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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Nuclear e energias fósseis


Por
João Abel de Freitas,
Economista

A energia nuclear é reconhecida, pela primeira vez, como fazendo parte da solução na luta contra o aquecimento global num documento final de uma COP. Um marco importante e um resultado merecido pelas diplomacias dos EUA e França.



A COP28 aprovou por unanimidade uma declaração final que aponta para a “transição dos combustíveis fosseis nos sistemas energéticos, de forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a acção nesta década crucial, de forma a alcançar a neutralidade carbónica, em linha com as recomendações científicas” e, pela primeira vez, o papel da energia nuclear no clima é reconhecido oficialmente nesse mesmo documento.

A COP28 e as suas falácias

1. O abandono dos combustíveis fosseis…! Palavras a tilintarem agradavelmente e com a aparência de boas medidas, só que não passam de meras falácias, direi mesmo, de um embuste, pois se situam em contradição perfeita com as práticas em curso, em que somas enormes de dinheiro estão a ser investidas no gás natural, petróleo e carvão, mesmo nos países signatários.

O presente de Natal chegou, num belo embrulho, mas oco por dentro! Repito, sem radicalismos. Estamos perante um documento aprovado na COP 28 que semeia ilusões, um verdadeiro logro no que toca às energias de origem fóssil.

Dois ou três exemplos entre muitos. A Chevron, um dos grandes grupos mundiais de energia, especialmente petróleo, com sede nos EUA, avança com 53 mil milhões de dólares na aquisição de uma empresa especializada em fracking. O fracking, como se sabe, é uma técnica de perfuração para exploração de gás de xisto que contamina os lençóis freáticos, consome elevada quantidade de água, produz elevada quantidade de gás de estufa e está provado que, em certas circunstâncias, pode desencadear efeitos sísmicos e doenças graves como o cancro.

A ExxonMobil [1] também está a perfurar os subsolos do Canadá e Austrália na procura de gás e petróleo de xisto, prevendo investir, só na Austrália, a quantia de 50.000 milhões de dólares e não nos podemos esquecer que o governo do Reino Unido já manifestou por várias vezes, recentemente, a intenção de reiniciar as perfurações no Mar do Norte para a exploração de petróleo.

A tudo isto há a juntar os milhões e milhões de subsídios que, no Mundo, são concedidos, sob todas as formas, para que estes grandes grupos energéticos continuem a explorar os combustíveis fósseis e ainda que esses grupos pensam o petróleo e o gás com futuro a muito longo prazo.

Nada disto é compatível com a declaração subscrita apesar do pouco que diz.

2. Os combustíveis fósseis continuam a representar 82% do consumo mundial de energia primária e, em 2023, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), foi atingido o pico máximo de consumo de carvão no Mundo e para 2024 antevê-se um recorde na produção de petróleo.

O aumento do consumo de carvão está centrado na Ásia onde a Índia e a Indonésia apresentam crescimentos acima de 8% e a China, o maior consumidor mundial com taxas de crescimento da ordem dos 4,9%, embora com um programa a prazo entre renováveis e nuclear para ir substituindo as centrais a carvão. A Índia, pelo contrário, tem grandes projectos para continuar a implantar centrais a carvão.

Acrescente-se que este ramalhete fica perfeito quando o ministro alemão das finanças tem vindo a solicitar, a nível da UE, o abandono da meta de eliminação gradual do carvão até 2030, porque a Alemanha não consegue desligar as suas centrais a carvão, entre elas as 26 que accionou, aquando da crise do gás russo, usando linhite, em muitas delas, um tipo de carvão de fraca qualidade, mais nocivo em termos de gás com efeito de estufa.

3. Há quem tenha uma visão mais suave e se dê por muito satisfeito porque o acordo acrescentou ao carvão que já vinha de antes, o petróleo e o gás natural, apesar de tudo ter ficado no vago e sem qualquer carácter de obrigatoriedade.

E o mais grave é que embora alguns, eventualmente bem-intencionados em avançar, não tinham argumentos porque faltavam as medidas sustentadas para implementar essa substituição.

O que é que significa anunciar o triplicar das energias renováveis até 2050, como se afirmou? Como se faz no terreno? Nada esboçado. Portugal também alinhou nessa onda. Imagino algumas autoestradas portuguesas ocupadas por painéis fotovoltaicos!

O papel da energia nuclear contra o aquecimento global finalmente reconhecido

4. Pela primeira vez, a energia nuclear é reconhecida como fazendo parte da solução na luta contra o aquecimento global num documento final de uma COP.

Em minha opinião, é um dos poucos passos positivos a realçar na COP28. Um marco importante e um resultado merecido pelas diplomacias dos EUA e França, que há anos trabalham para passar esta ideia nos grandes eventos internacionais e, finalmente, conseguiram o registo.

Macron (presidente de França) e John Kerry (representante americano à conferência) tiveram intervenções frontais na COP28 sobre a nuclear, afirmando este último: “a realidade é que não podemos alcançar a neutralidade de carbono até 2050 sem a nuclear”.

Também 22 países na COP 28 se pronunciaram pela nuclear, mas caíram na armadilha de imitar os defensores das renováveis afirmando que vão triplicar a capacidade existente até 2050, também sem projectos.

Este registo sobre a energia nuclear é importante, mas não podemos deixar de anotar que nos documentos oficiais continua a ser secundarizada na linguagem e por ausência face às renováveis. Ainda não lhe é concedida a maioridade nem o lugar que deve, no mínimo, situar-se em plano de igualdade.

Sabemos bem o porquê desta discriminação. Ainda continua desmedida a influência das grandes organizações ambientalistas tradicionais (tipo multinacionais do poder!) que não levam em conta os avanços da ciência

As dúvidas/desconfiança nas COP

5. Mais de uma vez tenho colocado dúvidas sobre estas Cimeiras que duram duas semanas quando não mais, reúnem uma variedade de pessoas e organizações de interesses muito antagónicos (autoridades governamentais, cientistas, representantes da sociedade civil dos países membros da Convenção – Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima) com o fim mítico de debater causas e efeitos das mudanças climáticas e encontrar soluções para as mesmas.

As diferentes dúvidas persistem. Desde as que apontam estarmos perante um “teatro enganador”, “um palco de vaidades”, pouca “fundamentação” técnica e cada um com a sua, e sobretudo uma dúvida de fundo tremenda: Não será que as COP são mais uma “plataforma de cartelização” de interesses a nível mundial e não propriamente um encontro para os fins nobres que dizem defender?

Infelizmente, à medida que vou fazendo leituras sobre as COP aprofunda-se esta minha dúvida. Isto é válido também para as grandes organizações ambientalistas. Felizmente nesta COP28 participou um grupo de 70 jovens de forma organizada que iam às mesas questionar as “sumidades” e algumas até merecem esta designação sobre certas matérias entre elas a energia nuclear.

Esta forma de participar merece uma elevada nota positiva. Talvez com participações deste tipo se revolucione o funcionamento e se rompa a plataforma de cartelização dos interesses reinantes nas COP e se promova o objectivo que uma das jovens organizadoras referiu que é as pessoas se interrogarem. Será que “eu sei o suficiente para me posicionar em relação à energia nuclear e seu papel no clima?”. Ora, esta mesma questão deve ser colocada para as energias renováveis.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

[1] Anuncia perfuração na bacia do Namibe (fronteira Angola/Namíbia) para o último trimestre de 2024 para ensaio de exploração petrolífera de médio e longo prazo (Expansão 18-12-2023).


A vingança serve-se fria, a coerência prova-se quente


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
15/12/2023


Em pouco mais de uma hora de entrevista televisiva, António Costa mostrou por que razão todos os outros parecem terceiras escolhas ao pé dele: os candidatos a substituírem-no à frente do PS já este fim-de-semana e os candidatos a substituírem-no à frente do Governo em 10 de Março. Nenhum está tão preparado como ele, nenhum está tão à-vontade em qualquer assunto, nenhum deixa transparecer idêntica segurança discursiva. Se estivesse minimamente bem aconselhado, Luís Montenegro não se deixaria arrastar para a tradicio­nal armadilha do comentário imediato à entrevista de Costa, onde apenas pode largar meia dúzia de frases feitas, sem conteúdo que o justifique e numa presença fugidia que desqualifica o estatuto de um candidato a primeiro-ministro. E, porque a vingança se serve fria, um homem “magoado” não perdoou. 

A Lucília Gago retirou-lhe o argumento de que não foi o seu célebre parágrafo que o levou à demissão: foi, sim, garantiu ele, e da próxima vez a sra. procuradora-geral que investigue bem primeiro antes de disparar para matar. Para Marcelo ficou reservado o recado fatal: já que o Presidente sobrepôs a sua vontade à vontade do partido maioritário, à opinião de constitucionalistas, ao aval do Conselho de Estado e, claramente, ao entendimento da generalidade dos portugueses, espera-se então que tenha para apresentar ao país, em 11 de Março, uma solução mais estável do que aquela que derrubou. Sem ironia, disse ele. Ficou claro que António Costa vai andar por aí nos próximos meses, a assombrar a campanha eleitoral do PSD, se não mesmo a humilhar a do candidato do PS.

2 Em tempos houve um presidente de um clube de futebol, o Vitória de Guimarães, que cunhou uma frase para a História: disse ele que, no futebol, o que hoje é verdade amanhã pode ser mentira. Faltava quem a aplicasse à política, mas João Costa, o ainda ministro da Educação, acaba de o fazer implicitamente. Depois de dois penosos anos a resistir à reivindicação dos sindicatos dos professores no que resta da recuperação do tempo congelado para progressões durante o período da troika, embora tenha cedido em muitas outras coisas, ei-lo que veio agora dizer que, afinal, será possível atender a isso num futuro Governo PS. Justificação: uma coisa é o João Costa ministro do Governo de António Costa; coisa bem diferente é o João Costa cidadão socialista e apoian­te de Pedro Nuno Santos à frente de um futuro novo Governo PS. Como já aqui escrevi, o que mais me impressiona nesta história nem sequer é o encargo financeiro, que, tornado extensível a toda a Função Pública, representará um encargo extra permanente cujo valor ninguém conseguiu estimar ainda. O que mais me impressiona é pensar que quem foi à falência em 2008 foi o Estado, mas todos pagámos duramente essa falência. E, enquanto se reclama a justiça de restituir o que os trabalhadores do Estado perderam então, não há uma palavra, por comparação, para todos os outros que não trabalhavam para o Estado, que não tiveram responsabilidade alguma na falência deste, mas que a pagaram com o “brutal aumento de impostos”, os cortes salariais, o despedimento ou a emigração forçada.

3 E, entretanto, os resultados do PISA vieram revelar o inevitável. Se todos os países da OCDE recuaram nas aprendizagens dos anos considerados devido à pandemia, Portugal recuou mais do que todos, e esse recuo começou antes dos anos covid. Razões: a abolição de exames e a ausência de aulas. Reagindo, incomodado, Mário Nogueira veio questionar “para que serve o PISA e o que avalia?”, para depois fornecer a resposta: “O PISA não avalia a qualidade da educação, mas o desempenho dos alunos em provas de Matemática, Leitura e Ciências.” Ou seja, avalia o essencial: o que aprenderam os alunos na escola, coisa que para Mário Nogueira é “limitar o papel da escola ao domínio do conhecimento”. Pois, como ouvimos gritar abundantemente, “os professores a lutar também estão a ensinar”. Mas não, pelos vistos, a ensinar Português, Matemática ou Ciências, disciplinas em que a escola pública entrega mais tarde às universidades verdadeiros analfabetos funcionais, oportunamente dispensados dessa coisa discriminatória que são os exames, em benefício então da tal “qualidade da educação” — onde, aí sim, parece que somos campeões.

4 Para o “grupo de trabalho” do PSD que vai estudar o que a Comissão Técnica Independente (CTI) estudou durante um ano para a localização do possível futuro aeroporto de Lisboa, Luís Montenegro escolheu para o presidir Miguel Pinto Luz, um indisfarçado adversário da solução Alcochete — assim se garantindo a “isenção” que, tarde e a más horas, o PSD descobriu que faltaria à CTI. Mas escolheu também para o integrar um advogado do partido que, se bem percebi, tem um mandato claro: “descobrir” se a solução Alcochete tem o apoio da concessionária ANA/Vinci — isto é, se ela está disposta a pagá-la. Mas se, como já se tornou bem claro, a Vinci apenas quiser gastar 700 mil euros num aeroporto no Montijo, fazendo um centro comercial a que chamará terminal na pista que já lá está, então o PSD alinhará com a Vinci e passará também a defender o Montijo, não obstante todos os contras apontados no relatório da Comissão Técnica Independente. Entre o interesse público e o interesse do concessionário, o PSD tratou já de deixar claro de que lado está. Se percebi bem, se é mesmo disto que se trata, só não percebo porque vão perder mais tempo a camuflar uma opção já feita com um suposto grupo de trabalho.

5 As sondagens dizem que a Iniciativa Liberal vai subir nas urnas, o que explica a vontade do partido em não alinhar em coligações prévias. Tenho dificuldade em entender essa subida eleitoral, à luz da prestação da IL sob a direcção de Rui Rocha. Internamente, ele tem espalhado dissidências e abandonos, acumulando fama de uma liderança fechada na figura do presidente. O mesmo sucede no Chega, mas o Chega é partido de um só homem, que topa-a-tudo, ao contrário da IL, que nasceu como um partido de quadros. E, quanto ao líder, ele é uma sombra do seu antecessor. Onde João Cotrim de Figueiredo transmitia uma imagem de desprendimento, mundo, sentido de humor e imaginação, Rui Rocha é um rosto permanentemente fechado e crispado, agressivo, de mal com todos, disparando para todos os lados, sem sentido nem oportunidade: a imagem oposta de um liberal, na vida e na política. João Cotrim tinha um discurso claro e fluido: sabíamos o que pensava, mesmo quando o que pensava era abertamente injusto ou absurdo. De Rui Rocha não conhecemos o pensamento, mas pior do que isso: fica-se com a sensação de que ele esconde o essencial.

6 A COP28 terminou com um acordo que dizem “histórico”: atingir a neutralidade carbónica até 2050. Depois de grandes discussões em busca das palavras que a todos contentassem, não ficou expressamente escrita a proibição da exploração de combustíveis fósseis até 2050, mas sim “uma transição para o seu abandono”, o que não é a mesma coisa. Um leitor do “Observador” comentou imediatamente que “aposto que vai pesar no nosso bolso”. Pois vai, tal como a cura de uma doença terminal não se faz sem custos. Na verdade, não são só os produtores de petróleo os maus da fita: quantos de nós, nas nossas vidas de todos os dias, estamos preparados para abdicar já de um modo de vida fundado numa energia que nos habituámos a ter facilmente disponível há um século? E em Portugal, onde, por exemplo, uma cegueira irresponsável apostou no desmantelamento do transporte ferroviário em benefício do rodoviário e muitos querem ainda apostar num aeroporto para o futuro vocacionado para voos de médio curso, estes 26 anos que restam, se levados a sério, vão ser brutais.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 16 de dezembro de 2023

Natal

 

Mais um ano! Ou menos um no conta-quilómetros da vida. E lá vêm os choradinhos da solidariedade, da tolerância, do amor, da fraternidade, as missas do parto, os adros cheios de vida, de "parideiras" e vinho-e-alhos, a azáfama dos bolos de mel, licores e doçaria, o presépio e a árvore de Natal, as limpezas e a decoração das habitações, a iluminação dos espaços públicos, as canções e melodias da época, os almoços e jantares, a noite do mercado, a família, as crianças, as prendas, a placa central e tantas outras, o circo e as animações estonteantes, até ao ribombar dos foguetes que tornam o céu multicolor de esperanças mil, as passas, o champanhe e as promessas de sermos diferentes e melhores. O habitual. 



Ano após ano o mesmo de sempre. Oiço falar da magia do Natal, mas não percebo bem se falam de puros rituais assentes em crenças ou de um período que, podendo ser aquilo que é, devia consubstanciar-se, sobretudo, nessa magia das palavras portadoras de futuro que traduzem a Mensagem de quem, naquele dia, nasceu (não me interessa a veracidade da data). 

Passo bem sem passas e promessas vãs, sem rezas públicas de Avé-Marias e Padres-Nossos, sem Missas não interiorizadas, mas não passo sem uma reflexão diária sobre a missão do ser humano, a contínua leitura do Homem no Mundo tendo por base a Palavra contextualizada com a vida. 

De que valem tantos, de cabisbaixo, talvez envergonhados, obrigados pela função, em "acção de graças" (!), baterem no peito, andarem por aí a desejar uns aos outros os votos de Bom Natal se eles próprios não conseguem renascer da sua prática muitas vezes egoísta e dolosa para com os semelhantes! Dispenso essa hipocrisia pública de salão e tapete vermelho num ritual que não acrescenta; prescindo e assobio para o lado, aquando da gritaria, muitas vezes ofensiva, do palavreado de meias-verdades escutadas nos hemiciclos; recuso a mentira que dá jeito, em todos os sectores, áreas e domínios, quando para isso se torna necessário violentar a consciência, dobrando a cerviz ao ponto do nariz aproximar-se dos joelhos; furto-me às aparências quando facilmente se percebe o oco que são e porque são; mando para longe a cultura do ter distante do ser e, facilmente, confesso, expludo para comigo próprio, perante a insensibilidade, os desequilíbrios sociais, todas as pobrezas e explorações que correm frente aos nossos olhos de espectadores. Condói-me a brutalidade das guerras, os imperialismos e a incapacidade para o diálogo dos seres dotados de inteligência; magoa-me a desenfreada corrupção através de uma louca corrida pelo dinheiro fácil, a falência dos princípios e valores, a miséria de milhares de milhões num planeta rico, em contraponto com o facto de, só na última década, 1% ter arrecadado quase metade de toda a nova riqueza gerada; revolta-me a substantiva indiferença e hipocrisia perante quem não tem tecto, oferecendo-lhes, como se essa fosse a solução, a caridade de uma refeição de Natal e uns quantos agasalhos. Para o ano, cá estaremos!

O Natal é assim. Acaba por ser um ponto de chegada e jamais um ponto de partida para uma vida renovada e alicerçada na dignidade de um projecto, individual e colectivo, com futuro. Se, finalmente, despertássemos para o seu significado mais profundo, outro galo cantaria nas Missas e outro nascimento aconteceria nas sociedades. Porém, a sofisticada engrenagem política, económica, financeira, religiosa e cultural não o permite. Vive-se numa permanente ilusão que faz adoecer e mata. Mas a plebe lá vai aguentando, esticando o magro salário, porque o biscate e a economia paralela equilibram e, lá para diante, na reforma, logo se verá; o trabalho deixou de significar resposta às necessidades básicas e, por isso, as juntas, casas do povo, associações e paróquias colmatam o sentimento depressivo da vida onde tantas famílias agonizam. Um terço da população é pobre ou está em risco de pobreza! E o círculo vicioso mantém-se porque a pobreza tendencial e paulatinamente eterniza-se.

Inclusão e esbatimento das assimetrias? Uma ova! Iludem-se os que julgam que a escola constitui o tal "elevador social" e a fuga aos constrangimentos da vida imposta. Se esta escola servisse a mudança, reflictamos, passados quase 50 anos de Abril, em que patamar a população devia estar? Que melhorou, obviamente que sim. Pelo menos para meia-dúzia! Que não resolveu a panóplia de direitos humanos, obviamente que não. A escola é aquilo que é, desrespeitosa para os talentos, vocações, interesses pessoais e para a cultura, simplesmente porque interessa que assim seja. Uma população culta, aquela que rejeita amestramentos, sabe muito mais do que as respostas às questões do manual. Os políticos reconhecem, obviamente que sim, que ela se torna potencialmente perigosa, porque pode transportar os elementos fundamentais da liberdade de pensamento e acção. Por mais perverso que possa parecer há que alimentar a nata e, subtilmente, deixar os restantes na dependência, discursando e enaltecendo, sempre, qual paradoxo, o sentido da inclusão! É o que temos na frente dos nossos olhos.

Seja como for, porque os rituais também fazem parte da vida, sendo tão bom vivê-los, neste Natal estou a repeti-los todos, sem deixar absorver-me pelas situações convencionais e superficiais. Trago em memória o Filósofo Ortega y Gasset "Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim"

FELIZ NATAL para todos e desculpem-me o desabafo arrancado das entranhas e onde tanto ficou por dizer.

Ilustração: Arquivo próprio, em casa.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

No Funchal, uma cabeleireira quer escrever um livro


Por
João Abel de Freitas
Economista


Da Madeira para Portugal, à boleia do nuclear. Neste momento, a maioria na Europa é pró-energia nuclear. Em 27 estados-membros, há 16 países que constituíram no início deste ano a chamada Aliança Nuclear Europeia.



Estive na Madeira para o lançamento do livro A Energia na União Europeia/Política Errática e de Conflito e a comunicação social andou por perto.

1. No dia do lançamento, segunda-feira 27 de novembro, aproximei-me da tabacaria junto ao café Apolo, em frente à Sé, para comprar um jornal da Região.

Uma senhora em amena conversa com a vendedora dos jornais olha para mim e diz: Este senhor que é madeirense, mas não vive cá, vai lançar hoje um livro na Reitoria da Universidade. Ouvi e perguntei como sabe. E ela, vi-o no telejornal e até sei o seu nome. Uns segundos de conversa e digo mas pode lá ir. Ai, não posso, sou cabeleireira e tenho de estar no salão. E logo a seguir… também quero fazer um livro.

Sabe, dizia-me ela, sei muito da vida do Funchal. Dos amores e desamores, das doenças complicadas, das depressões das pessoas, das pessoas que pelas razões mais absurdas da vida a que por vezes não vão ligando nenhuma, mas que as mudam tanto que desaparecem e quando voltam são outras, de feições, de humor, até na forma de pensar. Muitas perderam as suas posses, o seu dinheiro… e, depois, as dificuldades de vida… e, quando têm filhos é de facto uma não vida.

Ainda perguntei, mas não vai identificar nenhuma cliente, pois não. Muito pronta, não, isso nunca. É só a vida das pessoas que conta, muito pesada, mesmo para aquelas que andam aparentemente sempre bem, que disfarçam, mas lá no fundo, sente-se…

A conversa mudou, entretanto, e começou a dizer que gostava imenso da Madeira, do mar, que ia nadar quase todos os dias e que já tinha ido naquele dia. Até fiquei surpreendido pois era tão cedo. Pensei para mim. Gosta mesmo. E não há dúvida estava ali toda morena!

Ainda lhe disse avance com o livro. E ela diz-me, vou pedir apoio a um amigo. Espero que não desista. Pareceu-me uma pessoa decidida e com garra. Simpatizei naturalmente com a senhora e fiquei com muita curiosidade à espera do livro. Sem dúvida, temas sociais em aberto, escondidos, de grande impacto e muita dor.

A energia na União Europeia – política errática e de conflito

2. O livro foi lançado nessa tarde na Reitoria e, para além da muito boa e clara intervenção do apresentador do livro, o meu colega de Liceu, Eng. Bruno Brazão, um técnico que, nos seus inícios de carreira, trabalhou na Junta de Energia Nuclear (JEN) mais concretamente no LFEN em Sacavém, onde havia um reactor de investigação, o debate alargou-se aos participantes e de forma bem viva.

É preciso dizer que havia uns certos ingredientes e curiosidade sobre o tema da Energia, suscitados por uma chamada de primeira página no Diário de Notícias: “Madeira deve apostar na energia nuclear”.

O livro não aborda a problemática da energia na Madeira, mas na entrevista a jornalista Tânia Cova chamou a questão da energia nuclear à nossa troca de ideias da seguinte maneira: “De que forma esta política errática e de conflito está a afectar Portugal? E a Madeira, sabendo que é objectivo do Governo Regional atingir 50% de energia a partir de fontes renováveis a partir de 2025”.

E a resposta foi fluindo: “Esta situação na Madeira tem de ser bem pensada, na medida em que não acredito muito que as renováveis sejam a solução. Vai depender dos projectos que houver para a Madeira [entenda-se, em termos de procura de energia].

Coloco mais a hipótese, mas isto teria de ser muito bem trabalhado, com alguma fundamentação, de uma aposta na [energia] nuclear. Portugal não tem essa posição, mas pode vir a ter. Porque não pensar num reactor de pequena dimensão? Até porque na questão das renováveis há muitas variáveis. Vejamos o exemplo da energia hídrica em que cada vez chove menos e torna-se uma energia muito intermitente.

Não me refiro a um projecto para amanhã. Sugeria que fosse pensado com equipas especializadas. Equipas que não existem neste momento em Portugal. Já existiram. Lembro que, antes do 25 de Abril, Portugal chegou a ter um reactor experimental, mas após o 25 de Abril este foi mais ou menos abandonado. Foi um erro no meu entender.

Não é fácil captar pessoas especializadas para esta área. É preciso experiência. O programa francês a dez anos vai precisar de 100.000 técnicos. A Suécia que também tem um dos maiores programas de energia nuclear da Europa tem vindo a apostar na formação.

Neste momento, a maioria na Europa é pró-energia nuclear. Em 27 estados-membros, há 16 países que constituíram no início deste ano a chamada Aliança Nuclear Europeia. Mais recentemente, [dia 7 de Novembro], a Comissão Europeia anunciou que estabelecerá uma Aliança Industrial dedicada aos pequenos reactores modulares (SMR) que arrancará em inícios de 2024. O anúncio foi feito pela Comissária Europeia para a Energia, Kadri Simson”.

A que se destina a Aliança Industrial dedicada aos SMR?

3. Esta iniciativa da Comissão Europeia dedicada aos pequenos reactores (SMR) visa três objectivos: centrar-se na aceleração destas tecnologias de carbono zero, na montagem de uma cadeia de abastecimentos da UE e na formação de mão de obra especializada com o fim de numa década implantar SMR.

No seu discurso de abertura no evento onde anuncia a criação da Aliança Industrial [Small Modular Reactor Partnership], Kadri Simson afirma: “as apostas da concorrência mundial são elevadas e é importante que mantenhamos a liderança tecnológica e industrial europeia no domínio nuclear”.

Para além de algumas dúvidas/certezas de que a UE não esteja na liderança da energia nuclear civil, esta decisão da Comissão é muito importante e pode, finalmente, ser o princípio de uma futura política energética na União.

Esta iniciativa não agradou o grupo de países antinuclear e, temos a certeza de que, na medida do possível, a Alemanha embora “em perda de terreno” não deixará de tentar barrar ao nível da UE alguns avanços nesta matéria ou pelo menos atrasá-los o mais possível.

A COP28
Finalmente, uma boa notícia desta COP.

A energia nuclear, pela primeira vez numa COP, rompe a “clandestinidade” e é tratada, em alto e bom som, quer pelo presidente Macron, quer pelo enviado especial do governo dos EUA, John Kerry, como tendo um lugar próprio e decisivo nas tecnologias de carbono zero e sem a qual os objectivos de combate às alterações climáticas jamais serão atingidos. Tudo isto afirmado na COP28 é de uma importância extrema, para além de 22 países terem manifestado a ideia (um tanto quanto irrealista, por dificuldades técnicas e de recursos humanos), de triplicar a capacidade nuclear instalada até 2050. Mas, atenção, nada de grandes entusiasmos. Foi apenas um pequeno passo.

Finalmente, é de assinalar que John Biden e Xi Jinping não estão presentes nesta Cimeira do Clima que termina amanhã, dia 12 de dezembro, no Dubai.  No entanto, pouco antes, encontraram-se em Nova Iorque onde acordaram um protocolo de cooperação onde o clima é contemplado. E, a terminar, fico na incerteza de quem vai tomar a dianteira, se a energia nuclear se o livro.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Ganância

 


Ricardo Salgado, o ex-patrão do BES! Vi-o ontem na televisão. Pelo braço de sua mulher arrastando os pés até à viatura. Agora de cabelo desalinhado e sem gel, de sapatilhas, sem fato e gravata, longe dos corredores do poder, enfim, um homem presente mas ausente, uma pálida sombra do banqueiro de tez austera que foi. Há dois anos foi o João Rendeiro, outro banqueiro que viveu no pântano da aldrabice. Engenhosas trapalhadas marcaram a vida de ambos, deixando milhares na lista de lesados. Histórias que todos conhecemos nos seus traços gerais. 

Interrogo-me sobre a ascensão e queda destes dois (mas há outros certamente cúmplices), motivada por uma ambição descontrolada com um previsível e trágico fim. É simples mas de uma extensa complexidade a pergunta que me assalta: para quê? Porque a VIDA é muito mais que milhares de milhões de "riqueza" acumulada, muitas vezes de forma nada transparente. Milhões quando apenas temos um estômago. Conclusão das duas histórias de vida: a ganância, tarde ou cedo, conduz à destruição do ser humano.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Desculpem-me insistir


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
01/12/2023
 A Estátua de Sal




Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre esta história, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.



Desculpem-me insistir nisto, mas isto é o essencial: é o Estado de direito, o fundamento da democracia. Começa nas fronteiras de um país, onde a forma como as autoridades nos tratam dizem logo ao que vamos. E continua depois na forma como a Justiça do país nos trata a todos, nacionais ou não nacionais. À polícia e às Forças Armadas concedemos o direito de andarem armados para defenderem a nossa segurança, a nossa soberania e a nossa Constituição. À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. 

No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém — no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo —, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP).


Há democracias onde o MP é controlado directamente pelo Governo, através do ministro da Justiça, com o fundamento teórico de que, não sendo assim, não pode haver uma política de justiça assumida pelo Governo. Há países onde o MP é controlado pelos eleitores, que elegem regularmente os procuradores em função do seu histórico no desempenho da função. E há países onde o MP é controlado hierarquicamente dentro da estrutura, no topo da qual está alguém que responde ou perante o Governo ou perante o Parlamento. Mas nós somos um caso original e de “sucesso”: os nossos procuradores, além de serem independentes e irresponsáveis pelas suas decisões ou não decisões, são ainda inamovíveis e hierarquicamente autónomos, podendo apenas e em casos extremos ser disciplinarmente responsabilizados perante um Conselho Superior onde, ao contrário do que sucede com os juízes, os seus pares estão em maioria. Nenhum outro órgão de soberania, nenhuma outra actividade de serviço público, nenhuma outra profissão goza entre nós de semelhante estatuto de impunidade funcional. Os políticos têm medo de a contestar, os ignorantes acham que pô-la em causa equivale a defender a corrupção e os “poderosos”, os jornalistas apressados não querem perder as suas notícias e os populistas alimentam-se disto como de pão para a boca. Mas aqueles que sabem do que falo têm razões para não dormirem descansados: “Primeiro, vieram buscar o meu vizinho...”

O caso Casa Pia deveria ter sido um toque a rebate sobre o funcionamento do MP. Quando ficámos a saber que na investigação do processo andavam a mostrar aos miúdos traumatizados um catálogo com 30 fotografias de figuras públicas, do cardeal-patriarca a Mário Soares, escolhidas ao gosto aleatório ou não de um qualquer procurador (e onde, obviamente, não constava o retrato de nenhum magistrado), para ver se eles, confundindo figuras conhecidas dos ecrãs com figuras dos seus abusos, identificavam “suspeitos”, e nada aconteceu a estes “investigadores” e aos seus superiores, a partir daí ficou aberta a porta à intimidação processual. Que se seguiu, por diversas vezes e sempre impunemente, arrasando reputações, carreiras e vidas pessoais, afastando do serviço público gente de valor para o país, compreensivelmente aterrorizada pela madrasta justiceira do DCIAP de Lisboa. Até chegarmos ao 7 de Novembro e à escolha política que nos resta depois do raide da PGR e do MP: os salvados do incêndio, a mediocridade partidária e populista. E querem que não falemos disso, que nos conformemos, que “deixemos a Justiça seguir o seu curso”? Mas qual curso? Qual Justiça?


Entendamo-nos: não convém confundir a percepção popular da corrupção existente (que é o que aparece nos índices oficiais como o nível de corrupção de cada país) com a verdadeira corrupção existente. E também não convém confundir o crime de corrupção com todo o tipo de crime económico, fazendo do direito penal uma extensão do “direito de café”. Dito o que é evidente que temos problemas criminais deste tipo, não sei se mais ou menos abundantes do que outros, mas a todos os níveis da sociedade onde existem seres humanos permeáveis ao desejo de enriquecer rapidamente e de qualquer forma, de saltarem por cima das leis e de obterem tratamentos de favor: militares que roubam nas cantinas ou na compra de armas, médicos que aldrabam receitas, autarcas que adjudicam empreitadas à margem da lei, laboratórios contratados pelo Estado que simulam análises, consulados que vendem documentos a traficantes de droga, etc. Não há pano de linho nem peça de seda que não possa ser manchada com as mais abjectas nódoas. E todos os dias, felizmente, o MP persegue, investiga e leva a julgamento os que consegue. Mas esta criminalidade inorgânica e abstracta, que anda algures por aí, sem rostos apetecíveis para os cafés e tablóides, não seduz nem sacia o desejo de justiça popular da sociedade — que, não raras vezes até, desculpabiliza-a, vendo nela uma tentativa falhada de os “pobres” ascenderem ao mundo dos “ricos”. Eles querem verdadeiro sangue, o sangue dos “poderosos”, que são sobretudo “os políticos” — os do Governo da nação, bem entendido, porque os outros, os dos governos locais, muitas vezes são seus familiares, amigos, conhecidos, próximos, da terra. E o problema está quando este desejo de justiça popular encontra na organização do MP um departamento central de investigação, o DCIAP, que, sob a capa de chamar a si os casos mais complicados, acabou por assumir com o tempo a vocação de investigar “poderosos” e gente “mediática”, desde logo dando a ideia de que há casos e casos e, afinal, nem todos devem ser tratados por igual.

Peguemos no caso MP vs. António Costa, que finalmente mereceu uma curta explicação da procuradora-geral da República, Lucília Gago. Na esteira dos argumentos que lhe foram sugeridos pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público, “esclareceu” ela que “havendo notícia de um crime”, o MP é “obrigado por lei a abrir um inquérito” e, depois, por um “dever de transparência”, a dar-lhe publicidade. Nenhuma das razões colhe. Primeiro, não havia notícia de qualquer crime contra António Costa. O facto de em duas ou três escutas telefónicas os intervenientes dizerem que queriam falar com o primeiro-ministro ou que iriam falar com ele não indicia: a) que o tenham feito; b) que o primeiro-ministro os tenha ouvido e concordado com a sua pretensão; e c) que esta fosse ilegítima ou criminosa. Pelo que não havia razão alguma para a abertura de um inquérito à actuação do primeiro-ministro; quanto muito, o MP prosseguiria a investigação em relação aos restantes suspeitos e se, no decurso desta, surgissem indícios sérios contra o primeiro-ministro, então, sim, abriria o tal inquérito. Mas mesmo que tenha entendido o contrário, nada, nenhum “dever de transparência”, obrigava o MP a tornar isso público: todos os dias o MP recebe dezenas de participações criminais e abre inquéritos contra denunciados ou suspeitos sem que, até por razões de eficácia, vá participar ao denunciado, particular ou publicamente, que está a investigá-lo. É óbvio e indesmentível que quando Lucília Gago escreve o tal “parágrafo assassino” sabia ao que ia. E, se não sabia, é porque não entende português — o que é muito grave nas funções que desempenha.

Durante toda a semana assisti a um impressionante blitz de defensores da PGR e da actuação do MP, insistindo, nomeadamente, que António Costa não se demitiu por causa do tal parágrafo, mas de tudo o resto: as suspeitas sobre o seu chefe de gabinete, o “melhor amigo”, dois ministros, os €75 mil no gabinete de Vítor Escária. Concedo que muito provavelmente ele demitir-se-ia depois de saber tudo isso. O problema é que demitiu-se não depois mas antes de saber tudo isso: o comunicado da PGR é ao meio-dia, Costa demite-se às 13h, o gabinete de Escária só é buscado da parte da tarde e os fundamentos das suspeitas do MP sobre os implicados só são conhecidos ao final do dia, já as agências de notícias internacionais titulavam: “PM de Portugal demite-se sob suspeitas de corrupção”. O resto da história conhecemo-lo. Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre ela, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.

Há dias, numa entrevista televisiva, a ex-directora do DCIAP, Cândida Almeida, queixava-se das “pressões” que se fazem sobre o MP, entendendo como pressões, e abusivas, as críticas feitas à sua actuação, neste ou noutros casos. E falava, condoída, da “amargura” que tais pressões traziam à “vida pessoal, familiar e profissional” dos procuradores do MP. Fiquei a pensar se ela seria capaz de imaginar a amargura do outro lado. Por exemplo, do lado do presidente da Câmara de Sines, acordado em casa às 7h da manhã, junto da família, com a casa vasculhada como um vulgar criminoso e logo, presumo, como é da praxe, espoliado do computador e telemóvel pessoal, depois transportado ao seu gabinete de trabalho na Câmara, onde as buscas prosseguiram à vista dos funcionários que chefia e dos munícipes que o elegeram, e daí transportado para os calabouços da PSP em Lisboa, onde — ao abrigo de uma interpretação, essa sim abusiva, da norma processual — permaneceu seis dias e seis noites em silêncio e isolamento, enquanto cá fora o seu estatuto público passou a ser o de um corrupto, até finalmente ser ouvido por um juiz que o mandou libertar, sem qualquer medida de coação, pois que nada, absolutamente nada, viu nos autos que justificasse tudo aquilo por que ele passara. Consegue imaginar, senhora procuradora? É disso que deveríamos falar.

2 Ao longo dos anos assisti a muitas cambalhotas políticas, que levei à conta da inerência da própria actividade. Mas algumas espantam mais do que outras e às vezes quase que doem, como é o caso do apoio à candidatura de Pedro Nuno Santos por parte de Álvaro Beleza e Francisco Assis, dois socialistas cuja lucidez e sensatez em nada se podem rever nas apregoadas qualidades do seu apoiado candidato. Sentindo-se justamente interpelado na sua coerência, Francisco Assis tem-se desdobrado em explicações, mas debalde: cada uma é mais incompreensível e contraditória do que a outra. E para quem também recusa aceitar a tese de um simples trade-off negociado à mesa de um restaurante, resta a única explicação lógica: que a vida partidária está cheia de intimidades não frequentáveis.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Quando não se tem noção do tempo

 

Na esteira do Filósofo Gaston Bachellard, tudo tem o seu tempo e ele já teve o seu. O Professor Cavaco Silva, com 84 anos de idade, politicamente, assim ainda não entendeu. O jornalista Manuel Carvalho, na edição de ontem do Público, a propósito da sua "aparição" no último congresso social-democrata, sublinhou: "O enlevo com Cavaco Silva é a descrença no futuro. (...) A nostalgia do cavaquismo pareceu valer mais do que uma visão, um programa, uma ideia (...). Nada de novo: a anestesia conformista do Estado Novo sempre procurou estimular o ânimo nacional com o passado. Antes, o Infante D. Henrique, agora, Cavaco Silva. Ficamos a perder". É isso. 



Apesar dos resultados eleitorais do Professor Cavaco Silva, duas maiorias absolutas e duas vitórias na corrida à presidência da República, passado esse tempo, a leitura política que uma grande parte do povo português faz é que se tratou de um tempo de graves erros estratégicos na condução do País. 

Está tudo ou quase tudo documentado, não valendo a pena desenterrar um tempo, pleno de fluxos financeiros europeus, que bem podiam ter servido para uma nova e promissora dinâmica geradora de crescimento, desenvolvimento e, por extensão, bem-estar do povo. A "aparição" do Professor Cavaco naquela reunião magna, talvez se justifique pela sua necessidade de dizer, ao jeito de Cristiano Ronaldo, "eu estou aqui". Só que, ao contrário de Ronaldo, não marca golos e não empolga, pelo contrário, afasta. 

O Professor Cavaco devia refugiar-se, quanto muito, em defesa própria, à condição de senador partidário, jamais à posição de, talvez mal comparadamente, a um velhinho galo de crista empinada sempre pronto para uma qualquer bicada de circunstância. São livros de memórias distorcidas, plenos de auto-elogio, artigos de opinião e até um livrinho fraco, dizem os comentadores, com o título: "O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar". A pedagogia da governação como se a sua experiência tivesse sido marcante para o futuro. O "galinheiro" é outro, Senhor Professor! As bicadas só o desprestigiam. Se pensa que a sua dimensão política é intocável, devia admitir que, hoje, para milhares, talvez milhões de portugueses, as suas posições são de um sentimento negativo inenarrável. Devia olhar, como referência, para o Senhor General Ramalho Eanes.  

Aliás, porque tudo tem o seu tempo, não vejo com bons olhos, perdoem-me o excesso de linguagem, o desfile de uma espécie de "parque jurássico político", quando o que está em causa é a renovação com personalidades socialmente credíveis, técnica e politicamente robustas em matérias decisivas para a crescente melhoria da produtividade e consequente felicidade do povo. Enganam-se os que julgam que o povo tem memória curta. Não sendo possuidor de uma elevada cultura política, ele sabe, no entanto, na síntese, pelo menos os que votam, formular leituras de tudo aquilo que se passa debaixo dos seus olhos de actor/espectador. Enganam-se e estampam-se os que alguns julgam que o povo vai na promessa fácil. Já são muitos anos de experiências vividas. Por outro lado, consequentemente, por ausência de uma nova ideia para o país, infelizmente, não é de estranhar que a extrema-direita cresça no quadro de uma certa desesperança. O que lhe resta? - pergunta o jornalista Manuel Carvalho sobre Montenegro: "Carisma fraco. Currículo, pouco. Capacidade de mobilizar, escassa". Só por aí se justifica o apelo àquilo que é comum por aí se ouvir: "a brigada do reumático".

Da sua presença no Congresso fica: "A minha mulher está à minha espera para jantar". É isso. Porque há um tempo para estar e um tempo para sair de cena. E há tanto para fazer na aposentação!

Ilustração: Google Imagens / Expresso