martírio e se abre uma janela para o futuro. A noite que travou o obscurantismo traduzido na ignorância, no espezinhamento social, político e cultural, a longa noite ditatorial, da censura, das prisões arbitrárias, da tortura, do Tarrafal, do exílio e das deportações, da emigração forçada e de uma guerra colonial que matou 8.831 militares e deixou mais de 100.000 incapacitados e cerca de 140.000 afectados psicologicamente. A valores correntes, nos teatros de guerra, enterrámos 21,7 mil milhões de euros. Foram décadas de condenação à fome, à miséria e ao analfabetismo. Eu que nasci no ano que terminou a II Grande Guerra, que senti as suas consequências, eu que servi e vivi o drama nas matas da Guiné Bissau, olho lá para trás e questiono-me sobre o porquê da estupidez de não terem sabido ganhar as asas do desenvolvimento.   


Esta é, portanto, a noite libertadora, do rompimento das grilhetas, dos ferros que travavam ou nivelavam o pensamento, da falência da ideologia estatal, da repressão policial, das escutas telefónicas, da violação da correspondência, dos julgamentos sumários de opositores políticos, da denúncia, das perseguições e da colossal mentira assumida por autocratas e corporativistas, tudo, diziam, "A Bem da Nação". 

Esta foi a noite que matou o Estado Velho. A noite que matou a violência própria de um regime fascista. 

E há, ainda, para meu espanto, quem deseje branquear a memória, que sinta saudades de alguns crápulas, justificando, também oiço amiúde, que tínhamos os cofres cheios de ouro! Perante a treta de uma alegada "fortuna", lamento o facto de nunca ter sido feita uma séria e justa responsabilização judicial.
Mas estamos em 2020, decorridos que são 46 anos após a noite de todas as noites. A caminho de cinco décadas de um novo Portugal. No essencial, cumpriu-se Abril. Com muitos e preocupantes desvios, é certo, o País que éramos não é o País que hoje desfrutamos. Mudámos muito e para melhor. Em todos os sectores, áreas e domínios. E Portugal soube, finalmente, perceber a necessidade da existência de Regiões Autónomas. 
Mas faltou-nos rigor, disciplina, uma atitude atempada contra os factores geradores de corrupção, faltou-nos uma política social integradora, uma escola voltada para o futuro que não se esgotasse nos anos de escolaridade obrigatória, faltou-nos gerar uma outra mentalidade, disciplina e sentido de responsabilidade. Faltou-nos Justiça a todos os níveis. Faltou-nos capacidade para planear e para travar a onda de oportunistas. E mais, não fomos capazes de impedir que os medíocres atingissem posições de enorme responsabilidade na decisão política. Hoje, faltam-nos referências, pessoas de uma credibilidade superior em quem possamos acreditar. A nossa grande fragilidade, é minha convicção, está aí, porque  tendencialmente, afastámos os melhores.
Que os desígnios de Abril se cumpram e que a onda populista seja travada. Por isso, deixo aqui uma parte da versão integral do poema escrito por Manuel Alegre, em 1963, e incluído no livro Praça da Canção (1965). 

(...)

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

(...)

A foto, da minha autoria, expressa o meu 25 de Abril. Que cada um retire a leitura que melhor entender. Eu tenho a minha, naturalmente.

Ilustração
Foto de uma secção, com os efeitos de luz, de uma das 43 colunas interiores (todas diferentes) do Azkuna Zentroa (43.000 m2), em Bilbao, projectado pelo arquitecto francés Philippe Starck. Trata-se de um moderno centro de arte contemporânea, onde emerge a diversidade estilística de cada uma das colunas.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

"Testados em segredo"


Foi primeira página do Dnotícias: "Testados em segredo". Referia-se ao facto dos membros do governo regional terem sido submetidos, presumo em grupo, a um teste à Covid19. Notei um certo alarido público relativamente a esta decisão. Do meu ponto de vista, completamente desajustado. Foram testados e ainda bem.


O problema só reside no alegado secretismo que rodeou a operação de despiste que incluiu uma "viatura descaracterizada com vidros fumados". Obviamente que deveria ter sido publicitada, colocando um ponto final na especulação. De resto, porque são membros do governo, mesmo que assintomáticos, já deveriam ter sido submetidos ao teste. São várias as reuniões diárias, múltiplos os contactos com entidades diversas e o vírus anda por aí à "espera" do mínimo descuido. Da mesma forma que não se deve criar condições para que esse tenebroso e invisível monstro se instale, também é certo que a Região não pode prescindir do governo, seja ele de que cor partidária for. Bem ou mal, com aplausos ou com críticas, alguém tem de estar ao leme dos vários sectores de actividade, muito mais em um momento preocupação constante. Tenhamos presente, entre outros, o caso de Boris Johnson.
Diz o DIÁRIO que terão sido negativos e eu digo, ainda bem. Se assim não fosse, a pergunta lógica seria esta: apenas através de um, quantos já teriam sido infectados? Outra coisa é a história do número de testes, segundo alguns, ser muito reduzido. Aí não teço uma única palavra, porque não conheço a estratégia nem percebo de pandemias.
Ilustração: Google Imagens.

Gestos de amor sentido


Diariamente dou(amos) conta da solidariedade dos portugueses do Minho ao Corvo. Algumas peças jornalísticas, creiam, emocionam-me. Gente voluntária, jovens e menos jovens, que se entregam para minimizar os contratempos desta quase clausura forçada. Emociona-me a preocupação em preparar refeições para tantos milhares em confinamento obrigatório ou porque a idade e a saúde diminuíram a capacidade de resposta à vida. Apesar dos constrangimentos, há sempre quem esteja atento ao outro. Em outras circunstâncias, muitas vezes olho em redor e parece-me que cada um está para o seu lado, vivendo a sua vida envolvida em problemas mil, entrando e saindo dos edifícios de forma fria, como se fossemos apenas matéria. Mas ao menor sinal de convulsão, de instabilidade, esse povo que parece distante e individualista, emerge, abre-se e multiplica-se em gestos que explicam os verdadeiros sentimentos, os mais genuínos, que nos caracterizam enquanto povo quase milenar.

Dir-me-ão que há excepções. Muitas, infelizmente. Sobretudo os que se aproveitam das fragilidades. Os que olham para a desgraça e descobrem uma oportunidade de negócio. Obviamente que sim. Mas Mariza canta em "A Chuva":

"(...) Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir (...)


Interessa-me os que ficam na história, pois consola-me, dentro da turbulência, ver quem se levanta e parte ao encontro do outro em um quadro de responsabilidade recíproca. São de uma nobreza incalculável esses gestos. Mesmo em situações de razoável normalidade, quantos andam espalhados por instituições que promovem a ajuda ao semelhante fragilizado por carências várias, sem-abrigo ou com uma saúde debilitada? Centenas ou mesmo milhares. Somos, de facto, um povo fantástico. Sobretudo aquele povo que tem uma exacta medida do dinheiro, que sabe que não é por muito ter que se alcandora a um ser de reconhecido mérito, que sabe que a vida é efémera e que só tem um estômago! 
Vejo tantos de medalha ao peito ou na fila para obtê-la e trago em memória Rui Veloso:

"(...) Quem és tu, de onde vens?
Conta-nos lá os teus feitos
Que eu nunca vi pátria assim
Pequena e com tantos peitos (...)"

E vejo tantos, anónimos, correndo a maratona da solidariedade, dando a camisa se preciso for e oferecendo gestos de um inesgotável amor em estado puro. Raramente o País se lembra deles, mas esses ficam "na história da gente". Excluindo os portugueses de eleição, os outros são, em uma grande parte, apenas os outros, as peças de uma máquina de gigantescos interesses. São tantos os que, um dia, cumpriram o refrão da "Valsinha das Medalhas": (...) Encosta o teu peito ao meu, sente a comoção e chora (...)", e mais tarde viemos a saber quem de facto eram: corruptos e trafulhas. Em contraponto, há tanta gente boa que parte e reparte!

Aproximam-se tempos muito complexos. Estou certo que vamos somar pobreza à pobreza existente. Se hoje, na Região, dizem os indicadores estatísticos, que ela atinge cerca de 81.000 pessoas, fácil será adivinhar que este número subirá na sequência do desemprego, dos compromissos assumidos e que deixarão de ser pagos, da habitação que será abandonada, das crianças que passarão dificuldades e dos menos jovens que vão voltar a sofrer as consequências, agora, desta maldita epidemia. Em crer estou que nos próximos quatro a cinco anos, não será possível a retoma de uma dita normalidade.  

Tempos duros para quem mergulhou no pântano do desemprego, vive de pensões baixíssimas ou de salários muito àquem das necessidades mínimas. Tempos difíceis para muitos empresários que sentem o peso dos impostos e a responsabilidade de cumprir obrigações diversas, face às receitas que, naturalmente, não serão as melhores. Isto para dizer que os gestos de solidariedade são sempre bem-vindos, sobretudo porque a fome não pode esperar e a esperança morrer. Porém, não chega. Exige-se uma  presença activa das instituições públicas, através de um princípio tão simples quanto este: o da prioridade estrutural. Em um quadro europeu que se desmorona e com as finanças do país e da região  no vermelho, não faz qualquer sentido destinar milhões para obras que não são prioritárias, engrossar as estruturas de governo com mais colaboradores e assessores, enfim, não faz sentido cumprir "promessas" eleitorais em tempo de vacas magríssimas. Haja bom senso, equilíbrio na decisão política e respeito pelos mais frágeis da sociedade. Todos os cêntimos têm, hoje, um valor acrescido, para promover o emprego sustentável e a felicidade roubada por um invisível.
Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Compreendi, Mário Centeno!



Por
20 Abril 2020

Onde encontrar o financiamento para reconstruir a economia em bases diferentes e em quantos anos? Tudo isto sem contar com a União Europeia, ou contando muito pouco.

A reunião do Eurogrupo

1. Tenho escrito várias vezes que, em todos os momentos significativos da vida, há um antes e um depois, que marcam o processo.
Mário Centeno tem a incumbência, como presidente do Eurogrupo, de evitar o seu “desmoronamento” e de levar o barco a bom porto, perante uma via sinuosa, e o perigo de encalhar e adornar é muito grande. Daí, a explosão, as palmas, de como quem sente, felizmente, ainda não foi desta que o barco se desfez.
O antes foi toda aquela maratona conturbada da negociação com nuvens muito negras a pairar, com os comportamentos impróprios dos políticos holandeses, o que faz parte do seu ADN, todo aquele processo em que a ruptura parecia/seria fatal.
Como resultado, uma saída, sem dúvida, um alívio e uma grande e completa frustração de fundo dos europeus. No limite, evitou-se, por agora, a fragmentação da zona euro. E depois? A grande incerteza.

O pacote aprovado de cerca de 540 mil milhões de euros, aparentemente aparece-nos como uma soma de peso. Não nos podemos esquecer, no entanto, que são muitas as bocas. E comparando com os 750 mil milhões de euros que a Alemanha de motu proprio avançou para apoiar a sua recuperação, a relativa pequenez destes milhares de milhões de euros aprovados no Eurogrupo não escapa ao mínimo confronto.

A Alemanha sozinha dispõe de 210 mil milhões de euros a mais que toda a União disponibilizou! Qualquer coisa aqui não está bem. Umas migalhas para “os fracos” do Sul, com países da dimensão da França, Itália e Espanha! Surreal.

2. Os 540 mil milhões de euros estão divididos por fatias: 100 mil milhões destinados a custear o lay-off (programa Sure) e os horários reduzidos para que as pessoas se mantenham no activo; 200 mil milhões através do BEI traduzem-se em linhas de crédito às empresas, sobretudo de apoio às PME; e, finalmente, a de 240 mil milhões de euros, a mais contestada e a mais gravosa, a tranche que empurra cada país a resolver sozinho a sua situação.
E porquê esta afirmação?
Estes 240 mil milhões de euros traduzem-se em linhas de crédito a obter junto do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), mais conhecido pelo mecanismo da austeridade dos tempos da troika, pela sua política de imposição de programas de ajustamento.
Cada Estado-membro que decida recorrer a este empréstimo pode fazê-lo até um montante equivalente a 2% do seu PIB.
O que ficou então acordado?

Uma taxa de juro mais baixa e a não obrigatoriedade de tal empréstimo estar sujeito a um programa de ajustamento. Foi esta questão de condicionalidade que ia partindo a reunião, que sofreu um alívio contra a vontade da Holanda e inicialmente de outros três países. Mas os 2% continuam. E este crédito apenas pode ser utlizado em despesas directas e indirectas com a saúde, o que já está a originar discrepâncias de entendimento sobre o conceito “despesas indirectas” entre os países membros.

3. Uma vez mais não se entrou a fundo no problema financeiro e de desenvolvimento da UE e, assim, daí decorrem condições desiguais entre as economias mais devedoras e as mais desafogadas.
Vejamos:
O que ficou decidido assenta directamente em dívida a suportar por cada país membro.
Os países com dívida excessiva como Itália, Portugal, Espanha, Grécia vão ter de somar mais dívida à dívida, um agravamento da sua situação presente, tanto mais que se esperam grandes recessões económicas com contracções substanciais do PIB e, subindo o rácio dívida/produto estrondosamente, as condições de mercado vão complicar-se. O rating vai deteriorar-se.
Estes países vão enfrentar grandes dificuldades na obtenção de financiamento a baixo custo, de que tanto precisarão para o seu relançamento económico e para funcionamento normal da economia, e os custos com a dívida vão onerar os orçamentos, limitando-lhes pesadamente a actividade.

Portugal pode contrair dívida um pouco acima de 4 mil milhões de euros, uma gota de água do que vai precisar. Em comparação com o montante do tempo da troika, financiamento aproximadamente no montante de 78 mil milhões, são mesmo muitos mil milhões a menos.

Este acordo, há quem refira, é apenas o princípio. Até admito que seja.
Mas se já foi difícil para um montante tão diminuto que apenas se reduzissem certos aspectos dos condicionalismos de acesso, o que não acontecerá para se avançar com a vaga promessa da criação de um fundo destinado especificamente ao relançamento da economia europeia a ser gerido pela Comissão Europeia?!
Daí que esteja de pé a afirmação do primeiro-ministro António Costa na entrevista à Lusa: “precisamos de saber se podemos continuar com 27 países na União Europeia, com 19 na zona euro, ou se há quem queira sair”e claramente disse que se referia à Holanda.
Em minha opinião, começa a ser tarde para se equacionar uma depuração no seio da União. Não avança, pelo contrário, perde poder na arena internacional com estes dois grupos antagónicos no seu seio. Um grupo que aponta sistematicamente para soluções base na aplicação de medidas de austeridade é castrador de progresso. Ofende princípios fundacionais da União, como a solidariedade.

A dimensão dos impactos na economia

4. O quadro qualitativo dos efeitos na economia da crise pandémica em curso está desenhado.
Quantificar é deveras mais arriscado. Mas várias instituições, como o FMI, já avançam nesse sentido apontando uma queda do PIB de 8% e uma taxa de desemprego de 14% em Portugal, em 2020.
Mário Centeno avançou que, por cada 30 dias úteis de paragem da economia portuguesa, nas condições presentes do seu funcionamento, o impacto no PIB anual é de uma quebra de 6,5%. No défice também o Ministério das Finanças já tem valores estimados.
E qual será no emprego?
Tudo isto está condicionado – à grande incerteza – i.e., ao número de meses em que vamos continuar ao ritmo actual.
E, depois, poderemos pensar em sectores importantes como o turismo, os transportes aéreos, certas zonas do comércio e serviços praticamente congelados e muitos outros, a velocidade reduzida. E as exportações?

Sobre o turismo, a grande questão é: em que situação ficará a economia dos mercados emissores? Lembremo-nos de Espanha que sairá destroçada desta crise pandémica e de outros e outros nossos mercados… Quantos anos demorarão estes países a reerguer-se?

As nossas exportações têm um problema semelhante. Como vai ser possível retomar o seu fluxo ao padrão normal quando os mercados de destino se encontram em situação de ruína? Quanto tempo levará a sua reconstrução?
E, internamente, ao nível do País, que parte do tecido económico será destruída. Ou seja, qual o número de empresas que jamais abrirá nos diversos sectores económicos? E qual a sua importância?
Todas estas dúvidas/certezas qualitativas apontam para a necessidade de um plano estratégico de recuperação da economia e da sociedade. Mesmo com a informação precária existente urge começar. Mas há aqui um outro problema da maior importância. Onde encontrar o financiamento para reconstruir a economia em bases diferentes e em quantos anos?
Tudo isto sem contar com a União Europeia, ou contando muito pouco, pois em vez de uma programação e estratégia de fundo está a perder-se a guerra com divergências insanáveis entre os países. Se não houve entendimento sobre o custeio da pandemia, que deveria ter assumido um carácter colectivo, como haverá para o fundo de reconstrução/relançamento da economia europeia?!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Os jornalistas têm razão... eles não são o vírus!


Não costumo acompanhar as conferências de imprensa sobre o Covid-19, realizadas pelo governo da Madeira. Já tem umas semanas segui uma e considerei-a enfadonha. Prefiro as sínteses que os jornalistas preparam e divulgam. Porém, neste último fim-de-semana, na sequência do caso de Câmara de Lobos, pacientemente, fiquei a olhar para o televisor, pese embora a qualidade da imagem e sobretudo do som. Dei isso de barato, pois interessava-me o conteúdo. E em síntese, dois aspectos tornaram-se-me evidentes: primeiro, que os promotores da conferência de imprensa não gostam de eventuais "verdades inconvenientes"; segundo, não têm noção que uma conferência de imprensa deve ter um tempo próprio e cingir-se ao essencial do dia. Aquela lengalenga sobre o trabalho realizado, acompanhada da leitura de exaustivos números e de acumulados, ao ponto de os dividir em grupos de idade, evidentemente que, em texto, podem servir de apoio através de documento expedido às redacções, nunca para serem lidos da forma como é feito, simplesmente porque, isto é básico, quem escuta, no final, não tem capacidade para cruzar de forma sumária o transmitido. 


Ontem, no final daquela extensa lengalenga de quase uma hora, fui ao computador para ler outras notícias e dei com o texto de um comunicado do Sindicato dos Jornalistas, publicado pelo Dnotícias, cujo conteúdo já tinha sido objecto de um meu comentário. Repudiava o sindicato "qualquer falta de respeito para com os jornalistas em exercício das suas funções" no actual momento de crise pandémica. Mais adiante salientava o texto que "o jornalismo é feito por jornalistas, que respeitam uma carteira profissional e um código deontológico, desconhecidos por muitos dos que de diversas formas põem em causa o trabalho da Comunicação Social regional". Um tiro no centro do alvo, assumo, porque absolutamente concordante com a leitura que nestes dois dias tinha concluído. Há, claramente, uma atitude de falta de respeito, demonstrada no tom de algumas resposta, na subtileza do sorriso de escárnio e até na fisionomia de poucos amigos. 

Quem ali se senta, pela responsabilidade que tem de informar, não pode ignorar, desde logo, que todas as perguntas são legítimas. E que apenas lhe compete responder, de forma sucinta, clara e objectiva. Não pode haver lugar a perguntas "convenientes" nem a respostas que coloquem em causa o respeito e a idoneidade de quem as faz. O jornalista, por norma, deveriam saber, toca onde sangra, porque reúne dados junto de imensas fontes, portanto, ninguém deve sentir-se incomodado com isso. 

Neste pressuposto, das duas, uma: ou está preparado para uma resposta, ou assume, frontalmente, que não sabe e que logo informará. É mais sensato, humilde e gerador de confiança. É mau, perante as evidências e com formatos de alguma arrogância, dizer não dizendo, que o interlocutor é burro, não sabe do que fala e que a verdade é apenas aquela que interessa ao promotor da reunião. A verdade, excelentíssimos, é múltipla e assim sendo, o que se pede é que, serenamente, quem responde, seja honesto com a sua verdade.
Nas conferências de imprensa que assisti não vi jornalistas à procura do anormal. Vi-os empenhados e a colocar, respeitosamente, as questões. Aquelas que, inclusive, o povo gostaria de ver respondidas, as tais que parecem transportar a ideia que existe muito mais para além do conhecido. Vi jornalistas bem preparados, fazendo o enquadramento dos dados que exigem respostas. Habituem-se! 
Sei que o momento que todos estamos a viver é muito duro e problemático, que estamos a passar um tempo preocupante, que apavora, na saúde e na economia, portanto pede-se sensatez, verdade e serenidade, elementos estes susceptíveis de garantirem a confiança. O dramatismo do momento dispensa caras enjoadas e testas franzidas, porque são eles, os jornalistas e as empresas para quem trabalham, os responsáveis pela transmissão da verdade e da serenidade que todos precisamos.
Ilustração: Google imagens.

domingo, 19 de abril de 2020

A Semana Santa já passou!


Por
19 ABR 2020

Para começar, desenganem-se os espertos saloios que utilizaram este tempo de confinamento social para continuarem a nomear assessores e outros cargos afins para os Gabinetes do Governo Regional. Numa altura em que muitas famílias estão a passar pelo layoff e muitas vão enfrentar o desemprego, estas nomeações foram uma afronta a todos nós. Não pense também quem governa que passou despercebida a primeira medida que anunciaram logo após o início desta crise de saúde pública aqui na Madeira - atribuição de 28 milhões de euros às Sociedades de Desenvolvimento.

É tempo de sermos realistas! Não há folga para desperdícios financeiros e prioridades distorcidas. Todos nós já sabemos o impacto económico e financeiro que a paragem da economia vai ter nas finanças públicas e no dinheiro disponível em todas as instituições. E arriscamo-nos a uma nova austeridade, inclusive na administração pública.
E todos nós já sabemos que isto não vai ficar tudo bem. O “tudo bem” que podemos ambicionar é mantermos a saúde e evitarmos as mortes. E porque isto depende quase exclusivamente de nós, de nos cuidarmos, acredito que na saúde tudo vai correr bem. A luta pela vida deve ser a nossa prioridade!
Depois... Logo veremos como vamos ultrapassar as dificuldades. Esta é a realidade! Não nos faltará garra para ultrapassar as dificuldades. Se aos nossos pais que estiveram na guerra colonial não faltou esperança e garra para vencer, nós, que somos feitos da mesma fibra, somos capazes de fazer o mesmo.
Mas para vencer, nos tempos futuros precisamos de exigir mais como povo. Não há folga para o “deixa andar”. Este vírus veio demonstrar as fragilidades das estruturas sobre as quais a nossa sociedade se baseava, das economias e da ordem mundial. Uma nova geopolítica mundial está a ser desenhada. Mas acarreta em si um risco muito grande – a tendência para a ditadura e a intolerância.
Com esta pandemia e estando todos os países preocupados em resolver os seus problemas de saúde pública, regimes de países como a Venezuela ficam completamente livres para fazerem seja o que for desprotegendo aqueles que lutam por um sistema democrático. Curiosamente, ainda não vi nenhuma iniciativa de deputados luso-venezuelanos demonstrando preocupação na defesa das comunidades portuguesas na Venezuela.
E como começa a ditadura? Começa nos atropelos à lei. Por isso, é inaceitável não cumprir a lei. E é grave ver no Parlamento Regional o Vice-Presidente do Governo afirmar que não se vai preocupar em cumprir regulamentos e leis. Vamos continuar a ser condescendentes com estas situações?
O que deveríamos assistir era vê-lo afirmar que ia tomar todas as medidas para cumprir em tempo recorde os requisitos necessários para o desbloqueamento de todas as verbas necessárias para a retoma económica. Justificaria assim a constituição da sua equipa de confiança de inúmeros assessores, adjuntos, técnicos especialistas e afins.

E já repararam nalguns “tiques” dos membros do Governo Regional nas conferências de imprensa, sempre que um jornalista faz uma pergunta que não agrade? E as perguntas sem respostas? Tomaram gosto pelo Trump? E quando se irritam? Vamos continuar a ser tolerantes com esta forma de discurso?

A confiança conquista-se. E exigia-se agora muita na gestão das contas públicas para um diálogo mais fluido com a República. Ao invés, continuou a apostar-se num discurso azedo de acusação do bicho papão do “Continente”. Acredito que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, homens com verdadeiro sentido de Estado, não vão abandonar-nos. Temos sorte!
Não me agrada a dualidade de critérios e a perversão de valores. Vejamos: aos cristãos praticantes foi pedido que vivessem esta Páscoa de forma diferente. Vimos as nossas igrejas fechadas e assistimos às cerimónias e celebrações eucarísticas por televisão. D. Nuno Brás optou pela segurança do povo em detrimento de um fanatismo religioso. Bem-haja! Demonstrou sensatez e sabedoria.
Por contraponto a esta decisão, decidiu-se levantar algumas restrições, nomeadamente de proibição de ajuntamentos sociais de forma a permitir as celebrações do 25 de abril e o 1.º de maio. E eu pergunto: em quê estas liberdades democráticas são mais importantes do que a liberdade religiosa ao ponto de serem comemoradas com exceções ao confinamento decretado no nosso país?
Não vivemos tempos de exceção? Não podiam estas celebrações serem comemoradas apenas por televisão com os principais intervenientes e com atos simbólicos para lembrar a liberdade, reduzindo ainda mais substancialmente o número de pessoas presentes? Sem convidados?
A matriz futura será diferente. O mundo está em mutação acelerada e não vamos voltar ao passado. É tempo de pensarmos que futuro realmente queremos e o que é necessário mudar. Eu acredito que vamos conseguir ultrapassar as dificuldades. Mas vai doer. Entretanto, cuidem-se. Digam sim à vida!

sábado, 18 de abril de 2020

COVID- 19 – Que fazer no dia seguinte?


Por
Carlos Esperança, 
17/04/2020

Por maior que seja a incerteza quanto à data do dia seguinte e à tranquilidade possível, há na catástrofe natural que nos flagela, razões para reflexão e para que os cientistas de variadas áreas ajudem os governos a planear o futuro no único Planeta que nos coube.


Pode faltar outra chance para ponderar o modelo de sociedade e preservar as conquistas civilizacionais face ao aquecimento global e escassez de recursos. Respeitar o ambiente e reduzir o consumo, contendo a explosão demográfica, a fome e a doença, são as mais urgentes obrigações. Esta pandemia e a provável e incerta repetição, com uma bactéria ou outro vírus, demonstram que as fronteiras são acidentes precários no mundo global, para o bem e para o mal.
Pode não se fazer ideia do que é possível fazer, mas há certezas de erros que não devem ser repetidos. O trabalho e os rendimentos serão bens cada vez mais escassos e que urge repartir, para que as desigualdades obscenas entre países e, dentro destes, entre cidadãos não conservem níveis de injustiça a que o neoliberalismo condenou milhares de milhões de pessoas.
A guerra não é uma fatalidade, é uma fonte de riqueza para alguns e de sofrimento para multidões, que urge erradicar. Os arsenais nucleares são inúteis, perante as catástrofes, e obsoletos os mísseis para lhes porem termo.

É preciso ser demasiado ingénuo ou excessivamente crédulo para imaginar que a brutal destruição de bens, de postos de trabalho, do tecido económico e perturbação social não terão reflexos no bem-estar de cada um, num mundo empobrecido onde a satisfação das necessidades básicas se tornará o alvo principal a atingir.

Só o medo da perda da vida pode levar os avarentos a prescindir do supérfluo, e nunca mais deixará de ser o Estado, a nível nacional, regional ou global, a obrigar-se a definir as regras pela quais todos teremos de nos pautar.
Apavora a possibilidade de um Estado totalitário substituir democracias pluripartidárias, e a de outra civilização, alheia à matriz greco/romana e iluminista, acabar por se impor à Europa e a nível global.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

A Europa já não está connosco?


Por 
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
14/04/2020

Num discurso em 1985, Jacques Delors, então presidente da Comissão Europeia, arriscou um vaticínio distante: “Temos de enfrentar o facto de que em 30 ou 40 anos a Europa constituirá um OPNI, Objeto Politicamente Não Identificado, a não ser que forjemos uma entidade capaz de garantir a cada um dos nossos países que beneficie da dimensão europeia e prospere internamente, ao mesmo tempo que mantém o seu estatuto externo.” Talvez fosse fácil, à distância de várias décadas, ameaçar os seus ouvintes com um fracasso cataclísmico caso não se conjugassem numa União que estava então a começar a pensar numa moeda única e que, sobretudo, acreditava no seu sucesso. Era um tempo de otimismo e a frase sobre o OPNI ficou registada como um detalhe retórico.


No entanto, nos mais de trinta anos seguintes, este discurso de Delors foi sendo lembrado sempre que percalços sucessivos mostraram que a “Europa” não era “capaz de garantir a cada um” dos países membros “que beneficie da dimensão europeia e prospere internamente, ao mesmo tempo que mantém o seu estatuto externo”. Afinal, foi mesmo um OPNI que foi retirando capacidade de decisão soberana ao mesmo tempo que acentuava a desigualdade entre economias por via de regras e estratégias, que consagrou em tratados.
Temendo o efeito dessa distorção, a União foi sempre prometendo compensações, fosse uma reparação histórica (a Alemanha e a França deixariam de se guerrear), fosse um fluxo de fundos modernizadores (“a Europa está connosco”), fosse até uma narrativa de cooperação entre iguais, tudo poderosos objetos eleitoralistas para uso e abuso internos. Portugal viveu essa doçura durante anos, repetida à exaustão por todos os governos. Nenhum governante se atrevia a contrariar o dogma, a União Europeia é a nossa salvação.

E assim se criou a contradição que agora está tão exposta: enquanto as elites e aparelhos governantes na Europa do sul foram educados na veneração destes arranjos institucionais como o único quadro possível de ação e até de pensamento, as soluções que trabalhosamente articularam são destrutivas para essas sociedades. A reunião do Eurogrupo da semana passada, modestamente encerrada pelo autoaplauso dos ministros e apresentada por umas horas aos crédulos como um sucesso, foi um retrato desse paradoxo: os que precisam não podem e os que podem não querem, sabendo que esta é mais uma oportunidade para reforçarem o seu poder e a sua supremacia económica.

Talvez custe dizê-lo, mas num ponto o ministro holandês tem razão: foi ele quem venceu este round. E não precisava de muito, bastava-lhe lembrar que o instrumento do endividamento dos aflitos, o Mecanismo Europeu de Estabilidade, foi precisamente definido para os disciplinar com programas de austeridade. Ele limitou-se a ser coerente com o que tinha sido votado por todos os outros, teve mesmo a indelicadeza de lhes lembrar que tinham aceitado a regra da peçonha no dia em que aprovaram o Mecanismo.
Claro que, sabendo bem o que tinham feito, os governos aprovaram o recurso a um instrumento em que preferem nem tocar, nenhum quer meter-se na aventura de acender os focos da pirataria financeira sobre a sua economia – merecem de facto um aplauso pela artimanha. Só que ficaram deste modo só com uma mão cheia de promessas e uma pilha de possibilidades de endividamento, ainda por cima caro.
Nesse drama, o primeiro-ministro tem pela frente decisões difíceis. O Eurogrupo desprezou a proposta dos nove governos, limitando-se a oferecer-lhes uma misteriosa frase sobre a discussão futura acerca de “instrumentos financeiros inovadores”. Costa não pode agradecer a Centeno ter sido o mediador da Alemanha e nem sequer quis esconder o seu descontentamento com os resultados da reunião. Percebeu também que a convocação do Conselho para a próxima semana é uma armadilha: a reunião, de tão imediata, não será preparada por negociações, que seriam certamente ardilosas, e portanto dificilmente considerará soluções que o Eurogrupo não tenha apresentado.

Como se percebe, o Conselho reúne-se para fingir unanimidade e consagrar o fecho da discussão, com a chantagem de que um desacordo a esse nível seria uma mensagem de divisão que ninguém quererá arriscar. Mesmo que se possa presumir que, para amaciar os recalcitrantes, venha a ser prometido um pequeno fundo, como o que Macron sugere e a prestidigitação dos comissários já mostrou saber como agigantar (o plano Juncker tinha vinte mil milhões e prometia alavancar 315 mil milhões), não se adivinha outro fôlego. Berlim quer acabar já com os protestos dos países do sul.

Assim sendo, o governo português, como o italiano ou o espanhol, tem somente pela frente três possibilidades: ou consegue um fundo de aplicação imediata e de grande dimensão, com juro zero e uma maturidade longa, ou consegue um quadro orçamental plurianual com transferências volumosas, ou não consegue nada que sirva para responder à segunda vaga da pandemia. As duas primeiras vias são difíceis, pois foi precisamente para as evitar que se consolidou a fronda germano-austríaca-holandesa-islandesa. Aliás, melhor fariam os nossos euroentusiastas em não tecerem encómios a Merkel rezando por um milagre, foi precisamente o seu governo que criou as condições internas para recusar a cooperação europeia.
Restaria aos governos do sul, como no passado, fingirem que uma derrota é uma vitória, que a união prevaleceu e que tudo está bem neste reino da Dinamarca. Não sei se o farão, esticaram muito a corda nas últimas semanas, mas tem sido sempre esse o seu instinto.
Reconhecer que todas as promessas vão ser pagas com austeridade mostraria simplesmente que cada país ficou entregue ao seu destino. Ouvir-se-á talvez a pergunta mais temida: se a União Europeia nos abandonou, serve para alguma coisa? Ou, lembrando Delors, não serão estes trágicos dias da pandemia o tempo em que o OPNI saiu do armário e nos ameaça?

terça-feira, 14 de abril de 2020

Chocantes assimetrias


É uma das fotografias chocantes desta pandemia. O país que se vangloria da Liberdade e das oportunidades para todos, o país que possui um poderosíssimo arsenal bélico, que compra cientistas, explora o espaço e que se arvora em estandarte do planeta, é o país que enterra os seus cidadãos em valas comuns. Não todos, obviamente, mas sobretudo os pobres, os das margens sociais que, por múltiplas razões, entre outras, as de natureza económica, nem as famílias se "atrevem" a reclamar os corpos.  


Tenho ainda presente a situação aterradora vivida e contada pelo enfermeiro Derrick Smith, de Nova York, a zona mais afectada nos Estados Unidos, face a um doente que precisava, desesperadamente, de um ventilador: "(...) As últimas palavras que nunca esquecerei", revelou-as, com natural amargura: "Quem vai pagar isso?", inquiriu o homem, a muito custo, por causa dos problemas respiratórios." (...) "[O paciente] estava com problemas respiratórios graves, tinha dificuldade em falar, mas, mesmo assim, a sua principal preocupação era quem iria pagar o procedimento que poderia ajudá-lo a viver", explicou o profissional de saúde.
Os factos que destaco colocam tudo em causa, dos direitos de um qualquer ser humano, aos deveres que deveriam ser constitucionais em um qualquer país minimamente decente. Não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o lado. Afinal, qual o valor da vida para alguns (muitos) líderes mundiais, pergunto? Os índices de Wall Street parecem estar em primeiro lugar!
Aqui mesmo ao lado, em Espanha (Madrid), onde o controlo da pandemia é dramática, acedi a um vídeo com uma desesperada mensagem, a qual, no essencial, um cidadão, em lágrimas, denuncia o facto de estarem a retirar ventiladores a maiores de 65 anos, alegadamente, para proteger os mais jovens. A declaração vai mais longe, mas não a transcrevo. Palavras que são negadas pelas autoridades e, sublinho eu, oxalá seja falsa, mas perante o mundo que estamos a viver e perante a incapacidade de resposta dos serviços de saúde, deixo-me ficar pelo enormíssimo dilema ético na decisão entre quem vive e quem morre. Tarde ou cedo saber-se-á da veracidade, mas não estranharei, a avaliar por Daniele Macchini, médico no hospital Humanitas Gavazzeni, em Bérgamo, Itália. Li: "(...) onde já se escolhem os doentes que se podem tratar. O relato termina com um apelo fortíssimo a um distanciamento social que é fundamental para conter a propagação".
Entretanto, ontem, com entusiasmo segui uma reveladora entrevista com a filósofa Marina Garcés, doutora em Filosofia, professora da Universidade Aberta da Catalunha. A páginas tantas, o jornalista questionou: 

Cree que la crisis de la Covidien-19 ha mostrado la fragilidad del sistema?

Lo que nos muestra de manera muy cruda la crisis de la Covidien-19 es que el capitalismo global, que parece un sistema muy poderoso, se basa en grandes capas de precariedad económica, social, material, sanitaria… Es una precariedad individual y estructural, porque también afecta el estado en que se encuentran los servicios de atención pública en diferentes países del mundo. Es un sistema basado en la actividad y el crecimiento, pero cuando tiene una patología no puede detenerse, cuidarse ni cuidar de las vidas que cotidianamente expolia y explota. Tampoco las de aquellos que ha dejado al margen, como las personas mayores. Más que la fragilidad del sistema, lo que nos muestra es la desigualdad y la violencia social sobre la que funciona nuestra normalidad.

É óbvio que todo o mundo foi surpreendido por este dilacerante surto pandémico, face ao qual, pela sua dimensão, a generalidade dos países não estava preparada. Estou em crer que só lá mais para a frente, após vacinação, se conhecerão as causas e os efeitos devastadores em todos os sectores. Para já, aquilo que a filósofa Marina Garcés sublinha parece-me insofismável. O Covid-19 veio, de facto, uma vez mais, colocar a nu a generalizada precariedade nos serviços de acessibilidade e resposta aos direitos básicos das populações, em alguns casos, por razões ideológicas, mormente no quadro dos sistemas económico e financeiro, que conduzem à secundarização da importância do Estado naquilo que deveria constituir uma intransigente defesa dos direitos dos cidadãos; em outros, pela intencional globalização da pobreza (que, paradoxalmente, produz riquíssimos) que traz no seu bojo gritantes desigualdades. Melhor dizendo, apesar do vírus não escolher classes sociais, quem tem fortuna, tendencialmente, safa-se, quem não dispõe de meios (dinheiro e seguros), obviamente, sofre as consequências da injustiça social. Relembro o infectado que olhou para o enfermeiro: "Quem vai pagar isso?".
Dói, dói muito, mas assim vamos vivendo, de catástrofe, em catástrofe, mas sempre com o vil metal a nortear os comportamentos mais abstrusos. 
Ilustração: Google Imagens.