Adsense

quarta-feira, 31 de março de 2021

"Dar cartas"...


FACTO


"Acho que vamos criar aqui uma instituição que vai dar cartas". Palavras ditas pelo presidente do governo regional, relativamente a um serviço de investigação médica na área da oncologia.

COMENTÁRIO



Desde logo, entendo que pensar grande é fundamental. Só assim a ciência pode avançar. Aliás, em todos os sectores e áreas de actividade. Demonstrar ambição contrapõe-se, obviamente, ao cruzar de braços ou a ombros caídos. Porém, quando se desenha o futuro, quando se trabalha para trazer o futuro ao presente ou se pretende, na área científica, um determinado objectivo, temos de ter presente as óbvias três perguntas: onde estamos, onde queremos chegar e que passos temos de dar para lá chegar.

Ora, em um mundo onde a investigação oncológica já atingiu altos níveis de conhecimento, inclusive, em Portugal, onde a Fundação Champalimaud constitui um exemplo, por melhores que sejam as parcerias encontradas, o bom senso aconselharia uma certa moderação nas palavras. Porque a complexidade da "escada" implica que não possa ser subida de três em três degraus, mesmo que já exista algum trabalho multidisciplinar realizado. E sendo assim, talvez melhor ficaria ao presidente congratular-se pela iniciativa, entusiasmando ao trabalho sério, profundo, apaixonado entre todos os intervenientes. Ah... e que todos tivessem presente que os recursos nunca faltariam. Eis um ponto fundamental. Talvez tivesse sido mais avisado, porque "dar cartas", na complexidade deste contexto, não é nada.

Mas esta é uma tendência que por aí subsiste. Mal é dado um primeiríssimo passo, logo surge o objectivo, em alguns casos, o da internacionalização, em outros, "dar cartas" perante quem já há muito partiu na escadaria do conhecimento. Existem inúmeros exemplos de iniciativas que "morreram na casca". E, certamente, não é isso que se pretende. Portanto, entusiasmar, sim, garantir os meios adequados, sim, mas sempre com moderação e humildade, até porque, "palavras leva-as o vento". Alguém disse, "o importante não é convencer com palavras, é surpreender com grandes atitudes". É isso que se pede a um líder... despertar nos outros a vontade de fazer. Sem a presunção de vir a "dar cartas".

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 30 de março de 2021

Um dramalhão em três atos serve o país?


Por estatuadesal
Francisco Louçã, 
in Expresso, 
30/03/2021


Houve um momento enternecedor quando, esta segunda-feira, alguns jornalistas perguntaram ao primeiro-ministro se iria desencadear uma crise política em resposta à promulgação pelo presidente das três leis sobre apoios sociais. Costa deu a resposta que se esperaria, depois da pergunta que era inevitável – naquele jogo toda a gente sabia o seu papel, tantas vezes foi o cântaro à fonte e ainda não é desta que lá deixa a sua asa.



De facto, não houve nenhuma ocasião relevante ao longo dos últimos anos em que o governo não mostrasse cogitar uma boa crise eleitoral: foi assim no último ano da geringonça, foi também o que o levou a exigir maioria absoluta nas eleições de 2019, foi assim mais uma vez nas vésperas deste último Orçamento, até pode ter acontecido noutros momentos. E se, de todas as vezes, a questão era absurda, neste momento seria grotesco criar essa tensão, como o primeiro-ministro bem sabe e, aliás, afirmou.

Para mais, todos os alvos estariam errados, provocar um confronto com o Presidente é impossível e menos ainda em nome de uma cruzada para recusar apoios sociais, depois de o governo ter dito que a sua única regra era “tudo o que for necessário”. Tanto a pergunta quanto a resposta de rotina sobre a crise política foram simplesmente uma cena de telenovela.

Apesar dessa fantasia, que só o governo tem alimentado, tem sido sempre em modo dramalhão que a ameaça do recurso ao Tribunal Constitucional tem sido esgrimida. No Orçamento Suplementar de 2020, o governo ameaçou recorrer ao Tribunal contra medidas que não estavam previstas na proposta de lei, com o argumento esdrúxulo de que o governo poder propor ao parlamento a correção do Orçamento, mas que este teria que o aprovar de cruz e não poderia decidir nenhuma outra medida. Houve carta lacrada e doutrina a rodos para este efeito. O governo acabou por recuar e deixou o Tribunal em paz, ao constatar que uma das medidas cuja legitimidade queria contestar tinha sido proposta pelo seu próprio partido. Primeiro ato.

Veio depois o Orçamento 2021, em que o parlamento aprovou que sem auditoria à conta não haveria pagamento ao Novo Banco. Novo dramalhão, foi anunciado com ar de enterro de Estado que tinha rebentado uma “bomba atómica”, que o governo iria defender a honra da República no Supremo Tribunal Administrativo ou no Tribunal Constitucional, ou nos dois à vez. O crime era de monta, o parlamento tinha aprovado o critério que o próprio primeiro-ministro tinha anunciado uns meses antes. O resultado foi que a querela não chegou nem ao Supremo Tribunal nem ao Tribunal Constitucional, foram ambos poupados a esta inutilidade. Segundo ato.

Agora, antecipando-se à decisão do Presidente no caso destes três decretos sobre apoios sociais a que o parlamento introduziu alterações, o governo cometeu a imprudência de veladamente ameaçar Belém, tendo ainda disparado nos últimos dias uma campanha mediática: na sexta-feira, dizia que custarão 38 milhões por mês (ontem já tinha subido para um total de 250 milhões) e que já se pagou um ror de dinheiro em felizes apoios sociais. Nada que resista a uma observação minuciosa: os apoios agora promulgados são razoáveis para não excluir alguns pais em apoio aos filhos (mas as aulas estão a recomeçar e portanto o custo será diminuto), para defender os profissionais de saúde, e ainda para aplicar como regra dos apoios a referência a 2019 e não a 2020, quando já não havia rendimentos. Tanto que é assim que o PS, com o seu voto no parlamento, veio reconhecer que pelo menos uma das medidas era imperativa. No fim das contas, a despesa talvez venha a ficar mais próxima do que o governo indica para um mês do que de qualquer efabulação orçamental que agora usa para impressionar a opinião pública. E, claro está, veio a ameaça de ir ao Tribunal Constitucional. Terceiro ato.

Pode ser que também desta vez, como das anteriores, o governo encontre uma justificação para não mandar as leis para o Tribunal. Se o fizesse, seria inútil, a decisão viria depois das vacinas e não é de crer que o ministério pense em mandar paisanos para recuperarem os curtos apoios sociais um ano depois de terem sido pagos, abanando um acórdão na cara dos cidadãos espantados para lhes confiscar as carteiras. E, no curto prazo, o seu prejuízo político é imenso, mostraria uma mesquinhez e um calculismo para reduzir apoios tão escassos a gente tão necessitada, que é tudo menos o que o governo quer que seja a sua imagem.

Há ainda a razão institucional, sabendo que o Presidente fechou a porta à contestação constitucional, ao afirmar, com razão, que não há nenhuma violação da lei-travão, dado que a despesa prevista não será esgotada – no final do exercício orçamental, como no ano passado, o governo vai festejar ter poupado na conta. Hoje mesmo, o governo veio confirmar indiretamente este argumento do Presidente, explicando que poderia pagar ao Novo Banco mais de 400 milhões, mesmo que não estejam previstos no Orçamento, dado que tem poder legal para deslocar verbas de uma rubrica para outra, desde que não ultrapasse o total previsto.

Não sei se o governo se atreve a um debate público em que num prato da balança está o ajustamento entre rubricas para pagar 400 milhões a um banco com práticas tão suspeitas e, no outro prato da balança, a sua recusa soberba em ajustar as rubricas para dar a mais de cem mil vítimas da crise um pouco mais do que os 219 euros que agora são a sua sobrevivência mensal.

Assim sendo, pode ser que a S.Bento só venha a interessar salvar a face e manter a pose de conflito com o parlamento, fingindo ignorar o presidente, mas evitando meter-se por caminhos de disputa legal que, se ganhasse, seria em tempo inútil, sendo mais provável que perca de qualquer modo.

Fica uma lição, a de que o governo reagirá a futuros problemas deste tipo recorrendo ao seu instinto, que é o dramalhão. Resta saber se, quando o fizer pela enésima vez, os jornalistas ainda se lembrarão de lhe perguntar se desta vez é que é.

A Nova Rota da Seda


Por
João Abel de Freitas,
29 Março 2021

Para Pequim, a Nova Rota da Seda é a grande estratégia económica e de cooperação internacional que irá construir uma nova ordem económica mundial que substituirá a instituída pós-Segunda Guerra Mundial, sob a tutela dos EUA.



1. O grande projecto da Nova Rota da Seda, One Belt, One Road, apresentado em 2013 por Xi Jinping, um ano após ter chegado a Presidente da República Popular da China, tem como objectivo, segundo vários analistas, fazer a China retornar à grandeza do seu passado.

Há mais de 2000 anos, a China – que começara a sua progressão com a dinastia Han 140 anos A.C. – era um império próspero e o grande centro da economia da Eurásia.

A Rota da Seda desfruta de um grande simbolismo histórico na mente do povo chinês, exactamente pelo que representou de projecção da China no mundo de então. Através dela estabeleceu-se a ligação por terra entre o Oriente e o Ocidente, com vista à troca de bens orientais, designadamente a seda, o produto mais comercializado e mais valorizado no Ocidente que proporcionou grande prosperidade ao país.

Para além da comercialização, desenvolveu-se uma outra rede de relações multiculturais com os países colaborantes, na cultura, diplomacia, religião e troca de conhecimentos e experiências.

Em 2017, One Belt, One Road (Uma Faixa, Uma Rota) é redenominada de Belt and Road Initiative (BRI) por Xi Jinping, no Fórum Internacional sobre a Rota da Seda, realizado com a finalidade de estreitar a cooperação económica e política entre as entidades aderentes, países e organizações internacionais.

Em que consiste a Nova Rota da Seda?

2. É um mega e muito ambicioso projecto que procura abarcar todo o tipo de transportes e infra-estruturas, como portos, ferrovias, oleodutos, aeroportos com fins múltiplos, entre eles, facilitar a ligação da China ao resto do mundo.

A China, após 30 anos de elevado crescimento económico sucessivo, começava a acusar uma certa saturação em termos de infra-estruturas, capacidade excedentária de produção nestas áreas e uma menor produtividade do investimento manifestada pelos índices Formação Bruta de Capital Fixo/PIB elevados e desequilibrados consoante os sectores.

Com este mega projecto procura a China estabelecer ligações com regiões nevrálgicas que lhe potenciem a resolução de alguns problemas internos, criar condições para a expansão dos seus grandes grupos económicos no mundo e, por outro lado, reduzir a elevada exposição da economia pela via das exportações.

É importante para a China o sucesso deste mega projecto, no sentido de, em 2049, como é seu desígnio, comemorar os 100 anos da Revolução, em posição confortável e reconhecida como Grande Potência mundial.

Pormenorizando um pouco mais.

A Nova Rota da Seda não é um mega projecto fechado. Pelo contrário, é bem flexível. Acolhe investimentos de todo o tipo e em qualquer país. Começou por assentar em duas rotas, a terrestre com vários corredores sobretudo ferroviários em muitas zonas e países, mas sobretudo na Ásia e na ligação à Europa, sem deixar de contemplar África, onde os interesses chineses têm grande peso. E a rota marítima, atravessando vários oceanos e com diversos portos, onde a tecnologia da China tem muita aceitação quer na gestão quer na construção. Em certos locais, assiste-se a uma disputa pela concessão de portos à gestão asiática, sobretudo China e Singapura.


Mas a Nova Rota da Seda, ou melhor, as Novas Rotas da Seda vão muito além. Entram na energia, nas telecomunicações, já se estendendo a áreas mais recentes como a digital e agora com a pandemia à saúde. Se a tudo isto juntarmos os investimentos que vão surgindo nos mais diversos sectores económicos, a ideia que retemos é a de um mega projecto de características muito envolventes.

“Em menos de uma geração, a ordem geopolítica e geoeconómica mundial será manifestamente diferente do que conhecemos hoje, as dinâmicas em curso sendo o resultado da potência descomplexada da China e das novas rotas da seda” (Éric Mottet, 2020 – Universidade de Montréal, Canadá).

3. Este projecto enfrenta, no interior da China, alguns adversários de peso que o consideram megalómano. Mas é, a nível externo, que se depara com adversários poderosos, com os EUA na frente de combate, acusando a China de pretender a criação de dependência e endividamento dos países aderentes.

No mundo ocidental, há opiniões divergentes desta visão dos EUA, sobretudo, em trabalhos de Centros de Investigação Universitária.

Lauren Johnston, investigadora do Instituto China da Universidade de Londres, defende que a maioria dos acordos de investimentos da Nova Rota da Seda acarreta vantagens para todas as partes envolvidas: “para os governos que precisam de acesso ao financiamento, seja para novas infraestruturas ou para o desenvolvimento dos seus jovens, mesmo que este esteja associado a uma dívida à China, os benefícios superam os custos potenciais”, escreve esta investigadora em vários dos seus escritos e acrescenta: “De que outra forma os países pobres poderão deixar de ser pobres?”, reconhecendo que não abundam alternativas ao Projecto da China.

Com a pandemia, diversos países como o Paquistão, o Sri Lanka e várias nações africanas estão em dificuldades para satisfazer o pagamento das dívidas a vencer-se durante este ano e solicitam à China adiamento ou perdão da dívida.

Uma encruzilhada complexa. Investimentos parados. Como ultrapassar esta situação?!

Lauren Johnston não acredita no perdão da China, pois entende que a caridade não se adequa à cultura chinesa. Tem-se verificado, segundo Johnston, a suspensão do pagamento dos juros dos empréstimos e o adiamento do pagamento de prestações em vencimento (moratórias).

O financiamento do Mega Projecto

4. Em 2014, foi criado o Fundo da Rota da Seda para financiar os investimentos dos projectos com um capital no montante de 40 mil milhões de dólares.

No Fórum Internacional de 2017, este fundo é reforçado com mais 70 mil milhões, sendo 15 mil milhões provenientes do Governo chinês e 55 mil milhões de dois bancos associados. Acorrem a este grande projecto também financiamentos de bancos internacionais, como o Banco Asiático de Investimento (AIIB), o Banco dos BRICS e o Banco Mundial.

Não será pela carência de financiamento que o projecto não avançará, tanto mais que os países parceiros também são chamados a participar financeiramente, mas o montante estimado até 2049 é deveras exigente, equivalente a mais de duas vezes o PIB da China.

O think tank dos EUA “American Entreprise Institute for Public Policy Research” estima que a China, entre 2005 e 2018, investiu nos cincos continentes um valor equivalente a 13 Planos Marshall, o plano dos EUA de reconstrução da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial.

Para Pequim, esta é a grande estratégia económica e de cooperação internacional. Uma grande aposta do Presidente Xi para reconfigurar uma globalização sem neoliberalismo, ou dito de outra forma, o conjunto de acções que formam a BRI visa instituir-se através de parcerias e compromissos chineses na Ásia, África, Europa, sobretudo de Leste, e no resto do mundo, tendo em vista a construção de uma nova ordem económica mundial substituindo a instituída pós-Segunda Guerra Mundial, sob a tutela dos EUA.

Esta é uma competição diferente dos tempos da Guerra-Fria EUA/URSS. A China não mostra vocação para substituir como Grande Potência os EUA na vertente militar. A competição assenta na vertente económica e tecnológica e nos métodos de conduzir essa competição.

O sucesso das Novas Rotas da Seda será a grande alavanca da alteração a prazo da geopolítica e geoeconomia mundial em que a China está empenhada e a que muitos países estão a aderir.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Pobreza e "pedidos feitos às escondidas"

 

Há gente muito boa. Gente que passa anónima, mas que realiza um trabalho de enorme solidariedade que comove. Deles se sabe, sumariamente, quando os meios de comunicação social lhes dedica um espaço. De resto, passam sem nome, as instituições e as pessoas que lhes dão vida. Gente boa!



Neste conturbado tempo de permanente agonia, quando tentamos contornar o maldito que inferniza o mundo, neste tempo de exclusão, de incerteza e de felicidade adiada, não se sabe para quando, olho para o panorama desolador de milhares de famílias em sofrimento (colaboradores de empresas, desempregados e empresários) e constrangido fico em função das graves dificuldades sentidas. 

Não é possível ficar insensível quando se lê: "Há muitas pessoas que têm um problema grave, que passa por não poderem encarar os filhos e dizer-lhes que estão a passar dificuldades" (...) e os pedidos são "feitos às escondidas" porque as crianças "não têm noção do que se está a passar". Dói, profundamente, porque a fome não pode esperar e as crianças, são isso mesmo, crianças!

É por isso que, revolta-me, quando assisto a gastos (não investimentos) públicos, absolutamente injustificáveis face ao quadro de miséria que, neste caso, atinge a Região. Genericamente, salvo excepções, assisto a muito mediatismo, muita acção para a fotografia e raras as vezes a definição de medidas que visem esbater os dramas de quem deseja o mínimo e não tem. A pobreza existe, os olhares sensíveis é que não; o dinheiro existe, a sua distribuição orçamental em função das prioridades é que, intencionalmente, é esquecida. Por um lado, prevalece, no plano político, algum sentido egoista, por outro, a secreta assunção que as atitudes de caridade resolverão o drama. Quando a caridade não resolve coisa alguma do foro estrutural, apenas eterniza os problemas. Por isso, a pobreza, sendo um problema de natureza política, exige que medidas políticas sejam assumidas, no confronto entre o prioritário e o não prioritário.

A Madeira é uma Região pobre, assimétrica e dependente. E no nosso corre corre diário, não damos conta disso. É preciso parar, olhar, ler os números que, aqui e ali, tomamos conhecimento, cruzar a informação com o discurso político, reflectir sobre as causas dos desequilíbrios, sobre o porquê dos múltiplos sofrimentos e as razões mais substantivas de uma pobreza que assenta em um complexo círculo vicioso. É preciso, não apenas nas campanhas eleitorais, percorrer as ruas, becos, travessas, impasses e olhar para o seu interior, para o que nos escapa na cidade visível ou na cidade postal.

Ah se não fossem as múltiplas solidariedades, isto é, a riqueza ética de muitas instituições que por aí esbatem a fome e as indignidades. Desde instituições religiosas até anónimos que se juntam para diminuir as asperezas da vida dos outros. Jamais esquecerei a luta que foi para implantar, na Madeira, uma delegação do Banco Alimentar. Relembro os persistentes chumbos às iniciativas parlamentares, porque a sua criação poderia, eventualmente, significar que, afinal, havia pobreza. Oh gente com tanta falta de amor pelos outros! Hoje, para a fotografia, correm para lá, quando aquela instituição, estatutariamente, é independente poderes políticos e religiosos. 

Ora bem, há privações que só quem nelas cai tem a noção do real sofrimento. Por um lado, devido à fragilidade das suas formações académicas, o que prova, concomitantemente, a falência do sistema educativo que não prepara para as exigências deste novo mundo; por outro, o sofrimento daqueles que tendo formação superior e profissional, apesar de mal remunerados, acabaram sugados no redemoinho da crise económica.  

Já tem algum tempo li um artigo do economista Ladislau Dowbor que, a páginas tantas, assume: "A grande riqueza e a grande pobreza são igualmente patológicas para a sociedade. A pobreza porque é eticamente e economicamente prejudicial para toda a sociedade. E a riqueza porque os muito ricos não sabem parar, transformam poder económico em poder político, corroem a democracia. Assegurar a renda mínima e taxar os excessos são duas facetas do equilíbrio necessário" (...) "Por isso os nossos problemas não resultam da falta de recursos, mas sim da sua má alocação". Mais adiante refere: "(...) o problema central da política é simples: os privilegiados adquirem progressivamente o poder de aumentar os seus privilégios. E o processo agrava-se até atingir pontos de ruptura, com violência e tensões generalizadas. A desigualdade económica e política – e a inoperância dos sistemas jurídicos – fazem parte de um mesmo processo de desequilíbrio social generalizado. O combate à desigualdade é uma necessidade ética. Não é concebível que no século XXI tenhamos manifestações trágicas de pobreza e miséria. O básico, numa sociedade civilizada, não pode faltar a ninguém, e muito menos às crianças que não têm nenhuma responsabilidade pelo caos em que são jogadas. Não é uma questão de esquerda e direita, e sim de elementar decência humana".


Tudo isto na sequência de um texto que hoje li no Dnotícias e que dá conta de um projecto social designado por "Hotelaria madeirense ajuda a nossa ilha" (ver facebook), onde Carlo Martins, sucintamente, refere que "Há muitas pessoas que têm um problema grave, que passa por não poderem encarar os filhos e dizer-lhes que estão a passar dificuldades" (...) e os pedidos são "feitos às escondidas" porque as crianças "não têm noção do que se está a passar". Senhoras e senhores políticos, ponham termo às atitudes de fachada e definam as prioridades, custe o que custar e doa a quem doer. A economia não pode continuar entregue aos desígnios de uns quantos e jamais nas mãos de decisores políticos com notória ausência de sentimento humanista.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 27 de março de 2021

Um desejo de ser inútil (*)


Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
26/03/2021


Para se ser ministro do Ambiente em Portugal são precisas três coisas: primeiro que tudo, amar profundamente este país maravilhoso que é Portugal e querer absolutamente preservar o que ainda resta daquilo que é o seu maior património, presente e futuro — a sua paisagem natural e ecossistema; segundo, ter bem presente quais são as principais ameaças a essa preservação e ser clarividente na desmontagem dos inúmeros alçapões que se abrem no caminho de quem o quer fazer; terceiro, e consequentemente, estar disposto a travar um combate feroz contra poderosíssimos interesses instalados e suportar as pressões, as ameaças, os riscos inerentes.



Não é tarefa fácil: não basta a um ministro do Ambiente querer defender os tomates contra os abacates, ele tem de ter tomates para enfrentar os abacates.

Como julgo que já toda a gente percebeu, o personagem que, entre nós, responde actualmente pela alcunha de ministro do Ambiente não é homem para essa função. Não sei se lhe falha a primeira qualificação, a segunda, a terceira ou todas elas. Mas, manifestamente, nem ele próprio saberá dizer o que anda por lá a fazer naquele lugar, além de um evidente desejo de não dar nas vistas, sendo tão inútil quanto necessário. E antes que ele volte a escrever para aqui, acusando-me de embirrar com ele de cada vez que não tenho mais nada que fazer, deixem-me notar que não estou sozinho nessa “embirração”: esta semana, a propósito da iminente aprovação de um projecto de construção turística no Mouchão do Lombo do Tejo, pondo em risco a preservação ambiental do estuário do Tejo, um grupo de 11 reputados especialistas no assunto, todos com responsabilidades passadas nessa área, vieram acusar o actual ministro de “envergonhar a sua missão, em pleno século XXI, num país da União Europeia”. E vimos, esta semana também, como o ministro meteu os pés pelas mãos e se refugiou atrás da Autoridade Tributária e de um inesperado ímpeto anti monopolista contra a EDP para justificar o injustificável bónus fiscal de 110 milhões de euros que o Governo deu à EDP. É Matos Fernandes no seu melhor, no seu habitual: há sempre um serviço que atrapalha, um departamento que complica, uma lei que não é clara, um parecer que não esclarece, um grão de areia que o deixa de mãos atadas, na impossibilidade funcional de ser outra coisa que não inútil.

O Tejo foi transformado num esgoto químico há três anos por uma empresa que, até hoje, nada pagou por esse crime ambiental. Mas Matos Fernandes gaba-se de ter limpo o rio — à custa dos contribuintes — sem ter obrigado a empresa a pagar um euro, a garantir que não volta a fazer o mesmo da próxima vez que o rio não tenha caudal, nem tenha tido coragem para mudar a lei para permitir que nenhum expediente jurídico impeça que se meta imediatamente na cadeia alguém que resolve mandar abrir o esgoto de uma fábrica sabendo que vai envenenar o maior rio do país, fonte de vida e de abastecimento de centenas de milhares de pessoas.

E, na semana que entra, quando o Parlamento começar, enfim, a discutir a questão do plantio dos abacates no Algarve — que já vai em 2000 hectares —, ele irá dizer, ou mandar dizer, que o assunto é com a Agricultura e que, embora seja verdade que o abacate gasta muita água e o Algarve tenha pouca e venha a ter cada vez menos, ele tem um plano para trazer água do Guadiana, via Pomarão. (Problema: quando falta água no Algarve, também falta no Guadiana, e os espanhóis, que usam a nossa água para plantar abacates em Tavira e olivais superintensivos no Alqueva, não deixam passar água do Guadiana para baixo.) Mas, em boa verdade, o problema é mais geral do que este homem — reside na cultura instalada muito antes dele e de que ele é apenas um continuador, porventura mais fiel e obediente do que os outros. Veja-se o sistemático retalho e redução das áreas de paisagem protegida, agrícola e ecológica da Rede Natura 2000 e até de Parques Naturais, por via da aprovação dos malfadados Projectos PIN — uma invenção que, em nome de um suposto “interesse nacional”, permite passar por cima de todas as restrições legais à construção e à ocupação do território. Veja-se a modalidade, verdadeiramente terceiro-mundista, da figura da suspensão provisória e ad hoc dos Planos Directores Municipais, a que todos, cidadãos e empresas, têm de se submeter se quiserem construir nem que seja só um metro quadrado dentro de um concelho, mas que podem ser suspensos em casos excepcionais pelo tempo suficiente para que determinados projectos megalómanos sejam aprovados, sendo logo depois repostos em vigor — é assim que, passo a passo, a frente ribeirinha do Tejo, em Lisboa, vem sendo roubada aos lisboetas. Veja-se a tentativa em curso de passar a competência da gestão e licenciamento dentro dos Parques Naturais para as Câmaras Municipais, como se eles não fossem património nacional mas municipal, abrindo caminho para uma inevitável catástrofe paisagística e ambiental.

O problema é, pois, cultural: falta de amor ao país, à sua paisagem, ao seu património natural. E da parte de todos: governantes, autarcas, empresários. Tudo pode ser resumido na imorredoira frase, que eu não me canso de citar, de um ex-presidente da Câmara de Portimão, contemplando a ria de Alvor e suspirando pelos entraves à sua livre urbanização (entretanto, já em curso): “A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!”

Uma das vantagens de não estar na política é não temer as acusações que os políticos temem, e uma deles é o centralismo. O centralismo é, de facto, um dos problema que temos e que não é assim tão difícil de resolver. Mas o centralismo não é para aqui chamado — nenhum país que se preza abre mão de defender, a nível nacional, os seus recursos naturais. E a paisagem e o ambiente são recursos naturais e nacionais — eu não confio nem nos autarcas nem nos interesses a que eles são permeáveis para o fazerem. É ao Estado que compete essa função.

E há várias coisas que, em linhas gerais, se impõem fazer, por parte dos governos. Uma é, desde logo, terminar com as excepções às leis que delimitam as Reservas Nacionais — uma pequeníssima parte do território: como sucede em qualquer país civilizado, aí não se pode construir e ponto final. A lei é igual para todos, e não há PINS, nem suspensões do PDM, nem excepções de qualquer espécie para ninguém, sob pena de sanções criminais a sério. Depois, é essencial interligar a agricultura com o ambiente e o ordenamento do território, porque só uma visão integrada e abrangente de todas essas áreas permite uma gestão adequada dos recursos e a sua preservação. É preciso que a água passe a ser a prioridade absoluta de qualquer decisão nestas áreas e que a sustentabilidade de novos projectos deixe de ser uma bonita e vã palavra, mas seja sim uma condição prévia e demonstrada para a sua aprovação, nos domínios do consumo de água, energia, captura de CO2, recolha de lixos, etc. É necessário pôr termo ao ultrapassado princípio do poluidor-pagador e substituí-lo pelo efectivo princípio do poluidor-criminoso, pois, se reconhecemos que os crimes ambientais são crimes, devem ser tratados como tal e não reservar para os seus autores apenas o pagamento de uma multa ou mesmo o ressarcimento dos danos materiais causados, como se de uma simples contravenção se tratasse. É preciso uma visão corajosa que contrarie a estratégia instalada a todos os níveis de uma “economia brutal”, baseada na exaustão dos recursos naturais e tendo como objectivo o lucro rápido: o turismo de massas, a ocupação selvagem da orla costeira, a agricultura superintensiva. E, para tal, é fundamental, é decisivo mesmo, terminar com a ligação entre as receitas do IMI e as receitas das autarquias, pois isso é a fonte e o prémio de todos os crimes urbanísticos e factor de desigualdade territorial. Quanto mais uma autarquia autoriza construir, mais receitas do IMI recebe. E quanto mais receitas tem, mais rotundas, centros de dia, pavilhões de congressos e piscinas constrói e mais eleições ganha o seu presidente. E mais se degrada a paisagem, mais betão vem o Ministério do Ambiente injectar nas rochas e mais areia trazer para as praias. Enquanto concelhos do interior, afastados da pressão turistíco-urbanística, vegetam sem verbas para melhorias essenciais. As autarquias deveriam ser financiadas directamente pelo Orçamento do Estado e em função de critérios objectivos — a área e a população — e de critérios subjectivos — o grau de desenvolvimento e, por exemplo, o seu desempenho em termos de qualidade de vida proporcionado às populações e de respeito pelas metas ambientais.

Eu sei, tudo isto é um sonho. Mas se, como disse, para vergonha nossa, a ministra das Finanças da Suécia, é fascinante que os portugueses não se revoltem por ver os suecos viverem aqui com as suas ricas pensões de reforma sem pagarem um euro de IRS, quer lá quer aqui, também é fascinante pensar que, apesar de tudo, temos de agradecer: este Governo que em matéria fiscal é tão generoso com os estrangeiros, como a EDP e os reformados suecos, e tão impiedoso com os portugueses, ainda não nos cobra impostos por ousarmos sonhar. É de aproveitar.

(*O título é roubado ao livro autobiográfico de Hugo Pratt, o imortal criador de Corto Maltese, e tem a ver com o que o pai lhe dizia quando ele era pequeno e, em vez de estudar, só gostava de desenhar: “Queres ser um inútil?” Porém, qualquer comparação com a inutilidade do ministro do Ambiente é deveras injusta.)

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 26 de março de 2021

Empatados? Duvido!


Em 2013, na animada campanha autárquica de então, li uma frase de Miguel Sá: "Eu voto em (...) porque eu não o conheço. Eu não voto nos outros porque já os conheço há demasiado tempo!". Esta frase acompanhou-me desde então. E volto, hoje, a reproduzi-la, no dia que o Dnotícias traz uma sondagem que atribui 42% a dois candidatos: Engº Miguel Silva Gouveia (actual presidente) e Dr. Pedro Calado (vice-presidente do governo).



Não conheço, pessoalmente, o actual presidente da Câmara. Em 2013 lembro-me de o ter cumprimentado no decorrer da tomada de posse. Apenas isso. Passaram-se quase oito anos e apenas o tenho seguido pela comunicação social. Sei que de uma estranguladora dívida superior a 100 milhões de Euros deixada pelo Dr. Pedro Calado, conseguiu reduzi-la substancialmente (mais de 65%) e equilibrar as contas da autarquia, segundo li, de tal forma que, hoje, paga aos fornecedores, em média, a 14 dias! E praticamente sem dinheiro oriundo do governo regional por inexistência de protocolos para a execução de obras, coisa que, no tempo do Dr. Alberto João Jardim/Dr. Miguel Albuquerque, apresentava este registo:

2010 - 6,3 ME;
2011 - 6,2 ME;
2012 - 6,1 ME, 
2013 - 2,2 ME; 
2014 - 3,1 ME;
2015 e 2016 - ZERO ME.

Acresce, ainda, o facto do Engº Miguel Silva Gouveia ter sido confrontado com sistemáticos chumbos ao Orçamento da Câmara, por parte da Assembleia Municipal. Concluo, portanto, que nunca a Câmara, no período democrático, foi tão bloqueada.

Interessante ainda, constatar que, no tempo do Dr. Pedro Calado, responsável pelas Finanças da autarquia, a Câmara, segundo ele, apresentava "lucro". Isto apesar dos significativos relatórios do Tribunal de Contas sobre o endividamento da Câmara Municipal do Funchal.

Curioso, também, na véspera do "Dia da Cidade" de 2014, o Dr. Pedro Calado (PSD) ter escrito um artigo no DN subordinado ao título: "O verdadeiro estado do PSD-Madeira". Apenas um excerto: "Começa a ser indiscritível o que se passa dentro do actual PSD-M. Depois de décadas de governação, com o poder absoluto (...) Se há coisas que a população reconhece, sabe e já não compra, é o oportunismo político, fácil e barato". Ora, pergunto, o que mudou desde então? Sinceramente, não sei.

Volto ao princípio para sublinhar que seguirei as assertivas palavras de Miguel Sá escritas em 2013: não o conheço, por isso, votarei nele. "Eu não voto nos outros porque já os conheço há demasiado tempo!"

Acrescento, votarei no Engº Miguel Silva Gouveia, pela seriedade, pela honestidade, pela humildade, pela serenidade, pelo recato e pelo rigor que tem oferecido à cidade. É esta "fotografia" que dele retenho, sem o conhecer, pessoalmente.  A sua governação não está isenta de reparos? Obviamente que está. Governar esta cidade com mais de 40% da população regional, com todos os problemas herdados e com todas as artimanhas internas e externas no sentido de bloquear o desempenho, enfim, apesar do "bullying" político, público e notório, do meu ponto de vista, não é tarefa fácil. Fui vereador durante doze anos e ainda tenho presente todas as manobras de politiquice barata que assisti ao longo dos anos. Por isso, voto no Homem e cidadão. Mas esta é, tão só, a minha opinião.

Ilustração: 1ª Página da edição de hoje do Dnotícias.

Truculenta deve ser a tia deles!


Jorge Rocha, 
in Blog Ventos Semeados, 
25/03/2021

Em pelo menos dois dos jornais hoje lidos e publicados encontrei a expressão «truculento» para designar o ministro Pedro Nuno Santos a propósito da ida a uma comissão parlamentar para testemunhar a respeito dos problemas por que passa a Groundforce.



Na escolha da expressão há o intento de depreciar, de desvalorizar. Algo do género: não o levem muito a sério, porque ele é como é.

E por isso o «jornalista», que se responsabilizou pelo «Expresso Curto» pedia que lhe explicassem muito devagarinho onde estava o problema. Aparentemente não sendo loiro, Filipe Garcia comportava-se enquanto tal se nos ativermos aos estereótipos das anedotas sobre a referida cor do cabelo. E, no entanto, o que Pedro Nuno Santos informou no parlamento foi de liminar clareza: o governo PSD/CDS decidiu entregar a Groundforce a Alfredo Casimiro naquela dinâmica de privatizações, que tanto entusiasmava Passos Coelho, Vítor Gaspar, Paulo Portas, Carlos Moedas ou Maria Luís Albuquerque e arranjou-lhe forma de lhe dar um autêntico negócio da China: primeiro financiaram-no em 7,6 milhões de euros para, depois, e quando o «esplendoroso» governo da troika já via o anunciado fim no horizonte, ele adquiriu a empresa por 3,6 milhões de euros. Razão porque Pedro Nuno Santos deixou sem resposta o desalentado deputado centrista, que se julgava capaz de o pôr em xeque, ao perguntar-lhe: “Quem não gostaria de fazer um negócio destes?”

No Observador a «insuspeita» Helena Garrido constatava que aqui estava um eloquente exemplo de favorecimento a um “capitalista sem capital” (ver aqui) , ao mesmo tempo que o não menos «inquestionável» Manuel Carvalho, no Público, (ver aqui), considerava o caso como demonstrativo de “no esplendoroso mundo do capitalismo pátrio, o mérito, o esforço, a frugalidade ou a transparência sempre valeram menos do que a esperteza que mantém portas sempre abertas no Terreiro do Paço.“ Só se esqueceu de dizer que isso foi obviamente verdadeiro enquanto o governo apadrinhado pelo «amordaçado» de Boliqueime estava a desnortear o rumo do país.

O que sempre muito aprecio em Pedro Nuno Santos é esse estilo “pão, pão, queijo, queijo”, que tanto parece incomodar alguma gente de sensibilidade muito delicada, quando se trata de ter de dar razão a quem se situa determinadamente à esquerda. Felizmente que vão sendo muitos os portugueses, que me secundam nessa apreciação do ministro. E que se disporão a apoiá-lo, quando as circunstâncias assim o ditarem.

quinta-feira, 25 de março de 2021

PS — Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto (SSP)


Carlos Esperança, 
24/03/2021

O oportunismo não é apenas apanágio da direita, mas esta tem na política, na ética e na economia, a parte substancial. Paga melhor, a carne é fraca.



Todos se recordam de Francisco Assis, um liberal de longo passado no PS, a fingir de social-democrata, adversário de alianças à esquerda, a saltar de canal em canal da TV, para impedir um governo PS com apoio dos partidos à sua esquerda. Não lhe faltou guarida nos média, convites para entrevistas e artigos de opinião, até se esvaziar, e esgotar a paciência dos ouvintes e leitores.

Hoje já tem um lugar rendoso e mediático para servir a direita e pressionar o partido na deriva liberal que encontrou um travão em António Costa.

Agora é Sérgio Sousa Pinto, outrora o jovem promissor, com posições de esquerda, hoje um ambicioso militante que espera ventos de direita para disputar a herança partidária.

Assis e SSP têm direito a ser o que quiserem, mudar de opinião e assumirem o que são, ou aquilo em que se tornaram, só não têm o direito de conduzir o PS para um beco em que fique refém da direita e, muito menos, a reclamarem-se herdeiros de Mário Soares, sem que o próprio se possa defender do ultraje. Basta lembrar-lhes o apoio de Soares à solução de esquerda, para a conquista da Câmara de Lisboa, a Jorge Sampaio.


SSP comporta-se como Passos Coelho a reivindicar a herança de Sá Carneiro, sem ter a dimensão, cultura ou instrução para perceber o ridículo, ou como Cavaco a anunciar-se ideólogo da social-democracia moderna. Estes são mais genuínos porque lhes falta a preparação para se darem conta do ridículo, mas não são camaleões como SSP, são apenas ignaros.

Todos os partidos têm Zitas Seabra sem o quinhão de sofrimento que esta passou na clandestinidade e na luta contra o fascismo. A censura não é por serem de direita, não há democracias sem esquerda e direita, sem pluripartidarismo, é pelo oportunismo de se servirem do partido cujo ideário recusam perante o aplaudo dos adversários, ao sabor das suas ambições e interesses.

Parafraseando Churchill, os inimigos estão dentro do partido, os outros são adversários.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Na doença não se brinca com coisas sérias



Por
Estátua de Sal
Francisco Louçã, 
Expresso, 
23/03/2021


O uso generalizado da nova tecnologia das vacinas, que salvaria vidas, é bloqueado pelos interesses comerciais das farmacêuticas e pela hipocrisia de instituições internacionais.
(Capitalismo é isto: morra primeiro e vacine-se depois. Comentário da Estátua)


A suspensão da vacina na semana passada não foi um ato desastrado, foi mesmo um desastre. O que se seguiu três dias depois, com vários primeiros-ministros e um Presidente a assegurarem que iriam tomar imediatamente a vacina que tinham acabado de suspender, não foi sequer uma tentativa convincente para reparar o prejuízo em confiança, foi uma demonstração de cataventismo político que desclassifica os seus autores: se não sabiam, perguntavam a cientistas antes de decidir; se queriam saber, usavam critérios exigentes e explicavam-nos à população. Ou, como sugere um dito militar, ordem e contraordem só dá desordem, e abundaram em desordem. Por isso, o que estes governantes não podem é esperar ser aplaudidos ou até respeitados se o único fundamento da sua escolha foi o que outro governo decidira sabe-se lá com que fundamento, ou o pânico de ficar mal na fotografia.



Assim, a semana passada não demonstrou só a incoerência dos governos e a inexistência da Comissão Europeia sempre que há uma decisão imediata a tomar, comprovou que cálculos de carreira estão acima de critérios de saúde pública e que alguns governos, e não os menos poderosos, não têm uma linha de rumo na resposta à pandemia. E essa maleita não tem cura.

Marcelo disse disto que esta catadupa de confusões provava que a resposta à pandemia não está a correr bem: “A União Europeia é uma união, não é um somatório de egoísmos, não é correr bem, cada um por si e isoladamente, tomar a decisão de suspender ou não suspender.” É o mínimo e lembrado com toda a diplomacia. Foi mesmo um desastre.

Mas talvez a ameaça mais grave esteja a ocorrer fora de portas, é o atraso na vacinação universal que protegeria toda a gente de novas variantes do vírus e da continuação das restrições pandémicas. A conta é simples de fazer: dos 400 milhões de vacinas produzidas até agora, 90% foram para os países desenvolvidos, que têm cerca de 20% da população mundial. Há 67 países que não receberam uma única dose e o fundo das Nações Unidas só tem como objetivo vacinar 20% da população dos países pobres este ano, embora mesmo para isso lhe falte o dinheiro. O resto do planeta esperará até 2023 ou 2024 para completar a sua proteção. Portanto, aumentar a produção de vacinas e distribuí-las pelo mundo é uma necessidade para a salvação das populações e, já agora, para cumprir um mínimo de solidariedade humana.

Podia não ser assim. Não é por falta de recursos nem por falta de capacidade industrial que essas vacinas não são produzidas e distribuídas. De facto, o "New York Times" escreveu há dois dias que a Administração Biden tem nas mãos o poder para mudar o mapa da produção das vacinas. A grande modificação no combate à covid ocorre dentro de uma semana, no dia 30 de março, quando entrará em vigor a patente registada pela equipa de Barney Graham num instituto público norte-americano, depois trabalharem desde 2016 para responder à MERS, o coronavírus que provoca a Síndrome Respiratória do Médio Oriente, e que define a engenharia molecular que está agora na base de cinco das vacinas para a covid (Moderna, Pfizer, Jansen, CureVac, Novavax). É portanto uma patente do governo dos EUA. Ou seja, estas empresas poderiam ser submetidas às suas condições, sendo levadas a partilhar o conhecimento para o seu uso universal.

Só que não vai acontecer nada. A Índia e a África do Sul estão a pressionar a Organização Mundial do Comércio para aceitar uma suspensão do direito das patentes de várias vacinas para permitir um aumento de produção, usando mais capacidade instalada, só que defrontam o veto dos EUA e, claro está, da União Europeia. Aproveitam a Rússia (que já produz as suas vacinas na Coreia do Sul e no Cazaquistão) e a China (que produz nos Emiratos Árabes Unidos, no Brasil e na Indonésia).

O uso generalizado da nova tecnologia das vacinas, que salvaria vidas, é bloqueado pelos interesses comerciais das farmacêuticas e pela hipocrisia de instituições internacionais. Desse modo, tudo sugere que Biden não usará a patente que a sua Administração tutela para alterar a regra do jogo. Sempre são trinta mil milhões de dólares de lucros covid que as grandes farmacêuticas prometeram aos seus acionistas este ano. E que importam mais umas centenas de milhares de mortes no Terceiro Mundo?

segunda-feira, 22 de março de 2021

Complexo de inferioridade


Será? Não sei. Mas há qualquer coisa que, há muito, não faz sentido. Nós somos como somos, insulanos, com uma história de centenas de anos, duros por múltiplos factores, é verdade, mas isso não obriga que hoje, alguns, sobretudo políticos, sintam a necessidade de colocar-se em bicos de pés para que sejamos notados no contexto do país. Primeiro, foi aquela treta do "povo superior" com um estendal de interpretações possíveis e, volta-e-meia, é que a Madeira foi "pioneira" nisto ou naquilo. Agora na "causa animal" e até com o raio da vacina da AstraZeneca li que os madeirenses foram "pioneiros" a de novo inocular com a marca do laboratório de Oxford. Curiosamente, o governo dos Açores também enaltece que a sua Região foi a primeira! Em qualquer dos casos deve ter sido pela diferença horária! Só pode.



Não fazem sentido preocupações desta natureza. Percebo a intenção política, mas é desastroso, quando, por ninharias saltam para cima de um estrado, de dedo no ar, para gritar ao pequeno mundo que nós somos um porta-estandarte de qualquer coisa!

Outrossim, enquanto Região Autónoma, ficaria satisfeito se batêssemos, pela positiva, os arrepiantes números  da pobreza, batêssemos pela positiva as preocupantes taxas de abandono e de insucesso escolar, o sistema de saúde não tivesse mácula, fosse de excelência a resposta na capacidade profissional na generalidade dos sectores de actividade, todo o desempenho económico fosse caso de estudo, os níveis de remuneração fossem melhores, os níveis de empregabilidade (em situação não pandémica) causassem espanto, as contas públicas estivessem equilibradas e não em permanente derrapagem, os níveis culturais, onde se inclui a prática física, fossem distintivos, a aposta singular na ciência e nas artes fosse surpreendente, enfim, se, relativamente aos outros, batêssemos, mesmo por pouco, os índices de bem-estar e o "índice de felicidade", embora subjectivo, porque é multidimensional, de qualquer forma fossem melhores que o restante país, aí, sim, ficaria feliz. Por ninharias, não.

Ora, grosso modo, estamos longe de demonstrar qualquer superioridade. Infelizmente, somos, em análise genérica, pobres, assimétricos e muito dependentes. Ademais, tal como, ainda hoje, o secretário de Estado da Saúde enalteceu: "isto não é (não pode ser) um ranking de regiões, nem uma disputa, é uma luta da humanidade". Falava da pandemia, é certo, mas esta frase, digo eu, pelo menos em parte, pode aplicar-se a tudo o resto. E se assim me situo é porque, até no plano individual, julgo que é mais sério, sensato e humilde que os outros, as instituições, olhem e assumam, livremente, a qualidade do trabalho realizado. Subir para cima da carroça e pregar parece-me imodesto pela presunção que transporta. Já bastam as campanhas eleitorais. Li, algures, que "todo o acto de superioridade revela a inferioridade de quem o pratica". Concordo.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 21 de março de 2021

O problema da Maçonaria na vida política democrática


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
20/03/2021


A discussão actual foi suscitada por uma proposta original do PAN e outra do PSD que, com diferentes graus de obrigatoriedade, implicam a revelação na vida política da qualidade de membro da Maçonaria. Ambas estão mal feitas, são atabalhoadas e, no caso do PSD, misturam, por uma obsessão salomónica que passa por isenção, o Opus Dei e a Maçonaria. Ambas as organizações podem gerar efeitos políticos semelhantes, no âmbito do clientelismo e do patrocinato, mas são diferentes na sua génese e no seu modus operandi e, acima de tudo, distinguem-se no modo como tratam o segredo, o aspecto mais relevante para a actual discussão. Acresce que a Maçonaria intervém essencialmente pelos seus membros, as suas afinidades e “irmandades”, sem comando colectivo, embora haja uma hierarquia de graus, e o Opus Dei tem hoje uma intervenção na vida pública que envolve o seu papel nas instituições financeiras e no mundo dos negócios, para além da presença, que não é única na Igreja, nas instituições de ensino.



É sobre a Maçonaria que me vou pronunciar, porque sou a favor da obrigatoriedade de declaração de pertença, para o registo de interesses, dos participantes na vida política, em particular em eleições e cargos electivos. Toda esta matéria está armadilhada, por conspirações, desconhecimentos vários, análises sem contexto histórico, quer do lado antimaçónico quer do dos defensores da Maçonaria. Esclareço desde já que nada me move nem contra a Maçonaria, nem a sua pertença, nem comparticipo das teorias sobre a sua relevância como “sombra” de tudo o que acontece, posições, aliás, alimentadas pelo segredo que a envolve. Penso, de resto, que a sua importância é habitualmente exagerada e que a sua influência na coisa pública é hoje muito menor do que a que existiu no passado, mesmo depois do 25 de Abril.

Acresce também que não há apenas uma Maçonaria, mas duas, e que são diferentes em muitos aspectos. A antiga Maçonaria, aquela a que praticamente toda a gente se refere, é o Grande Oriente Lusitano, o GOL. Mas na década de 80 começou a surgir uma cisão que deu origem à Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal, GLLP/GLRP, em 1991. A influência do GOL é predominante no PS, está também presente no PSD e no CDS, mas tem sido a GLLP/GLRP que explica que, na vida política, o único partido em que a influência maçónica cresce é o PSD.

Qual o problema que justifica a obrigatoriedade da declaração de pertença no registo de interesses, em nome da transparência? É muito simples e a confusão que é lançada todos os dias é igualmente suspeita e releva para a importância desse registo: a Maçonaria tem uma intervenção na vida pública que produz efeitos na política, seja pela “protecção” de carreiras, seja pelas escolhas para certas áreas da política democrática de grande sensibilidade, como seja, por exemplo, os serviços de informação e segurança, em que a presença de maçons é relevante. Pode-se e deve-se perguntar porquê. A resposta envolve a horizontalidade da organização, que percorre diversos partidos e facilita os contactos não escrutináveis entre políticos e negócios, mútuas informações e mútuas protecções. E, depois, o oculto do segredo e as relações de confiança entre “irmãos” que tem papel nas escolhas e nas carreiras. Não precisa de estar decidido em reuniões ou em instruções, faz-se naturalmente pelos rituais de pertença, reconhecimento e “irmandade”.

O exemplo que é mais conhecido é o da Loja Mozart, do GLLP/GLRP. Na lista dos seus “irmãos” encontram-se vários membros do PSD e da JSD, alguns que foram membros do governo, um líder parlamentar, deputados, o presidente da Ongoing, um grupo de gente do PSD envolvida no processo da Ongoing, chefes de gabinete, chefes militares, membros da chefia dos serviços de informação. Quando rebentou o escândalo envolvendo o SIED e a Ongoing e começou a haver escrutínio da comunicação social, houve uma debandada da Loja para outras da mesma obediência maçónica, e explicações esfarrapadas de que só lá tinham ido por curiosidade, como se à Maçonaria se fosse por curiosidade. Teve esta Loja e a sua pertença algum papel na vida política? Basta ver a lista de “irmãos” que é conhecida, e que não é total, para ver como nalguns cargos na Ongoing, no grupo parlamentar do PSD e nos serviços de informação estão lá o número um e o número dois, o patrão e o empregado. Para além do mais, é difícil ver na pertença à Loja qualquer especial dedicação ao Supremo Arquitecto, mas sim preocupações de carreira, dinheiro e influência.

A este exemplo podem acrescentar-se outros do PS, em que a presença da Maçonaria é historicamente relevante e mais antiga. A crescente influência no PSD é que é nova, até porque, por razões históricas, se trata de um partido com uma forte génese antimaçónica e anticomunista. Pode-se dizer que o objectivo de Rio é mostrar essa influência no PSD, até porque um número significativo dos seus adversários internos é maçon.

Pode ser, mas também aqui é importante que se saiba, porque na vida política isto não é uma “questão de consciência”, nem matéria de privacidade, nem comparável à revelação da identidade religiosa ou de género. Pode a revelação da qualidade de pertença à Maçonaria ser um prejuízo pessoal, profissional e político? Pode, mas a qualidade de membro do PCP nuns meios ou do PSD noutros também é. E, no caso da Maçonaria, a manutenção do segredo aumenta a especulação que só é mitigada pela revelação da filiação.

A Maçonaria tem um sistema de valores que a colocam no plano cívico e político em sentido estrito e uma forma de organização que implica o segredo ou a “discrição” que é uma aberração em democracia. Se alguém quer ser da Maçonaria em segredo, muito bem, desde que não seja na vida política. Até porque são os mecanismos de segredo que mais têm permitido os abusos de patrocinato, tráfico de influências e corrupção.

sexta-feira, 19 de março de 2021

E vamos calar-nos porquê, senhor Presidente?


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
19/02/2021


Pronto, Miguel, lá te publico: certeiras e justas críticas ao Governo e ao Presidente. Mas como no tempo histórico não há rewind - e apesar de, em teoria, ser sempre possível fazer melhor -, ficamos todos sem saber se, outro qualquer Governo, o teria feito. Assim sendo, deixo-te um conselho: antecipa tu as "boas medidas" e manda email ao António Costa. Talvez assim ele passe a falhar menos...
Comentário da Estátua

Se bem o li, no seu discurso de posse, Marcelo Rebelo de Sousa fez um sermão zangado aos que criticam a gestão da pandemia por parte do Governo e aos que procuram “bodes expiatórios” a quem assacar culpas pelo que correu e corre mal. Já antes, também avisara, solene, que não contassem com ele para desencadear ou alimentar “crises políticas”, a pretexto de alguns, incluindo eu próprio, se atreverem a dizer o que salta à vista de todos: que o actual Governo integra, em postos-chaves, notórios incompetentes na função e para o momento que atravessamos. Mas, que eu saiba, tal não é crime de lesa-majestade, nem, conforme nos repetem, a democracia ou o direito à crítica estão suspensos. E defender que o Governo se desembarace dos incompetentes, dos que só lá estão porque servem o partido e não o país, não é o mesmo que defender nem uma mudança de Governo, nem uma crise política: é defender que sejam chamados os melhores para enfrentar um momento de emergência nacional, sem olhar a cores políticas e a currículos partidários. Compreendo que o Presidente se queira manter na sua zona de conforto e de não conflito, na sua ponderada gestão dos timings de actuação que mais lhe convêm, mas, entretanto, há gente a morrer sem razão, há gente a perder o emprego, há empresas a falir, há portugueses desesperados e cansados de esperar. Não, Marcelo não tem razão nenhuma para nos pedir para continuar a ser pacientes, silenciosos e acomodados.



Tivemos aqui, de um lado, dez milhões de cidadãos que, muito antes de quem os devia orientar, perceberam o perigo que aí vinha e voluntariamente fecharam-se em casa, inventaram novas formas de vida, de trabalho e de sobrevivência e, com isso, evitaram o colapso do serviço público de saúde, faz agora um ano. E tivemos, do outro lado, um Governo que começou por dizer que a pandemia nunca cá chegaria, depois que estávamos absolutamente preparados para ela, e, a seguir lançou o país em pânico porque não tinha camas, nem ventiladores, nem máscaras (que começou por declarar que não serviam para nada e acabou a agradecer às fábricas de têxteis que se reconverteram para as fabricar). Tivemos depois um país civil que, passada a primeira vaga da pandemia, lambeu as suas feridas e lançou-se à reconstrução de uma economia devastada e curada com pensos rápidos pelo Governo, enquanto este, incapaz de sufocar os surtos residuais de infecção na região de Lisboa e Vale do Tejo, por não tratar de montar uma rede de rastreio, liquidou a imagem do “milagre português”, tão louvado por Marcelo e, com isso, o Verão do turismo. E ao longo desse Verão de 2020, em que a ausência de turistas estrangeiros só foi minimizada pela presença dos portugueses, o Governo nada fez, durante três decisivos meses, para se preparar para a anunciada segunda vaga, preferindo esperar para ver se ela viria, de facto. E, quando veio, declarou-se espantado por ter chegado tão mais cedo e mais forte do que esperava. E entrámos então no infernal ciclo dos estados de emergência, ao sabor de indicadores sempre atrasados, de palpites de ocasião e de anunciadas certezas, logo contraditadas pelos mesmos uns dias depois, com a mesma certeza. E os portugueses sempre confiantes, obedientes, crédulos em quem decidia em seu nome. Entra Novembro, e com a iminência da chegada das vacinas e vários países a prepararem há meses a logística da sua aplicação, só então, e depois de interpelado de fora, é que o Governo se lembra de acordar para o assunto e nomear à pressa uma task force encabeçada por um socialista disponível, e repousa sobre o assunto, após convocar as televisões para filmarem a “sala de comando” da operação de vacinação. Mas, para espanto geral, descobre-se que o comandante da operação, um mês após entrar em funções e ter produzido uma série de declarações — grandiloquentes umas, assustadoras outras — havia aceitado desempenhar em acumulação o cargo de presidente do conselho de administração de um hospital privado. E que, mais umas semanas decorridas e invocando uma grave ocorrência ética nesse hospital, se demitia — mas não do hospital e sim da task force da vacinação. (Felizmente, foi substituído por alguém com menos ego e mais sentido de missão). E os portugueses sempre a assistir.

Veio o Natal e, por estritas razões de popularidade, o Governo decretou soltura geral — não apenas por quatro dias, mas até meados de Janeiro, quando tivesse ocasião de avaliar os resultados do seu gesto de conforto. Desconfiados, os portugueses ainda acorreram a fazer testes preventivos, em massa e por conta própria. Mas isso não evitou o desastre anunciado: quando o Governo quis, enfim, saber o resultado do seu aventureirismo, descobriu que Portugal era o pior país do mundo em número de casos e de mortes por rácio de habitantes e logo depois deparou-se com o espectáculo de terror de filas de ambulâncias à porta dos hospitais esperando horas para entregar doentes que não tinham onde ser recebidos: Manaus em Lisboa. Entrámos então em dois meses de severo confinamento, do qual só agora começamos timidamente a sair, com avisos solenes de que, se não nos portarmos bem, tudo voltará atrás.

Mas, vejamos, onde é que nos portámos mal? Os portugueses aguentaram estes dois meses e tudo o resto sem manifestações de rua, sem desobediência civil organizada, como em quase todos os outros países da Europa e do mundo, sempre confiantes de que o Governo sabia o que estava a fazer e, mesmo quando manifestamente não foi o caso, sem terem sequer escutado um pedido de desculpas que lhes era devido. Milhares de empresas fecharam portas para sempre, outras viram perdidos anos de esforço, dezenas ou centenas de milhares de trabalhadores perderam os seus empregos, sem que o Estado lhes acorresse na dimensão em que outros países o fizeram porque passou anos a endividar-se quando o não devia. Centenas de milhares de crianças ficaram sequestradas em casa com os pais, privadas de um ano de infância, de ensino e de alegria. Dezenas de milhares de portugueses morreram antes de tempo porque o SNS suspendeu as consultas, os tratamentos e as cirurgias de todos os doentes não-covid durante quase um ano — apesar de tantos médicos e enfermeiros terem estado em casa sem fazer nada, enquanto os outros estavam, de facto, a tratar dos doentes covid e a dar o melhor de si, e apesar dos 900.000 dias de faltas ao serviço a mais do que em 2019 no SNS. E, por mais que o desmintam, descobrimos ainda que só temos 47% dos mais de 80 anos vacinados e um número irrisório dos com mais de 65 anos e patologias de risco associadas vacinados, porque, mesmo sabendo que somos dos países mais envelhecidos do mundo e que a vacina da Astrazeneca não fora testada em maiores de 65 anos e não era, pois, recomendada para eles, foi nessa que preferencialmente apostámos de entre os lotes comprados pela Comissão Europeia, porque era a mais barata e a que dava menos trabalho a armazenar e a distribuir. E, assim, em lugar de seguir o critério de vacinar preferencialmente para salvar vidas — o único critério eticamente aceitável e seguido pelos outros —, fomos assistindo a sucessivas justificações para adoptar outros critérios e vendo passar à frente dos que verdadeiramente estão ameaçados de morrer as habituais clientelas do Estado. Tudo junto, para chegarmos ao fim de 2020 com mais 10% de profissionais no SNS, tal como toda a gente reclamava, um aumento não calculado ainda de gastos acrescidos, mas uma diminuição tão acentuada da população portuguesa que, pela primeira vez em muitos anos, a idade mínima para a reforma, em lugar de subir, desceu: hoje, graças ao número brutal de mortos de 2020, os sobreviventes podem-se reformar mais cedo.

Marcelo não tem razão nenhuma para nos pedir para continuar a ser pacientes, silenciosos e acomodados

E os portugueses, senhor Presidente, devem continuar mudos e calados, como mudo e calado tem estado o Governo português, na sua função de presidir durante seis meses ao Conselho da União Europeia, perante o absoluto desnorte e descalabro que é o plano de vacinação europeu, cuja boa execução era, segundo garantiu o próprio primeiro-ministro, o ponto número 1 da agenda europeia neste seis meses?

Eu não pretendo ignorar — e já o escrevi várias vezes — quão difícil tem sido a tarefa de governar neste terrível último ano. Nenhum governo teve de enfrentar circunstâncias tão difíceis e imprevisíveis antes e, por isso, muitas hesitações e muitos erros são compreensíveis e aceitáveis. Mas se há coisa que não é possível dizer é que os portugueses não ajudaram o Governo. Mesmo quando muitos dos seus erros foram de pura soberba, de preconceito ideológico ou de manha propagandista. Para esses, eu acredito que já não vai haver mais paciência e mais contemplações por parte dos portugueses. É bom que o Governo e o Presidente estejam conscientes disso.

2 É bastante provinciana esta obsessão que tantos estrangeiros — e os portugueses, particularmente — têm em se preocuparem com a questão da Monarquia britânica. Não vejo os ingleses interessados em ocuparem-se dos sistemas constitucionais dos outros países e, aliás, como escreveu um inglês, o Reino Unido é, de facto, uma República, cujo Chefe de Estado é chamado de Rainha mas que detém menos poderes do que qualquer Presidente da República, em qualquer lugar do mundo. E, por alguma razão, ou várias, os ingleses dão-se bem com o sistema. Neste triste caso dos Duques de Sussex, trata-se apenas de mais uma tentativa dos americanos de conseguirem injectar algum royal glamour no seu republicaníssimo sistema constitucional. Wallis Simpson foi um tiro pela culatra, Grace Kelly um wrong target de uma Princesa fabricada pelas revistas sociais de um suposto Principado cujo Chefe de Estado é o Presidente da República Francesa. E esta patética Meghan (que eu só descobri que era negra porque ela e Oprah fizeram disso o chamariz da entrevista, à boleia do “Black Lives Matter”) é, patentemente, uma arrivista de ocasião, que afirma ter fugido de Inglaterra para escapar aos tablóides e se entrega, numa entrevista combinada ao detalhe, nas mãos do expoente máximo do jornalismo tablóide. “Oh!”, “Uau!”, “What?”, dizia Oprah, arregalando os olhos de estudado espanto, enquanto deixava por fazer as perguntas essenciais: de que viviam os duques, actualmente? De que se ocupavam, além das fraldas do Archie e da capoeira da sua casa de Santa Barbara? E a pobre Meghan tinha querido suicidar-se porque um tablóide tinha escrito que ela pusera a cunhada em lágrimas por causa de uns ramos de flores e a “Instituição” recusara prestar-lhe “apoio psicológico”? E alguém da “firma” manifestara preocupação ao Harry sobre “quão escuro” seria o Archie, mas o Harry (entretanto autorizado por elas a juntar-se à entrevista) não podia dizer quem fora e isso bastou a Oprah para ter o seu “caso”? Um caso que, dizem, é suficiente para abalar uma Monarquia cuja Rainha há mais de 50 anos preside a uma Commonwealth onde 70% dos seus pares são visivelmente escuros e nunca daí veio problema algum — até à Meghan entrar em jogo. Oh, God save the Queen!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quarta-feira, 17 de março de 2021

Não há risco zero


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
17/03/2021

Amanhã, pode ficar claro que as autoridades nacionais de saúde decidiram interromper uma vacinação atrasadíssima na Europa ao sabor das ansiedades dos cidadãos. Não é preciso ser cientista para perceber que cautela sem fundamento científico não é sinal de responsabilidade, mas de desnorte. Que é impossível vencer uma pandemia com base na fantasia do risco zero. O risco zero não existe. Nem quando se sai de casa para ir ao pão. Existe apenas a ponderação entre riscos e benefícios.
 


Seguindo Espanha, Itália, Alemanha, França, Noruega, Áustria, Roménia, Estónia, Países Baixos, Islândia, Lituânia, Letónia, Bulgária, Luxemburgo, Chipre, Irlanda, Dinamarca, Suécia e mais uns poucos países fora da União Europeia, Portugal suspendeu, no início desta semana, a vacinação com a AstraZeneca. Suspendeu, não. Fez "uma pausa", como se disse, para tentar aliviar o peso da decisão. E fê-lo explicando sempre que a vacina era segura e que não tinha base científica para tal decisão, o que não deixa de ser estranho.

Não tenho bagagem para falar de vacinas. Por isso, limitei-me a ouvir cientistas. Uns cientistas foram mais cautelosos do que outros, mas todos os que ouvi foram claros ao falar da ausência de evidência científica para pôr em causa a vacina da AstraZeneca. 40 casos de eventos tromboembólicos (coágulo sanguíneo que bloqueia uma veia​) em 17 milhões de vacinas administradas é abaixo de insignificante. E sem prova de causalidade estabelecida. Se este efeito levasse (numa dimensão até mais significativa) a suspender um fármaco, as mulheres deixariam de tomar a pílula.

Há quem, mesmo sem evidências científicas, apele ao princípio da cautela. Claro que deve haver cautela, mas ela não pode ignorar a ciência ou esperar que se descubra um medicamento sem qualquer risco associado. Se for esta a exigência, podemos parar a vacinação e entregamo-nos à sorte ou azar da pandemia. Mas talvez não seja isso que o princípio da cautela nos aconselhe. Ponderado o risco da vacina (poucas dezenas de casos em muitos milhões de vacinas) com o risco de não vacinar (milhares de mortes diárias que não serão evitadas), percebe-se que está em causa outra coisa: como as mortes por covid que poderiam ser evitadas não são contabilizadas, não serão atribuídas aos governos (incluindo a de mais uns dias perdidos). Os riscos que se querem evitar são políticos.

Não vou desenvolver qualquer teoria racional sobre o que levou a esta queda de peças de dominó, em que, de forma desordenada, os países se foram imitando numa suposta inevitabilidade, para evitar o pânico (alimentando-o). Apesar de não gostar de trabalhar em teorias da conspiração, há guerras comerciais e peritos ingleses vieram passar essa ideia. Há governos paralisados pelo medo de falhar, sobretudo nos países do norte, com muitos antivacinas, desejosos por ver uma vitima para apontar o dedo às autoridades. E há o fracasso do processo europeu de vacinação, que acabou por favorecer a descoordenação entre Estados. Parece estar cada um por si.

Esta terça-feira, a presidente da Agência Europeia do Medicamento (EMA) veio repetir o que já tinha dito: “Neste momento, não há qualquer indicação que a vacinação é que provocou estas situações. (...) Embora a investigação esteja em curso, continuamos firmemente convencidos de que os benefícios da vacina AstraZeneca na prevenção da covid-19, com os riscos associados à hospitalização e morte, são superiores aos riscos de efeitos secundários.”

Apesar das tentativas de EMA e OMS para travarem a onda de pânico de políticos europeus, o mal está feito. Com a reunião da EMA desta quinta-feira, pode ficar claro que as autoridades nacionais de saúde decidiram interromper um processo de vacinação que está atrasadíssimo na Europa ao sabor das ansiedades dos cidadãos, mesmo sem evidências científicas para o fazerem. Já se a EMA mudasse de opinião em dois dias, sem dados científicos novos (como mudou a da Direção-Geral da Saúde portuguesa), seria difícil acreditar futuramente nas palavras dos seus dirigentes.

Não é preciso ser cientista para perceber que cautela sem fundamento científico não é sinal de responsabilidade, mas de desnorte. Quantas pessoas morrerão com o adiamento desta vacinação? Não é preciso ser cientista para saber que ao reagir ao medo com medo se alimenta o medo e se dá força aos que se têm dedicado a espalhar desinformação. Na Bulgária, a vacinação está a ser um fiasco por desconfiança em relação às autoridades e à própria vacina, graças a meses de teorias da conspiração, propaganda e contradições. Não é preciso ser cientista para saber que esta descoordenação assustada apenas minou um pouco mais a confiança dos cidadãos europeus nas vacinas, quando percebem que as decisões das suas autoridades estão ao sabor dos humores públicos. Não é preciso ser cientista para saber que é impossível vencer uma pandemia com base na fantasia do risco zero. O risco zero não existe. Nem quando se sai de casa para ir ao pão. Existe ponderação entre riscos e benefícios. Conseguimos viver com isto?

terça-feira, 16 de março de 2021

Por terras da Ásia


João Abel de Freitas,
Economista
15 Março 2021

Um estudo refere que, no pós-Covid, os atributos vitais para o sucesso de qualquer país na Revolução Digital serão: velocidade, cooperação e resiliência. A Ásia encontra-se numa posição cimeira em todos eles.


Agora para umas breves notas sobre a Revolução Digital e o seu impacto no mundo.


1. Mas tendo o artigo anterior, A Classe média na Ásia, suscitado de volta uns tantos comentários interessantes, procurarei aqui sintetizá-los em três grupos. Classe média, causa e consequência do desenvolvimento; Ocidente em declínio porque sem estratégia para concretizar as potencialidades da Classe média; Classe média não basta para recentrar a economia mundial na Ásia. Que outros vectores?

Classe média, causa e consequência do desenvolvimento económico, apenas parcialmente de acordo. A Classe média tende de facto a robustecer-se com o progresso económico e quanto mais acelerado for, mais se estende na sociedade. Quanto a ser causa, tem de se juntar alguma coisa mais, pois depende da “arquitectura” do sistema económico em concreto. Por exemplo, na China, a classe média só começou a fortalecer-se com as reformas económicas de Deng Xiaoping, que facultaram às pessoas condições de intervir, de forma autónoma, no processo económico, pela devolução, em certas condições, da iniciativa privada, como pilar do novo modelo, designado Economia Socialista de Mercado. Foram estas reformas a base do elevado crescimento dos últimos 40 anos.

Quanto ao Ocidente em declínio, porque as suas medidas de política económica têm levado à destruição das classes médias, é uma realidade, mas outras razões se devem adicionar na explicação da crise, designadamente os atrasos relativos na competitividade tecnológica.

O desenvolvimento acelerado da classe média não sustenta, por si só, a dinâmica da economia mundial no sentido da nova centralidade na Ásia.

Muitos outros pilares confluem para, no prazo de uma década, consolidar a economia mundial no espaço China, Índia, Paquistão.

Os muitos estudos sobre este tema – e refiro um bastante pioneiro de 1991, “Pacifique: Le Recentrage Asiatique”, do CEPII – Centre d’Etudes Prospectives et d’Informations Internationales, em que participou o investigador português Joaquim Oliveira Martins – apontavam vários vectores. Neste, os seus autores focavam os quatro “E”. Em francês, Education, Epargne, Entreprise, Etat, com o Japão, então, como país motor, pois se encontrava ainda em pleno período de ascensão.

Hoje, há vectores a acrescentar, embora a educação continue uma grande alavanca e a Ásia capitaliza, a nível mundial, a geração Millennial, melhor preparada. Basta recordar que muitos quadros jovens e alguns CEO de grandes empresas americanas são de origem asiática.

A Revolução Digital de que vamos falar é um vector crucial e também na ordem do dia em Portugal e União Europeia, assumida, formalmente, nos Planos de Recuperação e Resiliência (PRR).

2. A Revolução Digital é um dos marcos que separa a Ásia do Ocidente.

Na Ásia não estiveram à espera de uma pandemia para avançar na Revolução Digital. Na União Europeia, sem pandemia, nem a Revolução Digital, como ideia de força, se manifestaria. Que nem assim se chama, mas Transição Digital!

Apesar de anunciada há cerca de um ano, talvez para o Verão comece a haver dinheiro. E lá para finais de 2021, senão mais tarde, começarão a aparecer projectos e, certamente, algo desgarrados, pois sem estratégia e metas/objectivos definidos. O PRR, apesar de alguma lógica na elaboração, não avança com uma estrutura de projectos onde se traduza o que é a digitalização na saúde, no ensino, etc. e até onde queremos chegar e menos ainda, a não ser de forma vaga, se caracteriza a qualificação das pessoas.

Difícil implementar projectos sem gente habilitada e sem metas.

Estas as grandes diferenças Ocidente/Ásia: planeamento, qualificação, velocidade, ritmo e objectivos/metas.

A Revolução Digital na Ásia já hoje se traduz com grande impacto na criação de riqueza e, em alguns países, de forma muito consistente. Independentemente de países como a Índia, Japão, Indonésia, Coreia do Sul, com elevado potencial de transformação inovadora e de empresas com grande operacionalidade nesta área, a China lidera a Revolução Digital no continente asiático.

Assim, os gigantes dos motores de busca como as chinesas Baidu e Alibaba, ou a japonesa Rakuten, os players de serviços para a Internet como a Tencent, as startups de pagamentos digitais como a indonésia Go-Jet e a indiana Paytm, o uso generalizado de robots industriais e de serviços e os investimentos em Inteligência Artificial (IA), tudo conflui para revolucionar as empresas da e na região e na sua inter-relação com o mundo.

Um estudo da MacKenzie revela que o número de utilizadores de internet é muito superior ao de qualquer outra parte do mundo, bem como a dinâmica do e-commerce. A reforçar esta ideia de forte avanço da Ásia na digitalização, as compras através de dispositivos móveis são a prova evidente:

Ásia 74%
Europa 37%
EUA + Canadá (América do Norte) 31%

No pós-Covid, refere este mesmo estudo que os atributos vitais para o sucesso de qualquer país na Revolução Digital serão: velocidade, cooperação e resiliência. A Ásia encontra-se numa posição cimeira em todos eles.

3. Com esta ideia de melhor entrosamento digitalização/empresas pretende-se dizer que nas economias asiáticas tudo corre bem?

Não, certamente. Não nos podemos esquecer das muitas razões históricas de conflitualidade e de desconfiança entre países que estão, apesar de tudo, numa visão pragmática a cooperar entre si, estando em jogo países com regimes políticos diferentes e um nacionalismo muito arreigado em alguns deles. Tal como também não nos podemos esquecer da disputa China/EUA pelo lugar cimeiro no mundo e de quanto isto acarreta no acicatar de conflitos entre países.

A nível interno, alguns países – e evidencio a China como país motor – encontram-se em fase de mudança acelerada na especialização económica, onde começam a aparecer com peso relevante investimentos improdutivos e a sua necessidade de apostar no exterior através, por exemplo, de “novas rotas da seda” que estão a traduzir-se em parcerias com vários países, neste momento, em situação complexa devido à pandemia.

Finalmente, na óptica de disputa mundial, se revisitarmos a história predominam, as teses e a realidade de que poucas têm sido as vezes em que a perda de hegemonia mundial sucede de forma pacífica.

Falar deste tema levaria “a ficar” muito tempo pela Ásia. O que vamos sinalizar então aqui?

4. Uma nota de esperança. Existe um vasto consenso entre analistas de que a situação hoje é diferente. A China não parece ter intenção de substituir os EUA no domínio militar e no campo financeiro é difícil destronar o dólar no curto prazo.

Parece, assim, baixa a probabilidade da China enveredar pelo caminho do hard power, quer por tradição e cultura, quer pelo exemplo da ex-URSS (investimentos excessivos em termos militares). A disputa vai continuar na base da tecnologia, onde a Ásia já é forte e a China relevante, e no sonho de um “novo modelo” de trocas mundiais assente num sistema de parcerias com objectivos bem negociados.

Apesar de a China ser já o número um mundial em termos de PIB em paridade de poder de compra, terá de o multiplicar no mínimo por quatro, para se aproximar do PIB médio por habitante dos EUA. A disputa EUA/China vai pois alongar-se no tempo, com a balança a inclinar-se paulatinamente para o lado chinês, muito apoiado, no entanto, no ambiente asiático.

Há um grande consenso dos analistas de que o futuro irá rodar em torno de parcerias de novo tipo, beneficiadoras de todos os lados.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.