Adsense

segunda-feira, 31 de maio de 2021

A aliança entre os censores e os que assinam de cruz


José Pacheco Pereira, 
in Público, 
29/05/2021


Ser enganado é um custo da liberdade, mas é mil vezes melhor do que dar ao Estado o poder de decidir o que eu devo ou não conhecer, pela censura do que é informação e do que é “desinformação”.




Existe um considerável desprezo entre os políticos e os que seguem a política –​ uma minoria muito longe do interesse geral mínimo que é a regra – sobre as matérias que não dão espectáculo mediático. Podem ser mais que importantes, mas, se não contribuem para a festa dos títulos e para a jigajoga das opiniões tribais, ninguém lhes liga. Dá-se então por regra um efeito de invisibilidade, por detrás do qual se escondem dois tipos de pessoas: as que têm um interesse próprio ou colectivo numa determinada questão e querem ver se ninguém dá por ela, e os que assinam de cruz, os da intenção e os da inércia.

Um exemplo é o Acordo Ortográfico, o maior atentado à língua portuguesa das últimas décadas, que todos já perceberam ter dado resultados contrários aos pretendidos – a começar no Brasil, o seu principal pretexto –, é um desastre diplomático e, ao ser imposto à força e ilegalmente, abastarda e degrada a língua nas escolas e na burocracia do Estado. Porque é que não se acaba com essa aberração? Porque uns não querem, e outros não querem saber.


O mesmo se está nestes dias a passar com a aprovação de uma Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital, um verdadeiro nome em linguagem orwelliana, porque de “direitos fundamentais” não tem nada e é uma legitimação de todas as censuras. Pode-se dizer que nunca vai ser aplicada, que é inócua de tão vaga, genérica e mal feita que está, mas é só esperar até um dia, ou até quando servir a algum poder ou a algum interesse. Tudo é mau, a atribuição de actividades censórias à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o apelo à bufaria, a inexistência de medidas para efectivamente combater o cibercrime sob controlo judicial e não por uma “entidade” de nomeação partidária, o palavreado politicamente correcto que é hoje norma do “politiquês”. (Diga-se de passagem que eu sempre defendi a extinção da ERC, há já muito tempo.)

Como é que esta Carta passou? Proposta pelo PS, os primeiros censores, votada a favor pelo PSD, CDS, BE, PAN, Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues, os segundos censores, e com a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal, a que benevolamente chamo assinantes de cruz. Depois, o Presidente da República também assinou de cruz, embora não seja impossível que a lei seja inconstitucional. A Europa assinou do lado dos censores, dado que tem muita responsabilidade nestas coisas que têm a sua matriz. A comunicação social, salvo raras excepções, ficou muda e calada, sem qualquer sombra do sobressalto que qualquer irrelevante “estrume” lhes suscita.

Ou seja, toda a gente. É também por coisas como esta, que são demasiado sérias, que não há verdadeira crítica ao Governo. E é também porque não há liberais onde devia haver. Liberais de liberdade, da causa da liberdade. Os do nome abstiveram-se.

Tudo isto sob a capa de um “direito à protecção contra a desinformação”, em si mesmo uma coisa bizarra, que pensa que numa sociedade democrática os cidadãos podem ser “protegidos” contra uma forma peculiar de “narrativas”, um termo na moda, sem limitar a liberdade de informação. Não estamos a falar de crimes, como a calúnia e a difamação, que esses são crimes que, como disse já mais de mil vezes, devem obedecer à regra de que o “que é crime cá fora é crime lá dentro” e mereceriam sem dúvida um esforço legislativo para dar à justiça leis que entrem em conta com a nova realidade das redes sociais, mas de “desinformação”, que é suficientemente ampla para nela caber tudo.

Para se perceber o espírito censório da proposta original do PS, veja-se uma das versões da lei onde se explica o que é “desinformação”:

Toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.

As sociedades não são imunes à mentira, à crença e à crendice, mas querer instituir por lei critérios de conformidade que nada têm a ver com a democracia e a liberdade de expressão é absurdo. A censura protege-vos, era o grande lema da censura dos 48 anos de ditadura.

“Toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”

A parte final sobre a “ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos” serviria para impedir e punir qualquer crítica ao Governo.

Numa sociedade democrática, onde há liberdade de expressão, não se pode controlar e muito menos punir através de uma qualquer ERC “informações falsas, imprecisas, enganadoras, concebidas, apresentadas e promovidas para causar dano público ou obter lucro”. Esta fórmula aplica-se, por exemplo, à publicidade e, por maioria de razão, a essa forma de publicidade que é a propaganda política. O que é, por exemplo, o “dano público”? E quem o julga? Associemos ainda o apelo à denúncia, cuja eficácia tende a ser maior exactamente nos meios que se pretendem controlar, nas redes sociais, que são em si mesmo o terreno privilegiado para a bufaria. A proposta de atribuição de “selos de qualidade” às publicações que o Estado considera verdadeiras seria ridícula, se não fosse perigosa.

As sociedades não são imunes à mentira, à crença e à crendice, ou, pior ainda, a interpretações diferentes dos mesmos factos, que um lado considera mentiras e o outro verdades, seja com má-fé seja com boa-fé, mas querer instituir por lei critérios de conformidade que nada têm a ver com a democracia e a liberdade de expressão é absurdo. Eu acho que certos discursos sobre a ditadura do Estado Novo proferidos no MEL são falsos e enganadores; e os negacionistas acham que a covid é uma “gripezinha” usada pelo PS para limitar as liberdades – tudo asneiras que deveriam arrepiar qualquer pessoa, mas defendo a liberdade plena de dizerem o que quiserem. Ser enganado é um custo da liberdade, mas é mil vezes melhor do que dar ao Estado o poder de decidir o que eu devo ou não conhecer, pela censura do que é informação e do que é “desinformação”. “A censura protege-vos” era o grande lema da censura dos 48 anos de ditadura.

Historiador

domingo, 30 de maio de 2021

Coimbra — O fascismo desceu à rua


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
29/05/2021




O partido fascista e o seu mentor e líder decidiram poluir a cidade de Coimbra com o 3.º congresso e desfilaram pelas ruas sem as camisas azuis, mas com os tiques do ignóbil pintor de tabuletas que mora na alma dos seus apaniguados.


Têm toda a legitimidade para o fazerem, depois de o Tribunal Constitucional legalizar a confraria, com o delinquente à frente e o grupo que acrescentou à poluição ideológica a sonora. É a superioridade da democracia, que consente aos seus inimigos o que eles não permitiriam se fossem poder.

A escolha simbólica do dia 28 de maio para o início da reunião tribal, que se prolongará até ao dia 30, não surpreende quem conheceu os horrores do fascismo.


O que incomoda é o tempo de antena que a RTP, canal público, concede à propaganda fascista numa publicidade gratuita e cúmplice dos interesses que financiam, promovem e influenciam a ideologia fascista.

Não faltam, nas redes sociais, nostálgicos do salazarismo e órfãos do cavaquismo e do passos-coelhismo, democratas contrariados, a carpirem a ausência do “nosso ultramar infelizmente perdido”, mas é a cobertura dos média da esfera pública que perturba os que têm memória da ditadura, sobretudo os que lambem as feridas da guerra colonial.

Defender o direito à existência dos fascistas não é contemporizar com o nacionalismo e o populismo que os alimenta, é defender o único sistema que permite ser derrubado nas urnas.

Somos chamados a defender as liberdades que os militares de Abril nos outorgaram e é dever de todos os democratas defendê-las perante a horda que uiva, ulula e intimida.

Apostila - Não faltam neste mural visitantes fascistas a perturbar os comentários. Não devem os democratas alimentar-lhes a conversa.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

A matriz fundamental da direita


Por estatuadesal
Alexandre Abreu, 
in Expresso Diário, 
27/06/2021)
Alexandre Abreu

Numa escala de 0 a 20, daria 20 valores a este texto, por ser quase impossível dizer tudo em tão poucas palavras. Assim sendo, dedico-o ao comentador mais assíduo deste Blog, RFC de seu nome. Pode ser que se faça luz nalgumas trevas do seu espírito, e que não seja só São Paulo a ter a sua Estrada de Damasco... 
Estátua de Sal, 27/05/2021



A terceira convenção do Movimento Europa e Liberdade que se realizou nos últimos dias foi excelente para separar o essencial do acessório. À primeira vista, estiveram lá representados projetos políticos com diferenças importantes entre si: do liberalismo na economia e nos costumes ao reacionarismo saudosista do Estado Novo e do passado colonial, da democracia cristã ao novo radicalismo trauliteiro. Na prática, porém, uma e só uma preocupação animou esta convenção: o regresso da direita ao poder. Para isso, ninguém como Camilo Lourenço para chamar a atenção para a plataforma comum que a todos anima: privatizações (não que restem muitas por fazer…), redução dos impostos, redução da despesa social, negócios privados à sombra do Estado. Que não haja dúvidas: independentemente das diferenças mais ou menos superficiais em torno de outras questões, é mais o que une do que o que separa. E o que une é a sua natureza de classe: menos redistribuição do rendimento e mais abertura de mais esferas da vida social (saúde, educação, pensões,…) à rendibilidade privada.

Neste sentido, é sintomático que a sensibilidade de direita que mais se apresentou em extinção neste congresso tenha sido a democracia cristã, com as suas influências da doutrina social da Igreja e a sua combinação de conservadorismo político e cultural com uma política económica com preocupações sociais. Os tempos não estão para isso: do ponto de vista da direita contemporânea, a democracia cristã erra em toda a linha, sacrificando o essencial e retendo o supérfluo. É também por isto que o CDS, representante original da democracia cristã portuguesa no período democrático, está hoje moribundo e é também por isto que a democracia cristã está praticamente extinta mesmo dentro do CDS. Os estados de alma do “manifesto dos 54” estão por isso condenados a perder para o pragmatismo das alianças que se mostrarem necessárias, como Rui Rio já deixou abundantemente claro. Foi Ventura e não Poiares Maduro quem empolgou esta convenção, porque é o primeiro e não o segundo quem permite vislumbrar uma via de regresso ao poder. As direitas divergirão no que calhar mas estarão de acordo no que se impuser, como exemplificado pela perfeita sintonia das propostas da Iniciativa Liberal e do Chega em matéria fiscal: redução máxima da progressividade no limite da constitucionalidade, beneficiando ao máximo os mais ricos e desprovendo o Estado dos recursos necessários para os serviços públicos e apoios sociais.

Exasperada com o afastamento do poder, não chega à direita que o PS se encarregue de salvaguardar os seus interesses em aspetos tão cruciais como a legislação laboral, ou que a integração europeia (da mesma Europa que o MEL sabiamente saúda na sua designação) inviabilize políticas mais progressistas em múltiplos domínios. Isso não chega porque a direita e os interesses que esta defende querem mais: mais redução dos impostos que limitam a desigualdade, mais desmantelamento da regulação que protege a parte mais fraca na relação laboral, mais recursos públicos ao serviço dos lucros privados na educação e na saúde.

Tudo na convenção do MEL foi sintomático. A sua organização por destacados representantes da direita dos negócios. A participação dos costumeiros representantes da direita do PS. A mitificação sebastianista de um Pedro Passos Coelho que, sem que sequer disso se apercebam, é o principal responsável pela erosão eleitoral da direita na última década. Mas acima de tudo o facto de, sempre que necessário, a direita tirar as luvas e unir-se em torno da sua matriz fundamental: a salvaguarda e aprofundamento do privilégio.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

A direita na sua bolha


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
25/05/2018

A direita está cada vez mais tribal. Metida numa bolha onde se ouvem uns aos outros numa espiral de indignação, quase todos os seus protagonistas falam em modo histriónico. Vemos todos os sinais: a grupusculização que foi apanágio da esquerda, substituição do programa pelo panfleto ideológico, hiperbolização do discurso, que banaliza palavas como “ditadura” ou “censura”. Isto não é a direita a reerguer-se, é um beco sem saída, que a afasta, no discurso e nos resultados, do país. O problema não é o PSD ter 22% (Intercampus), é toda a direita ter 37%. A radicalização está a fazer crescer o extremo, mas a encurtar o conjunto da direita.



Começa esta terça-feira mais uma sessão da “Aula Magna das Direitas”, como lhe chama a comunicação social. O encontro do Movimento Europa e Liberdade, que não conta com a “direita fofinha” mas terá a “esquerda corajosa” – linguagem de grande parte dos promotores, que só apreciam a heterodoxia do lado de lá da barricada – tem apenas um significado: consequente com o seu discurso e várias decisões recentes, Rui Rio coloca-se no mesmo campo político de André Ventura. “Aula Magna das Direitas” é uma imagem que os jornalistas foram buscar às sessões que, à esquerda, se realizaram da Reitoria da Universidade de Lisboa, nos anos duros da crise económica. O paralelo não é fácil, porque a esquerda estava em crescendo na sua capacidade de fazer oposição e o Governo vivia uma grande impopularidade. Agora, a oposição de direita está em crise e António Costa é um primeiro-ministro popular.

De tanto ver subidas e descidas de cada partido de direita pouca gente presta atenção a um facto: com uma pandemia e uma crise económica, a direita parlamentar totaliza, segundo a última sondagem da Intercampus, 37,1% dos votos. Se é relevante que o PSD, com 21,7%, perca votos para a extrema-direita (com 8,3%), é bem mais relevante que não consiga sequer beliscar o centro. A crítica que se faz a Rui Rio é a de que é pouco firme e por isso não segura o voto da direita que está irritada com António Costa. O que devemos perguntar é porque é que não consegue que o centro se irrite com a esquerda.


Já escrevi várias vezes sobre o disparate estratégico e tático de Rui Rio ir abrindo cada vez mais as portas a entendimentos com o Chega. Esse discurso garante-lhe perdas para os dois lados. Os que querem uma direita mais dura, mas capaz de governar, percebem que o voto no Chega não é perdido e rumam para ele. Os que, querendo uma alternativa ao PS, não querem um governo que dependa de Ventura, percebem que o PSD não lhes dá essa garantia. Rui Rio perde a direita para o Chega e o centro para o PS.

Mas há uma coisa um pouco mais profunda do que isso. A direita está cada vez mais tribal no seu discurso. Parece exuberante e forte nas redes sociais, onde o exagero se dá bem. Mas o país é outra coisa. Metida numa bolha onde se ouvem uns aos outros numa espiral de indignação que não é acompanhada pela maioria dos portugueses, quase todos os seus protagonistas falam em modo histriónico.

Só nas últimas semanas, Rui Rio elogiou um discurso de Alberto João Jardim em que o ex-presidente do governo regional da Madeira comparou António Costa a Nicolas Maduro (na verdade, gostou no discurso porque batia nos seus opositores internos, únicos que realmente lhe interessam). João Cotrim Figueiredo deu a entender que achava que o Papa Francisco é socialista, no que foi acompanhado por Ventura. Carlos Moedas falou de “medo” em Lisboa e disse que a esquerda o odiava. Até Duarte Pacheco, candidato a Torres Vedras, disse que ali se vivia uma ditadura socialista para depois da morte do “ditador” lhe tecer rasgados elogios, mostrando que a palavra “ditadura”, que em tempos era utilizada com gravidade, não tem grande significado nos discursos de campanha. E já nem falo da candidata para a Amadora, que há quatro anos seria considerada inaceitável por todos os partidos parlamentares, a começar pelo CDS (que retirou o apoio a André Ventura, em Loures).


A direita vive o seu PREC e, como Vasco Gonçalves em Almada, parece acreditar que este é o tempo em que o processo revolucionário depende de uma minoria e deve radicalizar-se. Vemos todos os sinais: a grupusculização que outrora foi apanágio da esquerda, a divisão entre a direita a sério e a direita “fofinha”, a substituição do programa pelo panfleto ideológico (de que a Iniciativa Liberal é um bom exemplo), a hiperbolização do discurso, de que a banalização de termos como “ditadura” ou “censura” são exemplos. Mas a esmagadora maioria dos portugueses não vive no Twitter e não se sente a caminho da Venezuela.

Ao contrário do que os mais excitados pensam, isto não é a direita a reerguer-se, é um beco sem saída, que a afasta, no discurso e nos resultados, da maioria do país. Quando Rui Rio faz ironia com as suas quedas nas sondagens, apesar do Novo Banco e de Odemira, apenas demonstra não perceber os efeitos do caminho que está a percorrer. O problema não é o PSD ter 22%, é toda a direita ter 37%. A radicalização está a fazer crescer o extremo, mas a encurtar o conjunto da direita. E ao ouvir os vários candidatos autárquicos do PSD parece ser uma corrida para o abismo.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Povo pronto para todo o serviço


Por
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 
23/05/2021

Portugal regressou ao seu destino primordial, ser o oásis da Europa quando os outros estão fechados. Ser o país amável e vassalo que recebe os estrangeiros de avental e com um sorriso.



Portugueses com vinte e poucos anos que não saibam explicar a razão do desembarque num aeroporto do Reino Unido e o que tencionam fazer no país, e não saibam responder que tencionam dar uma espreitada nas joias da Coroa e ouvir as badaladas do Big Ben, têm à espera a deportação imediata ou a espera da deportação num centro de alojamento de migrantes ilegais. Será, na melhor hipótese, um daqueles edifícios de tijolo vitoriano, com arame farpado e vidros baços e sujos. Como outros jovens europeus na mesma situação, gregos, espanhóis, italianos, os latinos e sulistas do costume, para não mencionar os de Leste que são logo detetados e manuseados, não terão acesso a um advogado, direitos ou quaisquer serviços jurídicos até o país decidir o voo da devolução, e muito menos poderão pernoitar na casa de um familiar se o tiverem. Falar num familiar é má ideia, aí o interrogatório aperta e o jovem metendo os pés pelas mãos admitirá que teria ou gostaria de ter uma hipotética entrevista de trabalho ou um quimérico trabalho como ama ou criado de mesa. Uma cidadã espanhola com o namorado no Reino Unido passou três dias detida e foi devolvida a Espanha, tão traumatizada com a experiência que não tenciona voltar a Londres nunca mais. Aconteça o que acontecer, convém não mencionar a palavra trabalho, que implica um visto inacessível, e convém não ser jovem. Jovem cheira a migrante ilegal depois do ‘Brexit’.

À parte a experiência de dar aos europeus uma ideia do que é ser ilegal ou refugiado, ainda que breve, nada se retira deste tratamento a não ser a dissuasão pela violência. Supõe-se que um jovem sueco ou dinamarquês não sofrerá a humilhação reservada para os países que maltratam a população jovem obrigando-a a fugir e emigrar, abandonado um país habitado por velhos cujas reformas outros imigrantes, brasileiros, ucranianos, asiáticos miseráveis legalizados, ajudarão a pagar.

Entretanto, por cá, os jornais e telejornais entraram na alucinação turística. Vêm aí os ingleses, uma invasão com libras frescas para nos salvarem de nós mesmos e da relassa incompetência para nos governarmos. São uma distração das pornográficas audiências do Novo Banco, onde cada interrogatório serve para demonstrar a impunidade de um número fixo de pessoas, as do costume, que obtiveram crédito de milhões com um aperto de mão e um almoço regado a tinto. E ficaram com o dinheiro. Apetece logo apanhar um avião para Inglaterra.


Quanto aos ingleses, jovens, velhos, não importa. Terão à espera no aeroporto de Faro, que serve as praias, não os serviços de imigração, o velho SEF que não se percebeu o que é ou será quando renovado, umas ofertas. Duas máscaras coloridas, um frasco de álcool-gel e um folheto informativo. O pormenor das máscaras coloridas é tocante. Uma pincelada de cor no que um motorista de táxi chamou “uma lufada de ar fresco”, estamos no reino do lugar-comum, filtrado pela máscara durante a viagem. E, de repente, Portugal regressou ao seu destino primordial, ser o oásis da Europa quando os outros estão fechados. Ser o país amável e vassalo que recebe os estrangeiros de avental e com um sorriso. A entidade de turismo ofereceu ainda aos passageiros dois números de telefone para qualquer esclarecimento. Ele há testes, ele há hotéis reabertos antes do tempo, ele há euforia numa região duramente punida pelo vírus e o confinamento e que morre de fome sem os britânicos.

As autoridades esfregam as mãos e, em mais um exemplo de solidariedade europeia, dizem que estamos a apanhar os turistas dos concorrentes que ainda não abriram plenamente. “Estão cá todos”, congratulou-se o diretor da Região de Turismo do Algarve, que aparece nalgumas notícias escritas como director, com a consoante muda, porque neste ponto do inútil e inutilizável Acordo Ortográfico, ninguém sabe bem como se escreve ou pronuncia a língua portuguesa que, ao contrário das línguas anglo-saxónicas, cortou as suas raízes latinas na ortografia e na fonética e aderiu ao patois africano e brasileiro, países onde ninguém sabe bem o que é e para que serve o Acordo Ortográfico. E onde ninguém compra ou lê livros.

Entretanto, nos jornais e telejornais deixámos de ter contabilidade diária da covid a que se seguiu a contabilidade dilatada e diária dos vacinados de primeira dose e de segunda dose. Convém não espantar a caça. Criámos as “condições de segurança para manter os turistas”, diz o preclaro diretor ou director. O passado nunca existiu, as variantes perigosas também não, apesar de a variante indiana preocupar os ingleses mais do que a nós, que importamos os ingleses e os da variante brasileira. A festinha do Sporting e a reação cobarde das autoridades que falharam, com a desculpa de terem perdido o e-mail da polícia a alertar para o risco, demonstra que só confinámos para um fim, voltar a receber turistas e amparar as tribos do futebol. “Criar as condições de segurança para receber os turistas.”


Interessa pouco saber se o grosso de população portuguesa ainda não está vacinada, e não está, interessa ainda menos saber que só uma pequeníssima parte da população tem as duas doses protetoras. O risco é a nossa profissão, a mendicância é o nosso talento.

Se as coisas correrem mal, os portugueses cá estarão para se sacrificarem no inverno, passada a proteção estival conferida pelo calor e o ar livre. Oscilamos entre ficar em casa e servir os estrangeiros, e pelo meio pretendemos ser um país europeu avançado e civilizado com uns milhões oferecidos pela Europa para, mais uma vez, nos levantarmos do chão.

Os que vêm a seguir que paguem a dívida. Ao fechar-lhes a porta, o Reino Unido faz-nos o enorme favor de os impedir na fuga para lugares mais prósperos, obrigando-os a guiar o tuk-tuk e aprender a cantar o fado.

Entretanto, em Londres e noutras cidades do Reino Unido, os portugueses que não querem regressar a Portugal e não têm a vocação serviçal barata e sustentada a gorjetas, esperam que o Governo britânico os aceite no pedido de settlement, assentamento, que lhes garantirá uma vida melhor e longe da pátria. São os que entraram antes de a porta ser fechada na cara dos ingénuos que ainda não perceberam que a porta está fechada e bem fechada. Por cá, se a Europa autorizar, vamos poder arranjar um corredor especial para os britânicos não terem de se maçar na fronteira. Nas fotografias dos jornais ingleses, as praias do Algarve aparecem sempre num esplendor esmeralda e turquesa com areia branca e reluzente, graficamente manipuladas. A realidade é um pouco diferente, como sabemos. Não se vê o lixo, não se veem as garrafas vazias nem os desacatos noturnos do álcool e das festas onde as máscaras coloridas jamais serão usadas. E em Lisboa, os cruzeiros vão desembarcar, com a cauda poluída e o contributo para o mercado de bugigangas, fonte da riqueza nacional juntamente com o ubíquo pastel de nata.

Assistir ao antiquíssimo, pelo menos desde que Lord Byron o descreveu, espetáculo de subserviência, atraso e dependência é deprimente. Mas, nas notícias portuguesas, o que não é deprimente? Portugal nunca foi bem feito para os portugueses.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Ásia é futuro

 

Por
24 Maio 2021

China e Índia são os países determinantes desse futuro asiático. Mas como vencer os atrasos e, em simultâneo, explorar as potencialidades? Que mercados privilegiar, ocidentais ou asiáticos?



O que aqui escrevo é bem menos que o título. Umas notas apenas sobre a China e a Índia. O que as separa, o que as une ou pode vir a unir. China e Índia, os países determinantes desse futuro asiático.

A Índia e a China, duas grandes civilizações que, após um passado de influência no Mundo, de mais de 2000 anos, sofreram uma interrupção no trajecto de 200 anos, saem desse afundamento com muita luta e quase em simultâneo. A Índia, em 1947, através de um longo e penoso processo de independência do Reino Unido, e a China torna-se República Popular em 1949, depois de uma guerra duradoura contra o império japonês, seguida de guerra civil entre o Partido Comunista, PCC e o Kuomintang, este apoiado pelos EUA.

Interessante registar que, em 29 de Abril de 1954, os dois países assinam, sob as Presidências de Nehru e Mao Tsé-Tung, um tratado sobre o Tibete que, no seu preâmbulo, continha cinco princípios de grande alcance:

O respeito mútuo da integridade do território e a soberania de cada um
A não agressão
A não ingerência
A igualdade e os benefícios mútuos
A coexistência pacífica
Contexto geopolítico

A situação de vizinhança entre países nesta zona da Ásia é muito instável. Pesam o passado histórico, as religiões, as culturas, os processos de constituição dos países. China, Índia e Paquistão, países vizinhos a que podemos acrescentar o Bangladesh mantêm, por razões diferentes, relações de tensão, atingindo, por vezes, intensa agressividade militar.

Paquistão e Índia com um tronco comum separado na independência. Separação dura, custou meio milhão de mortos e 14,5 milhões de refugiados. Há quem os considere inimigos “hereditários”. No Paquistão, uma guerra posterior dá o Bangladesh.

China e Índia são rivais de outro nível, grande competição e algumas guerras/escaramuças fronteiriças. A mais marcante, a guerra Sino-Indiana de 1962, por causa de Caxemira, território cedido pelo Paquistão à China, que era requerido pela Índia.

As relações são de facto complexas. A China sempre privilegiou a ligação ao Paquistão e a Índia à URSS. Durante algum tempo, os dois países navegaram na “órbita” da URSS, até à dissidência sino-soviética em finais de 1950, quando começa a aproximação da China aos EUA.

Na década de 1990, verifica-se uma clara distensão nas relações Índia-China. As reformas político-económicas de Deng Xiaoping suscitaram o interesse da Índia. Os ensaios nucleares da Índia, condenados de imediato pela China, antes mesmo dos países ocidentais, comprometeram esta situação. Algum tempo depois, um novo desanuviamento traduziu-se num enorme aumento das trocas comerciais.

Desenvolvimento económico a ritmos diferentes

China e Índia, em 1980, estão numa situação económica semelhante em termos de PIB. A Índia, à data, com menos 280 milhões de habitantes apresenta uma situação ligeiramente favorável no PIB per capita (Índia 266.58 dólares/ano e China 194.80).

Em 40 anos, a China arranca com taxas de crescimento económico a alta velocidade e marca grande distanciamento na produção de riqueza (PIB 2020: China 12.901.904 M€ contra 2.314.077 M€ da Índia, cerca de 5,6 vezes mais). A Índia neste período aproxima-se da China em termos de população, mas mantendo grande atraso em infra-estruturas materiais (transportes e energia) e áreas do ensino e saúde.

As razões desta situação

Após a constituição como países, a Índia integra o movimento dos não-alinhados e a China apoia-se na URSS. Ambos defrontam-se com um mundo ocidental hostil, tanto mais porque, de certo modo, “copiam” o mesmo modelo de desenvolvimento: o da URSS. Mas o foco principal do Ocidente era contra a China comunista onde o regime e a intervenção na guerra da Coreia pesaram muito.

A China rompe com a URSS, em finais de 1950, numa dissidência política de base económica e em período convulsivo no PCC que se prolonga até à morte de Mao (1976). Depois de muitas lutas no seio do PCC, em 1979/80, a visão de Deng Xiaoping começa a impor-se no plano político, mas sobretudo nas estratégias de desenvolvimento. As grandes reformas começam na agricultura, exactamente um dos alvos da discordância sino-soviética. A reforma agrícola atribuiu a exploração da terra a cada família com a autorização de vender no mercado o excedente de produção.

Os resultados positivos não se fizeram esperar e quebra-se a resistência política às reformas da ala conservadora. Estabeleceu-se assim a economia de mercado a que as autoridades chinesas apelidaram de economia de mercado socialista.

Nos sectores industriais distinguem-se os sectores prioritários e os não prioritários e nestes o governo encorajava as empresas privadas a concorrer com as públicas estabelecendo a existência de um duplo preço. Uma parte da produção escoada a preço fixo pelo Estado, a restante vendida em mercado livre.

Com regras bem definidas e a criação das zonas de economia especiais, “um país, dois sistemas”, ocorre uma forte implantação de IDE que leva consigo tecnologia, know-how comercial e mercados que permitem à China constituir-se na “fábrica do mundo”. Em paralelo, a China vai modernizando a sociedade em termos de ensino, I&D, infra-estruturas materiais e imateriais, dando garantias de estabilidade aos investidores.

Na Índia, a situação permanece menos definida e sem reformas de fundo nem estratégia, apesar de, por razões, diria, quase naturais, o Sector serviços foi-se impondo como veículo do desenvolvimento. Mas muito se atrasou e hoje a Índia depara-se com mais de 200 milhões de habitantes sem acesso à energia (há quem refira 400), com um ensino não universitário caótico, um sistema de saúde a provar as suas deficiências na pandemia (apesar das vastas capacidades nas farmacêuticas) e infra-estruturas de transporte interno muito deficientes.

Eis a situação, grosso modo, que separa os dois maiores países asiáticos e do Mundo.

Pode a Índia ser uma nova China?

Separa-as uma vincada décalage no grau de desenvolvimento económico. A correcção de problemas estruturais precisa de tempo e gerações.

A estratégia da China não terá aplicação hoje. Teve o seu tempo. A própria China enfrenta alguns problemas de monta (demografia e organização) para continuar a manter elevadas taxas de crescimento na aproximação do PIB per capita aos mais avançados. Tem a seu favor o avanço de certas tecnologias no caminho para a central solar no espaço ou o TGV de 800Km/hora.

A Índia reúne imensas potencialidades de progresso. Cultura, língua e o papel da diáspora são grandes trunfos. Os serviços modernos onde está implantada e a sua apetência para a matemática também. Mas terá de resolver o caos no ensino e nas infra-estruturas materiais, duas grandes condicionantes.

As grandes interrogações

Como vencer os atrasos e, em simultâneo, explorar as potencialidades? Que mercados privilegiar, ocidentais ou asiáticos? Uma maior imbricação das economias sino-indiana, que já existe nas farmacêuticas, não poderá constituir um vector seguro?

A Índia hesitou e não aderiu ao RCEP, a maior zona de comércio livre do Mundo, com receio de invasão do seu mercado por produtos sobretudo chineses, mas ficou em aberto a sua adesão. Está contudo na Organização da Cooperação de Xangai (OCX) com a China, Rússia e outros países da Eurásia.

O Ocidente tenta afastá-la do caminho natural da cooperação asiática, nomeadamente da China. Para onde se inclinará Modi?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

45403


Por
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
19/05/2021


Algumas potências coloniais eram democracias. Isso dava superioridade moral aos colonos? Essa democracia era para consumo africano? Os ingleses respeitavam mais os direitos das mulheres. Isso retirava aos indianos o direito à autodeterminação? Julgando-se modernos, estes argumentos veem o colono como civilizador. Partindo do princípio que há democracia com apartheid, pode haver potências coloniais democráticas, não há colonialismo democrático. O Hamas é consequência. Porque o governo de Israel ajudou ao seu nascimento para enfraquecer a OLP, a desistência de dois Estados viáveis levou ao caos desesperado e a separação de Gaza da Cisjordânia desestruturou a liderança palestiniana. A direita israelita precisa do Hamas.



O debate sobre a situação no Médio Oriente atinge, por vezes, um primarismo aflitivo. Deve ser porque a coisa dura há muito tempo e muita gente que é obrigada a voltar a falar e a escrever sobre o assunto já não tem paciência para dar mais do que os mínimos. Ou porque muitos conhecem mal a situação e contentam-se com umas ideias simples. E há um argumento que acaba sempre por aparecer: Israel é uma democracia enquanto Gaza não o é (a Cisjordânia, porque a coisa é um pouco mais difícil, costuma ser ignorada). Em Israel respeitam-se os direitos das mulheres (ou dos homossexuais) enquanto na Palestina não.

Não vou aqui perder tempo a explicar que as coisas até são mais complicadas do que parecem. Que o peso dos ortodoxos em cidades como Jerusalém fazem com que existam bairros onde as pessoas são aconselhadas a andar de mão dada. Que houve propostas para autocarros segregados. Que o conservadorismo é crescente. E que, na Palestina, há grandes diferenças entre Gaza, Cisjordânia e Jerusalém. E que Israel é diverso e há grandes diferenças entre Telavive e Jerusalém. Não sendo falso que Israel é mais liberal – o conservadorismo até cresceu nos dois territórios –, é grande a heterogeneidade em Israel e na Palestina. Uma feminista lésbica israelita que conheci recordava-me, num encontro em Haifa, que religiosos cristãos, judeus e muçulmanos só se conseguiram unir para uma coisa: contestar a primeira marcha do orgulho gay em Jerusalém.

No que toca à democracia, as coisas são ainda mais complicadas. Israel é uma democracia para os judeus, uma meia-democracia para os árabes israelitas, que têm um estatuto de cidadãos de segunda, e democracia nenhuma para os palestinianos. É discutível se podemos falar de uma democracia em regime de apartheid. E uma democracia não bombardeia agências internacionais de notícias, atacando um dos seus núcleos, que é a liberdade de imprensa.


A Palestina chegou a ter umas eleições que o mundo boicotou quando o resultado não foi o desejado, explicando-lhes que também a democracia não era um direito seu. Mas, seja como for, só por piada se pensa que uma democracia pode existir num território murado e isolado do mundo, como Gaza. Ou que pode haver uma democracia num território separado por quase 200 “ilhas” sem qualquer soberania real, como a Cisjordânia. A Palestina não é um Estado. Não há democracia sem Estado.

Mas aceitemos tudo na sua forma mais simples. O que raio diz isso sobre a justeza da ocupação? Algumas das potências coloniais europeias eram democracias e as suas colónias africanas dificilmente o viriam a ser em pouco tempo. Isso retirava aos africanos o direito à sua independência ou dava aos europeus alguma superioridade moral como colonos? A sua democracia era para consumo africano? A democracia israelita é para consumo palestiniano? Mesmo sendo um conservador, é possível que Churchill fosse mais liberal do que Gandhi e que os ingleses, apesar de tudo, respeitassem mais os direitos das mulheres do que os indianos. Isso retirava aos indianos o direito à sua autodeterminação e a lutarem por ela?

Julgando-se muito moderna, a base destes argumentos primários é colonial: o colono é visto como civilizador, portador de uma superioridade moral e política que lhe dá o direito de impor a sua vontade a outro povo. Os israelitas têm direito a oprimir os palestinianos porque a sua opressão é, não se sabe bem como, libertadora. Há potências coloniais democráticas, não há colonialismo democrático. Não há mulheres autodeterminadas em territórios que não o são. E é por isso que as feministas que conheci na Cisjordânia não eram aliadas de Israel. Batiam-se pelo direito de lutar pelos seus direitos numa terra que fosse sua. Usar os direitos humanos para defender o colonialismo é a mais velha forma de paternalismo colonial.

Já se a questão é apenas o Hamas, além do conflito não se resumir nem se centrar nesta organização, ele é consequência, não causa. Consequência, porque o governo de Israel ajudou ativamente ao seu nascimento para enfraquecer a OLP; porque a desistência prática de uma solução que passe por dois Estados viáveis só poderia acabar num caos desesperado; e porque a separação de Gaza da Cisjordânia teve como objetivo a desestruturação da liderança palestiniana, que só poderia servir o Hamas. A direita israelita quis o Hamas porque o Hamas se alimenta da incomunicabilidade e da guerra de que ela precisa.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Futebol madeirense, que futuro?

 

Este vídeo tem 30 anos. Era então colaborador da RTP-Madeira, com responsabilidades na informação desportiva. Entre outros, coordenei e apresentei o programa Domingo Desportivo. No dia 17 de Fevereiro de 1991, durante uma hora e meia, fui pivot do debate "Futebol madeirense, que futuro?" Era um tema que me preocupava, fundamentalmente, pela inexistência de uma credível sustentabilidade que o futebol profissional de então seguia. Nessa época de 1990/91, Marítimo, Nacional e União militavam na 1ª divisão nacional; na 3ª divisão, Câmara de Lobos, Machico e Portossantense. Muito para uma região limitada nos seus recursos. Convidei os presidentes destes clubes para um debate.

Trinta anos depois, o União atravessa o período mais doloroso da sua história, o Nacional desceu, novamente, à divisão secundária e o Marítimo safou-se, mas com o credo na boca até à penúltima jornada. Esta situação fez-me regressar a esse debate e visionar o que então foi apresentado e dito. Há trinta anos, genericamente, do debate resultou que as preocupações que eu tinha eram infundadas, a avaliar pelas declarações de cada um dos intervenientes. Não negavam as dificuldades, mas... 

Não vou aqui comentá-las, comparando-as com a situação hoje vivida, quer no plano competitivo, quer no que concerne a instalações entretanto construídas face aos resultados que hoje se verificam. Apenas julgo que a pergunta inicial continua pertinente.

Quem tiver a paciência de seguir este debate peço que o faça com redobrada atenção, em função das palavras ditas, da situação actual e de todos os outros factores que continuam a estar em causa.

Ah comentem, pois há ali matéria de sobra. Abram o debate trinta anos depois.


sábado, 15 de maio de 2021

Não viram nada em Odemira


Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
14/05/2021
Miguel Sousa Tavares


1 António Costa foi a Odemira levar as boas notí­cias: acabou a cerca sanitária e os escravos podem voltar ao trabalho a tempo de os “empresários” terem quem lhes colha as preciosas framboesas, símbolo, disse alguém do Governo, da “modernização da nossa agricultura”. E, quanto às “degradantes condições de habitação” dos escravos, o PM levava dois protocolos para assinar com a autarquia e as três associações de empresários ditos agrícolas, para, até Março do ano que vem, começarem a pensar como substi­tuir os contentores transformados em habitações condignas pela resolução do Conselho de Ministros de 2019 por qualquer coisa mais decente, talvez casas, daquelas em que vive gente. Não foi difícil convencer os ditos empresários a assinar os protocolos: as casas vão ser pagas com verbas da ‘bazuca’ e de outras origens — ou seja, na totalidade ou em parte, os contribuintes vão chamar a si a solução de alojamento dos trabalhadores destes empresá­rios visionários. Se considerarmos que ainda há pouco o ministro da Administração Interna e a secretária de Estado da Imigração garantiam que Odemira era um caso exemplar de humanidade e integração de populações migrantes, não se pode deixar de considerar isto um grande avanço. Embora, como é óbvio, se tudo se cumprir, aqueles infelizes ainda tenham de esperar muitos anos e de apanhar muitas toneladas de framboesas até conseguirem viver num local a que se possa chamar casa e dormir numa coisa a que se possa chamar cama.



De fora, porém, ficaram as questões laborais e ambientais. Quanto às primeiras — as situações em que os trabalhadores pagam à cabeça milhares de euros pelo privilégio de virem trabalhar para Portugal, os contratos em que lhes garantem vir ganhar mil euros e depois lhes entregam 200, as empresas que os subcontratam e depois desaparecem, a falta de protecção social a todos os níveis —, tudo isso é matéria de investigação remetida para um futuro sem data. Quanto à questão ambiental, António Costa foi bem claro no Parlamento: Odemira são 7000 hectares (e o triplo dessa área previsto), que, por si só, representam 15% das exportações de frutos, legumes e flores do país. E está tudo dito. O resto, a destruição da paisagem de um Parque Natural, a contaminação dos solos e o uso intensivo de água onde ela escasseia e em Rede Natura e Zona de Reserva Agrícola, isso pouco importa. Os discursos sobre a agricultura sustentável e amiga do ambiente são bons para os programas de Governo, mas não servem para governar. Até o PAN achou mais importante felicitar antes o Governo por ter acabado com a transmissão de touradas na RTP do que exigir o fim da agricultura superintensiva em parques naturais e reservas ecológicas.

Tenho pena de quem quer governar para governar assim. Tenho pena de quem terá de pagar as consequências no futuro por quem governou assim. Porque não é só Odemira e o Sudoeste alentejano: é o Alqueva, as Beiras, o Algarve. Não é só a semear frutos silvestres e alfaces e flores: é frutos exóticos, frutos tropicais e culturas predadoras expulsas de outras paragens. Não é só na agricultura: é na apanha da amêijoa japonesa (invasiva e não comestível) no estuário do Tejo e já começa a ser em negócios que justamente só existem porque existem empresários sedentos por uma mão-de-obra dócil, disposta a dormir aos 16 num contentor, a fritar de calor no Verão e a morrer de frio no Inverno, ganhando 3 euros à hora.

E não são só os empresários e as máfias dos intermediários que não se importam de os explorar: como se pode ver em Odemira ou na região do Alqueva, são também os locais, o povo, sim, o bom povo português, que não tem escrúpulos em cobrar 130 euros mensais por uma enxerga miserável num pardieiro onde vivem 18 imigrantes (2340 euros mensais pelo pardieiro) e onde nem animais deveriam viver. E não é só o facto de toda esta próspera economia viver à margem da lei, do Fisco, da Segurança Social, do Estado de Direito: é a miséria moral que tudo isto revela sobre nós mesmos. A indecência colectiva de quem se tem aproveitado, mas também de quem sabia e nada fez, de quem não quis ver e de quem — depois de saber e de ver — continua a fingir que vai resolver o problema, sabendo bem que nada de essencial vai mudar. Entre estes portugueses e aqueles que têm desfilado pela comissão parlamentar de inquérito ao Novo Banco, na qualidade de grandes devedores e na pose de orgulhosos caloteiros, encontramos um mesmo terrível sintoma: a falta de vergonha.

2 Há ministro? Não, há Cabrita. Eduardo Cabrita tornou-se uma anedota ambulante, um personagem que nem os autores do “Yes, Minister” teriam conseguido imaginar, tão grandiloquentemente vácuo ao ponto de meter dó. Tudo nele é a encarnação da inutilidade do poder, como aqueles objectos cujo volume se esgota quase todo no papel de embrulho. Adivinha-se que ensaia ao espelho poses e sentenças que toma por sentido de Estado e que julga que governar é despejar dinheiro sobre qualquer problema para se ver livre dele. É assim que está convencido de que apaga incêndios, mantém activo o SIRESP, faz esquecer o assassínio de Ihor Homeniuk ou elege presidentes. 


Em cada oportunidade, também não se dispensou de se chegar à frente nas fotografias e insinuar que estava na linha da frente da vigilância da nossa segurança colectiva durante a pandemia. Mas bastou uma noite — a noite do Sporting campeão — para que a tão anunciada operação montada pelas forças de segurança sob sua tutela e em planeamento concertado, diziam, com o Sporting e a DGS descambasse no espectáculo de absoluta anarquia que Lisboa viveu durante 12 horas. Andámos nós tantos meses, mais de um ano, a observar tantas regras de segurança, sem poder ir a espectáculos, ao futebol, a passear nos jardins, aqui e acolá, ainda proibidos de estarmos juntos mais de seis, de estar nos restaurantes até depois das 22h30, e dezenas de milhares de pessoas fazem o que querem da cidade, sem quaisquer medidas de segurança e sem que se veja sombra de plano algum para o precaver!E, perguntado sobre isto no Parlamento, o que diz o primeiro-ministro? Primeiro que tudo, “parabéns ao Sporting!” (dá votos e é politicamente correcto). Depois, que não vai “atirar pedras a ninguém”. E depois que o ministro Cabrita já fez um despacho para que lhe expliquem qual era o plano de segurança e por que razão ele não funcionou. Ou seja, afinal, o ministro não sabia de plano algum e fazendo um despacho a posteriori a perguntar qual era livra-se de responsabilidades! Faça a si mesmo um favor, sr. ministro: despache-se!

3 E vem aí mais do mesmo. O Governo já autorizou a final da Champions no Estádio do Dragão, no Porto, e com público: 12.500 adeptos. A final que era para ser em Wembley, entre dois clubes ingleses, vai ser transferida para o Porto porque o Governo inglês não autorizou a presença de adeptos. E então avança o Porto, porque o nosso Governo, que não autoriza a presença de adeptos portugueses nos nossos estádios, já autoriza a presença de adeptos estrangeiros — em nome dos interesses da hotelaria, suponho. Apesar de serem hooligans de que o Porto guarda péssimas recordações, de trazerem já com eles a variante indiana da covid e de o jogo nem sequer ser acessível aos portugueses em canal aberto de televisão. Países subdesenvolvidos são assim.


4 O episódio protagonizado por João Galamba no Twitter seria apenas um episódio mal-educado de um governante se não fosse outra coisa, a meu ver, mais grave. Que ele, como tantos outros, não resista a desabafar nas redes sociais, como se estivesse numa roda de amigos, imaginando que isso depois, mais tarde ou mais cedo, não acabe por se virar contra ele, é coisa que eu nunca conseguirei entender. Mas, enfim, eles lá sabem porque não resistem e têm de correr a confessar ao mundo todos os seus estados de alma. Agora, o que é grave e revela mais do que má educação e desrespeito pelo jornalismo é que, depois de ter escrito o que escreveu e de se ter apercebido de que aquilo se poderia virar contra si — quem sabe, até, obrigar à sua demissão —, tenha corrido a apagar o que escreveu. Isso não é de homenzinho. Ou assumia o que tinha escrito ou arrependia-se e pedia desculpa. Mas ir apagar à pressa, a ver se passava despercebido... é de garoto sem coragem de enfrentar as consequências do que faz.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Governo contra a Justiça?



FACTO

PJ volta a fazer buscas em vários serviços do governo da Madeira. Em causa o concurso público internacional relativo à operação ferry entre a Madeira e o Continente. O vice-presidente do governo "lamenta a instrumentalização da Justiça com claras motivações políticas". Fonte Dnotícias.


COMENTÁRIO

Se a transparência foi total e se o vice-presidente está ciente que não existiu trapalhada, tampouco favorecimentos, neste caso, parece-me óbvio que tem de aceitar que a Justiça averigue alegadas desconformidades que partiram, segundo a notícia, de uma fonte anónima. Portanto, não tem que temer, nem de criticar, segundo aquela declaração, uma Justiça ao serviço de interesses políticos. No lugar do vice-presidente eu diria: façam o favor de entrar, vasculhem tudo, porque aqui não há lugar a opacidades. 
E por aqui fico.

Ilustração: Google Imagens

Uma cambada de oportunistas!

 

Amadeu Homem, 
in Facebook, 
09/05/2021

Um pobre coitado que não tenha capacidades intelectuais, ouvindo os oráculos de serviço a quem pagam para o básico exercício de desinformação política, imaginará que foi o Costa e o seu governo o primeiro e único responsável pela desumanização com que são tratados os imigrantes, tanto no caso de Odemira, como em centenas de outros casos, se se fizer uma investigação escrupulosa.



A verdade é que o fenómeno da imigração ilegal, ou semilegal, ou consentida, ou mesmo devidamente legalizada., com o imenso cortejo de omissões de apoio, ao nível dos direitos humanos mais elementares, este fenómeno dura há décadas. Rolaram governos sobre governos, primeiros-ministros sobre primeiros-ministros, presidentes da República sobre Presidentes da República - e tudo permaneceu na mesma: na mesma, ao nível das condições de remuneração, de habitação, de saúde, de transportes, de tudo.

Agora, por falta de tema e de imaginação, chegaram à praça pública umas carpideiras que estiveram mudas e quedas ao longo de todo este tempo, e apontaram o dedo - que é a única coisa que sabem fazer, pois já se esqueceram de com ele coçarem a esfera anal. E disseram : - A culpa é do Cabrita! Não, a culpa é do Cabrita e do Costa! Não, a culpa é do Cabrita, do Costa e do governo todo; não, a culpa também é de todos estes e do Marcêlho!

Isto é muito singular, porque este País vive beatificamente na modorra, com toda a gente a consentir e a corroborar tudo, enquanto não lhes dá a coceira ou a erisipela do verme político, forma de tesão de mijo, como o dos gajos que já têm a próstata hipertrofiada. Quiseram lá bem saber o Chega, e o CDS defunto, e o PSD convertido em Riacho, e o Bloco do Rosas dos suspensórios, e até o PCP do Jerónimo dos amanhãs vermelhos que os imigrantes dormissem uns sobre os outros ao Deus dará; que os explorassem até ao tutano; que os filhos deles não fossem à escola; que "arreassem o calhau" nas traseiras da rua, talvez por detrás dum tapume. Ponham lá também o próprio PS, que se silenciou tanto como todos estes.

Mas eis que se destapa a caixa de Pandora em Odemira. Podia ser na Beira Alta, em Trás-os-Montes, no Ribatejo ou em Cacilhas. Foi, por acaso, em Odemira. Convenhamos que foi um assunto gerido por um ministro que talvez tenha nascido para apanhar gambuzinos ou borboletas, para gerir parques de estacionamento ou restaurantes de "fast-food" , mas que não é Peter, mas o próprio princípio de Peter, em forma de Conselheiro Acácio ... Esta caricatura de ministro já devia ter caído há muito. Se o Costa tivesse alguma sensatez temática, talvez lhe oferecesse uma sinecura qualquer, onde o fulano pudesse limpar as unhas com um canivete ou se ocupasse a jogar a batalha naval com o porteiro. Mas não! Fez dele ministro - e o resultado vê-se: cada cavadela, seu imigrante, digo, sua minhoca!


Estes gritos de histeria duvidosa que agora se fazem ouvir acerca dos "sagrados direitos da Pessoa Humana" são um dos maiores monumentos à Hipocrisia que alguma vez me foi dado ouvir e contemplar. Nem comento Odemira, pela razão simples de poder comentar Odivelas, ou Paio Pires, ou Linda-a-Pastora, ou Barrancos ou Venda das Raparigas (das não imigrantes e com as vacinas todas tomadas!). O que me dá uma imensa vontade de rir é o Chicão pernóstico, mais a Catarina-que-se-estrafega, mais os homens de mão da Ribeira da Asneira, todos à uma, a chorarem baba e ranho por uma novidade - a das condições deploráveis da mão-de-obra imigrante, em condições muito próximas do esclavagismo, a apresentarem todos a questão como uma novidade completa, como um caso acabadinho de aparecer.

Mas o que é que estes palhaços andaram a observar, ou a refletir, ou a "politicar", durante este tempo todo? A Verdade de Moisés desceu da Montanha, com as Tábuas da Lei às costas, onde alegadamente se encontrava escrita a Verdade toda. Estes pobres manipansos, durante decénios a fio, estiveram todos a adorar o bezerro de ouro. E o que é mais grave é que nem deram conta de que não tinham religião ou convicção séria. Eram o que foram, o que são e o que sempre irão ser: uma cambada de oportunistas!

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Nem o Papa comove os empedernidos dirigentes europeus


Por
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
11/05/2021


Diz o Papa Francisco que há várias “variantes do vírus”: a primeira será o “nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, uma internacionalização das vacinas”, vem depois a “outra variante, quando colocamos as leis do mercado ou da propriedade intelectual acima das leis do amor, da saúde e da humanidade”, e ainda uma terceira, “quando criamos e promovemos uma economia doentia, que permite que uns poucos muito ricos possuam mais do que todo o resto da humanidade, e que os modelos de produção e consumo destruam o planeta, nossa casa comum”.



Ao ouvir estas palavras, percebe-se a razão para os frémitos de indignação que sacodem as administrações de algumas das principais farmacêuticas e tantos governantes europeus, sentiram-se ameaçados na carteira. Por isso, a recusa à proposta da Administração Biden para o levantamento das patentes tardou poucos dias e foi categórica, como se viu na Cimeira do Porto, e o pedido do Papa foi ignorado: num ápice, Merkel, mesmo à distância, alinhou as declarações de Von der Leyen e de António Costa, calou Macron e deixou Sanchez a falar sozinho.

A ministra portuguesa já tinha antecipado o argumento e, em fevereiro, afirmava que o seu governo recusa a quebra de patentes, mesmo considerando que esse conhecimento é “um bem público universal”, mas que deve continuar a ser gerido pelos gigantes privados. Em março, voltou a garantir que a medida proposta por duas das suas antecessoras no ministério, junto com o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e ex-diretor do Infarmed, “não resolve a capacidade industrial”. Esta convicção foi abalada pela surpresa da nova posição do governo norte-americano, que forçou as autoridades portuguesas a declarar que a proposta já merecia atenção, até serem obedientemente reconduzidas ao redil de Merkel. Não foi caso único. Macron, que a 6 de maio dizia entusiasticamente que era “completamente a favor da abertura da propriedade intelectual”, passou a repetir que isso nem importa. E a União Europeia fechou a porta a um acordo, mantendo o bloqueio na Organização Mundial do Comércio (OMC), que impede que a África do Sul e a Índia possam ampliar a sua produção, mas também recusando o pedido de empresas de outros países, do Canadá ao Bangladesh.

Esta fronda em nome da Big Pharma garante que é irresponsável reduzir os lucros das farmacêuticas, porque isso diminui o seu incentivo para investigação científica sobre novas estirpes. O termo “irresponsabilidade” tem aqui uma conotação curiosa. Talvez alguém se lembre que uma das maiores empresas mundiais, a Gilead, tentou convencer o mundo a usar o Remdesivir, um medicamento para a ébola, como solução para a pandemia, ou que uma turba de governantes lançou a cloroquina, sem que os seus produtores avisassem que era uma fraude. Seriam atos de dedicada responsabilidade, como se entende. Por outro lado, quem pede o levantamento das patentes não são só dirigentes políticos (Biden) ou religiosos (o Papa Francisco). Antes de todos, foi a Organização Mundial de Saúde e António Guterres, secretário-geral da ONU, que pediram a partilha voluntária do conhecimento para que a vacinação mundial não se arraste até 2024. Se querem usar o termo “irresponsável”, apontem-no para a OMS e para a ONU e deixem o Papa em paz.


Acresce que a ameaça de parar a investigação se os lucros não se multiplicarem não é para levar a sério, dado que a investigação de base nem depende da Big Pharma. Todas estas empresas dependem da ciência produzida em universidades e laboratórios nacionais. A vacina da Moderna resulta de uma parceria com o National Institute of Health dos EUA, aproveitando a sua investigação sobre a proteína spike, que permite o ataque ao coronavírus. Foi o NIH que realizou o primeiro ensaio clínico desta vacina. A BioNTech, como a Moderna, usa as descobertas da cientista húngara Katalin Karikó, que trabalhava na Universidade da Pensilvânia (e é hoje vice-presidente da empresa). A vacina da AstraZeneca depende do trabalho de Sarah Gilbert e do Jenner Institute da Universidade de Oxford, que aplicou os resultados do seu combate a outro coronavírus, o MERS.

Além disso, o levantamento do direito de patentes, provisório que seja, já foi testado no passado. Quando Nelson Mandela enfrentou a Administração norte-americana de Clinton para conseguir produzir genéricos dos antirretrovirais para o HIV, chocou com a barreira dos interesses económicos e só quando Al Gore, o vice-presidente, cedeu, é que foi possível disponibilizar o tratamento na África do Sul. O que se verificou, e não podia ser de outro modo, foi que, quanto mais difundido está o conhecimento essencial de um medicamento, maior é a capacidade de inovação incremental.

Ao contrário do que hoje afirmam as grandes farmacêuticas, a partilha do conhecimento entre mais instituições de investigação de ponta multiplica o êxito científico. Assim, no contexto desse conflito, foram definidos novos procedimentos legais para suspender os direitos de propriedade intelectual no caso de medicamentos essenciais, através de licenças compulsórias. A OMC aceitou essa regra no acordo sobre Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) e está na letra da lei. Foi nesse sentido que, em 20 de abril do ano passado, uma declaração conjunta de Azevedo, então diretor da OMC, e de Ghebreyesum, diretor da OMS, pediu a “partilha dos direitos de propriedade intelectual”. Bem sabiam que a proposta estava bloqueada pelos EUA e pela UE. Agora só a UE a impede.

Antes de sugerir esta nova posição para um acordo mundial sobre levantamento das patentes, Biden já tinha forçado um acordo entre a Johnson & Johnson e a maior farmacêutica mundial, a Merck, para que esta passasse a produzir em larga escala a vacina da primeira. A Moderna, entretanto, anunciou que não processará judicialmente quem reproduzir a sua vacina, embora alguns dos procedimentos associados ao uso da produção de vacinas na base do RNA mensageiro (mRNA) estejam patenteados por outras instituições. Deste modo, a ameaça de suspensão das patentes pode pelo menos ter um efeito imediato, obrigando as empresas a licenciarem a produção e estendendo o sistema produtivo para usar a capacidade tecnológica disponível, e é muita. Se, como tudo leva a crer, a produção das vacinas se vier a basear predominantemente na tecnologia do mRNA, que usa recursos mais facilmente acessíveis, será possível cobrir a população mundial.

Que o governo alemão instrua a Europa a recusar o acesso universal ao conhecimento sobre as vacinas tem uma mesquinha justificação: Merkel quer criar um campeão industrial nacional nesta área, a BioNtech, que está associada à Pfizer. Que a Pfizer, que anunciou para 2021 sete mil milhões de dólares em lucros com a vacina, ou outras farmacêuticas não aplaudam o aumento da produção mundial, também se compreende. Mas que os líderes europeus aceitem estas chantagens diz muito sobre a mentira que é a prometida cooperação na saúde e a solidariedade contra a doença. Tem razão o Papa Francisco, estes vírus já contaminaram muito fundo a nossa vida social, é “uma economia doentia” em que a lei do mercado está acima do respeito pela humanidade.

terça-feira, 11 de maio de 2021

A Índia hoje

 

Por
10 Maio 2021

A Índia, ao contrário de outros países, nunca se empenhou na industrialização como primeira e principal etapa de crescimento da economia. Isto apesar do papel relevante de indústrias como a química e a farmacêutica.



A Índia de hoje é a Índia de Narendra Modi. A que, objectivamente, o elegeu primeiro-ministro em Maio de 2014 e de novo em 2019. Pela primeira vez, um Governador de um Estado sobe a tão alto cargo na Índia. Com Modi há uma mudança de trajectória política, do centro-esquerda para o centro-direita a escorregar para uma direita ultranacionalista e musculada.

Esta eleição “arruma” o Partido do Congresso, praticamente no poder desde a independência e que, após Indira Gandhi, caíra num imobilismo político (alianças alargadas de governação para sobreviver) e em casos de corrupção frequentes.

Apesar da fama de “grande modernizador” que trazia enquanto Governador do Estado de Gujarat, na fronteira com o Paquistão, ideia que tenta passar para dentro e fora do País, a economia da Índia com Modi apresenta taxas de crescimento médias mais baixas (4,2%) que no período 2009/2014 (7%).

Modi, eleito pelo partido nacionalista hindu BJP (Bharatiya Janata Party), tem levantado nos analistas de política internacional, em vários países, sérias preocupações pelas intromissões sucessivas na comunicação social, pelas medidas tomadas em Dezembro último sobre a liberalização dos mercados agrícolas, desprotegendo muitos milhões de camponeses, e ainda pela demasiada protecção à religião hindu e perseguição de outras, com relevo para a muçulmana, aliás seguindo os preceitos do R.S.S (Rashtriya Swaymsevak Sangh), uma organização ultranacionalista, a que Modi esteve ligado desde jovem, defensora da supremacia do povo hindu e da sua religião que tenta impor a toda a sociedade indiana, se necessário pelo recurso à força.

A Índia com Modi, há quem afirme, atravessa um período de “democracia iliberal”, tipo Hungria. Interessante vincar: os EUA e a UE encaravam Modi como persona non grata na sequência dos massacres contra os muçulmanos (mais de 1.000 mortos) ocorridos enquanto Governador, mas, em 2014, face às hipóteses de ser eleito primeiro-ministro “amaciaram” a posição e hoje é o que se vê. A todo o custo, querem fazer as pazes e conquistar um entendimento.


Para os ambientalistas, o novo poder de Modi está a privilegiar o desenvolvimento industrial a qualquer preço. Certamente pensa sustentar o crescimento numa estratégia que nunca foi a da Índia, a industrialização, em detrimento da segurança dos habitantes, numa tentativa de disputar com a China “a fábrica” do mundo, como é conhecida.

A Índia, ao contrário de outros países, nunca se empenhou na industrialização como primeira e principal etapa de crescimento da economia. Apesar de sectores industriais de relevo que detém na química e sobretudo na indústria farmacêutica, “a Índia, farmácia do Mundo”, e de grandes multinacionais conhecidas, como a Tata, o Serum Institute, o maior produtor mundial de vacinas, ou o gigante Infosys, a sua base de desenvolvimento assentou na agricultura e nos serviços. A agricultura ainda hoje ocupa mais de 50% da população activa, embora contribua apenas com 17% do PIB.

A propósito da Índia “farmácia do mundo”, diga-se que a Europa é muito dependente de medicamentos produzidos no exterior. A União produz apenas 20% do que precisa. Donde vem o que falta? 43% dos genéricos e 60% das vacinas utilizadas no mundo vêm da Índia.


Penetrando um pouco nas cadeias logísticas, uma curiosidade: a China fornece grande parte dos princípios activos à India que os transforma em produtos acabados (fármacos) e os põe nos mercados internacionais. E já agora mais uma curiosidade. Os princípios activos fornecidos pela China, em grande parte, são produzidos na província de Hubei, cuja capital é Wuhan, epicentro da pandemia de Covid-19. E apesar da Índia ser “tudo isto” como farmácia do mundo, uma das suas maiores fragilidades é o sistema de saúde. Basta ver o que tem acontecido no tratamento da Covid-19. Uma Índia em total descontrolo.

Índia exportadora de serviços

Os serviços que representam 53% do PIB nem sempre tiveram a mesma composição qualitativa. Os serviços tradicionais (comércio, transportes, administração e defesa) foram os primeiros a deter grande preponderância na década de 1980.

Depois desenvolveram-se os serviços intermédios como o turismo (hotéis e restauração), saúde, educação e, finalmente, a partir de 2000, os serviços modernos surgem em força, i.e., o sector financeiro, as telecomunicações e os serviços às empresas, onde se incluem os que recorrem a tecnologias de ponta, como centros de tratamento de dados, serviços ligados ao audiovisual, cinema e cultura.

Pensamos que para a especialização da Índia neste tipo de serviços terão contribuído um ensino universitário de qualidade (embora com um ensino não universitário deficiente com mais de 1/3 das crianças com elevado grau de analfabetismo) e a conhecida propensão do povo indiano (asiático) para a matemática.

Neste tipo de serviços modernos, a procura externa desempenhou um papel determinante. A Índia detém hoje cerca de 18% da exportação mundial de serviços ligados às TIC e a outros prestados às empresas.

O modelo de desenvolvimento da Índia

O modelo de desenvolvimento da Índia na base dos serviços levantou durante algum tempo a questão da sua sustentabilidade, porque começou a gerar-se uma certa estagnação no campo do emprego e a Índia em elevado crescimento demográfico lança no mercado, a cada ano, milhões de jovens à procura de trabalho. Por outro lado, a indústria também mudou de ciclo e já não detém as características motoras de anos antes.

E aos milhões de jovens que a Índia lança no mercado de trabalho não abundam qualificações a não ser em certos Estados do Sul, por exemplo, onde se situa a “Silicon Valley” indiana – Bangalore.

A Índia, por falta de estratégia coerente e global de desenvolvimento, e por ser um país completamente descentralizado e desarticulado, ou seja, os Estados funcionam de per se, apresenta desníveis abissais em termos de criação de riqueza. Há Estados muito desenvolvidos onde se concentram as capacidades produtivas (materiais e humanas) e são assim muito mais ricos.

Por outro lado, o tipo de gestão é muito diverso de Estado para Estado e os mais bem geridos tornam-se mais atractivos para o investimento.

Até a nível da política esta dualidade é bem notória. O partido BJP é forte a nível do País até pela campanha permanente e intensiva de propaganda que a máquina do governo desenvolve, enquanto a nível dos Estados é bem mais frágil, com resultados políticos e económicos que penalizam o partido do governo.

Temos tentado, nestes últimos escritos sobre a Índia, apontar alguns elementos que nos possam balizar a questão levantada de início: Poderá a Índia tornar-se uma nova China? Que parcerias ajudarão a Índia a trilhar esse eventual caminho?

No próximo artigo, um pouco de carácter comparativo, abordaremos essa realidade a que viemos bater numa perspectiva de alerta: Ásia é Futuro.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 9 de maio de 2021

"Que Deus te acrescente"


FACTO

"Isto é tudo aquela política ressabiada" (...) "não tenho inveja que alguém receba mais do que eu". Excertos de declarações do presidente do governo regional a propósito dos salários e complementos auferidos pelos gestores públicos.



COMENTÁRIO

Eu também. Faço minhas as palavras da liturgia popular de outros tempos, onde "nos campos do Alentejo, bem como nas suas vilas e aldeias, a amassadura e a cozedura do pão eram acompanhados de um certo ritual. Assim, ao deitar-se o sal na água da amassadura, dizia-se: Deus lhe acrescente" (Hernâni Matos). 

Só que o problema não é esse. Não é de "inveja", tampouco de um qualquer "ressabiamento". O problema é de equilíbrio, bom-senso e rigor na atribuição e distribuição dos recursos públicos. O drama está quando se comparam funções e responsabilidades; quando se dá conta que, raramente, são os melhores que exercem tais funções, dando lugar aos oriundos de cumplicidades político-partidárias; quando verificamos que as empresas funcionam, na generalidade, com sistemáticas injecções de capital provenientes do orçamento regional; e quando fica o sentimento de impunidade perante o fracasso gestionário. 

O problema não está, sequer, em nivelar por baixo, porque a competência paga-se, mas quando se analisa e buscamos as relações entre umas funções e outras, em conjugação com a realidade no interior da sociedade. Em uma região pobre, dependente e assimétrica, sendo os recursos financeiros escassos, onde um em cada três madeirenses é pobre ou está em risco de pobreza, obviamente que devem redobrar as preocupações com as prioridades estruturais. É preciso ter presente, entre outros factores, que 32,9% dos habitantes está em situação muito complexa, a taxa mais alta do país, segundo o "Inquérito às Condições de Vida e Rendimento" (ICOR), da responsabilidade do Instituto Nacional de Estatística. E é preciso ter presente, ainda, que mais de 20.000 madeirenses não têm emprego e que muitos milhares não usufruem do subsídio social de desemprego.

E perante este quadro, corroborando o presidente do governo, o vice, ao ser confrontado com o desequilíbrio nos salários e complementos dos gestores das empresas públicas, face à escassez de recursos, assumiu: "(...) cada vez gosto mais de vir aqui (Assembleia), no meio de tantas desgraças ainda temos oportunidade de rir um bocadinho, ouvindo tantas asneiras ditas". 

Face à realidade, não digo que seja para o político chorar, no mínimo, ter tento na língua. Regressando ao início, à liturgia popular, é caso para dizer que a "massa" cresce para uns e minga para a maioria. Deve ser do "fermento"!

Ilustração: Google Imagens.

Onde é que precisamos de liberais e não os temos



Por
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
08/05/2021

O país está a ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico. O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.



Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita, capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.

A fronda populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã ser usado de forma abusiva e persecutória.

Dou muitas vezes como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos, feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os instrumento para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial, muito bem. Tudo o resto, muito mal.

Não estou a falar de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados, mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria. Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos “passaportes” com dados sanitários também não o façam.


A inversão do ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos.

Hoje parece que será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um, para vinganças políticas, para abater adversários. Dado o instrumento, destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.

Aqui é que precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os crentes, mas não para a democracia.