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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Provocando ou polemizando


Por
26 Abril 2022

Uma coisa e outra. Mas como envolve uma grada figura da igreja, alguém mais puritano poderá ver algum melindre, numa conversa tida como filosófica, em misturar o religioso e as técnicas do profano e ser levado a “aprimorar” o título, com a palavra, “pecando”, ou então como inclui também um grande nome do desporto nacional e europeu poderia alguém desta área, com todo o direito, ser tentado a questionar e o “futebol?”.



Uma coisa e outra. Mas como envolve uma grada figura da igreja, alguém mais puritano poderá ver algum melindre, numa conversa tida como filosófica, em misturar o religioso e as técnicas do profano e ser levado a “aprimorar” o título, com a palavra, “pecando”, ou então como inclui também um grande nome do desporto nacional e europeu poderia alguém desta área, com todo o direito, ser tentado a questionar e o “futebol?”.

De pecados estamos bem. Dos mais clássicos, parece que já não se fala. Dos novos, a dinâmica é de mudança a toda a hora e que interessam pois, segundo sei, se já nem inferno existe! E pecados sem inferno… Assim, cada um “peca” consoante entende e para “os pecados” que caem no crivo da sociedade, a justiça civil que trate do assunto. Um Estado mais laico. De pecados paro, só assinei o ponto … embora só veja maldades e das grossas…

Os factos

1.Imensa curiosidade à partida no teor da conversa havida na Biblioteca do Vaticano entre José Mourinho e Tolentino Mendonça, duas figuras portuguesas, graúdas nos seus meios/profissões, uma bem mais conhecida nacional e internacionalmente, por ser um dos treinadores de futebol mais badalados do mundo, desde há bastante tempo.

O cardeal Tolentino Mendonça ainda não chegou ao patamar de José Mourinho em termos de celebridade e atrevo-me a dizer mesmo no seu próprio meio, mas opinião própria, está a trabalhar para lá entrar. Legítimos os seus objectivos pessoais.

Talvez mesmo no círculo restrito dos cardeais ainda não tenha a projecção ambicionada, pois tratou-se de uma subida estonteante. Aqui, assemelha-se um tanto ao José Mourinho que desde muito cedo subiu a jacto, embora com uma vantagem e um grande trunfo. Tinha passado por uma “catedral do futebol”, o Barcelona. Penso que isto de não se seguir uma certa tradição, a gestão de uma diocese ou de uma ordem/instituição, dificulta a modelação do carisma. E não tendo ainda o carisma de competição seguro precisa de o burilar de formas condizentes.

2. A minha curiosidade surge quando vou comprar o Expresso do fim-de-semana da Páscoa que até saiu um dia antes e vejo a capa da revista preenchida por essas duas figuras (Tolentino Mendonça e José Mourinho – o cardeal e o treinador, em foto em pose de pensar (a lembrar agência de comunicação), empolgante, bem ajustada à imagem que de cada um imagino.

O que terá acontecido a estas duas figuras para capa de tamanho destaque?!

Não tinha informação que nenhum estivesse em vésperas de ganhar um “campeonato”. José Mourinho anda distraído e arredado nestes últimos tempos de justificar o “Special One” que tanto assumiu e Tolentino Mendonça também já distante um tanto do tempo do seu título cardinalício. Independentemente do seu valor, a subida fez-me transportar para uma ligação à sua terra de origem, a ilha da Madeira, um verdadeiro viveiro, uma terra produtiva de figuras gradas da Igreja. Muitos bispos e dois cardeais.

Tolentino Mendonça é o segundo cardeal. E os dois um pouco do lado norte da Ilha

Teodósio Clemente de Gouveia, cardeal de Lourenço Marques, é da minha freguesia São Jorge e contemporâneo de Cerejeira. Segundo parece não se conjugavam lá muito bem. Em algumas pesquisas na Torre do Tombo, cruzei-me com um ou outro documento de Dom Teodósio sobre as Colónias, endereçados a Salazar, mais concretamente sobre as missões a questionar a política, numa linha de pensamento de proximidade a Rolão Preto.

Tolentino Mendonça é natural de Machico, sacerdote, professor universitário, poeta, doutorado em Teologia Bíblica. Vive no Vaticano desde 2018, onde dirige a Biblioteca Pontifícia, para o que teve de ser coroado de arcebispo pelo Papa Francisco, que cerca de um ano depois o chama a cardeal.

O conteúdo da conversa

3. Não sei se se trata de uma “conversa” o texto promovido e produzido primeiro pelo jornal “L’Osservatore Romano” (mas é a palavra que consta), embora o veja mais como uma entrevista a Mourinho conduzida pelo Cardeal Tolentino. Pormenor de somenos importância.

O texto é interessante e motivado, à partida, pela pessoa de Manuel Sérgio, um pensador com alguma originalidade, muito ligado à filosofia abrangente do desporto que foi professor de José Mourinho na Escola de Motricidade Humana de Lisboa.

Manuel Sérgio, o motivo de começo para falarem. Mourinho, depois, vai discorrendo muito centrado em si e na sua evolução como homem gestor de outros homens.

Não consigo dar uma ideia global do conteúdo da entrevista que é grande demais para caber neste meu espaço. Permito-me relevar, contudo, uma passagem do pensamento de Mourinho de que cito: “ao nível técnico propriamente dito, entramos numa situação de quase dejà vu porque aquilo que me acontece hoje já me aconteceu há alguns anos atrás”…”Mas, a nível humano, cada dia é um novo dia e cada pessoa é uma pessoa nova … eu recuso sempre fazer comparações entre jogadores. Ao longo dos últimos 20 anos tive muitos, e cada um deles é único”.

Este pensamento de José Mourinho não podendo dizer-se que é um último grito , interessante até para se reflectir ao nível das empresas e organizações.

Acho que José Mourinho se saiu do contexto, com a distinção mais elevada.

Mas porque cheguei aqui?

4. Podia ter ficado pela leitura, matando a curiosidade.

Mas pus-me a matutar: como o acaso dá tanta volta! No “Expresso”, sem dúvida, uma conversa entre dois crentes de meios diferentes e sendo Tolentino Mendonça, colaborador, a publicação é furo jornalístico. Capa, destaques, fotos dos dois na Biblioteca do Vaticano, tudo se conjuga numa promoção das diferentes Partes e o jornal vende. Tudo oportuno: o tempo de Páscoa.

E, então, olho para outros ângulos. Comecei a deslumbrar laivos de alguma “economia promocional”. Gerar carisma…objectivos. O próprio acaso do “L’Osservatore Romano”, jornal do Vaticano, ter uma iniciativa destas quando tenho a sensação que para publicar algo não rotineiro nesse meio de comunicação se precisa de mover alguns cordelinhos!

Dúvidas que partilho porque me tocaram.

No Vaticano (e poderia citar outra instituição tipo ONU, FMI …) quem por lá anda pode ambicionar desempenhar certas funções, qualificadas e influentes, subir no pódio. E criar carisma é, assim, um requisito importante.

L’Osservatore Romano, Expresso não se encaixarão nessa sina?! É a dúvida que me permito plantar aqui.

Penso que interrogar o acaso não é pecado!

terça-feira, 26 de abril de 2022

Uma conversa entre José Mourinho e José Tolentino Mendonça


“As relações humanas são a vitória mais importante”




CONVERSA José Mourinho, treinador de futebol da AS Roma, e o cardeal José Tolentino Mendonça encontraram-se a 29 de março na Biblioteca do Vaticano para um diálogo que aqui publicamos. 

Artigo publicado originalmente no jornal “L’Osservatore Romano”

No passado dia 29 de março, no sugestivo enquadramento do vestíbulo da Biblioteca Apostólica Vaticana, teve lugar um diálogo entre o car­deal José Tolentino Mendonça, arquivista e bibliotecário do Vaticano, e o treinador da equipa de futebol da AS Roma, José Mourinho. Promovido pelo jornal “L’Osservatore Romano”, este inédito encontro entre as duas personalidades portuguesas estendeu-se por vários temas, do valor da educação e do desporto à importância decisiva das relações humanas em todos os contextos da vida. E não deixou de se confrontar com a dramática situação que hoje se vive por causa da guerra na Ucrânia. A favorecer a conversa, que decorreu na sua língua materna, esteve a ligação de ambos com o filósofo português Manuel Sérgio, hoje nonagenário. O texto que se segue é a transcrição quase integral do diálogo, feita por Claudio Bisceglia, que esteve presente no encontro.

Gostaria de iniciar esta conversa consigo, José Mourinho, e para mim é uma grande felicidade este encontro aqui na Biblioteca, recordando, curiosamente, um mestre comum. Portugal é um país curioso, porque um dos nossos pensadores mais originais é um pensador do campo do desporto, da motricidade humana, e escreve regularmente não numa revista filosófica mas num jornal desportivo, “A Bola”. Quero recordar consigo o professor Manuel Sérgio, que sei ter sido uma pessoa muito importante também no seu percurso. É dele a nova ideia, o esforço de criar uma nova epistemologia para a motricidade humana. Ele diz que é necessário abandonar o cartesianismo que divide o homem entre razão e coração, interioridade e alma, e é preciso encarar a pessoa humana de uma maneira mais complexa, mais unitária. E um dos conceitos que elabora, entre outros, é o conceito de periodização antropológica e técnica. O desporto, o futebol, não é apenas técnica. Ele diz: não são remates, são pessoas que rematam; não são saltos, são pessoas que saltam; não são golos, são pessoas que fazem golos...

Não são jogadores...

Exatamente, são pessoas que jogam... Gostaria de falar um pouco disso e da importância que Manuel Sérgio teve no seu percurso.

Começou quase como uma luta, porque eu chego à universidade, à Faculdade de Educação Física e Desporto, já perfeitamente consciente daquilo que quero para mim: treino e alto rendimento. Com toda a ânsia de aprender aquilo que me interessava, a primeira disciplina que tive no primeiro dia de universidade foi “Filosofia das Atividades Corporais” — era esse o nome da cadeira —, com o professor Manuel Sérgio. E eu saio da primeira lição perguntando a mim mesmo: para que serve isto? Ele compreendeu em pouco tempo que eu precisava de ser ajudado, de ser orien­tado. E efetivamente disse-me de uma maneira extremamente concreta e direta: quem só percebe de futebol não percebe nada de futebol. É uma relação que nunca acabou, é uma relação que ainda continua.

Uma amizade...

Não é apenas uma amizade, é um processo permanente de aprendizagem, e um dos maiores desafios que nós, como treinadores, líderes de homens, chamemos-lhe o que quisermos, temos todos os dias é precisamente o de como ser líder, como obter o máximo... Porque, OK, o objetivo é o alto rendimento desportivo, mas como extrair o máximo de cada atleta, que não são atletas mas homens para Manuel Sérgio? Ele influenciou-me muito no sentido de que cada pessoa é diferente da outra, neste caso cada jogador de futebol é diferente do outro, e a expressão de cada um deles em campo, em termos de prestação, é fundamentalmente a consequência de uma empatia que se cria entre dois homens: no caso, entre um homem muito mais maduro (o treinador) e o jogador. Este tipo de empatia é para mim fundamental. Guardo sempre o exemplo de quando saí da universidade. Antes de entrar no futebol de alto rendimento fui professor. Obviamente, já tinha bem claro o meu objetivo final, mas foi um processo gradual. Foi um ano em que andei a trabalhar com crianças que tinham problemas motores, distúr­bios psicoemocionais, mas eu não estava preparado, não estava preparado do ponto de vista técnico. Na universidade tínhamos diferentes áreas de especialização, e a minha área era a do alto rendimento, portanto não estava preparado. No entanto, consegui trabalhar bem, baseando-me em algo extremamente simples: amor, empatia, relações humanas... E obtive resultados inimagináveis para mim, que me considerava muito impreparado do ponto de vista técnico para trabalhar com aquelas crianças. Obtive resultados fantásticos, basean­do-me exclusivamente nas relações humanas. Depois transferi essa bagagem de experiência para o meu trabalho nos últimos 20 anos, no desporto de alto nível. Sempre tive isso como princípio básico. Não digo que sempre o tenha conseguido, por vezes não fui capaz.

Sou uma pessoa que visita Fátima durante a noite. Mesmo em Roma, visito muitas vezes São Pedro à noite. A máscara ajuda, a escuridão da noite também”

Isso que diz a propósito do falhanço é muito interessante. Entrelinhas, você diz: “Nem sempre consegui.” E, de facto, o conhecimento humano, o conhecimento que nós temos uns dos outros, é um conhecimento que amadurece também na medida em que o confrontamos, e o confrontamos sem partir da certeza absoluta, o colocamos em jogo, e muitas vezes o “falhanço”, a realização falhada, é uma etapa fundamental para se poder crescer no conhecimento do outro. Num certo sentido, os nossos falhanços, as nossas desilusões, a consciência da imperfeição ajudam a criar essa empatia com os outros, porque nos colocamos no lugar deles e vemos as coisas com uma outra profundidade, para sermos um gestor de conhecimento.

As boas experiências e as menos boas não têm preço. Às vezes penso que a única coisa que não me agrada muito com o avançar dos anos é que tenho uma dorzinha aqui, uma dorzinha ali, acordo um pouco mais cansado, é a única coisa que verdadeiramente não me agrada nos meus 59 anos. Mas se tiver de me comparar como pessoa, como treinador, que são duas coisas diferentes, bom, se tiver de me comparar com há 20 anos... tenho muita pena de há 20 anos não ter tido as experiências, boas e menos boas, e os conhecimentos que tenho hoje.

Para um treinador, é muito importante esse conhecimento do humano...

Absolutamente. Ao nível técnico propriamente dito, entrámos numa situação quase de déjà vu, porque aquilo que me acontece hoje já me aconteceu há alguns anos. As dificuldades técnicas de hoje já as experimentei há alguns anos. Uma acumulação de experiências boas e menos boas... Mas, a nível humano, cada dia é um dia novo e cada pessoa é uma pessoa nova... Eu recuso sempre fazer comparações entre jogadores. Ao longo dos últimos 20 anos tive muitos, e cada um deles é único. Ao nível técnico poderíamos encontrar pontos de comparação, mas confrontações entre pessoas é uma coisa que odeio fazer. Cada pessoa é diferente da outra, e até o meu modo de me relacionar com ela é diferente, porque uma coisa é ser-se um treinador de 35 anos de jogadores de 30 e outra é ser-se um treinador de 59 anos de jogadores de 25. Sinto-me numa posição bastante privilegiada e sinto-me muito feliz nesta perspetiva. Quando se é jovem, e se está no início da carreira, pensa-se que se sabe tudo. E quando hoje vejo a geração mais jovem com esse tipo de pensamento não a critico... Já passei por ali, a maturidade é uma coisa fundamental. Por vezes, o desporto de alto rendimento conhece momentos de verdadeira crueldade.

Por exemplo?

Nós somos pagos para vencer. Os atletas, não os homens, são pagos para vencer. Estamos a falar de alto rendimento, e às vezes há decisões na gestão de uma equipa que têm algo de cruel: não há tempo para deixar amadurecer, para deixar crescer...

A ditadura dos tempos curtos...

Os erros pagam-se. Se eu cometo um erro, pago-o com a exoneração. Se um jogador comete um erro, paga-o não jogando para dar lugar a outro. Há qualquer coisa de cruel, mas não podemos deixar que a natureza do nosso trabalho se sobreponha àquilo que somos como pessoas. Isso para mim é muito claro. Procuro ajudar os outros e esforço-me por ser melhor. Uma coisa que me é difícil aceitar é o desperdício de talento, é uma coisa que ainda hoje, ao fim de 30 anos de futebol, me é difícil aceitar. Às vezes, porém, o desperdício de talento está ligado ao percurso de vida que alguns jogadores tiveram, e nesse sentido devemos procurar ser pedagógicos até ao fim. O desporto de alto rendimento, em particular o futebol, que é o desporto mais industrializado a todos os níveis, tem qualquer coisa de cruel.

Mas isso é importante: não parar de ajudar cada um a nascer, a descobrir-se, a amadurecer, a desenvolver o seu talento... Uma das parábolas de Jesus é efetivamente sobre o tema dos talentos: esta necessidade da parte de cada um de nós em não soterrar o seu talento, em amadurecer a sua própria vocação. Cada um de nós nasceu com uma bagagem de atitudes e de competências e pode transformar a sua vida.

Percebo a minha evolução como pessoa pensando no facto de que durante muitos anos quis vencer por mim próprio, ao passo que agora estou num momento em que continuo a querer vencer com a mesma intensidade de antes, ou até maior, mas já não por mim e sim pelos jogadores que nunca venceram, quero ajudá-los... Penso muito mais no adepto comum que sorri porque a sua equipa venceu, na semana que vai ter e que será melhor porque a sua equipa venceu. Continuo a ser um “animal de competição”, por assim dizer, continuo a querer vencer como dantes, ou até mais, mas antigamente concentrava-me em mim próprio.

Agora, em vez disso, prevalece a importância de oferecer alegria aos outros. É um pouco o que também eu estou a viver desde que me foi confia­da uma missão muito bela pelo Santo Padre: ajudar a gerir a Biblio­teca, que é um espelho da história da Humanidade, da memória, da cultura... Mas eu acho que o seu trabalho, José Mourinho, o jogo, é algo de humanamente riquíssimo. Roger Caillois, no seu ensaio sobre o jogo e o humano, diz que o jogo é uma espécie de espelho de tudo o que é humano. E, com efeito, se observarmos a dimensão lúdica que o desporto exprime, tocamos em algo de fundamental no humano. As pessoas, por exemplo, os adeptos comuns, quando vão ao estádio, não vão lá apenas para esquecerem, para festejarem, não vão lá somente em busca de uma pequena alegria... mas de algum modo está presente a ambição de tocar em alguma coisa, de ir mais longe, de compreender o mistério da vida, o seu significado. Não sei se isto faz sentido para si...

Sim, faz. Eu sinto isso. No percurso para uma partida, na saída do hotel, na descida do autocarro, na chegada ao estádio, no passeio até ao balneá­rio, na caminhada desde o balneário até ao campo antes do início da competição... há muita espiritualidade em tudo isto, nunca é uma rotina, porque, ainda que se jogue dezenas de vezes no mesmo estádio e se faça sempre o mesmo percurso, é um momento que tem qualquer coisa que não se vê, mas que se sente muito. Julgo que é de uma beleza enorme e julgo que no dia em que deixar de treinar — que espero que não seja em breve — será talvez a coisa de que sentirei mais falta: essa dimensão que me transporta para direções que nunca partilhei com ninguém e que talvez esteja a partilhar hoje pela primeira vez. Caminhar para a partida e falar com Ele...

Falar com Deus?...

Falo com Ele e acabo sempre por dizer: a minha família é mais importante do que isto. Dá-me uma ajuda se tiveres tempo... Mas se a escolha tivesse de ser entre esta partida e o bem-estar das pessoas que amo, não pensaria duas vezes.

No fim de contas, é uma grande partida entre este jogo e o grande jogo da vida, não é verdade?

Exatamente. Há dois meses atingi precisamente aqui em Roma a marca dos mil jogos como treinador. Portanto, agora já estou bem para lá desse número. Ora, não há diferença entre a última partida e a primeira. Este meu lado, que é propriamente meu, faz-me sentir qualquer coisa que nunca é igual. Vou aprendendo com isso, e em consequência com o mundo, mas é algo de muito íntimo. Sem dúvida que o futebol não é, como as pessoas pensam, a minha vida, é apenas uma parte importante da minha vida, mas há uma outra parte que é muito mais importante do que o futebol. Com a máxima humildade, mas ao mesmo tempo querendo manter uma relação íntima com Ele, agrada-me ter uma relação quase de amizade, em que quase nos tratamos por Tu.

Penso que a guerra é um falhanço humano ainda antes de ser político. É a evolução do pensamento humano na direção errada”

Uma das coisas que Manuel Sérgio diz — e creio que esta também seja uma sua herança — é que não acredita na palavra ‘superação’. Às vezes, ouvíamos os desportistas dizerem: é uma escola de superação, atreve-te a superar os teus limites, os teus medos, a ir mais além... Tudo isso é verdade, mas ele diz que a palavra ‘superação’ é inadequada. A palavra justa é ‘transcendência’, que é uma palavra muito mais ampla e que tem a ver sem dúvida com a superação, é a saída de nós próprios, num movimento intencional de trabalho, de projeção, de confiança, mas ao mesmo tempo é uma abertura ao mistério, à plenitude, ao divino, àquilo que pode dar sentido ao homem... E não é por acaso que nestes últimos anos o professor Manuel Sérgio termina todas as entrevistas dizendo que aquilo de que mais se precisa é de Deus. Isso é algo que me toca na relação com ele e sempre que tenho ocasião de ouvi-lo. Acha que esta relação entre superação e transcendência também seja relevante para a sua visão?

É um tema de que, num modo mais abstrato, em certas ocasiões, falo com os futebolistas. Não entro obviamente no campo da religião, até porque tenho diante de mim 25 homens com tradições diversas, diferentes credos, mas eu chamo-lhe o sinal mais, aquele que pode fazer a diferença, uma convicção comum, à qual cada um dirá de si, terá livre-arbítrio. Acredita-se naquilo que se quer, acredita-se mais ou menos no divino, mas o mais vem sempre um pouco daquela área que não se toca, mas que se sente, é abstrato. Julgo, por exemplo, que para a preparação de uma competição de altíssimo nível, que implica pressão, responsabilidade, onde é preciso superar ou transcender, seja preciso mais alguma coisa do que aquilo que tínhamos treinado, para o qual nos havíamos preparado, e esse algo mais julgo que esteja muito ligado à própria espiritualidade, àquilo que fundamentalmente alimenta o tal sinal mais. Esse algo a mais poderá ser até pensarmos todos juntos nas pessoas que desejam fortemente que vençamos. E quem são essas pessoas? Aquelas que amamos, aquelas que nos amam, aquelas que amam o clube e os seus símbolos... Penso que nos momentos-chave devemos procurar no mais profundo de nós e não dependermos exclusivamente da preparação. Não basta o aspeto tático, técnico, físico, mental ou outro... E quando o professor Manuel Sérgio faz essa distinção entre superação e transcendência, mas sem estar dentro daquela que é a operatividade que leva a uma partida, é a isso que ele se refere. É uma pessoa sábia, com um conhecimento vastíssimo e que ensinou muito, deixando uma marca.

Poderemos falar, se permitir, desse sinal mais na sua vida, dessa sua história: soube que quando trabalhava em Leiria tinha uma relação especial com Fátima, era um ponto de referência, e que em Roma passa por São Pedro a caminho do trabalho. Há aqui este espaço, porque é um espaço simbólico, não é apenas um espaço geográfico, é um espaço investido da sensação de uma presença. Sei que, para si, passar por São Pedro é sempre algo de especial. Quer falar um pouco da sua relação com Deus, do seu caminho espiritual, de como se traduz em concreto?

A minha relação com Deus traduz-se no amor que nutro pelos meus entes queridos. Creio que Ele não se zanga por eu orientar o amor que Lhe tenho nesta direção. A minha família, os meus amigos, aqueles que eu amo, aqueles que me amam, aqueles que ainda estão connosco e aqueles que já partiram... É assim que me arrisco a traduzir na prática o meu amor por Deus. Ser solidário até com pessoas que não conheço, no sentido de me preocupar, de procurar ajudar de uma maneira ou de outra...

A Bíblia diz isto na Epístola de João: “Não podemos dizer amar o Deus invisível se não amarmos aquilo que vemos.”

É exatamente isso que eu penso. Se me pergunta se Fátima é especial para mim, a resposta é sim. A Fátima silenciosa, deserta, em que se estabelece uma relação íntima... Sendo uma pessoa mais ou menos conhecida, as outras pessoas aproximam-se, obviamente animadas das melhores intenções, mas infelizmente acabam por perturbar um momento que eu pretendia que fosse só para mim. Por esse motivo sou uma pessoa que visita Fátima durante a noite. Mesmo em Roma, visito muitas vezes São Pedro à noite. A máscara ajuda, a escuridão da noite também.

E o que sente nesses momentos em que está em silêncio?

Estou em silêncio, mas converso muito. Pode ser um pouco paradigmático, e talvez as pessoas que me acompanharam na minha carreira me olhem e não vejam em mim essa pessoa: o futebol é a última coisa de que falo, é a última coisa em que penso, a última coisa pela qual peço alguma coisa... E é exatamente isso que eu estava a procurar dizer. Ser um bom pai, ou procurar sê-lo, porque é difícil de avaliar, só os outros poderão dizê-lo, mas procurar ser um bom pai, um bom marido, um bom filho, um bom amigo... essa tentativa é a maior motivação que uma pessoa pode ter no quotidiano.


CANCIONEIRO No final da conversa, o cardeal Tolentino mostrou a Mourinho um cancioneiro dos séculos XV-XVI que recolhe as “cantigas” medievais (Vat.lat.4803), além de 1200 poemas em língua galaico-portuguesa

Preocupa-o este movimento que se vive no mundo, esta guerra na Europa, com sofrimento e destrui­ção devastadora após dois anos de pandemia? Sentimos que estamos a entrar numa espécie de túnel de desespero...

O Santo Padre Francisco diz que a guerra é um falhanço da Humanidade, dos políticos. Penso exatamente assim, ou melhor, penso que seja um falhanço humano ainda antes de ser político. É um falhanço brutal, é a perda dos princípios ou a falha do seu desenvolvimento, é a evolução do pensamento humano na direção errada entre o que é fundamental e o que o é menos. É algo difícil de explicar. É um falhanço da Humanidade a todos os níveis — é um falhanço nosso.

Como disse o Papa Francisco, estamos todos no mesmo barco, e, portanto, a saída desta situação deve ser uma Humanidade mais solidária, a fim de criar formas de fraternidade, de inclusão, de ajuda recíproca, que permitam construir verdadeiramente um futuro novo, caso contrário é a lógica do mundo velho que triunfa, a lógica da guerra que infelizmente acompanha a história da Humanidade desde há tantos séculos. O Papa Francisco é uma figura inspiradora para si?

É. É uma fonte de inspiração para mim, porque gosto de o ouvir e, sem ter tido a honra de o conhecer, ouço-o e não me canso de o ouvir. Ouço-o e revejo-me na sua simplicidade. Acompanho o “Angelus” dominical pela televisão e penso que se o tivesse na “minha” igreja em Setúbal ouvi-lo-ia do mesmo modo. Este homem “não é o Papa”, é um padre, um pároco de uma nossa pequena paróquia do nosso pequeno Portugal. Vejo aquela simplicidade e acho que ele é capaz de criar empatia com pessoas de fés diferentes da nossa.

Uma última consideração sobre a definição de jogo. O jogo é uma experiência humana, organizada em torno de determinadas regras. Essas regras são técnicas, lúdicas, têm a ver com as modalidades desportivas, mas também são éticas. O desporto é também por isso um paradigma das relações humanas, na verdade a ética é fundamental para o grande jogo que é a vida do mundo, antes de mais como base para o reconhecimento do outro.

Acho que é de uma beleza enorme e que oferece um contributo enorme para as nossas gerações o trabalho que se faz ao nível do jogo antes de se chegar ao desporto profissional. Às vezes, basta observar jovens não muito talentosos e vê-se logo de maneira objetiva que provavelmente não chegarão ao nível máximo. No entanto, a relação que se instaura entre o jogo e os mais jovens é algo que nos traz um contributo absolutamente fantástico. É uma questão educativa, e nas escolas, nas faixas etárias mais baixas, e no desporto de formação, esse deve ser o eixo central do desenvolvimento, porque as crianças que um dia não venham a ser desportistas profissionais serão apaixonadas pelo desporto. Os meninos que não estiverem em campo estarão lá fora. E tudo isso está ligado. O menino que cresce num balneário com os amigos, com os quais se criam ligações fortes no desporto e no jogo, cresce com outras raças, com outras religiões, e quando for adulto essa base estará presente. Um jovem italiano que cresça com um africano que chegou a Itália como refugiado de uma dessas situações que temos pelo mundo, acha que se tornará um dia agressivo, racista e xenófobo nas bancadas? Não o será. A escola e o desporto de formação têm um papel deveras importante.

Tradução Jorge Pereirinha Pires


O FILÓSOFO MANUEL SÉRGIO



A motricidade no centro da experiência do desporto e da vida humana em geral, pessoal e coletiva. Eis o motivo central do pensamento de Manuel Sérgio, um dos pensadores portugueses mais interessantes das últimas décadas. O desporto é entendido como experiência essencial, na qual o ser humano descobre o sentido da sua existência e a relacionalidade. Sérgio obteve a licenciatura em Filosofia na Universidade de Lisboa, tornando-se seguidamente professor associado em Motricidade Humana junto da Universidade Técnica de Lisboa. A sua tese de doutoramento, intitulada “Para Uma Epistemologia da Motricidade Humana”, defende a existência de uma ciência filosófica da motricidade humana, da qual a educação física seria a presciência. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e autor e coautor de 37 livros e numerosos artigos em revistas nacionais e internacionais. Entre os seus títulos devem recordar-se “Uma Reformulação da Ética e Outros Escritos” (2022), “Para um Desporto do Futuro” (2017), “Crítica da Razão Desportiva” (2012). É professor na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. Foi professor na Universidade Fernando Pessoa e no Instituto Universitário da Maia. Entre 2001 e 2009 foi diretor do ISEIT (Instituto Piaget — Almada). É membro fundador da Sociedade Internacional de Motricidade Humana e da Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana. / LUCA M. POSSATI

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A paz antes da justiça


Por
estatuadesal
Viriato Soromenho Marques, 
in Diário de Notícias, 
23/04/2022

Sobre as razões da desordem do mundo, o nosso Padre António Vieira (1608-1697) soube definir com clareza, não só as duas categorias principais que permitiriam substituir o caos pela ordem como também a respetiva prioridade entre elas: "Abraçaram-se a justiça e a paz, e foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço. Porque não é a justiça que depende da paz (como alguns tomam por escusa) senão a paz da justiça" (Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados).



A tese de que é à justiça que cabe criar as condições para a paz, parece ser confirmada tanto pela razão como pela longa experiência da história doméstica dos povos. A injustiça praticada por classes e fações sobre outras pode conviver, temporariamente, numa aparente ausência de conflito, mas nunca como uma paz solidamente ancorada. Contudo, já no plano internacional essa regra não se aplica universalmente. Vejamos o caso da guerra que nos tira o sono. A invasão russa da Ucrânia configura o crime de agressão de um Estado a outro, curiosamente, introduzido no direito internacional depois da II guerra mundial pela ação do jurista soviético Aron Trainin (1883-1957).

Em 2018, o Tribunal Penal Internacional (ICC), que julga indivíduos e não Estados, acolheu esse crime na sua jurisdição, levando com isso à possibilidade de chamar a juízo líderes políticos responsáveis por atos de agressão. Neste caso, a decisão de invasão da Ucrânia poderia ser imputada diretamente a Putin. Esse tema tem sido referido abundantemente no Ocidente. Contudo, com isso corremos o risco de trocar as prioridades. Agora, deveríamos concentrarmo-nos no calar das armas, obtendo uma forma de paz, mesmo que frágil. Na verdade, como escreveu Hobbes, os Estados habitam na margem do brutal "estado de natureza". O direito internacional é imperfeito, pois não é acompanhado de um poder de coação universal. Dos julgamentos já realizados no âmbito de crimes de guerra, de Nuremberga e Tóquio à Jugoslávia, a justiça só foi aplicada aos vencidos.

Pensar que Putin pode ser levado a julgamento implica levar esta guerra até uma vitória sobre a Rússia, com o envolvimento direto das forças da NATO. Certamente, dada a imensa vantagem da NATO em homens e material, a Rússia seria derrotada no campo de batalha convencional. Contudo, a probabilidade de Putin responder ao que designa repetidamente como "ameaça existencial", passando ao uso de armas nucleares táticas, é demasiado elevada. Estaremos prontos para uma escalada de destruição capaz de incendiar pelo menos a Europa, comprometendo a vida de centenas de milhões de pessoas? É a pergunta que nos deveremos colocar, bem como aos nossos governos.


Até 1989, ao contrário de hoje, não era preciso explicar aos políticos que quando estão envolvidas superpotências atómicas não podem existir vencedores, apenas vencidos. O apoio militar da NATO à Ucrânia numa guerra defensiva foi decisivo para confirmar a sua irrecusável soberania. Prolongar o conflito, para exaurir uma Rússia com visíveis fragilidades, significará mais vidas perdidas e um risco de escalada.

Chegou o tempo de a diplomacia parar a espiral de sofrimento. A paz tem, neste caso, prioridade sobre a justiça, e deve dar-lhe tempo. Perseguir incondicionalmente a justiça pela força das armas, seguindo até ao fim o lema de "faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça" (fiat justitia, et pereat mundus) apenas conduzirá à mais desoladora paz possível, aquela em que os sobreviventes terão inveja dos que pereceram.

Professor universitário

quinta-feira, 21 de abril de 2022

"Vale a pena estarmos integrados na República?"


Esta foi uma pergunta do Senhor Presidente do governo regional da Madeira (Dnotícias - edição de hoje). Trata-se de uma quase "proclamação oficial", que não tem nada de inocente, a poucas horas das comemorações do 25 de Abril. Mais do que uma proclamação, eu diria que se trata de uma provocação. Muitos já estão habituados a estes disparos de circunstância ao jeito daquele fraquinho que olha para o sujeito com quase dois metros e pede aos que o rodeiam que o agarrem, para não desfazer o seu putativo opositor. É um paleio com muitos anos e que volta e meia é metido a martelo no discurso político. Infelizmente!




Custa-me aceitar este tipo de exteriorização, desde logo, por quatro motivos: primeiro, porque o Senhor Presidente do governo é membro do Conselho de Estado e daí que, por todos os motivos, lhe sejam acrescidas as responsabilidades de contenção verbal; em segundo lugar, porque um político deve nortear a sua acção pelo diálogo saudavelmente teimoso nos vários dossiês, mas nos espaços próprios, de tal forma que da contraposição e contradição das ideias possa resultar caminhos de solução; em terceiro lugar, olhando para trás, a monumental dívida acumulada de seis mil milhões de euros (hoje cinco mil milhões, salvo erro), onde sobressai uma contabilidade paralela, que não concede margem para cantar de galo; em quarto lugar, finalmente, quando se questiona a possibilidade deste deixar de ser um espaço territorial português, o político deve assumir, com coragem, com que economia viveremos, quem suportará, por exemplo, a segurança social, todas as instituições de segurança, a Justiça, a Educação, a Saúde, enfim, tudo o que constitui, e bem, neste momento, responsabilidade do Estado.
Melhor seria o diálogo assertivo, olhos nos olhos, sem azedumes para consumo local, porque, pergunta-se, o que seria da Madeira, nos seus "mecanismos de desenvolvimento", se não fosse o Estado a que pertencemos e todas as negociações europeias em prol desta terra!
Ilustração: Google Imagens - Pin de Isabel Neves.

terça-feira, 19 de abril de 2022

A bomba financeira que ameaça ser atómica


Por
In AbrilAbril, 
19/04/2022

Imagem do filme de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove (1964)

Nem tudo é o que parece, e nem tudo tem o resultado que diz ter. A petição assinada, entre muitos, pelos economistas Thomas Piketty e Joshep Stiegliz, apelando para que seja criado um registo mundial dos bens, a propósito da opacidade existente nas fortunas dos oligarcas russos, vai muito além do que é dito. «O caso dos oligarcas russos fala por si» na ocultação de fortunas dentro de estruturas opacas, dizem os economistas, numa carta publicada hoje no diário britânico The Guardian e dirigida aos líderes do G20.


Os oligarcas russos detêm «pelo menos mil milhões de dólares de riqueza no estrangeiro», segundo estimativas incluídas na carta, assinada pelos franceses Thomas Piketty e Gabriel Zucman, bem como pelo prémio Nobel norte-americano Joseph Stiglitz, todos membros do grupo de reflexão Comissão Independente para a Reforma Fiscal das Empresas Internacionais.

Estas fortunas estão frequentemente escondidas «em empresas offshore cujos verdadeiros proprietários são difíceis de determinar», afirmam, acrescentando que «é precisamente este muro de opacidade que os esforços dos países que os pretendem castigar estão agora a enfrentar».

Um registo mundial de bens permitiria não só saber para onde fugiu o dinheiro dos oligarcas, mas também impedir a evasão fiscal de grande parte dos capitalistas e especuladores financeiros que desviam dinheiro dos seus respectivos países.
As sanções servem para alguma coisa?

Muitos comentadores garantem que as sanções à Rússia estão a ter um forte efeito na economia desse país e que o seu objectivo é forçar o governo de Moscovo a parar a sua acção militar na Ucrânia. Mas serão esses os principais efeitos que vão ter?

«Para ser viável, o embargo total ao comércio com a Rússia teria de resultar numa enorme contracção da economia russa, sem que os custos para a economia da União Europeia (UE) fossem significativos. Ora, não é esse o caso. Para reduzir um euro de PIB da Rússia a UE tem de estar disposta a sacrificar vários euros de actividade económica "doméstica", porque a economia da UE (de cerca de 14,4 mil milhões de euros em 2021) tem mais a perder porque é muito mais rica e de muito maior dimensão do que a economia da Rússia (de cerca de 1,5 mil milhões de euros, à cotação do rublo no final de 2021). Por exemplo, se, em resultado das sanções económicas, em 2022, o PIB real da UE e da Rússia caísse 3% e 20%, respectivamente, a queda do PIB da UE (em euros de 2021) seria cerca 44% superior à queda do PIB da Rússia (em rublos e à taxa de câmbio de 2021). Ou seja, mesmo com um impacto das sanções proporcionalmente muito superior para a Rússia, as perdas globais na actividade económica para a UE seriam significativamente superiores às que seriam registadas pela Rússia. Além disso, as reacções populares ao aumento da inflação e do desemprego serão provavelmente mais difíceis de gerir politicamente nas democracias ocidentais», escreve o economista Ricardo Cabral, no jornal Público.

Para além disso, é quase impossível que a queda do PIB da Rússia seja tão drástica como ambicionado pelo Ocidente, porque «a China e a maior parte dos países do mundo não irão aplicar sanções económicas à Rússia. A Rússia registou um excedente externo de 190 mil milhões de dólares em 2021, muito superior, por conseguinte, ao valor das exportações de petróleo e gás natural da Rússia para a UE, que foram de cerca de 99 mil milhões de euros em 2020. Mesmo que a UE deixasse de importar petróleo e gás natural da Rússia, a Rússia continuaria com excedente externo, o que lhe permitiria estabilizar a cotação do rublo e continuar a financiar as importações que a sua economia necessita, adquirindo-as a fornecedores de outros países», acrescenta esse economista.

Finalmente, as sanções podem ter efeitos não previstos na economia mundial tal como a conhecemos, que podem rebentar nas mãos daqueles que as decretaram. Comecemos por analisar o que está em causa neste conflito, para além daquilo que é óbvio.
Os pais da invasão e das sanções

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi desejada, por muitos, para além do presidente russo, Vladimir Putin. Nos relatórios da RAND Corporation, uma instituição que trabalha para o governo dos Estados Unidos da América (EUA) defendia-se a vantagem de empurrar os dois países de Leste para uma guerra que desgastasse a Rússia, e que tivesse como consequência o corte das importações de gás russo pelos países da UE, que seria substituído por gás de xisto norte-americano, três vezes mais caro e mais poluente.

Até agora, os ganhos dessa estratégia da Casa Branca são notáveis: unificação dos países da NAT, sobre a batuta da administração de Joe Biden, suspensão do gasoduto Nord Stream 2, e o enfraquecimento internacional da Rússia.

O plano da administração de Biden que apostou numa guerra convencional limitada entre a Rússia e a Ucrânia era há muito conhecido.

No relatório «Extending Russia», da RAND Corporation, encomendado pelo governo e o exército dos EUA, traça-se, nas suas páginas, uma estratégia de confronto crescente:

«As medidas mais promissoras para desgastar a Rússia são as de abordar directamente as vulnerabilidades, ansiedades, e pontos fortes, explorando áreas de fraqueza.»

«Continuar a expandir a produção de energia dos EUA sob todas as formas, incluindo as energias renováveis, e encorajar outros países a fazer o mesmo, irá maximizar a pressão sobre as receitas de exportação russas e, por conseguinte, sobre as receitas nacionais e orçamentos de defesa».

«O aumento das armas dos EUA e o aconselhamento ao exército ucraniano é a mais viável das alternativas geopolíticas consideradas, mas qualquer esforço deste tipo teria de ser cuidadosamente calibrado para evitar um conflito generalizado.»

«Como já foi mencionado, todas as medidas para confrontar a Rússia incorrem em cerca de grau de risco. Por isso, a melhoria da postura de dissuasão dos EUA na Europa e o aumento das capacidades militares dos EUA têm de ir de mãos dadas com qualquer movimento para pressionar a Rússia, como uma forma de cobertura contra a possibilidade de as tensões com a Rússia se agravarem em conflito.»
Em causa o privilégio exorbitante dos EUA

Depois de a guerra começar, o problema de tal estratégia é que ela se pode voltar contra quem desejou e preparou este conflito. As sanções podem implodir a ordem monetária existente, baseada no dólar, e em menor peso no euro, como reservas mundiais de valor. Se isso acontecer, os EUA perderão o «privilégio exorbitante» de poder ter uma espécie de poder de Midas de criar valor. Os riscos da perda desse privilégio, que se calcula que dá uma substancial vantagem económica e permite os EUA endividarem-se quase sem risco, pode levar o mundo a um conflito nuclear.

O antigo funcionário da Reserva Federal e do Departamento do Tesouro dos EUA, agora estratega do banco Credit Suisse (CS), Zoltan Pozsar, escreveu que os EUA se encontram numa crise de mercadorias que está a dar origem a uma nova ordem monetária mundial que acabará por enfraquecer o actual sistema baseado no dólar e conduzir a uma inflação mais elevada no Ocidente.

«Esta crise não tem paralelo com nada que tenhamos visto desde que o Presidente [Richard] Nixon tirou o dólar americano do ouro em 1971», escreveu Pozsar.

Negociado por 44 países, quando a Segunda Guerra Mundial estava a terminar, o acordo de Bretton Woods (nomeado pelo local da conferência em Bretton Woods, New Hampshire) fixou o ouro como base para o dólar americano, com outras moedas então fixadas no dólar americano. Esta estrutura começou a desgastar-se nos anos 60 à medida que os défices comerciais dos EUA se tornaram demasiado grandes para serem ignorados, e desmoronou-se completamente em 1971, quando os EUA abandonaram a ligação entre o dólar e o ouro.

Como a era inicial de Bretton Woods (1944-1971) foi apoiada por ouro, e Bretton Woods II (1971-presente) apoiada por «dinheiro interno» (essencialmente papel do governo dos EUA), disse Pozsar, Bretton Woods III será apoiada por «dinheiro externo» (ouro e outras mercadorias).

Pozsar marca o fim do actual regime monetário no dia em que as nações do G7 apreenderam as reservas cambiais da Rússia após a invasão da Ucrânia por este país. O que antes se pensava ser sem risco tornou-se com risco, uma vez que ficou claro que essas reservas não são seguras e podem ser confiscadas sempre que os ocidentais assim o quiserem.

É visível que esta guerra é vista como um balão de ensaio no seu conflito mais importante dos EUA com a China. O problema é que a acção da UE e dos EUA acaba por reforçar a parte da identidade asiática da Rússia e fazer com que ela se alinhe, de uma forma económica e política, com a China. Num tempo em que o desenvolvimento mundial tende a ter como pólo fundamental a Ásia, esse alinhamento do maior país do mundo com as maiores reservas de matérias-primas do planeta fragiliza ainda mais o domínio global do imperialismo norte-americano.

Durante mais de uma geração, os diplomatas americanos mais proeminentes alertaram para o que pensavam representar a derradeira ameaça externa: uma aliança da Rússia e da China dominando a Eurásia. As sanções económicas e o confronto militar da América estão a conduzir outros países para a sua órbita eurasiática emergente.

Esperava-se que o poder económico e financeiro americano evitasse esse destino. Durante o meio século desde que os Estados Unidos saíram do ouro em 1971, os bancos centrais mundiais operaram segundo o Padrão do Dólar, mantendo as suas reservas monetárias internacionais sob a forma de títulos do Tesouro dos EUA, depósitos bancários dos EUA e acções e obrigações americanas. O padrão que permitiu à América financiar as suas despesas militares estrangeiras e a aquisição de investimentos de outros países simplesmente através da «impressão» de dólares. Os défices da balança de pagamentos dos EUA acabam nos bancos centrais dos países com excedentes comerciais, como suas reservas, enquanto os devedores do Sul Global precisam de dólares para pagar a sua dívida externa e comprar produtos tecnológicos aos países desenvolvidos.

«Este privilégio monetário permitiu à diplomacia dos EUA impor políticas neoliberais ao resto do mundo, sem ter de usar muita força militar própria, excepto para garantir o petróleo do Médio Oriente», defende o economista Michael Hudson.

A recente escalada de sanções dos EUA que bloqueiam a Europa, Ásia e outros países do comércio e investimento com a Rússia, Irão e China impôs enormes custos de oportunidade – o custo das oportunidades perdidas – aos aliados dos EUA. E a recente confiscação do ouro e das reservas estrangeiras da Venezuela, Afeganistão e agora da Rússia pôs fim à ideia de que a detenção de reservas em dólares, libras esterlinas ou euros são um porto de investimento seguro quando as condições económicas mundiais se tornam instáveis.

Os diplomatas americanos escolheram acabar, eles próprios, com a dolarização internacional, enquanto ajudam a Rússia a construir os seus próprios meios de produção agrícola e industrial auto-suficientes. Este processo de fractura global já se arrasta há alguns anos, começando com as sanções que bloqueiam os aliados americanos da NATO e outros satélites económicos do comércio com a Rússia. Para a Rússia, estas sanções tiveram o mesmo efeito que as tarifas de protecção teriam tido.

As elites políticas e económicas da Rússia estavam demasiado encantadas com a ideologia do «mercado livre» para tomar medidas para proteger a sua própria agricultura ou indústria. Os Estados Unidos forneceram a ajuda necessária, impondo à Rússia a auto-suficiência interna (através de sanções).

A Rússia está a descobrir (ou está à beira de descobrir) que não precisa de dólares americanos como suporte para a taxa de câmbio do rublo. O seu banco central pode criar os rublos necessários para pagar os salários internos e financiar a formação de capital. As confiscações americanas podem assim levar finalmente a Rússia a acabar com a filosofia monetária neoliberal, como Sergei Glaziev tem vindo a defender há muito tempo a favor das MMT (Teoria Monetária Moderna).
Rumo a uma nova ordem monetária internacional?

A Rússia poderá ter deliberadamente sacrificado uma parte muito significativa das suas reservas internacionais para, com esse sacrifício, atingir o dólar.

«O congelamento de cerca de 300 mil milhões de dólares de reservas da Rússia em diversas divisas, entre as quais o dólar, parece demonstrar que os activos denominados em dólares apresentam elevado risco financeiro. Em particular, de ora em diante, os bancos centrais da generalidade dos países do mundo, nomeadamente dos países com grandes excedentes externos, estarão obrigados a considerar explicitamente o risco da aplicação de sanções às suas reservas em dólares e em euros e a diversificar essas reservas. Esse processo de diversificação de reservas levará a prazo à depreciação do dólar face a outras divisas internacionais, processo esse que se auto-alimenta com especuladores financeiros a anteciparem esse processo e a apostar contra o dólar», considera o economista Ricardo Cabral.

«Há muitas décadas que a Reserva Federal e o Tesouro lutam contra o regresso ao padrão de ouro, mantendo o papel do dólar nas reservas internacionais. Mas como irão a Índia e a Arábia Saudita encarar as suas reservas em dólares tentando forçá-los a seguir a "ordem baseada em regras" dos EUA, em vez do seu próprio interesse nacional? Os recentes ditames americanos deixaram poucas alternativas, a não ser começar a proteger a sua própria autonomia política através da conversão das suas participações em dólares e euros em ouro, como um activo livre de responsabilidade política de ser mantido refém das exigências cada vez mais dispendiosas e perturbadoras dos EUA», defende, por seu turno, o economista Michael Hudson.

É provável que a China veja uma oportunidade, literalmente, de ouro em se afastar do dólar americano.

A China está à procura de alternativas ao dólar americano como moeda de reserva, após as nações ocidentais terem congelado os activos estrangeiros do banco central da Rússia, disse à comunicação social Kenneth Rogoff, antigo economista chefe do FMI, a 1 de Março passado.

«É uma medida absolutamente radical tentar congelar os bens num grande banco central. É um momento de ruptura», afirmou Rogoff, professor na Universidade de Harvard.

«É uma coisa importante», acrescentou Rogoff. «Quer dizer, se quiserem olhar para o quadro a longo prazo do domínio do dólar na economia global, acreditem em mim, a China está a olhar para isto. Eles têm, não sei, três mil milhões de dólares em reservas.»

Segundo defende o economista Francisco Louçã no jornal Expresso, as sanções estão a atingir o processo de globalização financeira, tal como o conhecemos e arriscam-se a dividir a Terra em dois planetas financeiros separados.

«As sanções determinam mudanças estruturais no mapa dos poderes mundiais, ainda mais do que soluções emergenciais. O que elas atingem é a financeirização, o coração da globalização. É o caso de duas das principais medidas que foram adoptadas desde os primeiros dias do conflito: a aceitação pela UE da partilha da tutela legal do sistema Swift com as autoridades norte-americanas (o Swift é a “arma nuclear na finança”, dizia Le Maire, o ministro francês das Finanças) e a retenção das reservas da Rússia depositadas no ocidente (segundo o historiador Adam Tooze, “se reservas de um banco central de um país do G20, confiadas a outro banco central do G20, deixam de ser sacrossantas, nada o é no mundo financeiro”). Em ambos os casos, as medidas criam desconfiança acerca da circulação de capitais e da função do dólar e do euro. Doravante, nenhuma dessas moedas será um meio de circulação universal, posto que a estratégia das sanções é criar dois planetas financeiros separados».
Do nacionalismo como criador dos confrontos

A guerra serve também como multiplicador dos nacionalismos, o triunfo desta dinâmica ideológica em termos mundiais, torna o mundo mais perigoso e os conflitos inter-imperialistas mais prováveis. O nacionalismo e a guerra são receitas conhecidas para os poderosos deste mundo ultrapassarem crises políticas e económicas, manipulando as populações de forma a que sejam incapazes de verem quem as oprime e explora de facto.

Finalmente, o Ocidente, habituado ao seu domínio imperialista solitário, não percebeu uma questão evidente, o mundo não é constituído apenas pelos EUA, Europa e Japão. Mesmo na condenação, dita generalizada, na ONU da acção dos russos na Ucrânia, verifica-se que os países que representam mais de metade da população mundial se abstiveram ou votaram contra.

Como publica a revista The Economist, normalmente países como a China, Índia, Paquistão, África do Sul não têm votado favoravelmente as sanções à Rússia. No continente africano, cerca de metade dos países não tem sido favorável às sanções do Ocidente.

«Na África Austral, muitos países vêem a Rússia como o sucessor da União Soviética, que armou e treinou os exércitos guerrilheiros que combateram as potências coloniais e os regimes segregacionistas. Tal nostalgia explica em parte a guinada da África do Sul em direcção à Rússia durante a presidência de Jacob Zuma, de 2009 a 2018. Mas a relação da África do Sul com o Ocidente também foi tensa devido ao bombardeamento da Líbia. Em 2015, figuras proeminentes do Congresso Nacional Africano (ANC) publicaram um documento de política externa lamentando o colapso da União Soviética, porque tinha "alterado completamente o equilíbrio de forças a favor do imperialismo", ou seja, a América e o Ocidente», escreve o The Economist.

Este posicionamento não se fica pela Ásia e África. Em finais de Março, Sergei Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, afirmou que certos países «nunca aceitariam a aldeia global sob o comando do xerife americano». Referindo a Argentina, Brasil e México, entre outros, acrescentou: «Estes países não querem estar numa posição em que o Tio Sam lhes ordene que façam alguma coisa e eles dizem "Sim, senhor"».

Na contagem decrescente para uma guerra nuclear

Esta rápida transformação política e económica faz com que esta guerra na Ucrânia possa descarrilar num conflito global e atómico, dado os interesses em presença.

É pelo menos o que consideram Ted Postol, físico e especialista em armas nucleares, bem como professor emérito do MIT e comentador Robert Scheer na edição da Scheer Intelligence. Tendo leccionado na Universidade de Stanford e Princeton antes do seu tempo no MIT, Postol foi também conselheiro científico e político do chefe das operações navais e analista do Gabinete de Avaliação Tecnológica.

Postol toca todos os sinais de alarme imagináveis em relação à retórica crescente, tanto nos Estados Unidos como na Rússia, sobre armas nucleares. O professor do MIT afirma, em termos inequívocos, que embora não fosse de modo algum justificáveis os ataques da Rússia à Ucrânia, que tanto ele como Scheer descreveram como crimes de guerra, é imperativo considerar o papel da NATO na actual crise, a fim de compreender a ameaça nuclear. Explicando que os EUA devem aprender urgentemente com o passado e o presente, se quisermos evitar uma guerra nuclear no futuro a curto ou longo prazo, Postol lamenta a relutância dos líderes políticos e dos meios de comunicação social dos EUA em reflectirem sobre as acções do país.

«"Diga-nos, do que estamos a falar aqui?", pergunta Scheer ao seu convidado: "Estamos a falar de Hiroshima e Nagasaki para todas as cidades da América?"»

«Estamos a falar de um muro de fogo que envolve tudo à nossa volta à temperatura do centro do sol», adverte solenemente Postol.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Programa 2022-2026


Por
João Abel de Freitas, 
11 Abril 2022

A saída para a crise energética está em encontrar e negociar uma estratégia europeia para a energia entre os Estados-membros. E o que está a acontecer é exactamente o contrário.



1. Em artigo de opinião anterior e comentando aqueles muitos que escreviam ou diziam “que António Costa, com esta sua maioria absoluta, tem todas as condições para executar o Plano de António Costa”, mas nada nos diziam sobre o conteúdo desse mesmo plano, designadamente na sua vertente económica, de maneira que quem lia os escritos ficava no mais completo vazio, então, escrevi: “É fundamental que o Plano para a Legislatura contemple e dê relevo a linhas de fundo como a demografia, a água, a energia e a reindustrialização, em termos de actuação imediata, mas sobretudo de prospectiva”.

Não inventei nada. Limitei-me a colher algumas ideias, com que concordo, do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o plano contratualizado com a União Europeia (UE) e com prazo de execução até 2026, sob pena de se perderem os dinheiros da tão conhecida “bazuca”. A propósito, a UE devia ponderar seriamente o deslizamento por mais um ano de vigência, dados os atrasos burocráticos inerentes aos seus órgãos de decisão e a guerra Rússia-Ucrânia.

2. Depois, vem a tomada de posse do Governo e o Presidente da República, no seu discurso, cria um facto político, o de que a legislatura é para ser levada até ao fim.

Fazer de um simples rumor um facto político é, em minha opinião, uma saída infeliz. Até parece que tinha falta de assunto para marcar palco. A este respeito, houve quem considerasse a peça do discurso uma das intervenções menos conseguidas do Presidente até ao presente.

Debate

3. Conhecido e debatido o Programa do Governo na quinta e sexta da semana anterior, o documento encontra-se pronto para hibernar numa prateleira, só lhe faltando colocar o laço. Provavelmente, alguém já terá dado esse passo.

O debate na Assembleia foi “rico”, não pelo conteúdo, infelizmente, porque pouco ou nada se avançou no “como” fazer progredir o País, mas pelos recados disparados (alguns com humor) em várias frentes pelos intervenientes, sendo que até Marcelo Rebelo de Sousa recebeu o seu de quem de direito: “Nunca abandonámos o país, não é agora que o faremos”; “Estarei cá quatro anos e meio”, afirmou António Costa.

Duas ou três notas sobre o Programa do Governo

4. Como o próprio primeiro-ministro avançou, o programa apresentado a debate na Assembleia da República é, por tradição, no PS, o programa eleitoral.

Tem alguma lógica formal, é o programa ganhador, mas poderia, pelo menos, ter sido completado com indicadores precisos que nos permitissem visionar a direcção e os objectivos a atingir ao longo dos quatro anos e seis meses de legislatura e ainda a indicação dos Ministérios que interagem na operacionalidade de cada eixo programático. Isto tornaria um programa mais sólido, mais instrutivo e, sobretudo, de maior facilidade de acompanhamento.

O programa em si não peca pela estrutura. Começa bem com o capítulo de Boa Governação, percorrendo os 4 Desafios Estratégicos que, de algum modo, decorrem do conteúdo do PRR. Mas para limitar-se apenas a isto, poderia ter sido simplificado a 40% da dimensão apresentada e ficava claro na mesma e talvez atraísse mais leitores.

O programa eleitoral deveria ter sido desbastado, pois não passa de um pró-forma institucional com impacto a tender para zero, como se viu. Serve apenas para enunciar boas intenções da parte do Governo e suscitar críticas dos partidos que pouco ou nada acrescentam. Embora tenha de existir, nada trouxe de elucidativo ao país.

Uma Assembleia da República reunida e a funcionar em circuito fechado.

Poderia ser outro, o modelo?

5. Certamente, embora nunca desligado de todo das eleições e então vocacionado e centrado em frentes estruturantes da sociedade portuguesa do futuro.

No momento presente, a grande frente estruturante, para além das de natureza social como a saúde e a habitação, a mais estruturante de todas é a frente energética. É esta que está a condicionar fortemente o desenvolvimento e a complicar a vida das pessoas e das empresas pela sua descoordenação total ao nível europeu. Portugal encontra-se atado de pés e mãos pela UE que não tem rasgo de pensamento. Pior, tem dissidências profundas internas e quase diria eternas, para definir essa frente que interfere com tudo.

A guerra Rússia-Ucrânia veio pôr a nu esta realidade. Mas a situação da UE, sem barco e sem rumo, não se ficou a dever à guerra. Já existia de há muito, fruto de outra guerra: a de grupos patronais e governos.

Muito antes desta guerra, havia a crise dos preços e não foi o aumento de preços do gás, do petróleo e do carvão na origem (Rússia) que fez disparar a sua subida vertiginosa no mercado europeu. Os disparos continuados devem-se a vários factores, entre eles, a especulação dos grandes grupos da energia.

Chega a guerra e os políticos europeus tentam atribuir-lhe as culpas da incapacidade da Europa nunca se ter entendido para encontrar soluções de fundo. O tipo de sanções económicas só vem agravar a situação e provocar descontentamento na população, cada vez mais ampliado.

Aguardemos que não haja surpresa em França na segunda volta, proveniente do descontentamento social reinante, pois são situações de crise económica que ao longo da história têm provocado catástrofes políticas.

6. A Europa está a transitar de uma dependência para outra pior, pior em qualidade, pior porque mais cara, com desgastes enormes na economia, no emprego e na degradação do nível de vida. Estamos numa fuga de dependência para outra: agora dos EUA. A Europa a deixar-se manipular contra os interesses dos seus povos.

7. A saída para a crise energética não é essa. A saída está em encontrar e negociar uma estratégia europeia para a energia entre os Estados-membros. E o que está a acontecer é exactamente o contrário, contra tudo o que tem vindo a defender a União, inclusive no campo da descarbonização, com o maior recurso ao carvão, ao petróleo e ao gás para a produção de electricidade.

Por conseguinte, um novo padrão de Programa de Governo para o desenvolvimento e mudança da estrutura económica social do País, que defendo, implicaria a concentração da acção em três ou quatro linhas de fundo, com a energia e a saúde em primeira mão e a habitação, aliás, um dos pilares importantes do Estado Social.

Um programa de dimensão europeia para a energia, bem pensado e estruturado pelo governo português como forma de pressionar a União Europeia, é a saída e um contributo de pressão. Se a Península Ibérica agir em uníssono, melhor ainda.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 12 de abril de 2022

O triunfo da morte


Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
09/04/2022

Começo por dar os meus rasgados elogios ao Miguel Sousa Tavares. Contra o unanimismo acéfalo e a critica dos inquisidores ainda há quem saiba pensar e tenha coragem de enfrentar a turba. Sim, porque a turba se exalta perante os "trânsfugas" e já parte para a ameaça, eu que o diga. Bem hajas, MST. - Estátua de Sal, 09/04/2022)



Alguma coisa de estranho se deve estar a passar comigo: eu olho para as notícias e as imagens de Bucha e a minha primeira e única reacção é pensar: “É preciso evitar a todo o custo que isto se volte a repetir. É preciso parar imediatamente com esta guerra sem sentido, com a destruição de cidades e casas, com a morte de civis e crianças, em nome de nada que o justifique. Como é possível, estarmos a assistir a isto, dia após dia, sem que os dirigentes mundiais façam o possível e o impossível para acabar com este pesadelo?”

Mas parece que só eu e uma minoria de ‘pacifistas’ — que agora é um termo pejorativo — pensamos assim. Logo após a difusão das imagens mostradas pelos ucranianos à imprensa ocidental, os principais dirigentes dos países da NATO reagiram imediatamente com a promessa de enviar mais armas para a Ucrânia e decretar mais sanções à Rússia, enquanto que o secretário-geral da NATO, Stoltenberg, dizia anteontem duas coisas reveladoras: uma, que há vários anos que a NATO vem dotando a Ucrânia de armamento sofisticado e treinando as suas Forças Armadas, o que quer dizer que já a tratava como membro de facto e já esperava a guerra; e outra, que as opiniões públicas deveriam estar preparadas para uma guerra longa de meses ou até mesmo de anos — música para os ouvidos dos fabricantes de armas, já sobrecarregados com encomendas para que cada país membro cumpra os 2% do PIB em despesas militares.

Aos ‘pacifistas’ — isto é, aos que estupidamente, antes e depois da guerra começar, insistem em defender uma solução pacífica, independentemente de saber de quem é a culpa ou quem é o invasor — contrapõem-se os ‘moralistas’, os eticamente puros, entre nós representados por aqueles que, confortavelmente entrincheirados atrás do seu computador, adoptam a atitude bem portuguesa do “agarrem-me senão eu mato o Putin”. Embora convenha distinguir duas categorias entre estes últimos: há os que, apesar de tudo, reconhecem que até com o Diabo é preciso negociar, mas só depois de o vencer — o que remete para a solução Stoltenberg; e há os eticamente intransigentes, os puros entre os puros, para quem, à partida, está excluída qualquer negociação com um ‘assassino’ — é a solução Biden, que, como se imagina, tem historicamente registado inúmeros acordos de paz e poupado incontáveis vidas. Entre estas duas variantes ‘moralistas’ flutua o grosso de uma opinião pública que, contraditoriamente, é muito fácil a mobilizar-se contra a barbárie que vê nos écrans (quem o não é?), mas predisposta a aceitar a continuação dessa mesma barbárie em nome do castigo ético ao invasor — cujas consequências, por ora, apenas os ucranianos sentem na pele.


Mas eu não sou um pacifista por profissão de fé: se o fosse, teria de ser contra a existência de Forças Armadas e não sou. Aceito a tragédia das guerras quando elas são justas e são justas quando são inevitáveis. Quando, por exemplo, como sucede agora na Ucrânia ou como sucedeu na 1ª Guerra do Golfo, um país se defende da invasão injustificada de outro. Mas não engoli guerras feitas por encomenda de fabricantes de armas ou por orgulho imperial, como o foram a 2ª Guerra do Golfo, desencadeada contra a ONU, sob um falso pretexto e com falsificação de provas, ou a guerra da NATO contra a Sérvia, apenas para caçar Slobodan Milosevic, a mais cobarde guerra até hoje, em que uma cidade foi bombardeada sistematicamente a partir do céu sem que os atacantes jamais vissem o inimigo ou arriscassem uma única baixa. Porém, seja qual for o lugar em que nos situemos e seja uma guerra justa ou injusta, chega um ponto (de preferência antes de ela começar) em que o que está em causa é deter a loucura humana, perceber que, qualquer que venha a ser o seu desfecho, ele será sempre devastador. E este é o caso da guerra na Ucrânia.

Esta guerra não apenas está a destruir fisicamente a Ucrânia e a demolir paulatinamente todos os alicerces em que se fundou o sistema que garantiu a paz na Europa durante 70 anos. Perante o entusiasmo irreprimível de alguns, vamos também a caminho do que já chamam a “nova Guerra Fria” ou o “regresso à História” (como se só houvesse História em ambiente de guerra), e a que o Papa Francisco chamou “a loucura do rearmamento”. O caso alemão é eloquente: da noite para o dia, sem sequer debate interno e perante o aplauso de todos os seus parceiros europeus, a Alemanha decidiu quebrar o tabu do desarmamento e passar também a gastar 2% do PIB em Defesa. A maior potência económica europeia, até aqui desarmada, vai tornar-se também uma potência militar (logo depois, inevitavelmente nuclear), no coração da Europa. É verdade que hoje a Alemanha é um país democrático, governado por democratas desde o pós-guerra, mas é impossível não sentir um arrepio pensando no que está para trás e, sobretudo, nestes tempos de nacionalismos crescentes, pensando na hipótese de um dia a AfD chegar ao poder numa Alemanha armada e nuclearizada.

Pois continuem lá os meninos à roda da fogueira, a entreterem-se com a sua querida guerra e os seus altos valores éticos e bélicos, que facilmente haverá quem lhes agradeça. Não os mortos da Ucrânia, certamente; mas os fabricantes de morte e os negociantes dos despojos

Mas há ainda a vertente económica da guerra, que os ‘moralistas’ gostam de descartar como considerações ‘egoístas’. Veremos a prazo como esse ‘egoísmo’ representa afinal a defesa de um número infinitamente maior de vidas humanas (sim, de vidas) do que aquelas que estão em causa na Ucrânia — não tanto na Europa rica, mas nos lugares onde aquilo que de mal fazem os ricos tem sempre consequências trágicas: em África, na Ásia, nos países pobres da América Latina. Voltemos ao caso alemão: vão gastar 2% do PIB em despesas militares; mais 1,5% se, como tudo o indica, tiverem de prescindir do gás e do petróleo russos, de acordo com um estudo feito por um grupo de economistas ‘optimistas’ (tenho algumas prateleiras de estantes lá em casa com estudos de economistas destes, numa secção a que chamo “cemitério das ideias brilhantes”); e devem ter de vir a gastar mais 0,5% em ajuda à reconstrução da Ucrânia e a financiar a sua adesão à UE. Tudo somado, estamos a falar de 4% do PIB alemão, a ‘locomotiva’ económica da Europa. Todos os países, como Portugal, cujas economias são, por sua vez, altamente dependentes das compras alemãs, vão sofrer a sério. Já vamos com a inflação acima dos 5%, mas ainda não vimos nada. Outros candidatos ao meu cemitério particular acham que nós, portugueses, vamos resistir, graças à importação de petróleo americano a ‘preços de amigo’, graças ao Terminal de Sines e ao sempiterno turismo. Desiludam-se, vamos ganir. Vamos todos suplicar por paz.

Mas há mais e pior, excepto para aqueles que fazem parte da categoria dos “sonâmbulos caminhando para o abismo”, como os classificou António Guterres. Uma das imediatas consequências da guerra na Ucrânia é o abandono, puro e simples, das metas do Acordo de Paris e dos documentos com força de lei internacional assinados ainda há poucos meses na Cimeira do Clima de Glasglow, no que se refere à limitação da emissão de gases com efeito de estufa. Para simplificar, recordo que, de acordo com o que foi estabelecido, até 2025 todas os grandes emissores de gases terão de ter atingido o topo das suas emissões, começando a cortá-las a partir daí drasticamente, de modo a conseguir que o planeta não aqueça mais do que 2 graus Celsius até final do século — o limite de pré-catástrofe. E, para tal, o que se convencionou foi que se começaria por encerrar as centrais a carvão, a mais poluente fonte de energia fóssil. Ora, numa atitude de grande coragem, e em reacção ao massacre de Bucha, Bruxelas acaba de cortar a importação de carvão russo para a Europa. Sabem o que isso significa? Luz verde para a reactivação das centrais a carvão que já tinham sido encerradas na Alemanha e na Inglaterra, para a construção de novas centrais em vários países e para a proliferação das centrais polacas. Isto, depois de a energia nuclear já ter sido considerada ‘energia verde’ para efeitos de beneficiar de verbas dos PRR ou de não se ter falado sequer em cortar um dólar que fosse aos quase 6 biliões de dólares de subsídios a favor das indústrias do carvão, petróleo e gás. Assim vai o mundo, como se dizia dantes.

Pois continuem lá os meninos à roda da fogueira, a entreterem-se com a sua querida guerra e os seus altos valores éticos e bélicos, a tentar intimidar e reduzir ao silêncio quem não pensa como eles, que facilmente haverá quem lhes agradeça. Não os mortos da Ucrânia, certamente; mas os fabricantes de morte e os negociantes dos despojos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 9 de abril de 2022

"A Crise no Islão" - novo livro de Francisco Gomes

 

Tenho pelo meu Distinto Amigo o Doutor Francisco Gomes uma enorme consideração. E respeito, também, pela sua Obra, diversificada e de crescente interesse. Agora, "A Crise no Islão - Causas e Consequências do Eclipse do Crescente Fértil". Ocupado que estive com outros afazeres, só  agora estou a ler, eu diria a saborear, de forma também inquietante, "O Fim do Ocidente - A Europa, os Estados Unidos e o resto do Mundo numa nova Era Global".



Licenciou-se em Ciência Política, e em Comunicação Social nas Universidade de Devison e de Harvard e é Doutorado em Ciência Política pela Universidade de Cádis. Não fosse esta uma síntese de um currículo académico de relevância maior, acresce, ainda, o seu continuado estudo e aprofundamento de matérias de indiscutível transcendência no quadro das interacções a todos os níveis políticos que nos situemos. Dir-se-á que, no seu caso, o percurso académico constituiu um meio e não um fim em si mesmo. Foi um ponto de partida, não de chegada, que garante agora presentear-nos, de bandeja, o conhecimento e as relações, eu diria conexões, de tudo quanto se encontra para além do que parece. As regras deste preocupante jogo mundial estão a mudar de forma brusca e muitas vezes imprevisível e é nesse quadro que o acutilante autor, através de uma escrita escorreita, meticulosa, socorrendo-se de uma vastíssima bibliografia que permite sistematizar e envolver, nos garante a reflexão que nos situe no global. 

Lamento é que madeirenses como este, de inquebrantável coluna, fiquem quase arredados de outras formas de participação colectiva. São olhados de esguelha, fico com a sensação de múltiplos olhares desconfiados e quase desterrados do espaço público onde a capacidade de pensar deveria constituir preocupação maior.

Parabéns e que venham outros para satisfação de quem o lê.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 2 de abril de 2022

Tempo de IRS


Este é o mês do preenchimento e entrega do IRS referente a 2021. Atentemos nestes dados:

Um português com residência fiscal na Madeira e que tenha a receber, por exemplo, € 2.400,00 no acerto de contas com o Estado, com as mesmas receitas e as mesmas despesas, mas alterando a residência fiscal para a Região Autónoma dos Açores, ser-lhe-ão devolvidos cerca de € 6.000,00. Uma diferença de € 3.600,00!
Por que será?