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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A voz do eucalipto é lei!

 

Há quantos anos isto acontece! Directo ao assunto. Em todos níveis de análise, a verdadeira Democracia ainda não passou por aqui. Formalmente ela existe, os ciclos eleitorais acontecem no quadro da Lei, já foi pior (dizem que até os mortos votavam), mas hoje sabe-se que só contam os votos expressos. E se, de quando em vez, há alguma marosca, estou em crer que ela é marginal e combatida. O problema não reside aí. É mais profundo e de difícil, não na compreensão do fenómeno em si, mas quando se pretende descortinar a mentalidade que se enraizou e, qual eucalipto, cresceu, rapidamente, sugando toda a água (leia-se liberdade e direitos) à sua volta.



Ao longo de anos assisti à sementeira do eucalipto, político, claro, nesta silenciosa floresta de homens e mulheres. Subtilmente, outras vezes às escâncaras, o eucalipto foi competindo e matando outras espécies. Tal como nas Mirtáceas, gerou muitas espécies, mas todas Eucalyptus. 

Já tem um tempo e li em Paulo Novais, Professor de Inteligência Artificial, um texto muito interessante e cada vez mais actual, onde sublinha que eles, os eucaliptos da vida, "secam tudo à sua volta e são uma espécie que tem vindo a ganhar adeptos e a vulgarizar-se. São indivíduos que, no seu dia-a-dia, por norma, são afáveis e têm uma assinalável facilidade de se relacionarem com os outros, de comunicarem, no fundo expressam-se bem, falam simples e repetem à exaustão cassetes e frases feitas, mas conhecem muito bem a sua malta. São indivíduos que utilizando esta proximidade são capazes de se rodearem de correligionários fiéis, que não discutem nem lhe desobedecem – a voz do Eucalipto é assim a “lei” que domina. Nos seus domínios controlam as diferentes organizações colocando aí os seus “fiéis” – o Eucalipto tem raízes profundas e distribuídas no seu meio ambiente, empobrecendo desta forma o seu habitat porque não permite o aparecimento da diversidade".

De facto, o Eucalyptus está em toda a paisagem madeirense e quem os intencionalmente planta pouco se importa de ser nocivo relativamente à biodiversidade nos ecossistemas. Importante é continuar a sementeira que impeça quaisquer outras plantas germinarem. Vejo-os plantados e de plantão em todo o sistema político.

Não me foi estranho, por isso, há dias, um interessante diálogo que tive com um amigo de longa data. É na sequência dessa amena conversa que escrevo. A páginas tantas disse-me: "(...) ter uma conversa com ele, sim, ir a um encontro aberto ao público para dizer o que penso, não. Tenho familiares que trabalham em instituições públicas e não os quero prejudicar". Em síntese foi mais ou menos isto que me referiu. Para com os meus botões pensei: lá está o efeito "eucalipto". Seca tudo, seca a diversidade da opinião livre e responsável. Seca um dos vectores da própria democracia.  


Não deixa de ser curioso, enquanto no Continente, quando perguntamos a uma pessoa onde trabalha, a resposta sai com naturalidade: no ministério da educação, no ministério da agricultura, no ministério da saúde, na Direcção Geral disto ou daquilo, etc; aqui, também com naturalidade, a resposta é: trabalho no governo! Enquanto a primeira transporta uma ideia de independência política (função profissional e o local é uma coisa, a opção partidária é outra), aqui existe uma intuída aproximação ao poder político, como se de um "patrão" tratasse. Tenho uma curiosa história que ilustra este sentimento. Já tem uns anos, estava eu em campanha eleitoral à porta de uma instituição autárquica, aproximei-me de uma senhora que às 17:30 saída do seu trabalho e disse-lhe: "quando puder, leia a nossa proposta". Respondeu-me: "sim, esteja descansado, eu voto sempre no senhor presidente"! Pela forma, tom e semblante, uma vez que me conhecia dos corredores dessa instituição, creio que não estava em chalaça comigo. É assim, grosso modo, o comportamento do eucaliptal.

E aqui sumariamente chegados, ressalvando que este é um tema de ligações e análises quase inesgotáveis, pergunto como devolver a liberdade de pensamento e de opinião que devia nortear a democracia e a atitude de todos os cidadãos? Aos partidos? À comunicação social? Desde logo, os partidos políticos, com algumas culpas próprias e históricas, é certo, sentem-se bloqueados pela castradora mentalidade que se tornou paisagem. Por razões diversas, uma fatia da população está empregada e invade-lhes o medo de uma qualquer ostracização ou perseguição (desde o quadro técnico ao contínuo); outra parte espera por um emprego ou beneficia de qualquer coisa e quanto ao tecido empresarial, todos os cuidados são poucos, pois conhece muito bem os meandros do sistema. Nesta anormal configuração "democrática" a adesão a outros projectos torna-se complexa. E os "corajosos" sabem quanto isso custa! Depois, temos a comunicação social, num espaço territorial limitado, onde as pessoas se conhecem, onde as relações são, por isso, umbilicais, um espaço dominado pelo grande capital que nos sectores chave influencia, ordena como quer e com subtileza, limita a acção dos profissionais, os quais, por seu turno, legitimamente, olham e pensam na família e nas obrigações que a vida impõe. Pergunta-se, então, como chegar ao povo com verdade e honestidade? Os temas de fundo, os que são estruturais, aqueles que merecem investigação séria, obviamente que os tais profissionais os dominam, mas olhando para os contextos, preferem estar quietos, optando por navegar nas águas sem ondas.

Mas há que sair disto. Por uma sociedade sem donos do pensamento. O mérito de governar está no conhecimento, na capacidade e na autenticidade. Só os medíocres têm medo do que os outros pensam. E neste aspecto a Escola afigura-se-me determinante na construção de uma sociedade livre. O problema é que a Escola também está doente.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

As Irmãs da Itália — Pum!


Por
Carlos Matos Gomes,
in Medium.com, 
26/09/2022
estatuadesal

Nota
Estátua de Sal, 26/09/2022
Mais um texto brilhante do Coronel Matos Gomes. Um grande bem-haja a uma das poucas vozes lúcidas que se consegue ir ouvindo na desmontagem da narrativa a que o "Império" nos vai sujeitando.



Lembro-me de uma canção jocosa dos tempos da infância: As Irmãs da Caridade — Pum… seguia-se uma lengalenga pouco canónica.

A Itália tem agora uma irmandade no governo, que inclui o Força Itália do antigo comediante e organizador de festas do Bunga-Bunga. A decadência dos impérios tem na Itália a mais rica das fontes e esta eleição é um ato da decadência da UE que decorre no que hoje os programadores de espetáculos classificariam como uma longa Rave e na antiguidade seriam bacanais ou festas dionisíacas.

Não é um assunto de bons augúrios, mas no ponto em que os europeus se encontram não existe lugar para bons augúrios. Estamos, na U E como crianças metidas num escorrega. A irmã Meloni prometeu aos italianos que, no fundo da rampa, ao aterrarem, encontrarão um fofo tapete de espuma e não pedras de arrestas vivas que lhes dilacerarão as carnes.

Quanto a irmandades. Um dos mais antigos gritos de apelo não foi, como se pode julgar o guerreiro: — A Eles! — ou: — Às armas! -, mas o sibilino: — Irmãs e irmãos! — Irmãos é a arma de arremesso mais poderosa dos demagogos. A sabedoria dos curas e dos sacerdotes de todas as crenças sabem que é assim que se iniciam os sermões.

A proclamação é aliciante e parece corresponder a uma verdadeira intenção e ser lógica. Biblicamente todos somos filhos de Deus. Irmãos, portanto. Mas a porca torce o rabo quando nos recordam que o primeiro crime foi o assassínio de um irmão pelo outro. O Caim matou o Abel, ou ao contrário.

São conhecidas ao longo da História várias organizações que recorreram ao truque do “irmão”, elas vão das Mafias (cujos princípios se julga terem sido trazidos da China por Marco Polo), às Tríades chinesas, das ordens religiosas cristãs, aos gangues de Chicago ou Nova Iorque, da Opus Dei, à Maçonaria, e, indo a outras culturas, dos irmãos muçulmanos, aos Assassinos de Al Sabath, da Al Qaeda ao Isis. Todos se tratam por irmãos.

Irmãos, apesar deste passado, parece continuar a ser um slogan eficaz. Os irmãos italianos ganharam as eleições.

Irmãos remete para a ideia de igualdade que é cara a todos. E faz esquecer o aviso de George Orwell em O Triunfo dos Porcos — que há sempre entre iguais uns mais iguais do que outros.

Os irmãos de Itália não são uma novidade nem política nem social. Em tempos de crise surgem regularmente movimentos messiânicos, que prometem a igualdade, a felicidade, a justiça, a perseguição de hereges e corruptos a troco de um voto, de um dízimo, de uma aceitação.

Os italianos têm uma longa história de embustes deste tipo, o último o de Berlusconi e o anterior o de Mussolini, sempre com resultados tão desastrosos como os que esperam desta nova irmandade e desta nova Senhora aparecida, de sua graça Giorgia Meloni. Porque votam os cidadãos comuns nestes pregadores de feira e em seitas deste tipo?

Porque a esperança é a última coisa a morrer. A Torre de Pisa é o símbolo nacional de Itália. Racionalmente todos sabem que aquilo vai cair, mas ninguém acredita que caia no seu tempo e, principalmente, que lhe caia em cima.

Estes movimentos de demagogia messiânica, populistas e milenaristas que estão hoje na moda na Europa, são vazios de tudo, exceto de promessas de chuva no nabal e sol na eira. São em geral assessorados por especialistas em comunicação que trabalham para os grandes bancos e conseguem convencer as pessoas comuns que o seu dinheiro corresponde a um valor sólido. Isto logo a seguir a uma jogada de desvalorização deliberadamente provocada como foi a da falência do banco Lehmann Brothers e da crise do sub-prime de 2008. É na base da teoria que Bill Gates designou como a do “último idiota”, da Dona Branca portuguesa, que estas irmandades aliciam a clientela.

A estas seitas — do Chega, do Vox, da FN, dos Irmãos italianos — nunca se lhe ouve uma palavra sobre o valor do dinheiro, nem sobre inflação, nem sobre a destruição da riqueza material (terras, florestas, águas), nem, no caso presente, sobre a guerra da Ucrânia, que decidiu o futuro da Europa e o comprometeu por décadas.

Sobre temas decisivos, os Chega e os Irmãos, guardam de Conrado o prudente silêncio. A vitória dos Irmãos em Itália não altera o núcleo de poder, que continuará a ser detido pelos industriais aristocratizados do Norte (Milão e Turim) e pela Mafia e a Camorra, as irmandades do Sul.

Giorgia Meloni, a madre da irmandade, vai ser o que Zelenski é na Ucrânia, o que Liz Truss é em Inglaterra, o que Guiadó foi na Venezuela, o que a senhora Van der Leyen é em Bruxelas… uma figura que os italianos não consideram diferente das outras que estiveram no governo anteriormente.

As pizzas continuarão a ser redondas. Dirão os italianos. O pequeno problema é que serão mais pequenas. Muito mais pequenas.

Quanto ao resto a União Europeia continuará o seu processo de salve-se quem puder. A Itália da irmandade da senhora Meloni deverá seguir a mesma política da Polónia do partido de extrema direita Lei e Justiça de Jaroslaw Kaczynski, reforçando o bloco belicista e neoliberal da U E, sob a orientação dos Estados Unidos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Maldita sociedade estamos a construir


Não se trata de um caso isolado. Com maior ou menor gravidade, sucedem-se os casos de abandono, desleixo, insensibilidade, negligência e indiferença perante os outros. Agora foram as imagens num lar, com uma Senhora que serviu de passeio a milhares de formigas ou o outro com as fezes no próprio espaço onde descansa. Ninguém viu ou, se viram, olharam para o lado, distantes de qualquer sentimento afectivo e profissional. Um horror! E lá virá o rol de desculpas: foi circunstancial, uma excepção, que será aberto um inquérito, que serão "implacáveis na punição" e, finalmente, que não se pode tomar a parte pelo todo. Porém, para qualquer pessoa minimamente sensata, basta a existência de um só caso.


Maldita sociedade estamos a construir. Para se chegar àquela situação de ausência de afeição e amor, tragicamente irresponsável, temos de ir mais atrás e percorrer os erros de formação geral e específica do ser humano. Há dias, em amena conversa com um Amigo, dizia-me, porque vê e analisa as situações com exímia profundidade que, por vezes, sente que as pessoas o olham como se fosse um ET. Há, de facto, uma montanha de equívocos, geradores de comportamentos inadequados, os quais atravessam toda a sociedade, desde logo a partir dos sucessivos governos até à genérica mentalidade dominante nas famílias. De permeio, pergunto, o que anda a Escola a fazer na preparação de um ser humano que repudie, entre outros, os actos de violência social, emocional, física e sexual?

Situo-me no espaço escola para dizer que esta Escola, em comunhão com as palavras do Professor universitário António Feijó, não está preparada para fazer "aprender coisas intelectualmente interessantes (...) não está preparada para a "razão e a racionalidade". Porque não lhes "ensinam a pensar", sublinhou o Professor Catedrático Miguel Tamen. Certamente que naquele lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime (misericórdia significa "sentimento de caridade despertado pela infelicidade de outrem; piedade, compaixão) os que o lideram terão formação académica considerada adequada. Só que a prevalência dessa formação foi orientada para a resposta considerada certa às perguntas resultantes dos programas das várias disciplinas e etapas da escola, básica e secundária, e não propriamente para "a integralidade do ser e pensar de cada individuo no mundo" (infoescola).

E o círculo vicioso eterniza-se. Periodicamente continuamos e continuaremos a ser confrontados com situações, não apenas as de protecção aos mais vulneráveis (caso dos lares), mas em todo o tecido social. Casos arrepiantes em variadíssimos domínios que chocam e abalam a credibilidade de quem tem o dever de conduzir os princípios orientadores de uma sociedade sadia. Entre outros, pergunto, novamente, que sociedade estamos a formar, quando nos primeiros seis meses de 2022, dezanove mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica? Uma média de três mulheres por mês! Todos os meses, em Portugal, três mulheres confrontam-se com uma sentença de morte!

Apesar de todos os cuidados, não quer dizer que, aqui e ali, não aconteçam circunstanciais comportamentos indesejáveis. Uma certeza, porém, tenho: os políticos estão mais interessados na "obra" física do que na "obra" de construção do ser humano. Lamentável.

Nota
Tenho apenas uma vivência de um lar (Lar de Idosos de Santana/Madeira) onde me sensibiliza e comove a excelência dos comportamentos de quem lá trabalha. Não conheço outros, mas aquele não pertencendo à "misericórdia", tem misericórdia para oferecer. Os tais de Boliqueime deveriam ali fazer uma formação. 

Ilustração: Google imagens.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Gás de xisto em exploração na Europa?


Por
18 Setembro 2022


Os países europeus não tinham alinhado com os EUA. Agora, desorientados com a escassez de gás natural mas sobretudo temerosos da avalanche de contestação social, os políticos europeus fazem marcha atrás.



A Europa em deriva climática

1. A Europa e a União Europeia em particular estão em onda de desnorte perante a crise energética (que se arrasta há algum tempo) e a inflação galopante que daí decorre. Segundo o Eurostat, em Agosto, a inflação atingiu 9,1%, na zona euro, um aumento de 0,2 pontos percentuais face ao mês anterior. Em Portugal, o INE reviu em baixa para 8,9%.

A escassez de gás natural, que tudo indica pode trazer um inverno de frio pouco amigável para a maioria dos europeus, faz estremecer os dirigentes políticos.

Juntando a subida dramática dos preços dos bens ao aumento das prestações do crédito, nomeadamente a da casa, estão criadas as condições explosivas para uns tempos de turbulência com efeitos sociais e políticos imprevisíveis.

A comunicação social europeia está a ser eco desta situação, apontando movimentos autónomos de contestação social como o do não “pagamento da factura” no Reino Unido, que já recolheu 180 000 signatários e procura até ao 1º. de Outubro reunir um milhão para começar a agir, “não pagando”. Em França, após manifestações dispersas, está em marcha uma maior para 29 de Setembro, esta da responsabilidade da CGT, que inclui, entre as suas palavras de ordem, a temática das pensões.

Em muitos outros países (Alemanha, Itália, Bélgica …) e cidades diversas reina um forte descontentamento e indícios de protesto variados. Na Itália, desenvolve-se o movimento “rasgue-se a factura”. Este ambiente favorece avanços das forças de extrema-direita no espaço europeu como aconteceu na Suécia e as sondagens em Itália vão também nesse sentido.

Tudo aponta para uma mudança da correlação de forças no terreno político da UE, o que a acontecer não será indiferente às relações com a Rússia.

Medidas de mitigação dos efeitos da crise

2. Alguns governos estão a avançar com medidas de mitigação do impacto da subida vertiginosa de preços, com pouca adesão dos europeus.

O descrédito das populações nos políticos “corta” fundo. Há o sentimento de que os políticos europeus erraram sucessivamente e perderam o comando da situação. Que os erros cometidos nas sanções foram muito desproporcionais, não tendo em conta a situação de crise económica que vinha da Covid19, nomeadamente o estrangulamento dos circuitos de abastecimento.

A Comissão Europeia tenta medidas quase sempre mal desenhadas que não convencem os países membros, nem as populações, porque não atendem ao custo-benefício, económico, político e social.

A reunião do Conselho Europeu da Energia do dia 9 de Setembro é uma prova. Mais um fiasco a somar para mal dos europeus. Não sei se o Banco para o Hidrogénio avançado pela Presidente tem sentido e vai convencer alguém. É necessário reflectir nos erros cometidos antes de avançar com mais medidas desastradas.

O avanço pela Comissão da medida “revisão da formação dos preços da electricidade nos mercados por grosso”, há muito reclamada até por Macron, é tão tímida e formatada com pouca consistência técnica, que não incute confiança.

Um assunto que toda a gente entende que nada tendo a ver com os custos de produção da electricidade, no presente, antes segue os preços do gás, é um absurdo, apenas serve os lucros dos grandes grupos energéticos (apropriação de rendas) em detrimento dos consumidores em geral.

Erros não se resolvem juntando outros.

A introdução do gás de xisto na Europa

3. Há um passado europeu recente por detrás da não exploração do gás de xisto na Europa, devido a preocupações ambientais e efeitos geológicos. Por exemplo, o aumento do grau de sismicidade em zonas de exploração.

Os países europeus não tinham alinhado na onda dos EUA que desprezaram estes efeitos e avançaram. Agora, desorientados com a escassez de gás natural mas sobretudo temerosos da avalanche de contestação social, os políticos europeus fazem marcha atrás, querem mostrar trabalho e, deste modo, vários países encaram e alguns já decidiram partir para o gás de xisto.

No Reino Unido, a primeira-ministra Liz Truss, dois dias após a sua tomada de posse, levantou a moratória de suspensão da exploração abrindo caminho para o gás de xisto.

Na Alemanha, o problema está em marcha. O lóbi do gás de xisto está a trabalhar bem e já capturou um partido do governo, o FDP (partido democrático livre)

A Hungria foi o primeiro a dar luz verde e outros países ponderam.

Há de facto muitos metros cúbicos de gás de xisto no subsolo europeu. E nada mudou em termos de impacto ambiental e geológico face ao que se sabia quando tudo foi proibido ou abandonado por não viabilidade económica.

O que é o ‘fracking’

4. Esta técnica de extração serve para capturar petróleo ou gás de xisto (fracturação hidráulica), através de uma cisão precisa de blocos geológicos, por meio de injecção de água a elevada pressão que perfura, deste modo, as rochas pouco permeáveis. A água a alta pressão é misturada com uma elevada e diversificada quantidade de produtos químicos de elevada toxicidade e areia para dificultar que as rochas perfuradas voltem a fechar.

É construído um poço normalmente vertical até uma certa profundidade (cerca de 2 Km). Detectada a camada dos hidrocarbonetos, alarga-se o poço a fim de permitir a maior captação possível de gás.

Há muita controvérsia sobre o uso dos combustíveis fósseis e ainda mais sobre as técnicas de extracção.

O fracking como uma dessas técnicas tem associado graves e perigosos efeitos em diferentes domínios, apontando-se a poluição da água designadamente os lençóis freáticos bem como o elevado consumo. Um furo, referem alguns estudos, consome 200 000 m3, usa cerca de 500 produtos químicos de variados efeitos por exemplo, substâncias de teor cancerígeno; a poluição do ar; a poluição dos solos, e o aumento do grau de sismicidade nas zonas de exploração.

Não podemos deixar de relevar os elevados riscos para a saúde humana do seu uso, onde a leucemia nas crianças é evidenciada nos estudos de impacto.

Desconcerto com o acordo de Paris

5. Em síntese, políticos e governos europeus, entre eles, os dos maiores países recorrem a todos os expedientes para “taparem” os erros que as populações lhes imputam, na escassez do gás e efeitos decorrentes. O frio do inverno é o que mais temem.

A entrada da Europa na extracção do gás de xisto, a dar-se, é um erro maior, pois este combustível fóssil é muito mais perigoso que o gás natural. É um caminhar para trás no tempo e um grande desconcerto da Europa com o acordo de Paris.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sábado, 17 de setembro de 2022

A Rainha e os súbditos

 

Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
17/09/2022
estatuadesal

A Rainha deu posse a Liz Truss como primeira-ministra na terça-feira da semana passada e dois dias depois morreu. Aparentemente, estava de perfeita saúde, apenas fraca, nessa terça-feira, mas, quando viu quem era a 14ª chefe de um Governo seu que lhe cabia nomear, ficou para morrer... e morreu mesmo. Essa era a fatalidade constitucional de Isabel II, a qual lhe coube arrastar em silêncio durante 70 longos anos: guardar para si os sinais evidentes de desconforto ou de desastre que a sua perspicácia lhe permitia ver mas obrigava a silenciar. Ao ponto de ir ao Parlamento ler um Discurso do Trono, integralmente escrito pelo primeiro-ministro Boris Johnson, em que prometia que “o meu Governo tudo fará para consumar rapidamente o ‘Brexit’” — a que ela, e outrora o próprio Boris Johnson (tal como Liz Truss), eram avessos.


Entre as várias coisas interessantes e as imensas banalidades e disparates que esta semana vi escritas ou ditas sobre Isabel II, li uma análise primária de uma nossa republicana facção histérica a proclamar que a Rainha fora uma privilegiada, que vivera uma vida inteira entre o luxo e a ociosidade. Como se o luxo fosse ter um séquito de empregados sempre em cima, ou ter 11 castelos ou palá­cios Tudor onde viver, ou ter de passar férias de Verão à chuva na Escócia. Ou como se a ociosidade, a falta de privacidade e a condenação pública ao silêncio para a vida fossem um privilégio. Há, seguramente, muitas razões válidas para se recusar a monarquia como sistema constitucional ou, simplesmente, para achar que não faz sentido considerá-la em países onde ela deixou há muito de estar institucionalizada, como é o caso de Portugal. Mas o argumento populista sobre os privilégios reais é o mais fraco de todos. É o argumento ditado pela inveja de rua, o mesmo que a rua aplica ao vencimento dos políticos, o argumento dos que defendem que toda a representação política deve ser exercida em estilo de sacerdócio — o caminho mais rápido para a corrupção e para a selecção de medíocres.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No caso da família real inglesa — que é, de facto, riquíssima —, parte dessa riqueza é do Estado e parte é da própria família Windsor: Balmoral, por exemplo, onde a Rainha morreu, é propriedade deles. Mas se a lista de despesas da família real, autorizada e votada pelo Parlamento, e que já foi bem maior, é, ainda assim, enorme aos olhos de um inglês comum, é porque as instituições e o povo entendem que é esse o nível de representação adequado para a Casa Real. Todavia, e como é bem sabido, toda essa panache de símbolos, cerimónias e parafernália ligada à Casa Real inglesa traduz-se num volume incomparavelmente maior de receitas que ela proporciona, ligadas ao turismo, hotelaria, comércio, venda de jornais e revistas. A Rai­nha (e agora Carlos III), a respectiva família e o que eles fazem ou deixam de fazer são uma constante e inestimável contribuição para o PIB do Reino Unido. E não só: basta ter visto, entre nós, as doses maciças de cobertura televisiva dos intermináveis funerais da Rainha.

Mas, sim: 14 dias de funeral, mesmo para uma Rainha de Inglaterra, mesmo para Isabel II, que reinou ao longo da vida de quase três gerações, é demasiado. Desde Tutankhamon que não se via nada assim. Dizem-nos que tal se ficou a dever ao respeito que ela inspirou no mundo inteiro, ao exemplo excepcional que foi de servidora pública, das convicções firmes que sempre manteve (todavia silenciosas ou apenas presumidas), do rigor e do sacrifício com que exerceu funções. Bem, a avaliar pela indigência dos discursos com que foi homenageada nos Comuns por Boris Johnson, Theresa May, Liz Truss ou o próprio filho Carlos, não custa acreditar que, ao pé deles, ela tenha sido excepcional. Mas quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista? Comparado com estas marionetas escravas das opiniões públicas instantâneas, do politicamente correcto e das redes sociais? Reparem na nova primeira-ministra inglesa, esse cata-vento que muda de opinião mais depressa do que muda o vento no Canal da Mancha, que não foi capaz de dizer se a França é um amigo ou um inimigo de Inglaterra, mas que, logo após ter tomado posse perante a Rainha, correu a telefonar e prestar vassalagem a Zelensky para ficar bem-vista do lado de onde sopra o vento nos dias de hoje. Seria muito curioso saber o que terá pensado a Rainha, mesmo antes de morrer, se foi informada desse telefonema. Terá concordado com ele, tê-lo-á achado uma prioridade de um PM inglês acabado de ser empossado? Aliás, com toda a sua experiência do mundo e das guerras a que assistiu, ela, que começou a aprender política com o verdadeiro Churchill, o que pensaria da guerra da Ucrânia e da posição do seu Governo perante ela?

Quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista?

Mas, para efeitos de política interna, Liz Truss fez bem em apressar-se a telefonar a Zelensky. Pouco depois, o “Churchill do Leste” começou manifestamente a ficar nervoso com o protagonismo que o interminável funeral da Rainha lhe estava a roubar e justamente no momento em que ele tinha triunfos sólidos no campo de batalha e motivos de escárnio dos soldados russos para anunciar ao mundo. Juntamente com novo pedido de mais armas do inesgotável armazém do Pentágono, prontamente acudido por Washington. Como a guerra é um vaivém, os russos dizem-se agora prontos para negociar, mas Zelensky não: quer a vitória total, com as armas americanas, o apoio da NATO e as sanções europeias, pagas com a respectiva crise económica. E a vitória total inclui já a Crimeia e, no ime­diato, a anunciada retoma da central nuclear da Zaporíjia — o que implica atacar a central, mesmo com o pessoal da ONU lá dentro (aquilo que os ucranianos acusavam os russos de fazer mas que estranhamente cessou assim que os observadores da Agência Internacional de Energia Atómica lá entraram).

Assim, a menos que Putin se disponha a sair da Ucrânia dando-se por vencido e humilhado — o que não é exactamente provável —, temos guerra para durar sem fim à vista. E com a dita “chantagem do gás” posta em prática por Putin, e que mais não é do que a resposta previsível e natural às sanções sobre a Rússia, avizinha-se um Inverno negro em toda a Europa e um futuro que poderá ser bastante pior do que apenas o fim do “tempo da abundância” de que falou Macron. Mas que trará consigo também novas franjas de pobreza e desespero, campo fértil para a radicalização e o populismo, que a extrema-direita saberá aproveitar, como já vimos na Suécia e em breve veremos em Itália. Na Primavera, passado um ano sobre o início de uma guerra que ninguém quis evitar, acordaremos para uma Europa em ruína económica, que terá retrocedido em todas as metas climáticas, que terá recuado na sua paisagem democrática e vacilado em alguns dos seus princípios essenciais e que, provavelmente, terá rompido a sua tão propalada solidariedade. E depois perguntaremos como foi possível, como é que ninguém viu o desastre a acontecer debaixo dos nossos olhos. Tarde demais.

Vivemos num tempo em que os Reis estão reduzidos ao silêncio por imperativo constitucional e os príncipes ou princesas de que o povo gosta chamam-se Diana ou Stéfanie e só abrem a boca para falar de si próprias e dizer baboseiras. E os outros, os príncipes de carácter, são corpos estranhos a abater. Se fosse vivo hoje, o velho Winston Churchill não teria lugar na política.

Um homem que tinha uma visão imperial de Inglaterra, que bebia demais e fumava charutos cubanos em público, que gostava de caçar animais selvagens em África, que acordava às duas da tarde e ditava discursos à secretária todo nu na banheira, enquanto tomava um pequeno-almoço pornográfico, não sobreviveria um mês exposto à opi­nião pública. É verdade que também tinha uma coragem absurda e que dizia rigorosamente o que pensava na cara de amigos e inimigos: mais uma razão para ser trucidado.

E talvez Isabel II também fosse trucidada se alguém se lembrasse de resgatar, a propósito da guerra da Ucrânia, uma sua frase de referência: “A busca da paz é talvez a mais difícil forma de liderança.”

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

terça-feira, 13 de setembro de 2022

A recessão organizada por Lagarde


VISTO DE FORA
Por Tiago Franco *
Setembro 11, 2022

Raquel Varela usou uma expressão, que considero feliz, para descrever a actual crise económica: recessão organizada. Enquanto governantes nos tentam convencer que a perda do poder de compra e a redução de salários se devem à guerra na Ucrânia, aquilo a que assistimos são lucros fabulosos na banca, nas energéticas e nas cadeias de supermercados.



Sendo os preços definidos pelos salários e pelos lucros, sem que se conheçam aumentos significativos no lado dos salários, compreende-se que a subida de preços (inflação) se destine apenas a fazer crescer a balança no lado do lucro. É isto que o BCE de Lagarde consegue ao aumentar, repetidamente, as taxas de juro.

Criar uma escandalosa orgia de lucros à custa da disparatada subida dos preços em contraponto com a estagnação dos salários. Está criada a tempestade perfeita em que o trabalhador por conta de outrem fica preso num ciclo sem saída. Por um lado, não pode deixar de trabalhar e, por outro, o valor a que vende a sua força de trabalho vale cada vez menos. Ao mesmo tempo, o lucro das corporações vai batendo recordes.

Pelo meio, Lagarde diz-nos que é este o caminho para que a inflação regresse aos 2% lá para 2024, e António Costa (tal como os restantes governos da União Europeia), vai distribuindo umas migalhas pela população a partir do IVA extraordinário amealhado por conta da “economia de guerra”.

Em lado nenhum se aumentam salários. Em lado nenhum se mantém o poder de compra do lado dos trabalhadores. Mas em todo o lado as empresas aumentam os seus lucros. Se isto não nos faz pensar, enfim, não sei o que mais será necessário. Talvez quando nos vierem buscar a pele.

Dou por mim, pela primeira vez na vida, a concordar com uma afirmação de um deputado da Iniciativa Liberal. Se, de facto, o Governo quer proteger as famílias, bastaria que, por agora, reduzisse a fatia que tira de cada salário na contribuição do IRS. Era esse o verdadeiro acompanhamento da inflação.

Mas então, e a Ucrânia? Sim, a Ucrânia, onde nos garantem que a vitória é possível (até ao último ucraniano, entenda-se), e que, de costas largas, aceita todas as justificações que nos empobrecem. Até onde iremos?


Há uma ironia macabra em tudo isto. Enquanto os nossos governantes (europeus) nos garantem que não podemos deixar de apoiar financeiramente, e com armas, os esforços de guerra, dizem-nos que, também por causa desse esforço, devemos aceitar a perda de salários e, para alguns, das suas habitações. Isto depois de nos garantirem que a inflação seria temporária, quando todos já tínhamos percebido que estaria sempre associada (nem que fosse pela narrativa) a uma guerra que ninguém parece querer ver terminada.

Sempre que ouço esta conversa de que a Ucrânia não pode cair, olho em volta e penso nos que, em qualquer parte do mundo, vão caindo todos os dias na ignorância dos interesses europeus. Mas mais do que isso, pergunto-me até quando aceitaremos patrocinar esta guerra com a nossa pobreza?

Nada no terreno nos leva a pensar que os ucranianos poderão fazer mais do que resistir. Para além de Nuno Rogeiro, que nos garante desde Maio que os russos já não aguentam mais, a maior parte dos especialistas não vislumbram maneira alguma de rechaçar o exército russo do Donbass e da Crimeia. Mesmo aqueles que já viram a guerra para lá dos estúdios de televisão.

Portanto, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos forem enviando dinheiro e armas, enquanto nós formos empobrecendo sem gritar muito, enquanto os ucranianos tiverem gente viva e enquanto os russos conseguirem vender gás e petróleo aos asiáticos, em princípio a guerra tem pernas para andar.


Quem grita pela solidariedade eterna com a guerra no Leste Europeu é quem, por norma, nunca quis saber de qualquer outra invasão. Mas é também quem, acima de tudo, vê o drama alheio sem o risco de perder o telhado ou que, apesar dos aumentos do Banco Central Europeu (BCE), tem um salário suficientemente robusto para se sentar na poltrona a exigir solidariedade. Fica bem. É a barricada dos impérios pela verdade. São a nova versão do “fiquem em casa, salvem vidas”, que o meu emprego já é para a vida.

Acalmaram-se um pouco os falcões que exigiam a entrada da NATO no terreno (de forma oficial, pelo menos), e isso leva-nos para a parte da solução de todo este imbróglio.

Sem a NATO e uma III Guerra Mundial, é possível derrotar os russos? Rogeiro faz-nos crer que sim, os militares dizem que não. Acreditando nestes últimos, alguns que até defendem que a única solução do conflito passará pela perda de território por parte da Ucrânia, a quem interessa o prolongamento deste conflito?

Assim de repente, consigo pensar em várias corporações que estão a lucrar como nunca, percebo que para os Estados Unidos seja importante desgastar os russos o mais possível (até porque eles já o admitiram), e para alguns governos até a inflação parece ser positiva.


Mas para nós, o comum dos mortais que trabalha 40 horas por semana e paga contas, de que nos interessa a moral da escolha entre impérios? A hipocrisia da invasão boa vs. a invasão má? A irritante sobranceria com que aceitamos a morte de uns, mas declaramos inconcebível o sacrifício de outros, consoante o nome do invasor ou a proximidade do nosso bairro.

Compreendo que ucraniano algum queira perder território. Mas… tem de ser a Europa toda a pagar por isso? Não posso eu escolher a que invadido quero dar a minha solidariedade, ou, pelo menos, achar que que tenho o direito de não pagar guerras que não escolhi?

Andei, andámos, dois anos a pagar os lucros das farmacêuticas e dos laboratórios, enquanto nos cortavam salários. Agora transferimos o valor do trabalho para o capital que está no sector da energia, do armamento, da banca. E voltamos a reduzir salários.

Quase três anos desta merda, deste ciclo de empobrecimento. Sem que nos perguntem sequer se queremos fazer parte dele. Uma minoria que controla, dirige e oprime a maioria que trabalha, mas que, ao que parece, se recusa a pensar e reagir.

Eu não aceito que me obriguem a pagar guerras que não escolho. Nem sequer aceito que me digam quais são as guerras boas ou guerras más. E certamente não compreendo, em nome de quem é que a estabilidade da minha família tem que ser colocada em causa para que a banca, os senhores da guerra e as energéticas lucrem como nunca.

Entre o sangue ucraniano e a pobreza que aumenta na Europa, há quem ganhe fortunas. E nós, os idiotas de serviço, discutimos 125 euros de esmola e gritamos Slava Ukraini no sofá, sem saber quanto mais tempo nos sentaremos nele.

*Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)

N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

domingo, 11 de setembro de 2022

200 anos de fado tropical


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
09/09/2022
 A Estátua de Sal


A triste prova de que o Brasil é hoje um projecto falhado é que anteontem, no dia em que se celebraram os seus 200 anos de independência, o que ocupava as manchetes dos jornais brasileiros não era nem a história, nem a celebração, nem a exaltação do presente ou a outrora inabalável esperança no futuro, mas apenas o retrato a negro de um país tenso, dividido, onde se fala abertamente de golpe e se discute se a população deve ou não poder comprar ainda mais armas para enfrentar as decisivas eleições do próximo dia 2 de Outubro. De acordo com todas as previsões, Bolsonaro — cujo Governo passou um ano inteiro a desprezar ostensivamente o bicentenário da independência — aproveitou a data do 7 de Setembro para a transformar num misto de demonstração de força militar e intimidação política, transformando as cerimónias num indecoroso comício eleitoral, pondo soldados a desfilar ao lado de camionistas e tractoristas representativos da sua base de apoio rural e dos que desmatam uma área equivalente a 17 campos de futebol todos os dias na Amazónia — e com o nosso Presidente, como também era mais do que previsível, a prestar-se a caucionar aquela indecorosa fantochada. Ao mesmo tempo, Bolsonaro chamava “vagabundo” ao presidente do Supremo Tribunal Eleitoral e convidava para a tribuna de honra do desfile em Brasília, ao lado de Marcelo, oito empresários que, através de um grupo no Whats­App, tinham apelado a um golpe de Estado caso ele perca as eleições de 2 de Outubro. Ora, quando um Presidente da República em funções celebra assim 200 anos de independência do seu país, está quase tudo dito sobre o estado a que chegou esse país e o que ele fez com os seus dois séculos de independência.



Quase, mas não tudo. É preciso acrescentar que o Brasil nasceu, por mandato divino, como um dos países mais ricos do mundo, no solo, no subsolo e na sua imensa extensão terrestre e marítima, a maior de qualquer país atlântico. Desde a sua descoberta pelos portugueses (sim, descoberta, desculpem lá), o Brasil viveu sucessivos ciclos de riqueza, ditados pela generosidade da sua terra ou das suas entranhas: o da madeira, o da cana-de-açúcar, o do algodão, o do ouro e dos diamantes, o do café, o da borracha, o do gado, o do aço e outros minerais. E agora o da destruição da Amazónia, que, a prazo, será uma tragédia para o Brasil e para o planeta. Acresce que ao longo da sua história, desde a chegada dos portugueses, o Brasil foi ainda beneficiado por uma mão-de-obra escrava, primeiro índia, depois negra: mais de cinco milhões de almas arrancadas de África pelo tráfico negreiro e que construíram o Brasil — uma infâmia só terminada com a abolição da escravatura em 1888, quase 70 anos depois da independência. Assim, já bem entrados no século XXI, podemos dizer que não existiu nenhuma razão — histórica, económica, social ou política — para que o Brasil não fosse hoje um dos países mais desenvolvidos e mais justos do mundo.

Todavia, desde que conheço o Brasil — já lá vão muitos anos e muitas, muitas visitas, desde a Amazónia até lá abaixo —, raras foram as vezes em que, falando da história do Brasil com brasileiros, não tive de escutar um rol interminável de explicações e lamentações com as culpas dos estrangeiros: portugueses, “castelhanos” ou americanos. Mas jamais culpas próprias. Como português, dói-me particularmente, claro, assistir ao amor não retribuído, antes maltratado, que o comum dos brasileiros tem por nós (hoje, é verdade, bastante mitigado pelos brasileiros que se deram ao trabalho de conhecer Portugal e aos 300 mil que aqui vivem). Os estereótipos históricos, culturais ou sociais, do roubo do ouro do Brasil, do azar de Pernambuco não ter ficado holandês ou o do Manel de bigode que só prestava para padeiro, por exemplo, são coisas que os meus olhos e os livros de História me ensinaram serem impiedosas mentiras. O “roubo do ouro do Brasil”, o célebre “quinto real”, era o imposto da coroa, correspondente, portanto, a 20% — tomáramos nós, portugueses e brasileiros, que o Estado nos cobrasse hoje apenas isso! Porém, talvez nem um quinto desse quinto tenha, de facto, chegado ao Terreiro das Naus e aos carrilhões de Mafra, perdido nos assaltos da “estrada do ouro” para Paraty ou desviado pelos cobradores locais; em contrapartida, fez a prosperidade de Minas Gerais e deu berço a São Paulo. E, acima e antes, a Amazónia, que hoje Bolsonaro vende aos chineses sob a forma de soja, deve-a, inteirinha e intacta, ao primeiro-ministro português Sebas­tião de Carvalho e Melo, conhecido por marquês de Pombal, que ali mandou construir sete fortes ao longo das suas imensas fronteiras, com pedras trazidas do reino e para a defender das investidas “castelhanas”, e que para lá mandou povoadores dos Açores, a quem o reino dava alfaias e dinheiro em troca do casamento, de altar e papel passado, com mulheres índias. A grande frustração dos holandeses terem sido desapossados de Pernambuco, ainda hoje alimentada por muitos e em nome da superior colonização flamenga e da “espantosa” embaixada cultural do seu governador Maurício de Nassau, basta ir lá e ver: mal chegaram, os holandeses destruíram e queimaram Olinda, que os portugueses depois reconstruíram e ainda lá está, na sua serena beleza. Mas dos 60 anos de Holanda não há um edifício, um monumento, uma obra de arte, uma igreja ou uma quinta agrícola, pois que eles não foram para cultivar, mas apenas para roubar o açúcar que os portugueses cultivavam. E lá estava também, quando se veio embora D. Pedro de coração inteiro, toda a mata atlântica, hoje praticamente desaparecida, a que os portugueses acrescentaram fortes, portos, praças, vilas e milhões de coqueiros trazidos da Índia, como antes trouxeram a cana-de-açúcar e depois o café ou a árvore da borracha. Mas, enfim, pensando no que foi a África do Sul dos boers ou a colonização holandesa da Indonésia, talvez fosse melhor para alguns que um exército formado por portugueses, índios e negros não tivesse derrotado os holandeses na decisiva batalha de Guararapes, em 1648... A cada um a sua sonhada pátria.

De onde vem então este mal secreto que faz do Brasil um insuportável cemitério de esperanças?

Roubámos o Brasil? Sim, explorámos o Brasil, como qualquer colonizador explora uma colónia, e, no sentido literal, explorar é roubar. Todavia, eu olho para isso sem complexos nem sentimentos de culpa. Há, claro, a questão da escravatura, que mancha toda a história de forma incontornável. Mas ela também envolveu os brasileiros, antes e depois da independência, e a triste verdade é que sem a escravatura não existiria o Brasil de 1820.

Até lá, duvido de que o que roubámos ao Brasil não seja incomparavelmente menos do que o que lá deixámos, mesmo sem contar com dois trunfos inestimáveis: a unidade de um país imenso que não se fragmentou, ao contrário da América do Sul espanhola, e a língua que o une.

Duzentos anos depois, a desculpa da colonização portuguesa não colhe. Mais depressa a herança genética do fado de lamentação, que essa, sim, é uma maldição portuguesa. E, todavia, Deus também abençoou o Brasil com gerações de gente notável: construtores, arquitectos, escritores, artistas, músicos, cientistas, jornalistas e, às vezes, até políticos. De onde vem então esse mal secreto que faz do Brasil um insaciável cemitério de esperanças?

2 Eu faço parte dos portugueses que se sentiram gratos e quase resgatados na sua honra com o pedido formal e espontâneo de desculpa que António Costa fez em Maputo a propósito dos 50 anos do massacre de Wiriyamu. Não venham cá com argumentos de que só podemos pedir desculpa se os outros também pedirem ou de que, de desculpa em desculpa, nunca mais acaba a história. É preciso ter a noção da diferença entre o que é circunstancial e o que é intolerável e a noção da simples decência: um massacre é um massacre, não há mas nem todavias que o justifiquem. Em Wiriya­mu, uma tropa portuguesa, armada e fardada para defender o que então lhes disseram ser a pátria, abriu fogo sobre a população civil indefesa de uma aldeia moçambicana, deixando por terra 400 mortos, entre crianças, mulheres e velhos. Se hesitamos em entender isto como uma vergonha sem nome na nossa história, também não a podemos defender quando ela merece e precisa de ser defendida, como acima faço.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Ironias no destino (e não, não há gralha no título)


Por
André Barreto
Licenciado em Gestão de Empresas
Director Geral da Quintinha S. João

Que a memória é curta, já todos o sabemos e não vos trago aí nenhuma novidade… Que a estupidez não tem limites, acho que podemos dizer que é um dado quase científico, acompanhado muito de perto pela falta de noção. Que isto tudo junto pode dar uma mistura explosiva, sobretudo no longo-prazo, achava eu que era no mínimo senso comum, mas pelos vistos não…



Estou tão farto da conversa dos recordes no sector do turismo! Quase tanto quanto dos prémios do melhor destino insular mas esses cá não me tiram o juízo nem exigem que ande nesta aflição, repetida passados 20 anos sensivelmente.

Então não havíamos de estar a ter o melhor ano de sempre quando temos mais camas do que nunca, tendo-se deixado abrir hotéis e AL’s em 2019 sem sequer terem de cumprir a Lei, os Planos e respectivos Ordenamentos, que foram todos moldados à medida das vontades do freguês?

Abertas as comportas, depois de 2 anos fechados em casa, qual seria o comportamento esperado, depois do Sr. Putin ter resolvido a questão da pandemia? Mal seria se os resultados fossem outros e a memória não pode falhar tanto! Não posso, portanto, esquecer-me de dar os parabéns aos responsáveis pela actual situação e pelo cada vez mais frequente manifesto de desagrado por parte dos clientes pela forma como hoje se passam férias na Madeira…

Leio no entretanto que a Escola Hoteleira passa para a esfera do Governo, que nos assegura que a partir de agora teremos critérios de gestão claros e altamente eficientes, como sempre acontece nos organismos e empresas públicas, ficando o problema da falta de mão-de-obra qualificada resolvido... Estúpido seria ter discutido isto antes de deixarmos abrir hotéis a eito mas certamente que a questão não será tão grande quanto a mim, pobre diabo, parece.

Já experienciei, no passado e agora ainda contido à realidade do Porto Santo, como se vai resolver isto, para além do que acima referi, claro: - contratamos lá fora, barato e indiferenciado, que o que interessa não é assegurar mais nada que não seja um par de mãos para segurar num aspirador, numa bandeja ou em dois pratos, que para mais também não sabem.


A arte de bem receber, lembram-se? Isso é conversa de velho tonto, conservador, agarrado a fórmulas que já não se usam! Ainda para mais, podemos sempre imitar alguns dos nossos colegas que pagam aos seus clientes para não terem de limpar os quartos todos os dias. Em hotéis de 4 estrelas. Práticas que só se encontram nos melhores destinos, claro, por falar em falta de noção…

Num cenário macro onde, no mesmo caldeirão, juntamos ingredientes como uma inflação galopante, o Brexit, uma guerra que parece não ter fim à vista, um Sr. Biden na Casa Branca e pessoas a quem se paga para não produzir, não acham mesmo que o senso comum ditaria outro tipo de actuação?

Por agora por aqui me fico, não só porque se me acabaram os caracteres como porque tenho de ir tentar arranjar pessoas que queiram vir para cá trabalhar.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

ADRIANO MOREIRA - Professor e Senador


Na próxima Terça-feira o Doutor Adriano Moreira completa 100 anos vida. Eu que já por diversas vezes abordei a questão de Portugal (e não só) sofrer de poucas (raras) referências públicas, sobretudo políticas, tenho nesta figura uma especial consideração.



Para além do que regularmente leio, já tem uns anos, assisti, no dia 01 de Julho, Dia da Região da Madeira, a uma sua notável conferência na Assembleia Legislativa da Madeira. Essa conferência marcou-me e selou o meu respeito pelo seu pensamento universal.

Aliás, em todos os quadrantes políticos fazem falta figuras da sua grandeza, figuras que sejam referências nacionais e face às quais tenhamos orgulho e sintamos a necessidade de os ter presentes, ajudando-nos, mesmo na diferença de pensamento ou de posicionamento político, a retirar o melhor para um país próspero.

Li um texto de Carlos Narciso que acompanho: "Adriano Moreira é um homem de uma ética política superior. Nunca se vendeu a outros partidos políticos e nunca renegou as suas ideias a troco de umas moedas".

Do semanário Expresso desta semana, deixo aqui duas sínteses que caracterizam o estadista Professor Adriano Moreira.

"O seu gosto de reflectir em público e de fazer pensar, leva-o a manter-se activo através de conferências e artigos, que são verdadeiras lições de sabedoria de quem viveu muito e partilha generosamente a experiência adquirida" - Mota Amaral, ex-Presidente da Assembleia da República.

"Adriano Moreira distingue-se por duas grandes qualidades: primeira, é a solidez e coerência do seu percurso intelectual e a segunda é a capacidade de abertura e diálogo com outras correntes de pensamento e opinião" - Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República.

Ilustração: Google Imagens.