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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Os justiçáveis


José Sócrates, 
in Diário de Notícias,
26/07/2021

Tudo igual, tudo igual, tudo desesperadamente igual. A detenção usada para investigar e a violação do segredo de justiça usada para difamar. No centro da ação mediática já não está uma pessoa com os seus direitos, mas um alvo a que ninguém dará ouvidos quando chegar a sua vez de dizer qualquer coisa em sua defesa. A maledicência estatal resultou em pleno e o plano foi repetido sem falhas, pouco importando se toda a atuação se baseou na ação criminosa de violação de segredo de justiça. Afinal, quem ainda liga a isso? Quem se interessa ainda por saber se havia ou não fundamento legal para a detenção? Salvo honrosas exceções, os jornalistas, encantados por tanto escândalo e por tanta audiência, apenas divulgam e festejam e aplaudem. Por eles está tudo bem e não há razão nenhuma para questionar as autoridades, que só poderiam ver nisso ingratidão. Afinal de contas, são elas que fornecem a informação que lhes alimenta a ação.



O direito penal evolui assim por transgressões. Se violarmos as normas muitas vezes, as pessoas acostumam-se e aceitam. Agora, prende-se primeiro e pergunta-se depois; agora, arrastam-se as pessoas para a cadeia para humilhar, para despersonalizar e para intimidar os outros - calem-se, que vos pode acontecer o mesmo. A detenção para interrogatório deixou de ser um dispositivo extraordinário da ação judicial para se transformar num vulgar instrumento da violência estatal quando identifica o inimigo social. O segredo de justiça há muito que se transformou em ferramenta à disposição das autoridades, usada por forma a substituir a presunção de inocência pela presunção pública de culpabilidade. Um novo tempo e uma velha cultura. Lentamente, a caminho de um estado policial.

O espetáculo de violência estatal concentra-se, portanto, nestes dois pontos - a prisão abusiva e a campanha de difamação alimentada pela violação do segredo de justiça. Abuso e crime, eis o comportamento institucional onde se já se vislumbra o que a senhora ministra da Justiça chamou, em artigo recente, "direito dos justiçáveis". Este novo mundo precisa de novas categorias e novas gramáticas. A expressão põe de lado o clássico fundamento da dignidade pessoal e dos direitos universais e convida a separar uns e outros. Eis como tudo encaixa. Na verdade, Joe Berardo e Luís Filipe Vieira já não são indivíduos com direitos, são "justiçáveis".

No livro O nosso agente em Havana, Graham Greene expõe a teoria sobre as classes "torturáveis" e não "torturáveis": " Há pessoas que esperam ser torturadas e pessoas a quem tal ideia enche de indignação (...) a polícia pode usar de toda a brutalidade que quiser com os imigrantes da América Latina e dos estados do Báltico, mas não com os visitantes do seu país ou da Escandinávia (...) Os católicos são mais torturáveis do que os protestantes". A nova linguagem da ministra não é, portanto, completamente nova. O que é novo é que, para lhe encontrarmos o rasto, tenhamos que regressar a um mundo de guerra fria, de tortura, de ditaduras latino-americanas e de conversas de chefes de polícia.

Impossível também não reparar na primeira entrevista do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça dada ao jornal Observador: "Há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida temos que cortar com isso". Cortar com isso, nada menos. Ao senhor juiz presidente não impressiona que as autoridades penais prendam durante onze meses sem que apresentem qualquer acusação durante esse período. Não impressiona que se adiem indefinidamente uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes os prazos legais de inquérito. Não o impressiona a despudorada e ostensiva violação do segredo de justiça. Nada disto lhe suscita qualquer reflexão. Na nova dialética "justiceiro - justiçáveis" que nos é proposta, esse problema parece não vir ao caso, já que estamos a falar dos segundos, que são problemáticos, e não dos primeiros que são intocáveis. Mas vamos ao que importa. O que é extraordinário é que a única preocupação do senhor Presidente seja a de se perguntar se ainda faz sentido que o Estado Democrático garanta ao cidadão o direito a poder recorrer de uma decisão judicial que considere errada ou injusta. É absolutamente extraordinário. E mais extraordinário ainda é o silêncio. A violência do silêncio.


Finalmente, no Benfica, a cena em palco é ainda mais repulsiva. Nem uma palavra de simpatia por quem ainda ontem era o líder da equipa. Nem uma palavra. O cadáver ainda não arrefeceu e ali só se vê cálculo e ambição e poder e oportunismo. Aquelas pessoas perderam-se ali mesmo, no preciso momento em que encenaram o megalómano espetáculo do estádio vazio de onde emergiria a figura redentora. No final, o pano desce tristemente, mostrando que por detrás dele nada existe - nem legitimidade, nem gravitas. Os mais calculistas são frequentemente os mais incautos. À volta, de novo, o silêncio.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Jogos Olímpicos


Embora envoltos em várias polémicas, agravado pela pandemia, eis que aí estão os Jogos Olímpicos. Não será, com toda a certeza, o encontro mundial do desporto que todos sonhavam. Mas será sempre, para os atletas, um ponto alto das suas carreiras. Tive a felicidade de poder viver os Jogos de 1988, em Seoul, na Coreia do Sul. 

Guardo desse tempo memórias indiscritíveis. Só quem os vive, pelo menos uma vez, como foi o meu caso, é capaz de trazer em memória, a todo o momento, aquelas vivências ímpares. Não apenas as das competições, seja em que modalidade for, mas o sentimento que nos invade naquilo que os Jogos são ou deveriam ser, o momento de exemplar fraternidade entre os povos e de irmandade entre as nações.

Os Jogos de 1988 tiveram uma particularidade, foram os Jogos da "reconcialiação", depois dos boicotes em 1984 (Moscovo) pelos Estados Unidos e 1980 (Los Angeles) pela ex-União Soviética.

Os Jogos da XXIV Olimpíada, em Seul, realizaram-se entre 17 de Setembro e 2 de Outubro, com a participação recorde de 159 países e 8 391 atletas.


 Pierre de Coubertin deixou-nos a "Ode ao Desporto":

"Ó Desporto Essência da vida (...) Ó Desporto, tu és a beleza! És o arquitecto deste edifício que é o corpo (...) Ó Desporto, tu és a Justiça! A equidade perfeita (...) Ó Desporto, tu és a audácia! Ó Desporto, tu és a Honra! Os títulos que tu conferes não têm qualquer valor se adquiridos por meios diferentes da lealdade absoluta. (...) Ó Desporto, tu és a alegria! Ó Desporto, tu és o progresso! Ó Desporto, tu és a paz! (...)".

Ilustração: Arquivo pessoal.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Carlos Alexandre: do lodaçal para o lamaçal, a justiça em direto



Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
20/07/2021


Mais do que necessidades processuais, as táticas de Carlos Alexandre parecem servir necessidades mediáticas, oferecendo a justiça em direto. Quem se lembra do que escreveu sobre Azeredo Lopes ou Miguel Macedo? Viu provas arrasadoras que não se confirmam, usou palavras fortes onde se pedia cautela e atirou para a “lodaçal” ou “lamaçal” quem de lá nunca mais sai, mesmo que seja absolvido. Mas há quem pense que um juiz é um chefe de cerimónias de linchamentos mediáticos.



Já escrevi tudo o que, com os dados conhecidos, tinha para escrever sobre Luís Filipe Vieira. E sobre Joe Berardo. Este é, no entanto, o melhor momento para falar do “modus operandi” de Carlos Alexandre, o super-juiz de que o povo ingenuamente adora e que o jornalismo oportunisticamente promove. É o bom momento porque a defesa dos direitos dos arguidos é vista, nos tempos de trincheiras em que vivemos, como uma defesa dos seus comportamentos. Nem o louco mais desvairado me acusará de tanto com Luís Filipe Vieira.


Fico-me pelo comportamento de Carlos Alexandre com Joe Berardo e Luís Filipe Vieira. As suas detenções para serem ouvidos pelo juiz, sem flagrante delito, funcionaram como instrumento de humilhação pública de quem nem acusado foi. Um hábito que, como explicou o advogado Garcia Pereira, é muitas vezes seguido de um truque que dribla a própria lei: o de cumprir o prazo de 48 horas para que o detido seja presente a um juiz, usando esse primeiro encontro para um ato meramente burocrático. Várias noites num calabouço criam uma perceção de culpa que dificilmente será apagada. Sobretudo se forem, como foram, muito mediatizadas. De tal forma que a reação popular à saída em liberdade de quem não está sequer acusado de alguma coisa é a de que há uma cultura de impunidade neste país.


O mais grave é que isto é feito por um juiz de instrução. Aquele que temos como garante do respeito pelos direitos dos arguidos durante esta fase do processo. Carlos Alexandre não só não parece ter esse papel junto do Ministério Público como até passa a imagem de ser quem diz “esfola” depois do MP dizer “mata”. Nenhum arguido tem qualquer segurança de que alguém moderará o natural ímpeto de quem investiga se souber que Carlos Alexandre é o juiz de instrução. E isso é visto, numa comunicação social que tem o dever de escrutinar todos os poderes – incluindo o judicial –, como sinal de coragem do juiz.

Nestes dias de detenções, Carlos Alexandre oferece às televisões momentos impactantes que dão audiência. Por isso, veneram o juiz que os próprios jornalistas dizem que se alia ao procurador e ao inspetor para apanhar os poderosos, sem se aperceberem que a presunção desta aliança é já, ela própria, uma ofensa ao Estado de Direito. Uma ofensa que, quando a aliança vai longe demais, até pode destruir carreiras de magistrados, como aconteceu com Sérgio Moro, o suposto Carlos Alexandre brasileiro que acabou, como era previsível, numa trágica e curta carreira política.

Mais do que necessidades processuais, as táticas de Carlos Alexandre parecem servir necessidades mediáticas. Carlos Alexandre oferece a justiça em direto num tempo em que tudo o que não tenha retribuição imediata é como se não existisse. A frustração só vem depois e os que julgarem estes casos sofrerão as suas consequências. Mas quem ainda se lembra do que escreveu há um ano o super-juiz no despacho de pronúncia do ministro Azeredo Lopes?

“A participação de Azeredo Lopes foi essencial a toda a engrenagem”, escreveu Carlos Alexandre, em junho de 2020, sobre Tancos. “Todo este lodaçal tem de ser julgado”, concluiu. Este mês, foi o próprio Ministério Público que pediu a absolvição do antigo ministro da Defesa, entretanto civicamente destruído, com o contributo empenhado das palavras de um juiz. Vá lá, teve sorte de não ter passado umas noites nos calabouços da PSP. Recordo que, num caso onde nem a acusação ao ministro se manteve, Carlos Alexandre queria que o primeiro-ministro fosse interrogado presencialmente. Mais uma vez, os critérios parecem-me ser mais mediáticos do que processuais ou judiciais.

E o que escreveu sobre Miguel Macedo, o ministro de Passos Coelho que foi envolvido no caso dos vistos gold? Mais uma vez, o juiz Carlos Alexandre foi perentório: as provas eram “arrasadoras” e o “lamaçal” total. O ex-ministro acabou absolvido em tribunal (duas vezes) de todas as acusações. O juiz de instrução vê provas esmagadoras que depois não se confirmam, usa palavras fortes onde se pedia cautela mas, para gáudio da audiência, atira para o “lodaçal” ou “lamaçal” quem nunca mais de lá sai, mesmo que seja absolvido por ausência de provas ou de culpa.

Não faço ideia de onde vêm as fugas aos segredos de justiça, que chegam ao ponto dos advogados lerem pela primeira vez o despacho que pronuncia dos seus constituintes nos jornais. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso de Tancos, em que 16 advogados apresentaram uma queixa contra Carlos Alexandre (que o Conselho Superior da Magistratura arquivou, porque o juiz disse que não tinha sido ele). Posso apenas verificar o que vejo. Quando o odiado e proscrito Ivo Rosa leu a longa decisão de pronúncia de José Sócrates nenhuma redação conhecia a sua decisão. Nem uma coisa transpirou para a comunicação social. Leu-a em direto, com a comunicação social presente.

Em todos os casos em que Carlos Alexandre está envolvido, nem uma coisa fica por se saber, quase em direto. E sempre nos mesmos órgãos de comunicação social. Nada posso concluir deste “lodaçal” a não ser sublinhar a triste coincidência. E verifico outra coisa: Carlos Alexandre é um dos poucos juízes com altas responsabilidades que deu entrevistas pessoais às televisões. O que é um indício de um traço de personalidade pouco recomendável a uma atividade profissional em que se exige a maior reserva possível e se recomenda alguma despersonalização da função.

Quase todos parecem viver bem com a justiça em direito, que cria condições de condenação social que nunca poderão ser revertidas, até ao dia em que acontecer consigo. Claro que quase todos pensam que, não sendo figuras públicas, nunca serão sujeitos à humilhação do que se pode revelar uma injustiça. E acham que o tratamento quotidiano de exceção de uma determinada elite, que marca um país desigual e injusto, deve ser compensado por julgamentos sociais expeditos. Nada se pode fazer quanto ao impacto de qualquer acusação a qualquer figura mais mediática. O que incomoda é uma justiça que acredita que esse é o seu jogo. Que essa é a condenação que lhe chega. E que, por servir as audiências televisivas e a sede de vingança das pessoas, se instale a ideia de que um juiz é um chefe de cerimónias de linchamentos mediáticos.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Japão, da Guerra Fria aos dias de hoje



Por
20 Julho 2021

A situação do Japão é complexa, encontra-se em perda lenta, tal como o Ocidente. Terá de reconfigurar a sua estratégia no novo contexto mundial e asiático e, designadamente, repensar o chapéu da sua defesa.



O período da Guerra Fria, de um pouco mais de 40 anos, foi determinante na recuperação e crescimento acelerado da economia do Japão. Mas, para além da enorme criação de riqueza, foram germinando, em crescendo, sementes de mudanças societárias, nomeadamente em termos de uma maior afirmação da juventude e da mulher japonesas.

Essas sementes vão dar origem a uma dupla perturbação social posterior. A desmotivação/rejeição da juventude do modelo de sociedade dos seus pais, de entrega ao trabalho da Nação a qualquer preço (em tempo e salários) e, em contraste, mostra a vontade por um quadro de vida “mais ocidentalizado”. Por seu lado, a mulher japonesa assume um processo embora lento de emancipação, pondo em causa a tradicional subjugação à família e ao marido, em procura de um lugar digno e diferente do da sua mãe, na sociedade do país.

Dois processos que disparam quase em simultâneo no tempo pós-Guerra Fria, perturbando de forma drástica uma sociedade que seguia um modelo muito alinhado e certinho. Por outro lado, uma crise económica profunda manifesta-se neste período e esta com raízes em múltiplos factores e comportamentos gerados com o processo de crescimento.

Ao mesmo tempo que o Japão ia crescendo, não avançava sozinho. Outros países asiáticos vão marcando presença no xadrez da competição.

Temos, por um lado, a China e, por outro, países como a Coreia do Sul que se posiciona na disputa de áreas da especialização da indústria japonesa como o automóvel e na construção naval onde se destaca e torna mais competitiva. Também em certos segmentos da electrónica, equipamentos de consumo sobretudo, o Japão é ultrapassado. Sofre uma grande concorrência de alguns novos territórios em industrialização como Taiwan, Singapura, Hong-Kong e outros que vêm depois como a Malásia, Indonésia, Filipinas e mais recentemente até o Vietname.

À crise económica junta-se uma grave crise financeira na base da concessão do crédito “fácil” às empresas e aos particulares, o chamado malparado, porque, sem análise de sustentabilidade e garantias reais, os créditos eram facilitados pelo conhecimento e influência política e também pelo amiguismo e contra-favores, onde a corrupção entra em grande escala.

As consequências deste tipo de gestão são aquelas que todos conhecemos: o contribuinte japonês (português!) a pagar a “recuperação” dos bancos com aquela argumentação da sua importância no sistema financeiro como também se ouviu por cá com o BPN e o Banif. O BES é apesar de tudo um caso à parte, se bem que, em meu entender, muito mal resolvido para mal da economia portuguesa.

Mas o crédito malparado no Japão atingiu tal dimensão que apenas dois dos 19 bancos existentes reuniam condições mínimas para continuarem por si, ou seja, detinham condições de capitalização para cobrir o montante dos empréstimos concedidos. Uma situação mesmo catastrófica numa economia ainda pujante.

Esta crise financeira trouxe associada uma crise imobiliária e de bolsa. Primeiro, grande subida do preço do imobiliário e das acções e depois uma queda retumbante de desvalorização. O índice Nikkei entre finais de 1989 e meados de 1992 tombou tanto ou mais que os EUA aquando da grande depressão mundial de 1929-1932.

Mas as crises não se ficam por aqui.

Às crises económico-financeira e social sucede-se a crise política. O PLD (partido liberal democrata) que praticamente entra no poder com a saída do Japão da alçada dos EUA perde toda a credibilidade pois se assemelha a um agrupamento de clãs em disputa pelo poder político e afunda-se numa grande promiscuidade dos negócios, situação que que não nos é de todo desconhecida. Só que este descrédito arrasta consigo a concertação social, um factor de grande estabilidade social no Japão, embora um ou outro grande grupo económico (poucos) tenha tentado descolar deste lamaçal.

Uma sociedade com toda esta turbulência e os choques de mudança de mentalidade da juventude e do novo paradigma da mulher em formação fica bem frágil e um pouco caótica e desorientada. A isto acresce uma sociedade em processo de envelhecimento. O Japão sempre foi e continua avesso aos fenómenos migratórios, tornando-se hoje um dos países mais envelhecidos do mundo com taxas de fecundidade que não asseguram o processo de renovação populacional.

Todas estas numerosas crises de origem interna reduzem de forma drástica a competitividade das exportações japonesas nos mercados, contribuindo para o abrandamento ou estagnação do seu crescimento económico.

Mas a tudo isto há que juntar uma nova reconfiguração geoestratégica. O Japão sentiu que, de algum modo, os EUA o secundarizaram face à China pelo menos enquanto durou um relacionamento institucional e privilegiado entre os dois países na sequência do conflito sino-soviético. Esta situação abalou as elites japonesas que aspiravam ser reconhecidas como segunda potência mundial e primeira da Ásia.

Por outro lado, no Ocidente e em especial na sociedade americana, o crescimento exponencial do Japão criou desconfiança sobre as intenções do Japão. Tanto assim é que no Ocidente era tido durante a década de 1980 como um Estado bem mais perigoso que a China.

Esta mistura de crises e de desconfiança traduziu-se na economia japonesa por uma retracção do crescimento a partir de 1990, uma inflação zero quando não negativa, que se prolonga para a década de 2000 e continua. Assim, segundo dados do CEPII- PIB o crescimento anual médio 2009/2000 e 2019/2009 foi de respectivamente 0,3% e 1,3% (em paridades poder de compra).

Não se poderá dizer que o Japão perdeu todas as suas potencialidades de desenvolvimento, pois continua mais “avançado” que o Ocidente, ao lado de um grupo de países da Ásia, onde pontifica a China por exemplo, no uso da Internet. Acusa contudo dificuldades na aplicação de algumas das novas tecnologias por, segundo os analistas, o ensino superior se encontrar presentemente desajustado.

Que futuro?

O Japão ocupa actualmente (2019) a terceira posição em termos de PIB nominal atrás da China e EUA.

No ano de 2033, numa projecção do FMI para este mesmo indicador, o Japão será quarto com a Alemanha em quinto, sendo a ordem nessa data China, EUA, Índia, Japão, Alemanha, mas com o PIB nominal a situar-se nos 24,2% dos EUA (23% do da China), quando na década de 80, em média, correspondia a 43% do dos EUA.

A situação do Japão é complexa, encontra-se em perda lenta (tal como o Ocidente). Terá de reconfigurar a sua estratégia no novo contexto mundial e asiático e, designadamente, repensar o chapéu da sua defesa. Aliás, como a Europa face aos EUA, num caminho mais de orientação para a paz mundial.

O Japão tem história que bem pode permitir pensar esse caminho de um não alinhamento cego em blocos, mas em parcerias úteis e negociadas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Operação Joe com 1º sucesso retumbante


Por Valupi, 
in Blog Aspirina B, 
14/07/2021


Armando Vara voltou a ser condenado a prisão efectiva por um crime inexistente. E em cima desse vazio os juízes colocaram um pelourinho moralista para justificar o injustificável. Isto acontece com a cumplicidade de toda a gente – nuns casos, rejubilando calada; noutros, quase nenhuns, apercebendo-se do monstro, o monstro da utilização da Justiça para as vinganças políticas, para as chantagens, para as perseguições, para espalhar o medo de ser apanhado por quem é capaz disto: “Juízes quiseram fazer do caso de Armando Vara um exemplo para a sociedade



O exemplo para a sociedade, então, foi escolhido porque 25 mil euros + 535 mil euros. No primeiro caso, tráfico de influência sem provas, sem dinheiro encontrado nem dano, apenas na forma tentada. No segundo caso, branqueamento de capitais sem crime de corrupção conhecido, o que implica não haver branqueamento. Compare-se o valor material que está aqui em causa, e a tipologia das decisões judiciais e inauditas penas, com uma qualquer grande história do tráfico de influência e do crime económico em Portugal dos últimos 20 anos, do BPN ao BES, passando pelos submarinos e pelo testemunho de Helena Roseta sobre Miguel Relvas. Vara é exemplo do quê? A ser de alguma coisa, é de inépcia e modéstia criminal. Não parece ter aprendido a encher-se à moda de Puerto Rico nem a obter o favor de ter magistrados preocupados com o Direito a julgarem os seus processos.

A Operação Joe foi lançada há duas semanas precisamente para garantir este desfecho, tendo contado com a algazarra do editorialismo e do comentariado que juntaram lenha para o auto-de-fé. Não é só o gozo do linchamento de Vara que está em causa, o tabuleiro estratégico é muito maior e remete sempre para o troféu supremo: Sócrates. Importa conseguir condenações como esta em tudo o que tenha relação com a Operação Marquês no pressuposto de que a coragem de Ivo Rosa é a excepção e não a regra. Começando com esta sentença, e independentemente do que venha a acontecer nos recursos em avaliação na Relação de Lisboa, a bitola fica estabelecida e começa a produzir efeitos nos restantes juízes. Há aqui um fenómeno de ancoragem penal, e também de intertextualidade penal, onde a candeia que vai à frente alumia duas vezes o argumentário usado para a continuação dos arbítrios e da violência.


Quando a Justiça se concebe como instituição da moral em vez do Direito (questão diferente de se reconhecer uma moral ao Direito), entramos num estado de excepção. Só nesse estado se aceita que os juízes façam de algum cidadão um exemplo pois a Constituição deixou de estar em vigor – ou seja, esse cidadão deixou de ter todos os direitos constitucionais, passa a ser possível dispor do seu nome, da sua liberdade, até da sua vida, para dar exemplos. Os exemplos que apeteçam aos que concretamente exercem um poder despótico, absoluto. Foi contra isto, precisamente, que se fizeram as revoluções liberais – nascidas do sonho, e do sangue, dos melhores de nós.

terça-feira, 13 de julho de 2021

O trio





Lamento dizer, a quem me lê que, quando o trio da imagem se junta temo pela sobrevivência de Portugal enquanto Estado de Direito e pela isenção da Justiça. Para que não restem dúvidas quero referir-me ao Inspetor da Autoridade Tributária Paulo Silva, ao Procurador do Ministério Público, Rosário Teixeira e ao Juiz Carlos Alexandre.


Para esta gente o Tribunal mudou-se para os écrans das televisões e cada português é desafiado a vestir toga e a julgar os factos que eles estão a libertar em catadupa para a comunicação social. Quero lá saber, ao cêntimo, quantos euros tinha o Vieira e o homem dos frangos no cofre, se eram meticais, barras de ouro ou moeda chinesa. Até porque, será crime ter dinheiro em casa?

É uma vergonha este tipo de exploração. É o descrédito total de uma Justiça que só o é quando cumpre os seus formalismos, respeita os direitos de defesa dos arguidos, e acusa com provas sólidas e não com o slogan mais que estafado que as televisões não se cansam de debitar: “O Ministério Público acredita que…. bla, bla, bla”.

O MP pode “acreditar” no que quiser. Também há quem acredite em bruxas, em marcianos ou na reincarnação”. Mas essas crenças não chegam para acusar, e muito menos para condenar ninguém em Tribunal, como se viu recentemente com o ex-Ministro Azeredo Lopes. Também era - segundo a comunicação social a quem o Ministério Público e o juiz Alexandre sopraram as suas “crenças” -, um facínora da pior espécie, difamaram o homem, forçaram a sua demissão e, no fim da linha, sem qualquer prova que se visse, tiveram que pedir a sua absolvição.

Não me cumpre a mim, cidadão como tantos outros, julgar Vieira, Berardo, ou Sócrates. Pagamos impostos para que o Estado mantenha o sistema de saúde a funcionar, o sistema de ensino a funcionar, a ordem e a segurança pública e um sistema de Justiça eficaz, democrático e eficiente. Infelizmente, com agentes e práticas deste jaez, os senhores magistrados – que são pagos e bem pagos para fazer Justiça -, querem que os cidadãos façam o trabalho que lhes competiria fazer, deixando de ser agentes de Justiça para se transformarem em agentes políticos não eleitos, pois todo este mediatismo, que eles impulsionam à descarada, tem óbvios e imediatos reflexos na vida política.


Tal a gravidade do que se está a passar, que hoje assisti a um facto inédito e nunca visto: o advogado de Vieira, Magalhães e Silva pediu permissão à Ordem dos Advogados para o autorizar a defender e desmontar as “crenças” do Ministério Público, no mesmo palco que a Justiça escolheu para fazer o julgamento do seu cliente, isto é, na televisão. Tal permissão foi-lhe concedida – caso inédito -, e a argumentação do reputado causídico, arrasou completamente a narrativa dos acusadores.

Os factos que estão a ser passados para a comunicação social estão a ser enviesados, de acordo com uma lupa narrativa que pretende sustentar as “crenças” do Ministério Público, mas não constituem, por si só, qualquer prova substantiva de atividades criminosas. Como sucedeu na Operação Marquês com Sócrates, à data em que foi preso, o MP não tinha qualquer indício sobre os elementos de pronúncia que produziu na acusação final, como Vale de Lobo ou a OPA da PT.

Ou seja, Rosário e Alexandre, prendem para investigar, fazem a seguir “pesca de arrasto”, basculham documentos, computadores, cofres e seja lá o que for, e depois, em função do que encontram ou não encontram, constroem a narrativa que mais possa incriminar os arguidos. Lamento dizê-lo, mas estas práticas não são de um Estado de Direito. Parece que regressámos aos tempos do Estado Novo, com a diferença de não haver PIDE e não haver censura que me impeça de escrever este texto.

Ainda assim, resta-me a esperança de que a indignação coletiva – minha e de outros cidadãos como eu -, se faça ouvir junto dos responsáveis políticos e que se crie um amplo consenso que ponha fim aos abusos deste trio e a outros semelhantes. Não para calar a Justiça, mas para a fortalecer e moderar as más práticas de uma minoria que dela se aproveita para prosseguir agendas que, de democrático nada tem, porque não sujeitas a qualquer escrutínio público.

E aqui fica a intervenção do Dr. Magalhães e Silva na TVI, desmontando as “crenças” do Ministério Público.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

O Japão e a guerra fria

 

Por
06 Julho 2021


Além do modelo de desenvolvimento económico mais “igualitário”, em termos salariais, que os dos países desenvolvidos ocidentais, as especificidades da estratégia e da gestão do Japão também constituíram um trunfo para o seu sucesso. Este artigo de opinião começa por balizar de forma breve, em conteúdo e tempo, o que comummente se entende por guerra fria.



Para muitos, o entendimento entre a Rússia e os Aliados para enfrentar os países agressivos do Eixo assumia um carácter temporário. A ruptura dá-se após a “partilha” negociada do Mundo em dois blocos de influência, no espírito das conferências de Yalta e Potsdam.

Assim, o período da guerra fria estende-se desde os finais da segunda guerra mundial, ou mais especificamente de 1947 à queda da URSS em 1991. Porquê 1947? É o ano que baliza a doutrina Truman expressa no seu discurso perante o Congresso, em que proclama, com o maior despudor, “o direito de ingerência” dos EUA noutros países na base de diferenças ideológicas.

A guerra fria caracteriza-se, então, por aproximadamente quatro décadas de tensões, guerras locais, ameaças de conflitos, e grande luta política entre as duas “Superpotências” mundiais de então, a URSS e os EUA, assumindo as mais diversas formas nas frentes militar, económica, diplomática e de influência em geral, mediante a criação de instrumentos e estruturas de acção poderosas, como a Nato ou o Pacto de Varsóvia.

Como nota há quem refira, com alguma propriedade que, tendo a guerra fria na base incompatibilidades ideológicas insanáveis, é a revolução russa de 1917 que lhe marca o destino.

1. O Japão na segunda guerra mundial integra o campo dos derrotados e após a sua rendição oficial em 2 de Setembro de 1945, um pouco mais tarde que a Alemanha, passa a ser governado pelos EUA com penalizações muito severas no campo militar como a desmilitarização e o desarmamento e no campo económico com a dissolução dos grandes grupos e a extinção das indústrias bélicas, entre outras.


Este panorama de ocupação do Japão começa a deslizar com as mudanças profundas no xadrez político mundial. A subida ao poder de Mao Tsé Tung na China (1949) foi a primeira pedra a balouçar a ocupação do Japão e em seguida o desencadear da guerra na Coreia (1950-1953).

Esta, sobretudo, como dizem alguns analistas, foi um “manjar dos deuses” para o Japão, pois vai permitir-lhe uma rápida integração no bloco dos países apoiantes dos EUA. É de algum modo a sua “ocidentalização”.

Os EUA para apoiar os combates na Península da Coreia necessitavam de apoio local sobretudo no fabrico de equipamento militar e começam a apetrechar o Japão nesse sentido. Logo em 1951 começam a aliviar a carga das medidas repressivas, permitem ao Japão a formação de forças armadas sob uma outra designação “forças de auto defesa”, facilitam o regresso das indústrias bélicas e o acesso às tecnologias modernas de fabrico de material de guerra e abrem o mercado americano às produções japonesas.

Os EUA fazem do Japão, para além de ponto de apoio à guerra da Coreia, um país tampão face às “veleidades” de expansão da China e da URSS, apoiantes da Coreia do Norte na guerra que, por mais de uma vez, chegou a ocupar quase toda a península coreana.

2. O Japão com estas facilidades retoma a dinâmica do processo de industrialização interrompido na segunda guerra mundial e, em pouco tempo, devido a condições peculiares como qualidade educativa, grande disciplina no trabalho, abertura a carga horária extensa, atinge taxas de crescimento bem na dianteira dos países desenvolvidos.

Na realidade, os números assim o dizem. No período 1950-1969, o PIB do Japão cresce, em média, 9,7%, o dos EUA 3,9%, o de França 5,3% e o da Alemanha 6,8%. No período 1969-1987, embora a ritmo mais baixo, as diferenças mantêm-se: Japão 4,6%, EUA 2,7%, França 2,9% e Alemanha 2,1%. O rendimento por habitante em 1987, em termos de poder de compra, situava-se muito próximo do da Alemanha, acima do da França, apenas com algum distanciamento dos EUA, quando, no início do primeiro processo de industrialização, em 1870, a relação era de 507 dólares no Japão para, por exemplo, 1762 em França (A informação quantitativa tem como fonte vários trabalhos do CEPII, France).

3. Um outro aspecto a ser relevado nesta área de desenvolvimento acelerado do Japão e, não nos podemos esquecer que este período de quatro décadas foi atravessado por várias crises, designadamente de energia, é a sua eficiente e intensiva especialização industrial (desenvolvida em vários trabalhos em diversos países) em sectores de ponta nas indústrias do automóvel, da indústria electrónica em praticamente todos os segmentos (electrónica de consumo, industrial e de precisão) e, em vários segmentos do material eléctrico em que destronou nos mercados mundiais os países mais avançados do Ocidente.

Mas não pára aqui. Na área financeira, em 1990, oito dos dez maiores bancos de depósitos do Mundo eram japoneses.

Por outro lado, o Japão apostou num modo de desenvolvimento económico mais “igualitário”, em termos de leques salariais, que os dos países desenvolvidos ocidentais (Europa, EUA e Canadá) e mesmo os asiáticos como os Novos Países Industrializados da Ásia que, entretanto, assistiam à sua economia a descolar, um pouco na esteira do Japão. Esse modelo permitiu um crescimento e uma distribuição social do produto redutor do nível de desigualdades salariais existente na primeira fase de modernização do país de antes da segunda guerra. A relação capital/trabalho é outra matéria, que se prende com a acumulação de capital ao nível do país.


Mas o modelo económico assentava ainda em aspectos específicos em termos de estratégia e de gestão (um dos trunfos do sucesso). Uma aposta firme na substituição de importações por produção nacional (com o mercado japonês muito fechado às importações com grandes protestos dos países ocidentais), em tecnologias avançadas, na sociedade de informação, conceito introduzido na economia mundial pelo Japão, numa elevada taxa de poupança do país e das famílias em particular, que lhe permitiu atravessar as crises deste período e sobretudo as petrolíferas, sem grande necessidade de recurso a financiamentos do exterior e numa concorrência brutal pelo investimento estrangeiro nos mercados internacionais.

Em termos de gestão macroeconómica, o MITI (Ministério da Indústria e Comércio Internacional) desempenhou um papel crucial ao assegurar uma coordenação dos grandes grupos económicos (entretanto repostos) e uma política coligando um dirigismo de Estado com um certo liberalismo económico. O papel do Estado Japonês foi determinante.

Tudo isto ligado a uma grande estabilidade política, praticamente o Japão foi governado pelo mesmo partido durante a guerra fria, criou as condições para este forte crescimento económico de 40 anos, permitindo assim a grande aproximação aos países mais desenvolvidos tornando-se o Japão a segunda maior potência económica com 16% do PIB mundial em 1990.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 6 de julho de 2021

O combate à corrupção e a República de magistrados


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
01/07/2021

Se não forem criados o sindicato de membros do Governo e o de deputados da AR, para responderem aos sindicatos de magistrados judiciais, ou não se extinguirem os últimos, é de temer que a democracia seja confiscada pelo poder judicial.



Se um governante ou um qualquer deputado pusesse em causa a jurisprudência, exigia o dever de cidadania a execração do energúmeno, o que ainda não aconteceu.

Sendo a sugestão de leis e a condenação das que existem arma de arremesso partidário, urge estar atento ao único poder não escrutinado.

Quando nos habituamos às movimentações do sindicato do Ministério Público para ser o sindicato a escolher o/a PGR, e se atreve a apreciar e censurar o superior hierárquico de todos os seus sócios, é de temer que a investigação possa escolher alvos e tornar-se seletiva, mas são ainda piores as posições do sindicato dos juízes, através do presidente da ASJP, quinzenalmente, às quartas-feiras, no jornal Público.

O Sr. Manuel Soares, presidente da ASJP, escreveu no jornal onde é colunista, em 30 de junho de 2021, um artigo de opinião assustador.

Sob o sugestivo título, “Dizer uma coisa e fazer outra”, o presidente da ASJP, temendo a imbecilidade do povo, começa por dizer: “Com tanto falatório sobre a criminalização da ocultação de riqueza adquirida em funções públicas, múltiplas declarações do PR, do PM, da ministra da Justiça e dos partidos políticos, (…) é grande o risco de (…) engolir o primeiro rebuçado que apareça bem embrulhado”.



A seguir convida os leitores a irem ao essencial, com dois exemplos, segundo a opinião douta do esclarecido sindicalista, para criminalizar o titular de cargo público: ‘a quem é prometida a entrega de um milhão de euros para receber três anos depois de terminar funções e o que recebe um milhão de euros e os esconde na conta de um amigo ou numa sociedade offshore’.

Até pode ter razão, mas essa é competência dos legisladores, não dos julgadores, e só os primeiros são escrutináveis. A sua opinião sobre os partidos bons e maus em relação ao acolhimento do que ele julga dever ser votado é que assusta, considerando bons o PCP, BE, PAN, PEV, IL e CDS-PP e maus o PS e o PSD, o que é inaceitável, como o seria se invertesse a qualificação dos partidos.

O douto sindicalista considera ‘risíveis as desculpas’ do PSD e PS, onde a atitude tardia e acanhada do PS e as palavras dúbias e incomodadas do PSD para não aprovarem a lei que ele considera justa, o incomodam.

Referindo-se às posições dos dois partidos, entende que “com argumentos desta espécie, é difícil manter a discussão num nível sério” e, em desvario, agride Rui Rio, troçando da sua palavra ‘corruptozito’ para referir a ‘corrupçãozinha’, e alega que, no combate à corrupção, “a atitude tardia e acanhada do PS e as palavras dúbias e incomodadas do PSD já faziam adivinhar que não vinha aí grande coisa”, e termina num ataque insólito, aos eleitores: “O povo refila muito, mas na hora do voto parece que gosta de ser enganado.” [sic]

Tudo o que denigra os partidos passou a ser legítimo e pode um juiz entrar no combate partidário? Ou estaremos perante o futuro líder da criação de um movimento zero de juízes ou de juízes pela verdade?

É assustador ver um juiz a ignorar a separação de poderes e, ungido por uma qualquer divindade, em campanha contra a democracia!

domingo, 4 de julho de 2021

Notas sobre a ofensiva da direita radical (1)


Por 
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
03/07/2021


1. Só não vê quem não quer ver: há uma ofensiva da direita radical no espaço público, que associa os temas “lubrificantes” da vitimização, da pseudociência académica para efeitos de autoridade, do sectarismo político, a uma enorme agressividade verbal e ataques pessoais. A utilização extensiva de fake news faz parte do padrão dos ataques ad hominem. O objectivo é criar uma ecologia favorável ao que chamam “resistência ao socialismo” — porque para eles é tudo “socialismo” — para varrer o centro político e a moderação, e instituir uma arregimentação tribal, ajudando a corroer a democracia parlamentar. Quem se preocupa com a democracia passou agora à categoria de “situacionista”, e eu preocupo-me porque sei de onde isto vem e aonde isto vai dar.



2. Como lhes correu mal a tentativa de reabilitar a ditadura através de uma “neutra” manipulação “académica”, e como a sensação evidente de perda lhes é insuportável, voltam-se para outros lados, mas com o mesmo objectivo. A natureza de uma ofensiva é sempre empurrar para a frente.

3. Esta ofensiva é conduzida em todos os azimutes, do populismo da rua à ultradireita académica, nas redes sociais e em artigos de opinião, e, embora nos distraíamos com o Chega, vai muito mais longe do que o partido de Ventura. Os seus efeitos perigosos começam a verificar-se quando aparecem apelos ao saneamento dos professores “esquerdistas” e à limpeza ideológica dos órgãos de comunicação. 4. O seu objectivo estratégico a curto prazo ​é capturar o PSD, e não é líquido que não o consigam. O Chega serve para umas coisas, mas não chega para ganhar eleições nem para estar na base de uma frente de direita que possa ter sucesso eleitoral e formar governo. Sem o PSD não saem das franjas, com o PSD têm uma chance de impor o seu programa. O PS ajuda. Sempre que o PS abandona o terreno do centro-esquerda, está a dar força a esta tribalização, a ajudar à crise do centro e a preparar o terreno para o outro objectivo estratégico desta direita radical que é a constituição de uma frente de direita, na base das suas posições, liderada pelo PSD.

4. O seu objectivo estratégico a curto prazo ​é capturar o PSD, e não é líquido que não o consigam. O Chega serve para umas coisas, mas não chega para ganhar eleições nem para estar na base de uma frente de direita que possa ter sucesso eleitoral e formar governo. Sem o PSD não saem das franjas, com o PSD têm uma chance de impor o seu programa. O PS ajuda. Sempre que o PS abandona o terreno do centro-esquerda, está a dar força a esta tribalização, a ajudar à crise do centro e a preparar o terreno para o outro objectivo estratégico desta direita radical que é a constituição de uma frente de direita, na base das suas posições, liderada pelo PSD.

5. O que é que estes homens defendem? O Argumentum ad Hitlerum não é nem rigoroso nem eficaz, porque oculta os aspectos novos da actual direita radical, embora haja fenómenos e processos idênticos, principalmente na erosão da democracia. Mas esta nova direita radical ganha mais em ser comparada com a actual alt-right e o “trumpismo”.


6. Os seus temas são os de Trump e do Partido Republicano americano, a que se acrescenta a tradição da direita radical europeia e portuguesa. Esses temas são a “cancel culture”, o ataque ao Estado social, a limitação drástica da acção do Estado na economia em nome da “liberdade económica”, uma cultura hostil aos direitos laborais e sociais, a limitação da liberdade sindical, a contestação à igualdade e aos direitos das mulheres, a revisão da história colonial e da ditadura, o ataque à Constituição, ao 25 de Abril, assente na defesa de um regime autoritário e oligárquico. Na Europa, é para a Hungria e a Polónia que devemos olhar. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades e usa o Estado para dominar tudo. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada.

7. Um dos problemas em defrontar esta ofensiva vem de que a sua crítica mais eficaz não parte das ideias “fracturantes” dos últimos anos, nem da política identitária centrada no abandono das questões sociais a favor de lutas de género, de raça, de orientação sexual, que, pelos seus exageros, tem sido um maná para esta direita radical. Há hoje mais mobilização para uma Marcha LGBT do que para uma manifestação contra os despedimentos. Este abandono das questões sociais, da preocupação com a pobreza e a desigualdade, com o mundo do trabalho, fragilizou todo o centro e a esquerda.

8. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o Governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades, usa o Estado para dominar tudo, em particular o aparelho judicial, persegue os seus adversários e é corrupto até à medula. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada. Esta análise do país pareceria absurda pelo seu exagero se as pessoas parassem para pensar para além do ruído tribal.

9. É certo que muitas perversões existem na situação actual e o clientelismo socialista e a corrupção são pechas de hoje, como no passado foram de outros governos. É igualmente verdade que a natureza das clientelas dos grandes partidos gera fenómenos idênticos, agravados no PS pelo seu jacobinismo. Mas o exagero muda o carácter destas acusações e torna-as uma coisa diferente, torna-as um ataque contra a democracia. Não há ditadura nenhuma hoje em Portugal, há abusos do poder, e dar este salto torna ineficaz o combate político ao PS, e essa ineficácia torna-se uma impotência que tende a justificar-se como resultado de uma perseguição e da falta de liberdade. É um círculo vicioso.

10. Estas notas vão continuar para a semana com a análise de intervenções recentes de dois dos mentores desta nova direita radical, Diogo Pacheco de Amorim na chamada “Academia Política do Chega”, e Carlos Blanco de Morais no PÚBLICO. Vejo com uma certa ironia a interpretação psicanalítica contra mim de que uma vez maoista sempre maoista, coisa, aliás, que nunca escondi, como muitos fazem. O mesmo, aliás, nunca se aplica aos “fascistas”, lembrando que os antepassados desta direita não são os reformistas do tempo de Marcelo Caetano, da SEDES, da Ala Liberal. São os sectores “ultras” contra Marcello Caetano, para quem este era demasiado mole face à oposição, e eles seriam duros, o que, como o instrumento da dureza era a PIDE, sabemos muito bem o que significava. Aliás, exigiram na Assembleia Nacional a pena de morte contra os “terroristas” internos e seus “cúmplices”, e consideravam “traidores” Sá Carneiro, Balsemão, Miller Guerra, Magalhães Mota, etc.

11. Esta ala mais à direita não se limitava a publicar uns panfletos, ou a fazer umas provocações quando estavam em grupo e com protecção policial, treinavam com a Legião Portuguesa, por exemplo em Coimbra. E, nos círculos do Futuro Presente, mesmo depois do 25 de Abril, não escondiam a sua admiração por Pinochet, e andavam a fazer caminhadas pela serra da Estrela para endurecer o corpo “vanguardista”, e alguns dos seus próceres aparecem em fotografias de braço ao alto. Só há uma coisa em que eles não têm biografia, é na defesa da democracia.

12. Pronto. Agora podem começar a insultar. (Continua)