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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Escolha de sectores e tecnologias a apoiar


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

Será que estabelecer uma boa política de desenvolvimento económico fere o papel do sector privado? Ou, como avançam outros, é lançar “um anátema” sobre as empresas?



O caso do PRR português

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um programa financiado pela União Europeia, com a finalidade de apoiar a recuperação económica e social dos países-membros, em virtude das “dificuldades causadas pela Covid 19”, cujo período de execução vai até finais de 2026.

Cada país elaborou e negociou o seu programa com os serviços da União Europeia, na base das linhas gerais definidas no instrumento de política comunitária Next Generation EU.

1. Diria que o PRR e todos os outros Fundos merecem uma reflexão, não como um mero exercício intelectual, mas fundamentalmente pela ideia corrente na sociedade portuguesa, de que os fundos comunitários não têm respondido, até agora, ao lançamento de bases sólidas de transformação da economia, de que o País bem precisa, para criar riqueza a um nível bem diferente do que tem vindo a suceder.

Como em tudo na vida, não basta despejar dinheiro para resolver os problemas. Sem desígnios firmes e organização, não há mudanças concretas.

Em Fevereiro de 2023, reagindo a uma entrevista do ministro da economia, António Costa Silva, tido como o inspirador do PRR, escrevi aqui um artigo “como qualificar a matriz da economia portuguesa”.

Nesse escrito dizia: “Continuo a defender uma estratégia com uma linha condutora, que aponte desígnios claros e uma mecânica de relacionamento eficaz entre os diversos actores intervenientes no processo”, acrescentando, ainda, que essa estratégia requeria focos de incidência precisos e em número reduzido.

Uma característica em que o PRR, com as suas 53 agendas mobilizadoras, falhou rotundamente. Em demasia as áreas de aplicação escolhidas pelo governo português, pelo que muitas ficaram com orçamentos diminutos. Veja-se a vizinha Espanha. Contemplou no seu PRR, apenas 11 agendas mobilizadoras. Que diferença!

Um número reduzido de áreas de investimento e tecnologias


2. Pedro Nuno Santos no Congresso, no programa eleitoral e nos debates, quando o deixaram, enunciou as linhas fundamentais com que encara o futuro do País.

Na Economia, relevou duas linhas de força.

Linha número 1. A transformação do País tem de se apoiar na mudança da especialização da economia: “primeira e principal missão” afirmou. “Só com uma economia mais sofisticada, mais diversificada e complexa podemos produzir com maior valor acrescentado, pagar melhores salários e gerar receitas para gerar um Estado Social Avançado”.

Linha número 2. A transformação da estrutura da economia tem de assentar num número reduzido de sectores e tecnologias a apoiar.

Complementa estas linhas de força referindo que é preciso mudar muito, no conteúdo e na forma. Uma demarcação do que se tem feito em Portugal, consignando ao Estado um papel importante de liderança no desenvolvimento económico e não apenas o de tapar remendos, aparecendo aqui e ali, a resolver problemas sem uma lógica dinâmica de enquadramento.

As reacções não se fizeram esperar

3. Políticos e altos quadros da direita portuguesa têm produzido ataques políticos desajustados e numa linguagem pouco própria. Em alguns programas televisivos de opinião, conhecidos comentaristas tiveram o despudor de comparar esta posição “à planificação de estilo soviético”.

Será que ao Estado português está vedado estabelecer uma estratégia com objectivos “arrojados” de transformação da economia e, como os recursos são sempre escassos, de os poder canalizar para aquelas áreas que, a prazo, permitem transformar a matriz económica existente? Será que estabelecer uma boa política de desenvolvimento económico fere o papel do sector privado? Ou, como avançam outros, é lançar “um anátema” sobre as empresas?

Quem reage, assim, sem olhar para experiências bem-sucedidas (até em Portugal) está a mostrar desconhecimento, ou má intenção ou então vergonha por não assumir claramente a redução do papel do Estado ao simbólico.

Desconhecimento. Não sabem da existência de uma série de países que nada têm de socialismo, como a Coreia do Sul ou os chamados “Tigres asiáticos”, que se pautaram por este modelo, em diferentes períodos da sua história, tendo atingido grande desenvolvimento socioeconómico e dotado os seus cidadãos de maior riqueza.

Mas indo além. Desconhecem até as grandes orientações da UE quanto aos programas comunitários e outros específicos, onde se identificam áreas e tecnologias prioritárias. Demonstram que conhecem mal os documentos orientadores da União Europeia, onde alguns até ocuparam cargos importantes.

Ou são mal-intencionados porque, deste modo, pretendem criar desinformação, sobretudo em tempo eleitoral, tentando impingir que este processo de construção de um novo modelo para a economia equivale a limitar o acesso aos fundos por parte das empresas privadas.

Uma boa política precisa de ser bem desenhada. Tudo depende da forma como se elabora o modelo e dos métodos da sua implementação no terreno.

Os fracos efeitos da aplicação dos Fundos na transformação da economia em todos os seus parâmetros, baixas produtividades, deficiências na comercialização, pouca integração economia/ciência/investigação… são devidos à não existência de uma boa política que fomente uma relação dinâmica entre os investimentos, contra investimentos desgarrados sem algo a ligá-los.

Como montar a estratégia e a escolha

4. A elaboração de uma política de desenvolvimento terá de assentar em conhecimento, experiência, competências e objectivos claros. Não é tarefa fácil com relevo para a sua posterior implementação, muito exigente na articulação entre actores.

Por outro lado, exige uma nova filosofia de funcionamento do aparelho do Estado onde a competência prevaleça. Certamente, menos ministros e secretários de Estado e mais equipas de missão, determinadas e dinâmicas. Menos burocracia, maior poder de decisão, o que leva a novas formas de pensar a Administração Pública, o que, por sua vez, vai arrastar o próprio sector privado para formas mais audazes de planeamento e gestão.

Não é um processo que se monte com facilidade e certamente os erros serão inevitáveis.

Um processo destes, complexo, é interessante até porque associa uma estratégia com uma reforma da administração pública concebida de forma diferente. Um dos principais “bloqueios” teóricos, diz-se, é o Ministério das Finanças. Quanto a mim, tem de existir e com peso político, mas a funcionar em novos moldes (um papel regulador e facilitador).

Será que Pedro Nuno Santos reúne essa capacidade?

Avançou ideias inovadoras, embora me choque a sua visão teórica restrita na abordagem da energia.

A energia é, sem dúvida, uma das áreas determinantes, fundamentais, da mudança da matriz económica. Nenhuma referência à energia nuclear, contrariando até a recente decisão (6 de Fevereiro) da União Europeia que cria a Aliança Industrial Europeia de pequenos reactores nucleares (SMR), com efeitos previsíveis em aumentos de competitividade, cadeia de abastecimentos e mão-de-obra qualificada, é uma lacuna de peso.

Os grandes partidos portugueses esqueceram-se de matéria tão importante nos seus programas. Ainda não descolaram da fase anterior da UE, comandada pela Alemanha, que continua, embora em perda, a repudiar o papel da energia nuclear como um dos elementos-chave de uma política energética soberana, de que a União Europeia tanto necessita. Num programa que se quer de mudança de especialização económica urge corrigir esta lacuna, sob pena de se perder o passo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Absolvição


A frase que fica: "Existem tragédias e fatalidades. Ocorreu uma queda de uma árvore como ocorreu o 20 de Fevereiro". Palavras da advogada de defesa, Drª Kátia Vieira, a propósito do acórdão que absolveu a Drª Idalina Perestrelo e o Engº Francisco Andrade no caso da queda da árvore (carvalho) que, no decorrer da festa do Monte, ceifou a vida a treze pessoas naquele maldito 15 de Agosto de 2017.



Fico feliz pela decisão do Tribunal. Apenas lamento que tivessem sido necessários sete anos de sofrimento por parte dos responsáveis autárquicos para, finalmente, o Tribunal chegar a este Acórdão. Isto não coloca em causa um outro e óbvio sofrimento para as famílias das treze vítimas. Foi e continua a ser muito doloroso para todos. Da mesma forma que a comunidade madeirense continua curvada pela morte de dezenas de conterrâneos naquele outro fatídico 20 de Fevereiro. 

De facto, o acontecimento do Monte faz parte das tragédias, umas que podem ser evitadas ou atenuadas; outras, que acontecem sem uma responsabilidade directa do ser humano. Ali, pelo que acompanhei ao longo destes sete anos, não existiu incúria (vide as razões da absolvição, no Dnotícias de hoje, página 13). Da mesma forma que, em 2021, quase no mesmo local, outra árvore caiu desta feita sem consequências graves. 

Neste processo, lamento o extenso rol de leituras e comentários abusivos, alguns pretensamente técnicos, no sentido da condenação dos arguidos. O Tribunal não os considerou e ainda bem.

Um abraço à Drª Idalina Perestrelo e ao Engº Francisco Andrade, figuras com um passado de luta em defesa do ambiente e que não mereciam passar por estes sete anos de "massacre" psicológico.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Estar para o poder como a lapa para rocha

 

Tudo isto está muito confuso. O que leio e ouço dá-me a entender que há políticos que transmitem a ideia que nem a si próprios se respeitam. Um dos casos é o do presidente do governo regional da Madeira, em gestão, que apresentou a sua demissão, por duas vezes, e que hoje volta a posicionar-se como candidato a presidente do governo, seja qual for a decisão do Senhor Presidente da República, em tempo constitucionalmente próprio.



Não ligo sequer ao facto de ser arguido. Essa é apenas uma etapa processual que permite a sua defesa. Não foi julgado nem condenado e, por isso, é legítima a sua candidatura à liderança do seu partido e, por essa via, continuar a governar mesmo sem eleições. Trata-se de um problema de decisão interna. 

De qualquer forma, não estando em causa a legitimidade, tal facto não deixa de enquadrar uma extensa interrogação de base ética. O que estará por detrás daquele comportamento? 

Dirá o visado que leva trinta anos de exercício da política, durante os quais não corrompeu nem foi corrompido. Até conclusão do processo e trânsito em julgado, admito a sua total inocência. O "julgamento" popular pode ser um, a voz do Tribunal pode ser outra. Até aí tudo certo. O verdadeiro julgamento virá depois. O que já não me parece menos claro é, no plano político, a manifestação de uma postura que deixa passar uma tendencial ideia de estar agarrado ao poder. Há políticos que estão para o poder como a lapa para a rocha. Porquê, questiono! Quando o exercício da política constitui um serviço público à comunidade? 

E isto faz-me trazer à colação o que, durante anos, escutei: a tal lengalenga que os quadros políticos e técnicos estavam apenas de um lado, capturados ou não pelas circunstâncias advindas de um poder "duracel". Afinal, o que se deduz é o vazio, uma espécie de orfandade, pela ausência de figuras que assumam uma alternativa interna. É, no mínimo, esquisito. Se a esta primeira conclusão chego é, desde logo, pelas posições públicas de gradas figuras partidárias que têm vindo a publicar o que pensam. Registei: "Fingir que nada mudou e criar bolhas de ilusão só farão com que o embate com a realidade seja mais doloroso (...)" - Augusta Aguiar, ex-secretária regional dos Assuntos Sociais, edição de hoje do Dnotícias, pág. 26.

Está tudo em polvorosa e, como se isto não bastasse, vá lá também saber-se o porquê, o presidente do segundo partido da coligação já declarou que está de saída. Outro que pegue no frágil leme.

Aliás, a percepção que tenho deste quadro corresponde a uma inevitabilidade de um qualquer poder que se arraste anos a fio pelos corredores. Neste caso são 48 anos consecutivos. Inevitável, porque as pessoas acomodam-se, disfrutam dos lugares atribuídos como se se tratasse de um emprego para a vida, directa ou indirectamente fazem parte do jogo, criam cumplicidades, respeitam a "voz do dono", fazem por ignorar as leviandades políticas, vivem ou sobrevivem nas águas pantanosas, apenas mantendo a lealdade expressa na bandeirinha eleitoral, mas sempre atentas às peças que deambulam no tabuleiro. Parece-me óbvio, com receio do futuro próximo. 

A vida e vivência democráticas não são isto. Liberdade? Qual liberdade!


Vou mais longe: a Câmara Municipal do Funchal carece, também, de legitimidade política. No plano exclusivamente formal, diz a Lei que assume a presidência o número dois da lista então candidata. Por aí, nada a dizer do ponto de vista da legalidade e da legitimidade formal. Mas, uma vez mais, a questão parece-me ser outra. É de natureza política.

A lista candidata foi liderada por uma figura que, entretanto, renunciou ao mandato. Foi ele e não qualquer outro que "arrastou" o eleitorado para a vitória. Qualquer um dos outros, de per si, se se tivesse candidatado à presidência, muitas dificuldades teria para vencer o acto eleitoral. Porque, não está em causa a credibilidade técnica, mas sim o facto de, politicamente, serem ilustres desconhecidos.  Daí que a passagem de testemunho careça de legitimidade política.

Pergunto-me, se estivesse em tal situação, de lugar secundário, convidado pelo líder da lista, o que faria? Não tenho a mínima dúvida que, no plano político, seria solidário com o convite que me tinha sido dirigido e, sugeriria uma renúncia em bloco. Não bastam as palavras de solidariedade, pois mais que as palavras valem as acções.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O mundo agrícola europeu em convulsão


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.



A França tem sido o epicentro da revolta dos agricultores na União Europeia. Mas outros países europeus, em dias ou semanas diferentes ou por vezes coincidindo, não deixaram de mostrar o seu profundo descontentamento nas ruas com tractores, bloqueando estradas e ocupando espaços predefinidos em cidades como Bruxelas.

O mundo agrícola convive mal com a perda, ao longo dos anos, do seu estatuto social e de quebra de rendimentos continuados. Em muitas outras profissões, esta situação é também uma constante, sendo difícil encontrar as razões desta tendência. Será que mudanças de paradigma nas sociedades explicarão tudo isto?!

Por outro lado, problemas específicos nos diversos países ajudaram a acelerar este descontentamento global. Foi o fuelóleo na Alemanha, os cereais ucranianos na Polónia e Roménia, a água, os cortes e os atrasos burocráticos na entrega de subsídios em Portugal.

A grande questão é Bruxelas

Como gritava uma jovem no meio de uma coluna de tractores que tentava encaminhar-se para os edifícios do Parlamento Europeu “temos de atacar o coração do sistema”.

Sim, o “coração do sistema” é a Política Agrícola Comum, definida em Bruxelas em contínua deriva pelo menos desde 2010, criando confusão com regulamentação excessiva a toda a linha e grandes dificuldades aos agricultores europeus, com rendimentos cada vez mais reduzidos, baixa de preços ocorrida pela concorrência desleal de produtos importados que não cumprem as regras da União, em qualidade e ambiente, mas entram no espaço comunitário, na base de acordos ou de favor (isenções tarifárias desde a primavera de 2022 dos produtos agrícolas ucranianos).

Regulamentação excessiva

A regulamentação excessiva é uma praga da União Europeia em todos os domínios. Quando não se tem nada para fazer, ou seja, onde falta uma política sólida de desenvolvimento, produz-se regulamentação sobre regulamentação. É assim em tudo, na energia, nas tecnologias, na inteligência artificial (IA)… em tudo.

A propósito da IA, há dias li no L’Express (11/12/2023) uma blague humorística pouco abonatória da União Europeia, que circula há algum tempo.

IA: L’ Europe entre enfin dans la course. “Nos EUA, eles têm a GAFA. Na China, a BATX. Nós temos o GDPR”.

Dando nome às siglas. Os Estados Unidos têm campeões de tecnologia (Google, Apple, Facebook e Amazon). A China também (Baidu, Alibaba, Tarant e Xiaomi). A Europa, para seu consolo, tem a Regulamentação de Dados. Aliás, a UE é um espanto. Avançou com um regulamento sobre IA, quando não tem uma empresa de IA “digna” desse nome, pelo menos em termos de comparação com a China e EUA. Surrealista!

Muitos peritos atribuem a esse grau excessivo de regulamentação falhas estratégicas nas políticas europeias e acentuam a inoperância/incapacidade da União Europeia na conjugação de ideias de fundo entre os países e entre empresas de diferentes países para ganhos de dimensão no mercado mundial.

Retornando ao mundo agrícola

O mundo rural aparenta, embora com um pico neste ou naquele país, uma certa acalmia, decorrente das decisões tomadas, umas pela Comissão Europeia e outras a nível de cada país. Mas umas e outras são de curto prazo e várias até de caracter transitório.

Duas medidas de curto prazo foram tomadas por Bruxelas, respondendo a exigências importantes dos agricultores europeus:

⦁ A “derrogação parcial” da obrigatoriedade do pousio imposta, a nível europeu, em condições rejeitadas pelos agricultores.
⦁ As medidas de salvaguarda para as importações ucranianas e a suspensão das negociações do acordo UE-Mercosul, aliviando assim a concorrência desleal.

Ursula von der Leyen também veio prometer a redução da carga administrativa da PAC, sem, no entanto, especificar em que consiste. Certamente, ainda estará a pensar na regulamentação necessária!
A nível de países, foram tomadas medidas específicas como a suspensão do imposto sobre o gasóleo não rodoviário, a concessão de alguns subsídios temporários, etc. Mas Bruxelas ficou em péssima situação e dirigentes de países como a França contribuíram em muito para tal.

A comunicação social europeia escreveu que Macron “curvou” Bruxelas, o que não deixa de ser um pouco verdadeiro, pelo menos em duas frentes: no que toca ao acordo em discussão com o Mercosul e na política ecológica ao fazer passar a mensagem aos agricultores de que o inimigo é a ecologia, ao falar da necessidade de adaptação da política europeia sobre “alterações climáticas”.

Os problemas de fundo permanecem

Esta crise assumiu características mais alargadas. Era normal, aqui e ali, uma crise ou outra, a nível sectorial ou regional, no leite, ovos, cereais, vinho, carne, etc.

Esta vem globalizada. Todos os sectores apanhados pelo aumento dos preços dos factores de produção e respectivos impactos nos custos dos produtos, a relação entre os produtores agrícolas e distribuidores a deteriorar-se, de forma que a produção designadamente as unidades familiares e as de menor dimensão entraram mesmo em perda real de rendimentos.

Tudo em crise, menos um pequeno número, ou seja, as grandes explorações agrícolas, as grandes transformadoras de produtos agrícolas e as grandes cadeias de distribuição que levam uma grossa maquia dos subsídios do orçamento comunitário da PAC que corresponde a cerca de 1/3 do da União Europeia.

As questões de fundo permanecem, assim, e outras novas foram espoletadas ou agudizaram-se como o conflito entre o mundo agrícola e os ambientalistas através de slogans por vezes rudes. Na Alemanha lia-se: “pelo bem da pátria, vamos expulsar os ambientalistas do país”. Estas palavras constavam de cartazes apostos em tractores nas manifestações de Janeiro. Considerar os ambientalistas, a bête-noir dos agricultores, assume um carácter ainda muito acintoso, uma vez que os Verdes fazem parte da coligação governamental. Portanto, a questão de fundo permanece.

O que queremos da agricultura europeia? Esta é a pergunta chave

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.

Este é, com toda a razão, o cavalo de batalha dos agricultores. É a própria União a negar-se a si própria ao promover a concorrência desleal consigo própria, a alimentar as grandes cadeias de distribuição e as transformadoras, afundando assim o mundo rural.

Mudanças profundas se impõem a vários níveis, uma nova filosofia para a PAC, para que se lance uma agricultura competitiva, sustentável e dinâmica, com elevado impacto no PIB, nas exportações e redução das importações para que o mundo rural se tranquilize e possa se agigantar, sustentado em bases sólidas de trabalho. Só, deste modo, se poderá caminhar para uma pacificação sustentada e para a soberania alimentar.

Muitos passos e muita negociação séria são precisos para se chegar ao fundo das questões e, a partir daí, erguer a estratégia. Menos burocracia, menos regulamentação e muito mais planeamento estratégico.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

"Lavagem cerebral"


Um grande Amigo, um dia, nos longos diálogos noite fora, abordando a esquerda e a direita política, disse-me: sabe, a esquerda política, aquela que defende princípios e valores democráticos, é muito idealista, sonhadora e vê o mundo e as pessoas impolutas, transparentes, raramente vê a trapaça do jogo e até, por isso mesmo, muitas vezes deixa-se encantar, resvalando de tolerância em tolerância; ao contrário da direita política que tem uma história milenar, que a tornou muito paciente, serena, matreira, encantadora e sedutora. Paciente porque sabe como desenhar o labirinto para chegar ao poder e como, onde e quando deixar bem disfarçados os alçapões. 



Ainda ontem, o humorista Ricardo Araújo Pereira salientava o facto de atribuírem 12/13 minutos a cada candidato nos debates que estão a ocorrer, acrescentando que, logo de seguida, o espectador fica confrontado com intermináveis minutos de comentadores e jornalistas. Acrescento: que até atribuem notas à prestação daqueles que poderão vir a representar o Povo na Assembleia da República. Não deixa de ser curiosa esta ambiguidade de tratamento entre quem define estratégias políticas e os outros! Engana-se quem pensa que isto não tem um significado mais profundo e, subtilmente, escondido, onde dominam, também, os interesses empresariais.

No meio disto, há Conselheiros de Estado que são comentadores, analistas que aparecem em duas cadeiras separadas por escassos minutos: ora na situação de apaniguados de uma determinada força política e, logo mais, como analistas da "coisa" que está em causa. Jornalistas, também, de tez severa para com os convidados, dando a entender com as suas intervenções (não perguntas) o lado em que se situam.

É evidente que o exercício da Democracia exige que todos tenham direito à palavra. É nos diversos posicionamentos que elaboramos ou nos estribamos numa opinião compaginada com a nossa própria história. O que já não me parece razoável e defensável é a tendência para que não se deixe ao Povo a capacidade de, livremente, ouvir e escolher os caminhos que entendem ser os melhores. Neste quadro, parece-me óbvia a orientação para, prioritariamente, colocar cidadãos escolhidos a dedo, que entram casa adentro, para, serena, pacientemente e sem contraditório, venderem o seu peixe de acordo com os seus posicionamentos políticos. 

É claro que todos nós transportamos heranças conceptuais desde a família que habitámos, ao que lemos, à cultura que nos enformou, ao leque e interesses de grupo, inclusive, até a própria ausência de informação adequada. Somos um pouco de tudo isso. O que eu rejeito é que tentem, com descarada intenção, "comer as papas na cabeça", algumas vezes trapaceando, outras, confundindo no sentido de imporem o seu pensamento. Já há alguns anos que é assim. E está cada vez pior. Pacientemente, repito, vão tecendo a teia pouco se ralando que entre as sondagens e os resultados eleitorais a diferença os coloca seriamente em causa. Mas continuam o seu percurso de encantadores de serpentes. Felizes ficam quando acabam por levar a água ao seu moinho.

Ora bem, no respeito por uns e outros, pelos políticos e pelos comentadores, bom seria que, sobretudo as estações de televisão, optassem pelo distanciamento, deixando ao Povo a capacidade de escutar e decidir. 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A casa dos inúteis

 

A história do programa "Big Brother" tem, segundo li, cerca de vinte e quatro anos de emissão. Mais de 70 países, em todos os continentes, reproduzem o "reality show". Nunca me predispus a assistir a um episódio. Para mim é reles demais. Mas, esta semana, antes das notícias das 20 horas, espreitei uns quinze minutos, se tanto. De resto, inevitavelmente, todos os dias por lá passo, mas o controlo remoto livra-me daquele, para mim, desprezível espectáculo. Uma série de indivíduos numa casa-prisão de luxo, dizem que se trata da "mais vigiada do país", cuja função é alimentar-se, dizerem disparates, mor das vezes demonstrarem uma manifesta ignorância, incompatibilizarem-se, realizarem umas tarefas infantis e a tudo aquilo os mentores designam por "jogo". Talvez seja o jogo da inutilidade e da estupidificação em horário nobre.



Mas, certamente, proporciona dinheiro aos promotores e algum a quem se presta a viver situações de embrutecimento. Quem vencer o "jogo da inutilidade" leva € 100 000,00 para casa. No meio daquilo, uns apresentadores e comentadores aumentam o volume do nada, ajudam a bestialização dos "convidados famosos" e do povo que assiste, com um palavreado que, espremido, vale zero. A ideia que fica é a de que quanto pior melhor para as audiências. Quanto mais gritos, acusações, lágrimas e lençóis que esbatem outras cenas, melhor. Uma grande parte do povo gosta e alimenta o espectáculo através das votações. 

Ao longo da visualização lembrei-me da frase tantas vezes dita por Artur Albarran: "o drama, o horror, a tragédia". Ora, tudo aquilo é, para mim, cómico, patético, desgraçado, bizarro e medonho. Não tem ponta por onde se lhe pegue, ou melhor, talvez sirva para estudo das causas que se escondem a montante e se aquilatar do grau de cognição e da sanidade dos intervenientes.

Li esta manhã que um sujeito que por lá passou, a propósito da desistência de um concorrente, terá dito: "O melhor jogador de sempre acaba de desistir, porque Portugal não tem maturidade para enfrentar um jogador que dorme a pensar no que vai fazer no dia seguinte (…)". Está tudo dito. 

Umberto Eco (1983) sobre "A transparência perdida" escreveu sobre a paleotelevisão e a neotelevisão, esta onde sobressaem a desregulação e a ausência de bom senso, tomando conta da televisão e influenciando o mapeamento dos formatos da oferta televisiva. Mas, a par do que se vê, entre a tristeza de um big brother e de outros programas das televisões generalistas, questiono-me sobre as substanciais diferenças. Sinto que se está a nivelar por baixo.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Por favor, não nos tratem por desmiolados


Deixo para depois as questões relacionadas com as investigações em curso. Se valer a pena, claro! Rejeito as opiniões a partir de uma mancheia de "achismos" que por aí andam. Entendo que o tempo ditará a complexidade das responsabilidades de cada um, directa ou indirectamente envolvidos. Poderá levar anos, sabe-se que, infelizmente, é assim, e, por isso, todo o tipo de especulações, como se fôssemos investigadores e profundos conhecedores do processo e até juízes, do meu ponto de vista deve assentar num redobrado cuidado na prudência das leituras.



Uma coisa foi a sistemática denúncia em sede de Assembleia Legislativa e autarquias, às quais se juntou a "vox populi" que, durante tantas dezenas de anos, alimentou a desconfiança na condução dos processos políticos; outra é, perante a realidade que se vive, tecer comentários específicos, julgando, antecipadamente, sem a correspondente prova, condenação e o trânsito em julgado. Não vou por aí. Prefiro que a Justiça faça o seu caminho, conjugado com o que (e bem) escreveu Miguel Sousa Tavares na edição de hoje do Expresso:

"Quando a Justiça não apenas consente mas ainda se conforta em ver os julgamentos que lhe cabe fazer serem feitos previamente na praça pública, ela e nós estamos a caminho do desastre".


Adiante. Não sou, porém, alheio às questões de natureza política. Com a devida atenção escutei o anúncio de demissões, acompanhei o essencial das audições junto do Senhor Representante da República, a "estranha" posição do parceiro de coligação (CDS), as "anfíbias" posições do PAN, a insossa postura assumida pelo Senhor Presidente da República em dois ou três momentos, a total secundarização dos deputados na Assembleia Legislativa, o pensamento de variadíssimos comentadores políticos, o que disseram os representantes dos vários partidos políticos e, ainda, a palavra de vários Professores de Direito Constitucional. Conjugando tudo o que escutei com as declarações proferidas no final da comissão regional do PSD, é-me sensível um total paradoxo entre os factos (formal e ético) e a posição da maioria, uma vez que, para ela, bastará apresentar um nome para líder, a formação de um "novo" governo, provavelmente com o mesmo programa e, assim, "tudo como dantes, no quartel de Abrantes".

Enquanto cidadão não me revejo nisto. O que, ainda ontem, escutei da boca dos Constitucionalistas leva-me a dizer que, todos os dias, alguns tentam pôr em causa a Constituição da República, juntando ilusórias peças no sentido da sua própria sobrevivência política. A confusão instalou-se e todos os dias são atiradas novas achas para a fogueira. Ora bem, não é o Orçamento Regional que está em causa, mas a LEGITIMIDADE para governar. E essa legitimidade, face às gravosas circunstâncias políticas, só pode advir de um novo acto eleitoral. Porque a luta do actual governo, ferido que se encontra no plano político, está para a sua continuidade, como a boia está para um náufrago.

Que haja bom senso, desprendimento político, respeito pela Constituição e pela leitura política que o Povo faz em cada momento, que não existem insubstituíveis, que a Democracia deve ser respeitada nos planos formal e prático e que a humildade de qualquer servidor da "coisa pública" deve estar acima dos interesses pessoais ou de grupo. De resto, o exercício da política não é um emprego, mas um serviço público à comunidade. Ah, já agora, que o Senhor Presidente da República diga, abertamente, o que pensa e como pensa solucionar este problema político.

O resto, as questões da Justiça, que fiquem para depois.

Ilustração: Google Imagens.