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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Vamos trocar umas ideias sobre sanções económicas?

 

Por
Economista 

O atual caminho tem de ser invertido, através de formas de suspender a guerra, sob pena de a próxima recessão económica ser muito mais dramática que a anterior crise das “dívidas soberanas”.



Uma grande discussão envolve o impacto real das sanções económicas cujo destino é asfixiar as economias dos países contra quem são dirigidas, com o fim de os vergar e sujeitar à vontade de quem as impõe. Cada vez mais um conjunto de estudos sustenta que as sanções, quase nunca, surtem os efeitos pretendidos. De um modo geral, são dirigidas a países com economias de menor dimensão e mais frágeis.

Nunca se assistiu a sanções contra os EUA, por exemplo, mesmo quando cometem agressões militares com desrespeito pleno pelo direito internacional (basta recordar, entre outros, o Iraque ou a Síria), tal e qual como o fez agora a Rússia na Ucrânia.

É uma boa questão porque, em algumas das sanções anti Rússia, é legítimo questionar: como se pode sonegar e apropriar-se de activos de estados, entidades e pessoas terceiras? Outra questão não menos interessante: porque entram a NATO e o G7 no processo destas sanções, uma NATO a quem Macron tinha passado certidão de óbito e agora aparece, dizem, fluorescente? Precisava de uma guerra? Ou será que, mesmo num contexto pós-Guerra Fria, a NATO é necessária como instrumento subtil de subordinação da União Europeia (UE) aos EUA?!

A guerra económica anti-Rússia

Estas sanções devem ser vistas sob um duplo ângulo. Os efeitos na sociedade e economia da Rússia e no Mundo e países da UE.

Diz o FMI: “mesmo com as sanções, a economia da Rússia contraiu menos que o previsto”. O PIB vai cair em 2022 apenas 6% (estimativas Julho) quando, nas de Abril, a queda esperada era de 8,5%. Isto deve-se ao comportamento favorável sobretudo em termos de preços das exportações de bens (energéticos e não energéticos) e a uma melhoria de adaptação da economia russa com reflexos positivos também no trabalho (menos desemprego).

No Mundo, o problema maior é o da subida dos preços e a contracção da economia no seu todo.

No mesmo relatório, o FMI avança: “os efeitos da guerra nas principais economias europeias foram mais negativos que o esperado”, devido a preços de energia mais elevados, custos mais altos das matérias-primas e bens intermédios, quebra de confiança dos consumidores e desaceleração da produção de bens decorrente de interrupções na cadeia de fornecedores. O FMI acrescenta ainda que a UE poderá vir a acusar um decréscimo de 6% do PIB se a Rússia fechar a torneira do gás por completo.

Cada vez mais, os observadores internacionais são de opinião que a UE está a penalizar-se pelas suas próprias mãos. Larry Elliot, ditor de Economia do jornal britânico “The Guardian”, além de reafirmar que a economia russa não está a ser esmagada, realça, sobretudo, que os Estados-membros da UE estão a tomar medidas incongruentes, nomeadamente a Alemanha, com a reactivação de 27 centrais eléctricas a carvão, fazendo regredir os países para a época do carvão, poluindo 2,2 vezes mais (CO2) que as de gás natural, para igual produção eléctrica. Como conjugar com o combate à crise climática, que a UE tanto advoga?

O “Le Monde Diplomatique” de Junho 2022, pela pena de Mathias Reymond e Pierre Rambert, defende: “os países europeus, na impaciência de renunciar aos combustíveis russos para asfixiar o Kremlin, improvisaram soluções” e, nessa precipitação, avança, cometeram dois erros grosseiros:

Primeiro, ao reduzir de forma precipitada a sua forte dependência do gás e petróleo russos, sem terem assegurado uma alternativa fiável e equivalente em custos;

Segundo, ao alinhar pelas posições americanas desajustadas dos interesses europeus. Washington pode, com toda a facilidade, decretar o embargo dos combustíveis, pois não é atingido pelas sanções, enquanto nos países europeus a situação é desigual, por não terem recursos próprios.

Quanto ao primeiro erro, é de vincar a completa precipitação/incompetência da União Europeia que, através da Comissão, esboçou logo nos primeiros dias após a invasão, o plano REPower.EU (8Março2022) com vista a “eliminar a nossa dependência de combustíveis fósseis russos até 2027”, detalhando reduzir 2/3 do abastecimento de gás russo (pasme-se) até finais deste ano.

Ora, isto significa passar ao abastecimento através de Gás Natural Liquefeito (GNL), exigindo a solução prévia de dois problemas de fundo: infraestruturas de recepção (terminais) e de transporte (navios metaneiros) e mercados fornecedores. Nada disso estava equacionado. Primeiro, um metaneiro cheio transporta, em média, o equivalente a um dia de consumo francês. Não se exige muita criatividade para “imaginar” que não é possível encontrar no mundo tanto navio para responder às necessidades! Segundo, não havia nem há mercados suficientes. EUA, Catar e outros não têm capacidade de produção para substituir, a curto prazo, o gás russo, sem falar da concorrência asiática.

A UE não assentou o avanço para as sanções em bases técnico-económicas fiáveis, não atendeu às condições diversas dos Estados-membros, lançando, deste modo, o rastilho de um ambiente pouco solidário e de desunião. Esta e outras formas de agir foram gerando desentendimentos (escondidos) que têm vindo a degradar-se. A Europa unida é uma falácia. A aprovação da manta rota de redução dos consumos de 15% do gás é um bom exemplo dessa falácia.

O ziguezague europeu das sanções

Os sucessivos pacotes de sanções aplicados à Rússia têm sido um verdadeiro viveiro de contradições, com as chamadas derrogações a sucederem-se.

Tomando como exemplo o acordo alcançado sob a égide da ONU e da Turquia para a exportação de cereais – consulte-se o Diário Oficial da UE, onde se diz: para “evitar distúrbios nos canais de pagamento dos produtos agrícolas” foi decidido “introduzir uma derrogação do congelamento de activos” –, que, no fundo, corresponde à UE ir contra às suas próprias sanções, pois liberta fundos bancários a sete bancos russos excluídos do sistema SWIFT (pagamentos internacionais).

Por outro lado, ainda neste mesmo contexto, foram abolidas as medidas que poderiam dificultar a formulação dos custos com fretes e seguros relacionados com as entregas marítimas e aéreas de bens alimentares e fertilizantes da Ucrânia e Rússia.

Estas derrogações significam um recuo claro nas sanções aplicadas e uma aproximação às exigências de Putin. Ainda bem, pois sem este recuo da UE não teria havido acordo de exportação e os países que se abasteciam da Rússia e Ucrânia continuavam privados desse cereal.

Todo este caminho tem de ser invertido, através de formas de suspender a guerra, sob pena de a próxima recessão económica ser muito mais dramática que a anterior crise das “dívidas soberanas”. A actual situação já contém uma forte desvalorização do euro face ao dólar e uma descontrolada evolução dos preços dos bens essenciais. Daqui a uma agitação social generalizada na Europa faltará pouco.

Medidas europeias de política económica autónomas precisam-se para afastar a UE deste pesadelo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sábado, 27 de agosto de 2022

A era da estupidez


Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
26/08/2022
estatuadesal


A guerra na Ucrânia fez seis meses e nenhuma das partes envolvidas — Rússia, Ucrânia e NATO — dá sinal de pretender sequer ponderar abrir negociações para lhe pôr termo. Não sei o que se passa na Rússia, com a sua opinião pública e os seus comentadores (se é que ainda os há, que possam escrever em liberdade). Mas aqui, no lado ocidental da opinião, a simples menção à necessidade de encontrar uma saída para a guerra faz desabar imediatamente em cima de quem se atreve a sugeri-lo a acusação de fazer o jogo de Putin e o epíteto, hoje insultuoso, de ‘pacifista’. E, enquanto se cobre a NATO de elogios e se louva a unidade inabalável dos europeus no apoio à Ucrânia e na defesa dos princípios democráticos, vemos a Suécia e a Finlândia entregarem refugiados políticos curdos a Erdogan como preço a pagar por entrarem na NATO, vemos Joe Biden a atravessar um oceano e um continente para se ir curvar aos pés do príncipe saudita que cortou um jornalista às postas e que espalha o terror islâmico em casa e financia-o fora de portas. E escutamos o apelo dos países bálticos para que todos os cidadãos russos sejam proibidos de entrar na Europa.



Mas a verdade é que se começa a temer o aparecimento de brechas nesta tão elogiada unidade europeia, à medida que o Inverno se aproxima e que mesmo a total subversão de todas as metas acordadas em Paris para conter o aquecimento global não dissipam o medo que o corte de fornecimento de gás russo à Europa faça as pessoas exigir o fim da guerra. Porque se as drásticas e “nunca antes vistas” sanções à Rússia para castigar a sua agressão atingiram praticamente todas as exportações, elas deixaram prudentemente de fora o petróleo e o gás, de que grande parte da Europa depende para se aquecer e fazer funcionar a sua economia.

E, depois de tantas sanções à Rússia, o cúmulo da ironia é ouvir falar da “chantagem russa” quando a Gazprom anuncia três dias de suspensão do fornecimento de gás através do Nordstream I. Mas apesar de tudo, e apesar das previsões sombrias da OCDE para a economia europeia no próximo ano, parece que a guerra está para continuar indefinidamente, e que vale a pena.

Pelo menos é o que tenho lido na pena de alguns sábios economistas, que nos garantem que, se nós estamos mal, na Europa, a Rússia está pior, com as sanções. Eis o que não pode deixar de servir de conforto suficiente, sobretudo num Verão em que vemos todos os rios da Europa secos como nunca, as florestas em chamas e o planeta a caminhar inexoravelmente para um desastre cujo combate deveria ser a prioridade absoluta de quem nos governa.


2 Estava o mundo neste pé, quando Nancy Pelosi resolveu melhorar ainda mais as coisas indo a Taiwan provocar a China. Explicou-se dizendo que a China é uma ditadura que não respeita os direitos humanos, que cometeu o massacre de Tiananmen sobre os seus dissidentes, que ocupa ilegalmente o Tibete, que mantém os uigures em campos de concentração, que violou os acordos feitos com a Inglaterra sobre Hong-Kong, que não desiste da unificação com Taiwan e que é uma ameaça regional e planetária. Tudo verdades incontestáveis e sabidas há anos. E então? Quantas mais ditaduras há por esse mundo, e algumas amigas e aliadas dos Estados Unidos e do Ocidente, que a senhora Pelosi queira ajudar a derrubar? De que serviu a viagem senão para reforçar internamente o poder e a vontade expansionista do ditador chinês, para aumentar a um ponto extremo a instabilidade na região e para sabotar anos de esforços diplomáticos de aproximação entre dois mundos completamente diferentes, com resultados palpáveis e agora destruídos, como a cooperação no domínio das alterações climáticas?

3 No momento em que escrevo desconheço ainda o resultado das eleições angolanas, mas prevejo mais uma inevitável vitória do MPLA — com batota ou sem ela. Será uma desgraça e uma imensa oportunidade perdida para Angola. 48 anos de poder e 46% de pessoas a viverem abaixo do limiar da pobreza num país tão rico como Angola dizem tudo sobre a obra do MPLA.

4 As duas primeiras vezes que me deparei de caras com a agora chamada “linguagem inclusiva” aconteceram no Brasil e apenas me fizeram sorrir, longe de imaginar que mais tarde se tornaria moda e que de moda passaria a certidão de bom comportamento cívico e daí a quase imperativo — tão inútil, tão absurdo e tão idiota quanto o ridículo Acordo Ortográfico da língua portuguesa: o mais patético e humilhante documento jurídico alguma vez assinado por um Governo português.

A primeira vez, aconteceu estava eu a fazer um filme de 60 minutos para a RTP sobre a história da colonização portuguesa da Amazónia — (um projecto editorial que hoje, apenas pelo seu objecto, obviamente não seria autorizado). E estava então em trânsito numa daquelas cidadezinhas amazónicas com nomes do Ribatejo — Santarém ou Almeirim, já não recordo —, quando uma noite me deparo com um comício eleitoral para a prefeitura local, a decorrer numa praça ao ar livre. Sobe ao palanque um candidato com pinta de jagunço dos livros do Jorge Amado, bate três vezes no microfone para se certificar que funcionava, e começa: “Meus povos...” Porém, detém-se, olha a plateia, faz uma pausa e recomeça. “E minhas povas.” Estávamos em 1987.

A segunda vez aconteceu vários anos depois, em Brasília, quando fui entrevistar Dilma Rousseff, acabada de ser eleita Presidente do Brasil. Antes de entrar para a entrevista, uma sua assessora perguntou-me se eu estava ciente de que a Presidente Dilma gostava de ser tratada por “presidenta”. Na verdade eu já tinha ouvido uns zunzuns sobre isso, mas fiz-me de parvo: “Sabe, eu falo português de Portugal. E lá, o substantivo presidente não tem género, tanto se aplica a um presidente homem como mulher. Se eu tratasse a presidente Dilma por ‘presidenta’, teria de tratar um Presidente homem por ‘presidento’. E, mais ainda: a senhora, por exemplo, teria de tratar o polícia federal que está ali fora por ‘senhor polício’.”

Apesar de tudo, e apesar das previsões sombrias da OCDE para a economia europeia no próximo ano, parece que a guerra está para continuar indefinidamente, e que vale a pena

Porém, o que então me parecia anedótico agora é real. Mas não porque os princípios tenham mudado ou porque a necessidade de lutar por eles tenha cessado. A luta contra a discriminação de género mantém-se actual e imperiosa em muitos lugares e muitas situações; o mesmo contra a discriminação sexual e mais ainda contra o racismo. O que mudou foi o discurso e, sobretudo, os intérpretes do discurso: esta auto-instituída vanguarda de aiatolas do pensamento autorizado e do protagonismo consentido que decretou quem é que pode falar em nome dos discriminados e defender os seus direitos, quem é que está autorizado a homenagear a sua cultura e respeitar os seus modos de vida, ficando todos os outros reduzidos ao silêncio, sentenciados como hipócritas e expiando as culpas seculares dos seus antanhos. A única coisa que os distingue dessa nobre Comissão para a Promoção da Virtude e Repressão do Vício que zela pela pureza islâmica na Arábia Saudita é que a estes ainda não lhes é possível cortar as mãos aos infiéis, mas apenas cortar-lhes as boas intenções, nessas madraças do terrorismo de massas que são as redes sociais (e é bem feito para as suas vítimas; ando há anos a pregar-lhes a solução: se se atreverem a viver sem as redes sociais, o que não custa nada, o veneno das víboras não os atinge, transforma-se em baba dentro da boca destas). Dá assim dó ver esses incautos que saem à contenda, carregados de boa consciência e boas intenções, contra os novos aiatolas e os seus mandamentos sobre a “linguagem inclusiva”, a “apropriação cultural” e o “movimento woke”, convencidos, ingenuamente, de que vão ao encontro de uma discussão séria. Não vão: estes fanáticos não querem nem discutir nem convencer. Querem proibir, atemorizar, afugentar da luta contra o racismo e a discriminação quem não pertence à tribo: “Se és branco, és necessariamente racista; se és heterossexual, és homofóbico; e se és homem, és obviamente machista.” A extrema-direita agradece e, graças a eles, cresce.

Mas isso pouco lhes importa. Aliás, nada mais lhe importa; e basta lê-los na imprensa de referência que lhes dá acolhimento: nem a guerra que devasta a Europa, nem os miseráveis que morrem afogados a atravessar de África para um paraíso sonhado, nem o planeta que se extingue à nossa vista. São capazes de fazer abaixo-assinados a apelar aos jornais para censurarem quem não escreve segundo a novilíngua, mas dormem tranquilos enquanto os talibãs proíbem as mulheres afegãs de irem à escola ou de trabalharem; são capazes de se indignarem porque a Rita Pereira põe tranças afro, o que acham uma usurpação cultural, mas estão-se nas tintas para os desgraçados escravos asiáticos da agricultura alentejana — porque são apenas amarelos e não pretos. Na verdade, não enxergam nada de mais importante além do próprio umbigo. Como se a auto-invocada superioridade moral da sua litigância e do seu protagonismo os dispensasse de olhar para o mundo. No fundo, não passam de uma gente sem causas que importem.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A fábrica de traumas sexuais


Por
António Guerreiro, 
in Público, 
20/08/2022
estatuadesal


Por volta de 1985, uma revista francesa (L’Express?, Le Nouvel Observateur? Não consigo lembrar-me) publicou uma reportagem assinada por um jornalista francês que se infiltrou nos ambientes gay frequentados por membros da Igreja Católica, muitos deles a residir no Vaticano. Havia nessa reportagem a descrição do que se passava em bares e discotecas que garantiam a estes frequentadores o sigilo que eles exigiam; indicava-se, com pormenores, a existência de moradias da Igreja que tinham sido clandestinamente convertidas em instalações para encontros sexuais; localizavam-se locais onde os padres iam em busca dos ragazzi di vita; nomeava-se o número de um autocarro que, na sua última viagem nocturna, já depois da meia-noite, atravessando Roma e com a sua última paragem no Vaticano, era posto ao serviço do engate ambulante.



Nada de violência sexual sobre menores (isso pertencia a outro território que só mais tarde viria a ser explorado); nada daquela “anarquia do poder” definida por um dos hierarcas no Salò, de Pasolini; nada que os cidadãos laicos não conheçam ou não experimentem. Apenas incursões na noite escura e pródiga de prazeres, frequentada em abundância por quem faz parte da instituição obcecada pelos pecados da carne e por penalizações infernais a quem os comete.

A reportagem, longuíssima, publicada numa revista prestigiada e de grande circulação, tinha tudo o que hoje levantaria vozes indignadas e gritos de escândalo. Mas não aconteceu nada. Provavelmente, a maior parte dos leitores leu-a com a mesma atitude com que eu a li: nada de novo sob o Sol, apenas casos pouco católicos no coração e nos arredores da Santa-Sé, com pormenores picantes vistos e relatados por um jornalista. Era a Igreja tal como a imaginávamos com algum deleite para além da sua circunspecção oficial e da sua moral doutrinária. E isso era mais motivo para conversa jocosa, mas indulgente, do que para julgamentos sem perdão.

Mas o humor e o espírito da época mudaram. E hoje a Igreja, até aos lugares mais altos da sua hierarquia, está a ser examinada não nas suas derivas pecaminosas, mas nas suas práticas criminosas. Hoje, a opinião pública apoderou-se do sofrimento e trauma das vítimas e engendrou um consenso acerca do teor e intensidade desses traumas.

Exclusivamente traumatizantes são os actos sexuais exercidos por adultos sobre crianças e adolescentes. Mas dos outros traumas que o regime dos internatos e seminários infligia aos seus alunos (e há tanta literatura sobre isso), inclusivamente o regime das interdições sexuais, em que até por pensamento se pecava, ninguém fala e ninguém se ergueu para exigir reparação das vítimas, mais não seja simbólica.

De facto, também aí há tanta matéria criminosa como na violência sexual. Infelizmente, o consenso é a de que é nas zonas do sexo, e em nenhum outro lugar, que se engendram os monstros e as suas vítimas.

Na época em que li essa reportagem, li também um volume da autobiografia do escritor catalão Juan Goytisolo, Coto vedado, que tinha acabado de sair. Impressionou-me um episódio que o escritor conta com uma grande naturalidade: a viver com os avós, ainda não tinha entrado na adolescência quando começou a ter uma continuada visita nocturna no seu quarto. Era o avô que lhe ia acariciar o sexo e ali ficava deitado ao lado dele por algum tempo, sem que a avó suspeitasse.

Recordando este acontecimento da sua vida familiar, Juan Goytisolo tem a delicadeza de manifestar um enorme carinho pelo avô, sem fazer dele um monstro e manifestando dor pela repressão a que o avô teria sido submetido ao longo de toda a vida. Tal como é contado, este episódio de Coto Vedado pertence a uma época de humores e disposições diferentes da nossa. A completa ausência de trauma, nem sequer sofrimento, em Juan Goytisolo, vista à luz da psicologização sombria em que estamos envolvidos, é impressionante.

Juan Goytisolo reinterpreta o que lhe aconteceu não como uma produção de trauma individual, mas como manifestação de uma sociedade repressiva de que o avô tinha sido vítima. E aqui levanta-se uma questão importante (de que fala, aliás, Geoffroy de Lagasnerie no seu livro agora editado em Portugal, O Meu Corpo, Este Desejo, Esta Lei e na entrevista que pode ser lida nesta edição): muitas vezes, o sofrimento é induzido pelo processo de reinterpretação e resignificação do passado à luz do presente, dos consensos que ele cria. A des-razão do nosso tempo engendra monstros e traumas.

sábado, 20 de agosto de 2022

O "Cantinho do Céu"


Sigo com regularidade os textos do Padre José Luís Rodrigues, agora subordinados ao título "Escrever na água". Ontem, voltei a ler um texto, este no quadro do "Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI)". A páginas tantas, sublinha:



"Afinal, entre nós a tão propalada e rezada abertura ao mundo, à sociedade e os desejos exaltados de transparência (...) não passam de falácias para entreter as hostes que, soberbamente, se continua a pensar estarem adormecidas como nos tempos da «velha senhora». A desconfiança instalou-se que alguns começam a dizer à boca cheia que o sistema está de tal modo montado com subornos, ameaças e todo o género de possibilidades para fazer valer o medo que não permite espaço às vítimas ganharem coragem e dizerem de sua justiça. Ainda assim não quero crer que isto seja verdade.

Mas, é pena que as reminiscências do passado, do tudo trancado, silenciado e amedrontado voltem em força. Sempre a maldita ideia que as ilhas «são o cantinho do céu» e de que o turismo a tudo obriga. Tem sido para esconder a pobreza. A criminalidade. A pedofilia. Os desmazelos e desgovernos. E tudo o que vai rebentando com a nossa terra e o nosso povo. (...)"

Breve comentário

Caríssimo Padre e Amigo, há dias escreveu: "(...) Tenho medo dos silêncios cobardes (...)". E ontem li-o: "(...) o sistema está de tal modo montado com subornos, ameaças e todo o género de possibilidades para fazer valer o medo (...)". É a "vox populi" que, silenciosamente, assume e que o Padre traduz na sua escrita ímpar, porque franca e aberta! O drama, Ilustre Amigo, é saber, de forma determinada e consequente, como acabar com os silêncios compaginados com o medo. Incomoda-me, creia, a existência de "tanta ilha dentro da ilha". 

Padre, continue com o seu extraordinário bom senso, independência e frontalidade, continue paladino de importantes causas que a Palavra impõe, porque o seu caminho de Cristão activo, estou certo, será sempre o de um de nós no meio de nós. Um abraço.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Crimes de guerra


Por
António Guerreiro, 
in Público
estatuadesal

O que são “crimes de guerra” — como os que têm sido apontados à Rússia, mas também à Ucrânia — no tempo da guerra técnica, da massificação e mecanização do combate conduzido a uma distância cada vez maior (que as aproximações não anulam) e em que a aniquilação e a destruição se tornaram eminentemente impessoais? A resposta é simples e dolorosa: a actual categorização de “crimes de guerra” não é mais do que um vestígio piedoso de uma ética que os mecanismos gigantescos da guerra actual tornaram completamente anacrónica: a ética guerreira fundada em regras que podiam ser as do ódio pelo inimigo, mas sem que, pelo menos num nível superestrutural, deixasse de haver a afirmação de outros valores.


Não começou agora esta experiência da guerra em que tudo é reduzido à categoria de material, numa guerra de materiais e, num grau crescente, de armas imateriais. A Primeira Guerra Mundial foi muito traumática exactamente porque inaugurou esta nova forma de belicismo. E, num fragmento de Minima Moralia, Adorno sintetiza assim a lição da Segunda Guerra Mundial: “Se a filosofia da história de Hegel tivesse abrangido a nossa época, as bombas-robots que eram os V2 de Hitler teriam o seu lugar entre os factos empíricos que ele [Hegel] considerou que exprimem o estado alcançado pelo Espírito do mundo”. E, ampliando esta ideia de que o “espírito do mundo” pôde ser visto montado nas asas de um foguete sem cabeça, e não num cavalo (como o viu Hegel), Adorno tira a “satânica” conclusão de que o “sujeito” desapareceu — já não há piloto no avião, já não há uma pessoa detentora da arma. Muita energia foi gasta pelos sujeitos “para que já não exista o sujeito”, diz Adorno.

Não há exemplo mais eloquente deste desaparecimento do sujeito (e, sem sujeito, onde está a o crime e o criminoso de guerra?) do que a execução de um inimigo, sem protocolos judiciários e reduzido à condição de simples alvo vulnerável, mesmo que se esconda nos antípodas. Foi o que aconteceu recentemente ao líder da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahiri, morto por um drone, no Afeganistão.

Um drone, na definição técnica que podemos ler em Théorie du drone, de 2013, um livro essencial para percebermos as características das guerras actuais, da autoria de um investigador em filosofia no Centre National de la Recherce Scientifique chamado Grégoire Chamayou, é uma câmara voadora de alta resolução, telecomandada e equipada com um míssil. Chamayou também o designa como um OVNI, isto é, um objecto violento não identificado que pulveriza completamente as categorias clássicas que definiam a guerra, incluindo as próprias categorias de acção e lugar. O que é um lugar onde decorre a guerra e onde é que uma acção se realiza (a acção de matar, por exemplo) quando essa acção se estende entre pontos tão distantes como uma sede da CIA, em Washington, ou uma base militar no Nevada e uma aldeia do Afeganistão? O drone predador, que substitui a guerra por uma caça ao homem, fica evidentemente fora da equação dos “crimes de guerra”. É a arma da impunidade absoluta: mata sem que se cometa crime e sem que chegue a haver guerra. Do ponto de vista de um tradicional ethos militar, o drone é a arma dos cobardes: não requer bravura nem espírito de sacrifício e erradica totalmente a exposição à violência por parte de quem o comanda. Quem o usa é completamente invulnerável.

O livro de Chamayou encerra com um capítulo que avança com uma hipótese sinistra: a de que os drones passarão a ser telecomandados nos laboratórios de investigação militar por robots. Esta “robótica letal autónoma” não é ficção científica, é o resultado de todo o conhecimento e energia despendidos para que “já não exista o sujeito”, como previu Adorno. Os drones accionados e telecomandados por robots não requerem a presença do humano em nenhum momento da operação, nem acima dela. São as máquinas que tomam a decisão de matar, já não há ninguém a carregar no botão. Uma das vantagens desta robotização que expulsa o humano é que se tira o tapete a quem tem contestado a utilização dos drones. E os mais veementes nessa contestação, diz-nos Chamayou, nem sequer foram os pacifistas, foram os pilotos da aviação militar, os “cavaleiros do céu”, essa casta superior que de repente se viu desapossada da sua nobreza, baseada no ethos guerreiro, isto é, no heroísmo, na gravidade e na virilidade de que ele sempre se serviu.

“Crimes de guerra”? Que conversa tão antiga, tão mole, tão destituída de sentido quando percebemos o que é a guerra actual.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

De Beirute a Gaza há coisas que nunca mudam

 

Por
José Goulão, 
in AbrilAbril, 
08/08/2022
estatuadesal


Palestinianos inspeccionam um edifício residencial atingido pela aviação israelita, em Rafah, no Sul da Faixa de Gaza, a 6 de Agosto de 2022

Passam agora exactamente 40 anos sobre os dias tórridos de 1982 em que, ao cabo de várias peripécias próprias da vida de um jornalista, consegui chegar a Beirute Ocidental, região cercada e impunemente bombardeada pelas forças armadas de Israel. A invasão israelita consolidara ainda mais a divisão sectária da capital libanesa em sectores ocidental e oriental, separados por uma «linha verde».


Agora, quatro décadas depois, as mesmas forças armadas de Israel cometem mais um pico da agressão permanente que mantêm contra a Faixa de Gaza, território palestiniano transformado num campo de concentração a céu aberto, tal como Beirute Ocidental foi em 1982.

Há coisas que nunca mudam: regimes criminosos agindo tranquilamente à margem das leis internacionais, sustentados por cúmplices dizendo-se democratas, civilizados e juízes dos direitos humanos; e povos sujeitos a guerras de extermínio.

No caso dos palestinianos, quando a situação se altera, é no sentido único do agravamento contínuo. Um povo submetido a um tratamento cruel e a uma limpeza étnica há sete décadas e meia, e que, ao contrário de outros «mais parecidos connosco», como se diz na linguagem própria da xenofobia colonial, não consegue suscitar grandes vagas de comoção internacional, acompanhadas pelo coro de berros transtornados de jornalistas e comentadores sem escrúpulos.

Os palestinianos resistem quase sozinhos, com a sua coragem inigualável e os parcos meios de que dispõem para fazer frente a um inimigo sádico e selvático, sem limites, beneficiando de um ilimitado poder militar e de lóbi transnacional, além de uma impunidade internacional sem restrições.

De Beirute, em 1982, até Gaza, em 2022, há um fio histórico condutor com uma lógica e uma coerência tão fortes que lhe permitiram resistir às grandes convulsões ocorridas ao longo dos últimos 40 anos. Acabou uma guerra fria e começou outra, derrubou-se um muro em Berlim e construíram-se outros na Europa e em vários lugares através do mundo, mas o martírio palestiniano continua, afinal incólume aos terramotos políticos, militares e estratégicos através dos quais se faz, e também se desfaz, aquilo a que a tecnolíngua de consumo obrigatório decidiu chamar globalismo.

A arbitrariedade militarista e racista israelita passou por cima da imensa vaga de transformações à escala mundial, o que não é surpreendente graças às relações de forças que foram emergindo no fim da guerra fria; no entanto, de maneira insólita e mesmo inesperada (que não para os próprios), a resistência palestiniana não foi liquidada por essa mesma onda, entre pequenos e traiçoeiros avanços e devastadores mas não fatais recuos. Perdoe-se a ligeireza da analogia, mas a justiça e os direitos legítimos de uma aldeia de Asterix continuam a sobreviver à força bruta e à crueldade expansionistas no coração do império – embora sem alcançarem o devido reconhecimento em forma de Estado nacional.


Ashraf al-Qaisi, de 46 anos (segundo à esquerda), deixou que os bulldozers demolissem a sua casa para que a protecção civil salvasse os seus vizinhos // Hosam Salem / Al Jazeera

O exemplo de Beirute

É assim em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Leste como foi em Beirute no ano de 1982.

Para os que não eram nascidos ou não se recordam, Beirute era alvo de uma brutal ofensiva militar israelita, comandada pelo general Ariel Sharon, que depois chegou a primeiro-ministro mesmo tendo sido condenado internamente por crimes cometidos nessa operação. O objectivo declarado, como de costume, era o de «combater o terrorismo palestiniano», isto é, liquidar as estruturas embrionárias de um Estado árabe na Palestina, na altura instaladas no Líbano. E, se possível, assassinar o próprio dirigente máximo da resistência nacional palestiniana, então Yasser Arafat, o que foi tentado várias vezes, na altura sem êxito.

No recuo perante as tropas invasoras israelitas, apoiadas por uma força aérea poderosíssima que agia sem qualquer oposição, a resistência conjunta palestiniana e libanesa concentrou-se na parte Oeste de Beirute, que ficou então completamente cercada.

Do lado da resistência aos invasores actuavam as estruturas paramilitares das forças políticas palestinianas concentradas na Organização de Libertação da Palestina (OLP) e o Exército de Libertação da Palestina – embrião do exército nacional do futuro Estado; e também grupos paramilitares libaneses ligados a partidos e movimentos políticos, além de organizações de âmbito nacional ou das várias confissões religiosas: muçulmanas sunitas, xiitas, drusas e até cristãs maronitas.

As tropas agressoras sionistas eram ainda apoiadas pelas principais organizações fascistas cristãs maronitas libanesas, como o Partido da Falange, da poderosa família Gemayel, de índole feudal e «cultura» colonial francesa, e o chamado Exército do Sul do Líbano, de facto criado pelo regime de Telavive.

Embora as peripécias vividas pelo jornalista para chegar à área cercada de Beirute não sejam para aqui chamadas, há uma que tem um cariz relevante, sobretudo pela sua actualidade. No caminho por estrada entre a capital síria, Damasco, e Beirute Oriental fui submetido a vários controlos de identificação pela miríade de grupos militares e paramilitares presentes no terreno mas o último, e decisivo, aconteceu no quartel-general dos fascistas da Falange, fazendo o papel de filtro de admissão a rogo das forças israelitas.

Como viajava num grupo de jornalistas e operadores de câmara britânicos e norte-americanos, o processo decorreu sem grandes sobressaltos, mas fica a nota da colaboração das forças ditas civilizadas, ocidentais e democráticas, na ocasião briosamente representadas pelas tropas invasoras israelitas, com as organizações fascistas e terroristas libanesas. Coisa que se diria contranatura mas que, tendo em conta a presente colaboração da NATO com os nazis ucranianos na defesa de um regime ditatorial em Kiev, não passa de uma intimidade de longa data, natural, frequente, corrente e até coerente, pode dizer-se.

O estado de Beirute Ocidental era indiscritível e cada minuto a mais de existência, dia e noite, sentia-se como um milagre de sobrevivência. A maior parte dos edifícios estava arrasada ou em ruínas, cadáveres insepultos, desfigurados, muitos já em decomposição, jaziam por todo o lado, principalmente nas imediações e no interior dos campos de refugiados palestinianos – não existiam condições para os funerais escaparem ao fogo dos aviões israelitas; não havia água e apenas funcionavam alguns precários pontos de electricidade dependentes de geradores, numa cidade quase desprovida de combustíveis; os recursos alimentares eram mínimos, os refugiados amontoavam-se em pequenas divisões no interior dos edifícios que restavam, situados principalmente na Rua Hamra, até então uma área comercial, financeira, jornalística e hoteleira da cidade. O uso de telex – o meio de comunicação escrita existente na altura – era possível apenas algumas horas por dia, de maneira intermitente e a preços proibitivos; o telefone para numerosos países, entre os quais Portugal, não funcionava.

De noite, os bombardeamentos israelitas com obuses eram cegos, não importava onde caíssem desde que fosse no perímetro urbano cercado, chegando a atingir o hotel onde se concentravam os representantes da imprensa e da TV norte-americanas – habitualmente alvo de precauções especiais por parte dos agressores. A partir dos primeiros sinais de dia começavam os bombardeamentos aéreos, em vagas sucessivas de F-15 – a geração mais avançada de caças-bombardeiros então em poder da Força Aérea israelita – e sem qualquer oposição. As consequências eram devastadoras, não havia refúgios, e no dia 10 de Agosto, que ficou para a história como a «horrenda quinta-feira», a chacina foi impiedosa sobre multidões que corriam desencontradas e à deriva pelas ruas.

Uma visão do Apocalipse. Quem tenha vivido uma situação destas, como posteriormente me aconteceu várias vezes em Gaza, jamais poderá considerar como lícito, justificado, muito menos banal o recurso à guerra e o seu prolongamento como via para criar estabilidade, resolver conflitos, pacificar regiões. É exactamente o oposto da democracia e do respeito pelos direitos humanos. O predomínio do militarismo é uma porta franqueada ao terrorismo, é criminoso.

A resistência armada libanesa-palestiniana, civil, paramilitar e militar, unida no interior de uma região que sempre fora desmilitarizada e deixara de o ser por força do avanço dos invasores, não se vergou nem rendeu durante 82 intermináveis dias, um feito pouco menos que inacreditável mesmo para quem viveu os combates. A todo o momento se esperava a entrada das tropas israelitas, mas o certo é que não se atreveram nem mesmo após o massacre de 10 de Agosto. Os assaltantes sionistas fugiram a experimentar o combate urbano contra quem, em boa verdade, pouco tinha a perder além da vida.

Muitos cadáveres de soldados chegariam então ao território israelita se isso acontecesse, um preço que o regime de Telavive não se sentiu em condições de pagar. E então negociou, sempre em vantagem porque, como viria a tornar-se um hábito, a «mediação» foi exercida pelos Estados Unidos. O acordo encontrado estabeleceu que as forças do Exército de Libertação da Palestina e os dirigentes da OLP poderiam sair em segurança de Beirute para a Tunísia e que tropas transnacionais, especialmente francesas, garantiriam a necessária interposição entre as partes em conflito, além de assegurarem a protecção dos campos de refugiados palestinianos.

O mecanismo era precário mas funcionou durante algumas semanas. Em 17 de Setembro, porém, os terroristas cristãos pró-Israel do Exército do Sul do Líbano, protegidos pelas tropas israelitas, o que foi muito fácil de testemunhar, entraram nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila e chacinaram a sangue frio cerca de cinco mil pessoas entre homens, mulheres, crianças e idosos, sem discriminação. Ainda não se chamava assim, mas foi um concludente exemplo da «ordem internacional baseada em regras».

O massacre teve algum eco através do mundo, até porque violou um acordo «mediado» pelos Estados Unidos, e deu origem a sinais de má consciência entre membros reservistas do Exército israelita, de que dá conta o interessante filme Danças com Bachir. O comandante da operação, Ariel Sharon, foi condenado na sequência de um inquérito oficial mas alguns anos depois chegou a primeiro-ministro e, no início deste século, esteve à frente do terror contra o chamado «Segundo Intifada» palestiniano.

Foi breve e quase inconsequente a consternação em relação à chacina de Sabra e Chatila. Massacres recentes incomprovados, certamente montados segundo guiões falsos como o de Bucha, nos subúrbios de Kiev, fizeram correr bastante mais tinta e geraram uma ampla, descontrolada e mirabolante cacofonia de poluição sonora.
Jornalismo e jornalistas

Fui o único jornalista português a trabalhar em Beirute Ocidental durante o cerco israelita. Se anoto esta situação, é porque se trata de um facto relevante a que as circunstâncias conferem actualidade, apesar de terem passado 40 anos. Os jornalistas portugueses, como se constata, acorrem na sua esmagadora maioria para lugares de conflito armado onde a narrativa dos factos coincide com a posição das instituições públicas do país, convergindo na formação de uma opinião hoje ainda mais restritiva e única do que então; o «inimigo» não deve ter cobertura, não pode ter voz dada a conhecer aos cidadãos portugueses, está do lado errado do conflito e dos «nossos valores partilhados», o salmo dogmático de Bruxelas e Washington.

No Verão de 1982, jornalistas nacionais instalaram-se comodamente em Beirute Oriental de acordo com os critérios seguidos actualmente no Zelenskistão; os raríssimos profissionais que procuram testemunhar a realidade no Donbass, como acontece, por exemplo, com o valiosíssimo e profundo trabalho de Bruno Amaral de Carvalho, são considerados uma espécie de traidores à Pátria, até por membros do governo; chegam a ser convocados por colegas para dar entrevistas, como se necessitassem de justificar um comportamento autoritariamente interpretado como aberrante.

Também neste aspecto a situação não mudou; agravou-se mesmo em termos de desrespeito pelo pluralismo de opiniões e pelo direito de acesso a todos os ângulos de informação. É uma outra guerra produzida pela própria guerra e pelo avanço galopante da ideologia militarista.

Islam abu Ramadan, de 24 anos, é uma das centenas de feridos nos bombardeamentos israelitas realizados entre 5 e 7 de Agosto de 2022; alguns necessitam de ser submetidos a intervenção cirúrgica // Hosam Salem Al Jazeera

O fracasso da ONU

Depois de Beirute, estive em Gaza cinco anos, dez anos, 15 anos, 20 anos depois e testemunhei a gradual transformação do pequeno território palestiniano numa versão ainda mais aterradora da que existiu há 40 anos na parte ocidental da capital libanesa.

O governo terrorista de Israel, com o apoio permanente dos Estados Unidos e também de vários outros países da NATO, sobretudo a França e o Reino Unido, tentou por várias vezes voltar a conquistar uma presença militar no Líbano de modo a domesticar este país e transformá-lo num satélite inofensivo para as suas ambições de controlo regional – principalmente sobre a Síria.

Mas a emergência dos nacionalistas xiitas do Hezbollah, em parte incentivada pela chacina de Sabra e Chatila, travou todas as tentativas de invasão, principalmente em 1996 e 2006. O grupo de índole religiosa, que ganhou respeito e apoios em outros sectores religiosos e até não religiosos, transformou-se num adversário de respeito que obriga a tropa sionista a ponderar as suas acções na região, evitando o confronto militar directo. Recorre cobardemente, como sempre, aos ataques permitidos pela sua superioridade aérea, mas o à-vontade já não é o mesmo desde que existem o Hezbollah e sistemas mais avançados de defesa anti-aérea instalados pela Rússia na Síria, a partir de 2015.

Mas em Gaza isso não acontece. Gaza é hoje Beirute Ocidental de há 40 anos, com a agravante de a sua população, calculada em dois milhões de pessoas num território ínfimo de 360 quilómetros quadrados (área aproximada do concelho de Montijo, por exemplo), ter sido privada de todos os meios de defesa e até de sobrevivência.

A Faixa de Gaza, governada pelo movimento radical islâmico Hamas depois de uma divisão catastrófica da resistência palestiniana na sequência dos acordos de «paz» conduzidos pelos Estados Unidos, novamente como «mediadores», e por Israel, está fisicamente envolvida por cercas, muros, e meios navais de guerra no Mediterrâneo, impedida de se abastecer de todos os bens essenciais à vida, desde alimentos a medicamentos. A água é escassíssima e cada vez mais salgada, não existe energia eléctrica durante grande parte do dia, os bombardeamentos permanentes de Israel, com picos de grande violência como agora mais uma vez se registou, destruíram grande parte das estruturas sociais, como escolas e hospitais, e devastaram o parque habitacional.

Gaza é um monte de ruínas, uma sociedade de famílias destroçadas e um universo de carências como Beirute Ocidental há 40 anos. Centenas de milhares de palestinianos eram, e são, refugiados no Líbano e são-no também na sua própria terra, em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Leste.

Ninguém, nenhum país e organização com capacidade de intervenção no mundo se move em favor dos direitos deste povo. O comportamento da ONU é deplorável e as atitudes dos secretários-gerais tornam-se cada vez mais irrelevantes à medida que se sucedem os ocupantes do cargo: quando isso parecia impossível, António Guterres supera em alheamento e ineficácia o desastre que foi a gestão do sul-coreano Ban Ki-moon.

Tão célere a tomar posição, por sinal enviesada, parcial e desinformada (no mínimo) na questão ucraniana, o eng. Guterres contempla imobilizado a agonia e as periódicas chacinas de Gaza; e, quando age, os resultados chegam a ser patéticos. A ONU tem em seu poder todos os instrumentos para fazer justiça, finalmente, ao povo palestiniano. Existem, contudo, povos de primeira, segunda e terceira, e o da Palestina não cabe sequer em qualquer destes níveis discriminatórios.

É um pária do qual os senhores do mundo, uma elite parasita que representa pouco e ainda manda muito, observam tranquilamente o extermínio gradual. No entanto, esse povo resiste, como há 40, há 75 anos. E onde estão as sanções contra Israel pela Nakba (a catástrofe terrorista, genocídio, limpeza étnica) em prática há sete décadas e meia?

A situação do povo palestiniano diz muito, quase tudo, sobre a qualidade humana, o conceito de justiça, a consideração pelo direito internacional, o respeito pelos direitos humanos por parte da casta colonial e imperial que ainda controla o mundo em coligação com o poder sionista transnacional, não apenas centrado em Israel.

domingo, 7 de agosto de 2022

"Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos..."

 

Porventura não está tudo narrado sobre a vida e obra do Padre José Martins Júnior. Já muito li e escutei de outros que acompanharam de perto, na paróquia, no concelho e na região, a sua vida marcada pela Palavra e pela dedicação às populações que serviu. Não venho aqui repetir e tecer considerações que outros, de memória mais presente que a minha, enalteceram de forma brilhante. Não venho, sequer, enquadrá-lo, politicamente, na linha de uma esquerda de valores sociais que também comungo. Os historiadores, se honestos com a sua verdade, que caracterizem a sua trajectória de Vida. De um aspecto estou certo: mesmo que alguns não gostem, tem um lugar na História da Madeira. Em Setembro, no meu regresso à Região, com ele estarei em mais uma amena cavaqueira pela tarde ou pela noite adentro. Tenho esse dever de Amigo. De resto, gosto de com ele estar, porque aprendo no extravasar de emoções das palavras e desabafos ditos e sentidos. De resto é sempre uma honra e um privilégio.



No nosso penúltimo encontro, a propósito de uma celebração, disse-me que essa seria, provavelmente, uma das suas últimas ao serviço da Igreja. Não me surpreendeu, por isso, o anúncio da sua retirada aos 84 anos. Em 2023 outro será o pároco da lendária Ribeira Seca.

Não creio, no entanto, que o Padre se afaste de tudo e se remeta ao silêncio. Ele tem uma missão Terrena e, embora com menores responsabilidades, estou certo que continuará a ser um guia espiritual e transmissor da Palavra. Aliás, para o Povo da Ribeira Seca e não só, não se me afigura tarefa fácil assumir a inevitabilidade da substituição, mesmo que se considere que não existem insubstituíveis. Mas porque há uma ligação de afectos, uma conexão umbilical de dezenas de anos, uma união em torno de múltiplas áreas que não apenas a dos rituais religiosos (música, teatro, eu sei lá...) torna-se difícil continuar o seu projecto de anos. Ainda recentemente escreveu (05.08.2022)no contexto da cultura: "Mesmo que ninguém o diga, toda a gente o vê: Machico é diferente!" Complemento: na Ribeira Seca, é diferente.

Ao olhar lá para trás, sem percorrer os detalhes, em síntese, eu diria que há um tempo para estar e um tempo para partir. "Tudo tem o seu tempo determinado e há um tempo para todo o propósito". Foi ali, naquela paróquia, que a Palavra foi contextualizada com a Vida real. Foi ali o tempo determinado para o propósito de uma Igreja sentida e vivida que, em circunstância alguma, deve estar desligada da vida real. Foi ali que foram despedaçadas posições anquilosadas de uma Igreja parada no tempo. Foi ali que o Povo entendeu Cristo e que valia a pena infringir e violar o pensamento de hierarquias cristalizadas. Foi ali que o catecismo teve vida enquanto despertador de uma Igreja prospectiva, acordando o Povo para outras realidades que estão para além dos actos de contricção. Foi ali que o Povo, advinhando, percebeu que a "bondade" de certas atitudes partidárias estavam a léguas de uma política transparente e ao seu serviço. Foi ali que o Povo entendeu que o voto não se compra e que "(...) Só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação (...) Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir (...)" - Sérgio Godinho. Foi ali que o Povo, em sua defesa, tantas vezes cantou e interiorizou letras do Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Pedro Barroso, Janita Salomé e escutou a Palavra do "teólogo da praça pública" Frei Bento Domingues, o Padre Doutor em Filosofia Anselmo Borges, um Homem de pensamento profundo e frontal, por cá, de Mário Tavares a José Luís Rodrigues. E foi ali que, subtilmente, através da doçura e compreensão das palavras e dos sentidos, tomou consciência de grandes teólogos libertadores. 

Houve um propósito e esse consegui-o. Basta escutar a população para se perceber que os "Poemas de Deus e do Diabo", de José Régio, foram, pela prática quotidiana, entendidos através do Cântico Negro:

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

O Padre José Martins Júnior não foi pelos caminhos lamacentos que outros quiseram que ele peregrinasse. Sofreu nas entranhas a distorção da verdade, as mentiras da maldade política, sem julgamento eclesiástico, desvirtuamentos narrados pelo seu irmão, Dr. Bernardo Martins, no livro "O 25 de Abril em Machico", ou no livro "Olhares Múltiplos sobre um Homem de causas", publicado no decorrer das solenidades do 50º aniversário sacerdotal ou, ainda, no episódio "Vidas Suspensas" da SIC. O Padre, enfim, carregou, durante anos, uma ignominiosa e fabricada suspensão (política), porque "o propósito" não servia os desígnios de alguns. Ele não foi "por aí", antes preferiu a fidelidade ao Evangelho, o amor a Jesus Cristo e ser um permanente construtor de utopias nesta sociedade que se deixou corroer por dentro. Para que é que ela serve (a utopia), perguntou o cineasta Fernando Birri a Eduardo Galeano: a utopia serve para caminhar, respondeu. Ele soube, humildemente, com a sua acção, interpretar o tempo de caminhar e de parar, o "tempo de rasgar e o tempo de coser; o tempo de estar calado e o tempo de falar". Por isso, uma vez mais, trago aqui Jorge Fernando que escreveu "A Chuva", cuja letra tenho em Mariza a melhor interprete:

Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir (...)"

O Padre Martins Júnior fica na "história da gente". Ele escolheu o caminho mais difícil, mais penoso, porque optou pelo "tempo de abraçar e o tempo de afastar-se de abraçar", para voltar a abraçar. O seu blogue Senso e Consenso, o blogue dos dias ímpares, com cerca de 1 500 textos publicados, constitui a tradução fiel da sua luta na dignificação do ser humano. Leio-o e deixo-me envolver na oportunidade, no brilhantismo e ecletismo cultural escorreito dos seus textos, nas linhas e entrelinhas amadurecidas por anos de leituras e de experiências múltiplas. A sua escrita exala o perfume da vida com sentido e a crítica serenamente cáustica que faz acordar para a realidade. Por isso, transcrevo aqui as suas palavras quando, recentemente, se referiu a um outro lutador, o Padre Teixeira da Fonte, palavras que eu, agora, lhe dirijo: "cumpriu o mandato evangélico: servir o Povo de Deus, mais que servir e aninhar-se na Instituição". 

Por tudo isto e a propósito, tenho presente uma excelente síntese de um texto do Padre José Luís Rodrigues (Junho de 2019), a qual não tem merecido a necessária atenção: "(...) A Igreja perdeu o inferno, o céu vai no mesmo caminho, dizem que os jovens não querem saber da Igreja para nada, os casais mandam às urtigas todas as directrizes morais que a Igreja lhes reclama, a sociedade em geral emancipou-se faz tudo sem a referência ao religioso, a cultura actual funciona muito bem sem a Igreja, a vida é possível sem a doutrina da Igreja (...)". E mais adiante: "ninguém deseja uma Igreja apenas zeladora do património, que se preocupa apenas com os bens deste mundo, qual senhor rico que se gasta com as transações do mercado e com as papeladas burocráticas que ditam a posse e o domínio da propriedade (...) Precisamos de encontrar uma Igreja aberta ao mundo, a este mundo concreto da nossa vida, onde o normal já não é o unanimismo da nossa fé (...)".

Ora, foi esse o caminho de luta precursora escolhido pelo Padre Martins Júnior, a de uma Igreja aberta ao Mundo, aberta às pessoas e desligada dos poderes subterrâneos. A Ribeira Seca não é o centro do mundo, mas é centro de uma pedagogia da libertação dos silêncios que matam. Como escreveu (2012) o comum Amigo José Ângelo Paulos, já falecido, "o Padre José Martins Júnior é o Pierre Theilhard Chardin dos tempos actuais". E nisto há Bispos, ainda vivos, que lhe devem um pedido de perdão. Não apenas a ele, mas ao Povo da Ribeira Seca. Também alguns políticos, pelas ofensas, humilhações e perseguições sem sentido. Gente que sempre desejou "trazer a Igreja pela trela". Durante anos não acredito que uns e outros tenham dormido de consciência tranquila. Subtilmente, dirigindo-se à hierarquia católica, um dia Martins Júnior disse e bem a um jornalista: "Ninguém pode servir a dois senhores: ou se serve a Cristo ou se serve o Poder" (...) e o que nos vale é que há mais Cristo além da Mitra."

Falta, agora, o livro da Vida e Obra deste Padre revolucionário, palavra que só pode ser entendida como inovador, original, renovador e ousado. 

Um abraço meu querido Amigo. Encontramo-nos em Setembro. 

Ilustração: Fotorodas/Barcelos

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Parem com esta política de permanente engano aos consumidores

 

Sinto que estamos todos a ser enganados. E de que maneira! Basta ir ao supermercado ou a uma estação de abastecimento de combustíveis. Tomemos consciência desta factura de uma grande marca de distribuição de produtos alimentares:




Valor teórico inicial a pagar    € 342,91
Descontos directos                  € 124,99
Pagamento na caixa                € 217,92

A este valor a pagar o consumidor beneficiou de 10% acumulados em cartão:  € 21,79.

Portanto, o valor realmente pago pelos bens adquiridos foi de € 196,13, isto é, 217,92 - 21,79 €.

Relativamente ao valor teórico inicial a pagar verificou-se, então, um desconto de 42,8%.

Juntaram a isto € 0,14, por litro, de desconto em combustível.

Obviamente que o valor real pago, os tais € 196,13, já incluem o lucro da empresa de distribuição. E perante este facto, presumo que só se poderá deduzir que esta política é, claramente, exploradora dos fornecedores, espreme até ao tutano os consumidores e mente, descaradamente, sobre o valor correcto dos bens. Somos literalmente iludidos e enganados. Isto não tem nada a ver com aumentos dos custos de contexto de produção, tem sobretudo a ver com uma política de MENTIRA.
 
Mas não é apenas nas cadeias de distribuição alimentar. Quando vejo, por exemplo, 70% de desconto em vestuário e calçado, pergunto, uma vez mais, quanto somos enganados. E são, também, os bancos, com lucros, em alguns casos "pornográficos", à custa de todos os depositantes, com taxas e taxinhas vergonhosas. Em muitos casos, os eventuais juros por um qualquer depósito, são inferiores às taxas de uma coisa designada por "manutenção de conta". E o que dizer dos combustíveis, concretamente da Galp, por exemplo, que apresentou um lucro de 420 milhões de euros no primeiro semestre do ano, "uma melhoria de 153% em relação aos primeiros seis meses do ano passado, em que obtivera um resultado de 166 milhões"? - Público. Ou, então, da EDP que vai investir 56,9 milhões de Euros numa nova sede. De quem vem o dinheiro?

E com uma distinta lata, permitam-me a caracterização, dizem que isto é "o mercado a funcionar". Não, não, o que está a funcionar é a EXPLORAÇÃO do momento. Em todos os sectores. Dizia o banqueiro Fernando Ulrich sobre o povo e a situação de crise: descansem que ele "aguenta, aguenta"!

Ilustração: Google Imagens.