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quinta-feira, 31 de março de 2022

As “mentiras da inflação” do FED. Sanções à Rússia e uma Nova Ordem Mundial


F. William Engdahl, 
in GlobalResearch, 
29/03/2022


O Federal Reserve e a maioria dos outros bancos centrais mundiais estão mentindo sobre como as taxas de juros afetam a inflação. Não é pouca coisa, pois claramente está sendo usado para inaugurar uma depressão económica global, desta vez muito pior do que na década de 1930, usando a Rússia como bode expiatório para culpar, enquanto as potências se preparam para empurrar o mundo para o que Joe Biden recentemente chamado de “uma Nova Ordem Mundial”.



Já defendi muitas vezes que toda grande depressão económica ou recessão do século passado, desde a criação do Federal Reserve dos EUA, foi o resultado político deliberado das ações do Fed. A situação atual é claramente uma repetição disso. Declarações e ações recentes do Fed no combate à inflação indicam que eles planejam provocar uma depressão global completa nos próximos meses. O conflito na Ucrânia e a enxurrada insana de sanções dos países da OTAN a tudo o que é russo serão usados ​​para acelerar o processo de inflação global em alimentos, energia e tudo mais, e permitir que a culpa seja colocada na Rússia enquanto o Fed sai ileso. Siga os criadores de dinheiro.

Se olharmos para as recentes declarações do Fed, de longe o banco central mais poderoso do mundo, independentemente das previsões do fim iminente do dólar como moeda de reserva global, fica claro que eles estão mentindo abertamente. Tenha em mente que o mesmo Fed deliberadamente manteve as taxas de juros próximas de zero por mais de 14 anos desde a crise de 2008 para resgatar Wall Street às custas da economia real. Agora eles alegam que devem reverter as taxas para o bem dessa economia. Eles estão simplesmente mentindo.
A falsa curva de Phillips

Nos últimos anos, o presidente turco Erdogan foi severamente atacado por alegar que as taxas de juros mais altas do banco central não são eficazes no controle da alta inflação da Turquia. Ironicamente, ele está certo até onde vai. Ele ousou atacar a ortodoxia monetária de hoje, pela qual os mercados financeiros o puniram atacando a Lira. A base da teoria sobre taxas de juros e inflação hoje remonta a um artigo de 1958 publicado por AW Phillips , então na London School of Economics. A Philips, revisando os dados econômicos do Reino Unido sobre salários e inflação ao longo de um século, concluiu que havia uma relação inversa entre salários e inflação.

Basicamente Philips, que colocou seus dados no que hoje é conhecido como Curva de Philips, concluiu que inflação e desemprego têm uma relação inversa. Inflação mais alta está associada a desemprego mais baixo e vice-versa. No entanto, a correlação não prova a causalidade, e até os próprios economistas do Fed publicaram estudos mostrando que a Curva de Philips é inválida. Em 2018, o economista de Princeton Alan Blinder, ex-vice-presidente do Fed, observou que “a correlação entre desemprego e mudanças na inflação é quase zero …

Apesar disso, o Federal Reserve, assim como a maioria dos bancos centrais em todo o mundo desde a década de 1970, usaram essa noção da Curva de Philips para justificar o aumento das taxas de juros para “matar” a inflação . O mais infame disso foi o presidente do Fed, Paul Volcker, que em 1979 elevou as principais taxas de juros dos EUA (ao mesmo tempo que o Banco da Inglaterra) em 300% para níveis próximos de 20%, onde desencadeou a pior recessão dos EUA desde a década de 1930.

Volcker atribuiu a inflação extremamente alta de 1979-82 às demandas salariais dos trabalhadores. Ele convenientemente ignorou a verdadeira causa da inflação global na época, elevando os preços do petróleo e dos grãos até a década de 1980 como resultado das ações geopolíticas do patrono de Volcker, David Rockefeller, ao criar os choques do petróleo da década de 1970. Escrevo sobre isso extensivamente em meu livro A Century of War: Anglo-American Oil Politics.

Desde a brutal operação de taxas de juros Volcker, tornou-se ortodoxia para o Fed e outros bancos centrais dizerem que o aumento da inflação deve ser “domado” pelo aumento das taxas de juros. Na verdade, quem ganha são os principais bancos de Wall Street que detêm a dívida do Tesouro dos EUA.
Causas da inflação recente

A causa dos aumentos alarmantes da inflação desde os bloqueios do COVID em 2020 tem pouco ou nada a ver com o aumento dos salários ou uma economia em expansão . Aumentar as taxas para criar um “aterrissagem suave” ou a chamada recessão branda praticamente não terá efeito sobre a inflação real.

Os preços estão subindo para as necessidades que as famílias devem gastar. De acordo com um estudo do economista americano Mike “Mish” Shedlock, mais de 80% dos componentes do Índice de Preços ao Consumidor dos EUA usados ​​para medir oficialmente a inflação são compostos dos chamados “componentes inelásticos”. Isso inclui acima de tudo o custo de moradia, gasolina, combustível, transporte, alimentação, seguro médico, educação. A maioria das famílias não consegue reduzir seriamente nenhum desses custos de vida necessários, independentemente das taxas de juros mais altas.

O custo dos alimentos está aumentando à medida que a escassez global de grãos, óleo de girassol e fertilizantes aparece, devido ao aumento vertiginoso do custo do gás natural para fazer fertilizantes de nitrogênio .

Isso foi bem antes do conflito na Ucrânia. A eliminação das exportações russas e ucranianas de trigo por causa de sanções e guerras pode cortar até 30% da oferta mundial de grãos. A seca no Centro-Oeste dos EUA e na América do Sul, e as fortes inundações na China estão aumentando os custos dos alimentos. O gás natural está aumentando por causa da tola agenda da UE e Biden Zero Carbon para eliminar toda a energia de hidrocarbonetos nos próximos anos. Agora, por causa das sanções suicidas do Ocidente contra a Rússia, uma importante fonte global de diesel, a Rússia, está sendo eliminada. A Rússia é o segundo maior exportador de petróleo bruto do mundo depois da Arábia Saudita. É o maior exportador de gás natural do mundo, principalmente para a UE.
Sanções, Ureia e Microchips

Um exemplo de como a economia mundial globalizada se tornou interconectada, em outubro de 2021, a China impôs severos controles de exportação à exportação de uréia, um componente chave não apenas de fertilizantes, mas também de um aditivo de motor diesel, DEF ou AdBlue, que a maioria dos motores diesel modernos necessidade de controlar as emissões de óxido de nitrogênio.

Sem AdBlue os motores não funcionam. Isso ameaça caminhões, tratores agrícolas, colheitadeiras, equipamentos de construção. Militares dos EUA usam combustível diesel em tanques e caminhões. Agora, com as sanções à Rússia, o segundo maior exportador mundial de diesel refinado está sendo forçado a sair. A UE importa metade do seu diesel da Rússia. A Shell e a BP alertaram os compradores alemães sobre possíveis problemas de fornecimento e os preços estão subindo. A perda de diesel ocorre quando os estoques de diesel na Europa estão no nível mais baixo desde 2008. Nos EUA, de acordo com OilPrice.com, a situação é ainda mais grave. Lá, os estoques de diesel são 21% menores do que a média sazonal de cinco anos pré-pandemia.

O gás néon é um subproduto da produção de aço. Cerca de 50% do gás néon de alta pureza semicondutor do mundo, crítico para os lasers necessários para a litografia para fazer chips, vem de duas empresas ucranianas, Ingas e Cryoin . Ambos obtiveram seus neons de siderúrgicas russas. Um é baseado em Odessa e o outro em Mariupol. Desde que os combates começaram há um mês, as duas fábricas fecharam. Além disso, de acordo com a empresa TECHCET, com sede na Califórnia, “a Rússia é uma fonte crucial de C4F6 que vários fornecedores dos EUA compram e purificam para uso em gravação avançada de dispositivos lógicos de nós e processos avançados de litografia para produção de chips”. A Rússia também produz cerca de um terço de todo o paládio mundial usado em conversores catalíticos de automóveis e em sensores e memória emergente (MRAM).

Oleg Izumrovov, um especialista russo em dados de computadores, aponta ainda que a Rússia hoje “responde por 80% do mercado de substratos de safira – placas finas feitas de pedra artificial, que são usadas em opto e microeletrônica para construir camadas de vários materiais, para exemplo, silício. Eles são usados ​​em todos os processadores do mundo – AMD e Intel não são exceção.” Ele acrescenta: “Nossa posição é ainda mais forte na química especial de chips de gravação usando componentes ultrapuros. A Rússia é responsável por 100 por cento da oferta mundial de várias terras raras usadas para esses fins .”

Sem falar que a Rússia é o segundo maior produtor mundial de níquel e alumínio.

À medida que Washington aumenta continuamente as sanções contra a Rússia, é apenas uma questão de semanas até que esses elos da cadeia de suprimentos afetem a inflação global e dos EUA em um grau não visto na memória recente. Na reunião da OTAN de 24 de março em Bruxelas, Joe Biden tentou (sem sucesso por enquanto) pressionar os estados membros da UE a sancionar o petróleo e o gás russos. Os preços da energia já estão subindo globalmente e Biden admitiu a um repórter que os preços vão subir muito mais para alimentos e energia, culpando o conflito na Ucrânia.

Nenhum desses efeitos, a maioria dos quais está apenas começando a impactar o custo e até mesmo a disponibilidade de alimentos e outros itens essenciais, pode ser alterado pelo aumento das taxas do Federal Reserve Fed Funds. E o Fed sabe disso. Eles estão literalmente jogando querosene em um fogo econômico ardente com suas ações. Eles apontarão para aumentos alarmantes da inflação em maio e dobrarão sua falsa “cura”, ou seja, taxas de juros mais altas que correm o risco de mergulhar os EUA e o mundo em uma depressão global que fará a década de 1930 parecer suave. Podemos esperar muita conversa sobre a introdução de uma moeda digital do banco central para substituir o dólar nesse ponto. Bem-vindo ao Grande Reset de Davos.

terça-feira, 29 de março de 2022

A guerra, as sanções económicas e o dólar


Por
João Abel de Freitas, 
28 Março 2022

O comércio bilateral, sem recurso ao dólar e ao euro, está em progressão. E, assim, o dólar vê reduzido o seu papel de moeda global, porque está a deixar de intervir em largas fatias do comércio mundial.



1. Os actores mundiais de topo que se cruzam na guerra Rússia-Ucrânia, embora com papéis muito distintos, acabam por ser três: EUA, Rússia e China.

A União Europeia não se situa neste patamar. É um actor com estatuto menor e aliado subalterno dos EUA, apesar de não ter cedido completamente às “sanções” inicialmente propostas pelo presidente norte-americano, Joe Biden, que preconizavam uma redução drástica no abastecimento de gás natural da Rússia, o que seria um “suicídio” para as sociedades europeias, pois, no imediato, vários países não tinham alternativa de substituição.

O quinto actor, a Ucrânia, embora no centro da guerra real e a sofrer o pior, é um “joguete”.

2. Vários analistas defendem que a Ucrânia vai resistindo graças, sobretudo, ao armamento de qualidade e ao treino das suas tropas na preparação para a guerra que os EUA lhe proporcionaram e, internamente, muito condicionada pelo célebre “Batalhão Azov”, integrado no exército ucraniano, que faz questão de ostentar símbolos nazis nas fardas e capacetes e, se não o deixassem fazer, a vida de Zelenski não andaria muito confortável.

Certamente que a ilegalização na semana passada dos 11 partidos políticos, sob a alegação de que todos faziam o jogo da Rússia, terá o dedo deste batalhão. Para quem, como Zelenski, se instituiu como último bastião da democracia e dos valores ocidentais, esta ilegalização é uma “amostra” perfeita da solidez de princípios que apregoa, decisão a que as democracias ocidentais fizeram orelhas moucas.

3. A curto prazo, a União Europeia vai trocar uma dependência energética, a actual (da Rússia), por outra (EUA) com produtos de menor qualidade e muito mais caros.

Os EUA são um fornecedor recente à Europa de gás natural liquefeito (GNL). O primeiro carregamento de GNL chegou à Europa em 2016, com destino ao terminal de regaseificação de Sines. Entre 2016 e finais de 2021, a situação mudou de forma substancial. Cerca de 45% do GNL descarregado na Europa já é de origem americana (232 TWh).

Ora, através destas medidas de retaliação altamente precipitadas sobre a redução da dependência energética (REPowerEU) e acordos Biden/UE na semana passada, os EUA ficam com via aberta para se tornarem no principal fornecedor de GNL da União Europeia (UE).

Esta mudança implica avultados investimentos da União em terminais de regaseificação na Alemanha e noutros países [um terminal demora dois a três anos a construir, ou 18 meses a dois anos se for flutuante], adaptações técnicas nos gasodutos e nas interconexões entre redes para os ajustar à qualidade do gás de características diferentes. Tudo isto soma muito dinheiro.

Existem vários estudos e artigos recentes sobre esta matéria no think tank Bruegel, sediado em Bruxelas. A leitura de alguns permite uma ideia da grandeza dos valores necessários para concretizar as diferentes medidas. Cito uma, a do próximo inverno ser o primeiro sem gás natural russo. O valor apontado no Bruegel para que isso possa acontecer aos preços actuais (finais de Fevereiro) e para injectar 700 Twh no armazenamento europeu, é da ordem de 70 mil milhões de euros quando, nos anos anteriores, não excederia 12 mil milhões. 58 mil milhões de euros a mais? Quem vai pagar tudo isto se esta medida sancionatória avançar como está concebida?!

Sistema europeu de energia absurdo – mudança para pior

4. A estrutura do sistema energético na Europa é absurda. Uma dependência excessiva da Rússia, certamente a menos cara e graças à influência da Alemanha, onde Angela Merkel teve peso decisivo. Interessante saber-se porquê. Não estou a insinuar nada em termos de regalias pessoais mas de filosofia política, pouco europeia e muito alemã.

Essa situação, mais cedo ou mais tarde, teria de ser corrigida. O que questiono é a forma precipitada como se está a processar a mudança sem concertar, entre os Estados-membros, uma política de fundo, conhecendo-se que há dois grupos de interesses antagónicos capitaneados pela França e pela Alemanha, que ainda a 31 de Dezembro de 2021 andaram em litígio público quando a Comissão Europeia decidiu incluir a energia nuclear e o gás natural no “pacote” de energias de transição.

É difícil perceber a aversão frontal da Alemanha à energia nuclear quando estão a ser dados passos gigantes a nível tecnológico para uma segurança cada vez mais robusta. A guerra Rússia-Ucrânia parece estar a suavizar esta oposição, pois até “os verdes alemães” abrandaram a sua posição.

Sanções económicas têm ricochete

5. As sanções têm efeito ricochete, volto a repetir. Em marcha estão a subida dos preços e a escassez dos produtos energéticos e de uma série de outros bens, entre eles os alimentares, fábricas desactivadas e destruição de empregos. Isto nos países da UE e já com manifestações de contestação popular, para além do maior recurso às energias fósseis.

É evidente que na Rússia os efeitos também são muito devastadores. Há que pensar em consequências de fundo de longo prazo, talvez até mais destruidoras.

Leio na imprensa internacional, após o “teatro” de Bruxelas de quinta e sexta-feira, que o Ocidente (UE/EUA) está mais unido mas isolado. De facto, muitos países não estão a alinhar nas sanções económicas. O comércio bilateral, sem recurso ao dólar e ao euro, está em progressão. E, assim, o dólar vê reduzido o seu papel de moeda global, porque está a deixar de intervir em largas fatias do comércio mundial.

A China, a Índia e muitos outros países vêem com bons olhos a perda de importância do dólar, um instrumento de domínio e de ganhos graúdos para os EUA. E se aos negócios bilaterais se vier a juntar o yuan digital, a nova moeda que a China tem em estado avançado de experimentação, o mercado financeiro existente pode, a prazo, começar a baralhar-se em demasia.

A exclusão dos maiores bancos russos do sistema de pagamentos internacional SWIFT trouxe dificuldades acrescidas à Rússia, mas acicatou no comércio mundial o aparecimento de alternativas.

As sanções actuais traduzem-se em proveitos de muito curto prazo, sobretudo para os negócios dos EUA – olhe-se para o negócio do gás. Ora, os potenciais efeitos desastrosos das sanções a médio e longo prazos não estão a ser devidamente ponderados pelos seus autores, nomeadamente o surgimento de um novo tipo de globalização económica com uma carga penalizadora no dólar/euro.

Em síntese: ganhos no curto prazo garantidos para os EUA, aumento da sua influência na União Europeia e consequências complexas de futuro no sistema económico-financeiro com perdas, direi irrecuperáveis, para quem as tomou, e recuo de anos no combate à transição climática.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 27 de março de 2022

Justiça e Mário Machado: uma aliança (im)provável


António Garcia Pereira, 
in NotíciasOnline, 
24/03/2022

Nota
Perante este texto e a temática abordada, de imediato me ocorreu parafrasear Shakespeare em Hamlet: "Algo está podre no reino de Portugal". Estátua de Sal, 26/03/2022

Há cerca de uma semana atrás, Catarina Vasco Pires, Juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal, pregou mais um prego no caixão da nossa Justiça. Fê-lo ao determinar, sob o absolutamente inacreditável “argumento” da “situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido”, a desobrigação do neonazi Mario Machado de cumprir “enquanto estiver ausente no estrangeiro, designadamente naquele país” a medida de coacção que lhe fora fixada de apresentações quinzenais às autoridades.



Isto, não obstante Mário Machado já ter publicamente anunciado, nomeadamente na sua conta de Telegram, que iria para a Ucrânia combater as tropas russas no âmbito da “Operação 1143”. E tudo isto também apesar de, no próprio requerimento, Mário Machado ter invocado explicitamente que já mobilizara “um grupo de pessoas de diversas nacionalidades” para “ir para a Ucrânia prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas” (sic, sendo nosso o realce).


Quem é Mário Machado e quais são os seus crimes?

Mário Machado – que marchou para a Ucrânia a 18/03 – é um neonazi assumido, fundador dos movimentos neonazis “Frente Nacional” e “Nova Ordem Social”, e que tem estado ligado a organizações de extrema direita como o “Movimento de Acção Nacional”, “Irmandade Ariana” e “Portugal Hammerskins”. Orgulhosamente, fez a saudação nazi à saída do Tribunal, aquando da sua última detenção por posse de arma proibida. Além disto, tem no seu cadastro condenações a pesadas penas de prisão: uma de 4 anos e 3 meses pelo envolvimento no cobarde assassinato do jovem cabo-verdiano Alcindo Monteiro na noite de 10/6/1995, em Lisboa, e outra, de 10 anos, pelo cúmulo jurídico das condenações em 3 processos distintos, pelos crimes de difamação, posse de arma de fogo ilegal, discriminação racial, ofensa à integridade física qualificada, ameaça e coacção sobre uma procuradora da República.

No processo onde lhe foram fixadas as apresentações quinzenais à autoridade policial da área de residência, já se tinham aliás verificado várias singularidades. Desde logo, o processo foi iniciado com a suspeita do Ministério Público de que Mário Machado seria o autor de uma mensagem publicada em redes sociais como o Twitter e – imagine-se! – o VK, uma espécie de Facebook russo, com sede em S. Petersburgo, onde, com a publicação da fotografia de um homem preto apontado como sendo o presumível autor do homicídio de um jovem à porta da discoteca Lick, em Vilamoura, em Agosto de 2019, apelava claramente ao linchamento, com estes significativos dizeres: “Procura-se assassino! Não o entreguem às autoridades, se souberem do seu paradeiro enviem-nos uma mensagem privada.”

Já o processo se arrastava há mais de dois anos quando finalmente, em Novembro de 2021, Mário Machado foi alvo de buscas residenciais, no âmbito das quais foram então descobertas as armas proibidas de cuja posse está agora acusado. Havendo sido conduzido ao Juiz de instrução, este terá tido o extraordinário entendimento de que com aqueles dizeres não havia indícios suficientes de incitamento ao ódio e à violência (ficando apenas de pé o crime de posse de arma proibida). O Ministério Público terá recorrido deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas, segundo foi entretanto noticiado, o referido recurso só terá chegado à 2.ª instância agora, quase em Abril!

O primarismo anticívico de decisões judiciais

Ora, é precisamente num processo como este, com um arguido com todos estes antecedentes (designadamente de condenações) que a Justiça Criminal portuguesa, no fundo, acha e decide que, se é para matar russos, e enquanto estiver no estrangeiro (pelos vistos por 1 mês, por 1 ou até por 10 anos, ou até para sempre), pode ficar dispensado da (já de si levíssima) medida de coação que lhe fora fixada!

Para além do profundo – e, já agora, também ilegal e inconstitucional – primarismo e reaccionarismo ideológico que semelhante decisão espelha, será que ela surgiu por acaso ou constitui um mero e pontual incidente de uma Justiça que até está a funcionar em geral bem? Não, de todo!

É importante compreender que o proferimento de um despacho destes antes se deve à conjugação de dois fatores, graves e preocupantes, sobretudo num Estado que se pretende “de Direito Democrático” e “baseado no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais” e que deveria encher de vergonha – acaso ainda lhes restasse alguma… – os primeiros e principais responsáveis pela Justiça, a começar por aqueles a quem compete quer a formação (o Centro de Estudos Judiciários – CEJ), quer a avaliação e a disciplina (o Conselho Superior da Magistratura – CSM) dos autores de barbaridades como estas.

A lógica do “Se não és por mim, és contra mim!” e a manipulação informativa

Por um lado, e este é o primeiro fator, vivemos hoje uma era – iniciada com a pandemia da Covid-19 e agora levada ainda mais ao extremo com a guerra na Ucrânia – de imposição do politicamente correto e do pensamento único, bem como do maniqueísmo total em que não há princípios e em que (ao velho estilo salazarista do “se não és por mim, és contra mim!”), “bons” são os do “nosso lado”, ou seja, os que aceitam e cultivam as teses e a (des)informação veiculada pela NATO e pelos Estados Unidos, e irremediavelmente “maus”, “russistas”, “putinistas”, “cúmplices de crimes de guerra”, “traidores”, etc., etc., etc., todos os outros, ou seja, aqueles que simplesmente divergem das opiniões dominantes ou que apenas se preocupam em procurar ter uma posição objetiva e não manipulada sobre os factos.

A absolutamente sórdida campanha de calúnias e ataques pessoais, movida em especial contra os generais Agostinho Costa e Raúl Cunha, pelo “crime” de procurarem fazer análises fundamentadas em factos e intelectualmente sérias acerca do que realmente se passa no terreno da guerra é um desses absolutamente lastimáveis exemplos. Outro é o da xenófoba e mais do que primária “campanha anti-russo” só pela sua nacionalidade, que está em curso lá fora, mas também já neste pretenso jardim à beira-mar plantado, e que passa pela censura de filmes, obras literárias e musicais, e até pelo impedimento da atuação de artistas e desportistas.

Entre nós, e para além da histeria dos ataques contra os “divergentes”, como, por exemplo, os que se limitam a criticar a manipulação informativa ou a chamar a atenção para as graves responsabilidades na eclosão da guerra daqueles que se mantêm habilidosamente fora da mesma (ao mesmo tempo que nela continuamente despejam mais achas para a fogueira, como os EUA e o seu braço armado, a NATO) ou a evidenciar a chocante diferença de critérios relativamente a outras vítimas de guerras imperialistas (como os povos da ex-Jugoslávia, da Palestina, do Iraque ou da Somália), também começámos a ver filmes excluídos de certames (como o Fantasporto) e jovens estudantes a serem instados a abandonar a Universidade (como sucedeu em Évora), unicamente por terem a nacionalidade russa.

A despudorada manipulação informativa

A mais despudorada manipulação informativa – que só dá a conhecer a versão de um dos lados – mostra bem a sua face com o suposto episódio dos treze “últimos resistentes ucranianos” da ilha de Zmiinii, no Mar Negro, que teriam respondido “vão-se f…!” aos militares russos que os instavam a render-se e teriam sido, por isso, brutalmente massacrados pelas tropas invasoras, havendo o próprio presidente da Ucrânia chegado a anunciar condecorações póstumas aos ditos resistentes.

E, claro, a Comunicação Social portuguesa em geral (CNNPortugal, Público, Expresso, Sábado, Visão, Observador, etc.) logo tratou de noticiar massivamente esse alegado massacre. Só que… soube-se alguns dias depois que essa notícia era falsa e que os ditos soldados ucranianos estavam afinal bem vivos! E qual foi então o reconhecimento que a mesma Comunicação Social portuguesa – que, mais uma vez, não tinha feito qualquer verificação dos factos, tendo-se antes limitado a reproduzir acriticamente o que lhe chegava, assim manipulando e enganando grosseiramente os seus leitores e espectadores – fez dessa sua mistificação? Nada! Nem a mais leve autocrítica!

O Público teve o desplante de apresentar como uma mera atualização a correção do que inveridicamente publicara e a SIC, através do seu sacrossanto “Polígrafo”, reconheceu que a notícia era falsa, mas logo atribuiu a respectiva responsabilidade às redes sociais e não à própria Comunicação Social!?

Uma vez mais, se os fins justificam os meios, se tudo é permitido e se é para defender e exaltar os “bons” (confundindo aqui o povo ucraniano com o seu governo, com o seu Presidente e com os seus apoiantes, a começar pelos neonazis do Regimento Azov, atualmente atrás de cidadãos e de infraestruturas civis na cidade de Mariupol) contra os “maus” (identificando aqui, tão propositada quanto abusivamente, o ditador e imperialista Putin e o seu governo com os filhos do povo russo, inclusive os jovens integrando as tropas invasoras que são mandados morrer), então tudo é legítimo, inclusive a ignomínia de pontapear na cabeça e até à morte um dos “outros” que está prostrado no solo e incapaz de se defender, como ocorreu com o agente policial assassinado esta semana.

E se assim é, nenhum mal afinal faz e até de todo se justifica que se dispense um retinto neonazi, já criminalmente condenado e com novos processos às costas, de cumprir com as benevolentes medidas de coação que lhe tinham sido fixadas e que se lhe permita ausentar-se livremente do país sem qualquer limite temporal, para tanto bastando que anuncie e invoque que vai combater as tropas russas…

A falta de controlo democrático sobre a Justiça

Outro fator que contribui para o autêntico escândalo desta decisão judicial, tem que ver com o estado atual da nossa Justiça e com a ausência de controle democrático sobre o único órgão de soberania que não tem legitimidade democrática eletiva – os Tribunais.

Na verdade, não sendo os seus titulares eleitos (como o são, e por sufrágio direto e universal, o Presidente da República e a Assembleia da República e, indiretamente e porque emerge dos resultados das eleições para esta última, o governo) e não sendo num Estado de Direito Democrático admissíveis poderes, quaisquer que eles sejam, incontrolados e incontroláveis, a questão dos meios e instrumentos de como o Povo – em nome do qual, recorde-se, os órgãos de soberania, todos eles, exercem o poder soberano – fiscaliza e controla esse exercício assume particular relevância quanto à Justiça.

É que essa fiscalização e esse controlo passam, desde logo, pelo respeito absolutamente escrupuloso por alguns princípios essenciais, que têm estado a ser progressivamente enfraquecidos e desfigurados: o princípio do “juiz natural” (para evitar que poderes externos e até internos à Justiça possam atribuir um dado processo a um dado juiz), o princípio da fundamentação de todas as decisões judiciais (para impedir o arbítrio ao estilo do “é assim, porque eu quero!” e para permitir à comunidade seguir e avaliar a forma como se chegou à decisão final), o princípio da publicidade das audiências e também, com ressalvadas exceções que todos compreendemos, dos próprios processos judiciais, incluindo os criminais (para assim permitir ao Povo verificar in loco como o Poder Judicial é afinal exercido) e o princípio do duplo grau de jurisdição com a possibilidade de recurso para um Tribunal superior (obviando-se assim aos poderes absolutos e definitivos de uma só instância, com todos os inerentes riscos de abusos e prepotências).

Mas essa fiscalização e controlo do Povo têm também de ser exercidos sobre o modo como se formam, quem forma e com que ideias e conteúdos, os juízes e magistrados do Ministério Público (o que significa que a cidadela corporativa do CEJ tem de ser substituída por uma Escola de Formação aberta à sociedade e por ela fiscalizada) e sobre o modo e os meios como se avaliam, se promovem e se punem juízes e procuradores (terminando com as igualmente ultra-corporativas e elitistas estruturas do CSM e do Conselho Superior do Ministério Público – CSMP), dando uma volta completa aos atuais e respetivos critérios de classificação (os quais, como se sabe, têm permitido a classificação de “Muito Bom” a autores das maiores atrocidades judiciárias), deixando de se privilegiar os que despacham muitos processos (em detrimento dos que os despacham bem), os que cumprem consecutivas comissões de serviço nos Conselhos, no CEJ e até no governo (em detrimento dos que “queimam as pestanas” a exercer as suas funções de raiz) e ainda os que dão suficientes provas de serem maleáveis e de se integrarem bem no sistema (em detrimento dos que ousam pensar pela própria cabeça, criticar o que está mal e recusar argumentos e posturas de autoridade).

Cruzar os braços só conduz ao aumento das barbaridades

Não dar atenção a todas estas questões, cruzar os braços e não conseguir resolvê-las adequadamente leva inevitavelmente a que se tornem naturais e cada vez mais frequentes barbaridades judiciais (como as que, no âmbito dos processos de Família e Menores, têm merecido sucessivas e humilhantes condenações do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos); a que se indefiram, no Juízo do Trabalho de Lisboa, todas, sem exceção, as providências cautelares de suspensão do despedimento coletivo da TAP (para depois, e só na Relação de Lisboa, pelo menos 5 dessas decisões serem total e perentoriamente revogadas); a que se continuem a aplicar sistematicamente penas suspensas a agressores sexuais (inclusive de filhos menores, como recentemente denunciou, e muito bem, a Dra. Manuela Eanes) e a autores de graves violências domésticas (tal como sucedera com Manuel Maria Carrilho, numa segunda consecutiva absolvição decretada por uma sentença da 1.ª instância da juíza Joana Ferrer, só agora estrondosamente revogada pela Relação de Lisboa); e a que se profiram decisões condenatórias, xenófobas e ofensivas (como a produzida por três juízes do Tribunal Criminal de Lisboa – João Rodrigues, Tânia Vanda Gomes e Catarina Silva – relativamente a cidadãs brasileiras, depois absolvidas por um arrasador Acórdão, relatado pela desembargadora Florbela Sebastião e Silva, que pôs a nu a natureza de preconceitos sem assento nos factos e de conclusões pejorativas, desnecessárias e até ofensivas, dos “brilhantes” argumentos da sentença condenatória.

Ao não combatermos implacavelmente estas bafientas e medievais conceções ideológicas dos julgadores e ao não impormos o controlo cívico e a democrática prestação de contas na Justiça, não nos devemos depois admirar quando esta, em flagrante contradição com a forma como age relativamente aos restantes arguidos, dispensa das respetivas medidas de coação um neonazi para ele poder ir matar russos para a Ucrânia!

quarta-feira, 23 de março de 2022

Confisco de reservas russas empurra mundo para novo sistema monetário internacional


Por
estatuadesal
Alastair Crooke, 
in Diálogos do Sul, 
21/03/2022




Fato é que a atual operação militar na Ucrânia acabará, no devido tempo, relegada ao status de pouco mais de uma nota de rodapé na história global. Mas a guerra financeira total que repercutiu na Rússia é e será fundamental na definição da nova ordem mundial que se avizinha.


De fato, talvez já tenhamos testemunhado o momento em que a história económica mudou de rumo. Aconteceu dia 26 de fevereiro, quando o Ocidente coletivo confiscou todas as reservas cambiais do Banco Central da Rússia mantidas no Ocidente.

Em síntese, o Ocidente decretou que as reservas soberanas russas em euros, dólares e papéis do Tesouro dos EUA deixavam de ser ‘dinheiro bom’. Que deixavam de ter valor como ‘dinheiro’ para pagar dívidas russas a credores estrangeiros. E ao sancionar também o Banco Central Russo, o Ocidente impossibilitou para aqueles que compram bens, energia ou commodities quitar o que devem através do Banco.

A magnitude desse evento é sublinhada pelo fato de que houve conflito anterior também centrado na Ucrânia – a Guerra da Crimeia de 1854-1856 – Grã-Bretanha e França estavam em guerra contra a Rússia. Mas mesmo assim, durante toda a guerra, o governo russo continuou a pagar juros aos detentores britânicos da dívida russa; e o governo britânico também continuou a pagar o que devia ao governo russo.

A mensagem agora é bastante clara – se até os mais proeminentes Estados do G20 podem ter suas reservas canceladas num piscar de olhos, então, para todos que ainda tenham ‘reservas’ em Nova York, é hora, já-já, de as levar para outro lugar, enquanto a viagem ainda é possível! E se você precisa guardar algo de valor, como reserva para dia chuvoso, compre ouro, e guarde bem.

Quer dizer então que alguém por aí pensou que os títulos soberanos norte-americanos (os chamados “papéis do Tesouro norte-americanos, Treasuries) fossem ‘dinheiro’ e invioláveis? Nada disso! Os EUA acabam de declarar nulos e quitados aqueles papéis da dívida dos EUA depositados no Banco Central russo. Talvez – como os Títulos da Rússia Imperial, usados para decorar banheiros europeus, como papel de parede colorido, mas sem valor – o Banco Central russo passe agora a usar seus títulos do Tesouro dos EUA como papel de parede para banheiros (embora em decoração menos colorida).

Mas... Atenção! Há mais. Na legislação proposta no Senado dos EUA, as reservas de ouro de propriedade do Banco Central da Rússia serão congeladas e confiscadas. Há, no entanto, um grande problema para cumprir essa legislação. O ouro existe. Ele está em barras de ouro físico (cerca de 2.300 toneladas métricas), no valor de cerca de 150 bilhões de dólares, MAS são armazenadas na Rússia. Verdade é que não havia nem há meio viável para congelar ou apreender as montanhas de ouro que estão na Rússia... e lá permanecem.

Então, do que se trata, se o ouro não pode ser realmente apreendido?

Trata-se de sanções de boicote secundário contra quem quer que ajude a Rússia a transportar ou a fazer transações em ouro. Por exemplo: se a Rússia importasse, digamos, chips semicondutores chineses e liquidasse a transação em ouro, nesse caso, teoricamente, os EUA poderiam sancionar a entidade que recebesse o ouro na China.

Os EUA, a aplicar sanções contra receptores de ouro russo?! OK, já é um pouco demais... Mas considerem também o seguinte:

Há (pelo menos teoricamente, pois ninguém sabe ao certo) 6.000 toneladas de ouro de propriedade estrangeira (ou seja, de propriedade de Estados estrangeiros) ainda em poder do Federal Reserve de Nova York.

E agora, 6.000 toneladas (dado o precedente do caso russo) já podem ser facilmente confiscadas pelas autoridades norte-americanas – ao apertar um botão. Assim sendo, por que não repatriar aquele ouro, enquanto se pode? Ok. Para começar, porque não será fácil arrancar qualquer ouro de dentro do Fed).

Sim, alguns poderiam dizer que a Rússia é considerada ‘mau ator’ pelos EUA. E nós, os norte-americanos, somos ‘bons’. Ok, vá que fosse, só por hoje. O problema é que a lista dos atores que em algum momento foram rotulados como ‘maus atores’ é longa. Lembre-se de que até a França, membro do G7, foi acusada de ser ‘mau ator’ durante a guerra do Iraque, em 2006.

Assim sendo, então, claro que estamos às vésperas de uma grande retirada das Reservas – para fora da jurisdição dos EUA. A decisão de Biden, de confiscar os ativos do Banco Central russo é tão significativa em termos geopolíticos quanto foi o fechamento, por Nixon, da ‘janela do ouro’ norte-americano, em 1971. Lembrem-se todos de que o fechamento da tal ‘janela’ foi inicialmente elogiado como ‘medida temporária’.

A consequência geopolítica, no entanto, teve efeito de bomba nuclear. O sistema comercial baseado no petrodólar que derivava daquele ouro permitiu aos Estados Unidos ‘detonar’ o mundo com sanções e sanções secundárias. Para tanto, passou a bastar que os EUA declarassem que passavam a ter jurisdição sobre qualquer, e todas, as transações denominadas em dólares, ou que, de algum modo, passassem por processo de compensação em dólares.

A hegemonia dos EUA sobre a chamada “ordem baseada em regras” tem sido muito mais financeira (bem menos, militar). Vale dizer: é ordem imposta sempre que os EUA ameaçam ‘sancionar’ qualquer canalha com uma ‘bomba de nêutrons’ de papéis do Tesouro dos EUA.

E dia 26 de fevereiro, esse sistema começou a se ‘suicidar’, quando os ‘falcões’ russófobos de Washington, iniciaram, estupidamente, uma luta contra o único país – a Rússia – que tem as mercadorias necessárias (i) para governar o mundo; e (ii) para desencadear mudança real para outro sistema monetário. Esse outro sistema monetário tem o mérito de estar ancorado em solo firme, em algo que não é dinheiro ‘fiat’, dinheiro que desce do céu num helicóptero.

É claro que o yuan ou o rublo podem refletir o valor subjacente de suas respectivas grandes reservas de ouro. Mas também, as mercadorias são garantia, e garantia é dinheiro. E a Rússia tem a parte do leão das principais commodities.


Em resumo, o sistema monetário ocidental baseado no dólar norte-americano como moeda de reserva está prestes a acabar numa inflação de dimensões de estrela supernova, pois os EUA perdem a capacidade de usar a poupança chinesa para financiar o orçamento norte-americano e os próprios déficits comerciais norte-americanos.

E é o que está acontecendo à medida que a geração Boomer vai-se aposentando e sobem os ganhos que têm direito de exigir.

Defesa, juros e direitos não discricionários já comem 100% da receita tributária. Portanto, agora, não há outra possibilidade: o Fed tem e terá de imprimir a maior parte dos enormes gastos adicionais.

Zoltan Poszar, uma das vozes mais respeitadas de Wall Street, argumenta que o sistema monetário atual funcionou enquanto os preços das commodities oscilaram previsivelmente numa faixa estreita – ou seja, enquanto não estiveram sob estresse extremo (precisamente porque as commodities são garantia para outros instrumentos de dívida).

Mas quando todo o complexo de commodities está sob estresse, como está agora, os preços enlouquecidos das commodities levam a um mais amplo voto de ‘desconfiança’ no sistema. É o que vemos acontecendo agora.Os falcões russofóbicos não previram isso? Foram surpreendidos por tais ‘consequências inesperadas’?! Havia alguma grande estratégia por trás do confisco das reservas russas, além da visceral má-fé contra a Rússia?

Não. Não previram coisa alguma. Agiram por impulso tresloucado. Sabemos disso, porque tanto o Fed como o BCE informaram que não foram consultados sobre o confisco do ouro nem sobre a expulsão de sete bancos russos do sistema de compensação financeira SWIFT. E esclareceram que, se consultados, teriam votado contra os dois movimentos.

Foi ato de automutilação.

E que ironia! Em seu zelo para esmagar a economia russa, os falcões norte-americanos russofóbicos abriram inadvertidamente o caminho para que Rússia e China começassem a criar um novo sistema monetário, bem longe da ‘esfera de influência’ do dólar norte-americano.*******

Tradução: Vila Mandinga [Tradução automática, por Google Translator, corrigida e revista, para finalidades acadêmicas, sem valor comercial.]

quarta-feira, 16 de março de 2022

O 24 de Fevereiro que estremece a Europa


Por
15 Março 2022

Os efeitos imediatos da guerra já cá estão, e são apenas uma parcela. A recessão económica entrará para ficar. As sanções económicas fazem ricochete para os dois lados. Causam muitos problemas, mas, está provado, não fazem desistir.



1. Fevereiro é um mês muito expressivo em acontecimentos marcantes da História de Portugal.

Desde logo, o 4 de Fevereiro de 1961, já lá vão mais de 60 anos, o princípio do fim do império colonial português, porque minou a política do ditador Salazar e o regime por ele implantado. Um marco na guerra desastrosa travada contra os povos das colónias, hoje países independentes.

Muitos outros Fevereiros há a apontar: o dobrar o Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias em 3 de Fevereiro de 1488, o nascimento do Pe. António Vieira em 6 de Fevereiro de 1608, a entronização da primeira mulher, D. Maria I, como Rainha de Portugal em 24 de Fevereiro 1777, o nascimento do poeta, escritor e político liberal Almeida Garrett em 4 de Fevereiro de 1799, o nascimento do poeta popular António Aleixo em 18 de Fevereiro de 1899, o assassinato do rei D. Carlos no dia 1 de Fevereiro de 1908, a criação do SNI de António Ferro em 23 de Fevereiro de 1944, a libertação de 100 presos políticos da colónia penal do Tarrafal em 1 de Fevereiro de 1946, o assassinato pela PIDE de Humberto Delgado em 13 de Fevereiro de 1965, a criação da SEDES em 25 de Fevereiro de 1970.

No pós-25 de Abril: a publicação da Lei de Imprensa em 26 de Fevereiro de 1975, a Constituição de 2 de Fevereiro de 1976 aprovada pela Assembleia Constituinte eleita para o efeito no 25 de Abril de 1975, o reconhecimento oficial, após peripécias político-partidárias, da independência de Angola em 21 de Fevereiro de 1976, a visita de Mário Soares, na qualidade de Primeiro-Ministro, a várias capitais em 14 de Fevereiro de 1977, a sensibilizar os políticos europeus para a candidatura de Portugal à CEE, pedido formalizado posteriormente a 28 de Março, a despenalização do aborto em 14 de Fevereiro de 1984, a morte de Zeca Afonso em 23 de Fevereiro de 1987, a criação legal da SIC e TVI em 6 de Fevereiro de 1992.

Esta, uma pequeníssima amostra de acontecimentos ocorridos nos meses de Fevereiro da nossa História.

24 de Fevereiro de 2022: início da guerra Rússia/Ucrânia

2. Este 24 de Fevereiro também é parte da História de Portugal. Um acontecimento condenável (não por razões de moral, mas de fundo – a vida das pessoas acima de tudo) que veio abalar profundamente a “vaga” noção de segurança europeia, alterando o “pacifismo tradicional” alemão e seu rearmamento, a quebra de neutralidade de países como a Suíça, a decisão arriscada de Bruxelas financiar armamento a entregar à Ucrânia…

O 24 de Fevereiro mudou a mente dos dirigentes políticos da União Europeia? Tudo se conjuga, atabalhoadamente e de forma inconsistente, para uma “nova arquitectura” de segurança, onde a Energia ocupe, com um atraso de no mínimo 8 anos, um lugar cimeiro. Fruto de um impulso pouco amadurecido, sem estratégia negociada entre países e, como sempre, entre grandes divisões.

Aparentemente, há um “reunir” de forças europeu, onde problemas pendentes com o estado de direito, em países de democracia iliberal como a Polónia ou a Hungria, entram no baú dos esquecidos. Até as eleições presidenciais em França passam a um patamar discreto.

Conjecturando um pouco sobre estas mudanças de mente, as perspectivas são pouco animadoras. Não se vê o fim da guerra. Vai ficar circunscrita à Ucrânia, embora com efeitos europeus pesados? Ou algo falhará e se mundializa sem controlo?!

Muitos passos perigosos. Afirmações insensatas, muitas. Achas na fogueira. Perdeu-se todo o tempo antes da guerra e continua a perder-se muito, durante. Como pôr cobro a tudo isto?

Conversações e mediação precisam-se, urgentemente, para que se definam os objectivos reais de um lado e do outro e a partir daí encetar negociações.

A crise climática

3. O combate à crise climática na Europa fica congelado. Primeiro, pelos efeitos directos da guerra. Maior recurso ao carvão e ao petróleo. Segundo, as verbas desviadas para rearmamento dificultam a transição energética já de si difícil antes, por ineficácia dos Estados europeus. A Europa-motor da transição energética (um mito!) e seus efeitos no clima esgotam-se aqui. Ou rearmamento, ou clima. Não há verbas para tudo.

Como várias vezes escrevi, se há uma área onde as divergências entre Estados-membros são (eram?) insuperáveis, a energia é o melhor exemplo. Mas talvez tenha sido uma área que “mexeu” com a guerra, pois tudo leva a crer que a energia nuclear ganhou uns pontos. Até os verdes alemães admitiram o recurso à nuclear em certas circunstâncias. Será que a partir de agora, e com a devida ponderação, a Europa vai caminhar para uma política energética consequente? Será que vai caminhar por si ou deixar-se pressionar pelos EUA?

O petróleo e o gás natural, por intermédio dos EUA, estão na calha. O plano norte-americano de boicote à importação de energia da Rússia é recusado (mas com divisões) pelos aliados europeus, apesar da vontade de reduzir, a prazo, a dependência da Rússia. Até o brando Olaf Scholz afirma: “isto não pode ser feito do dia para a noite”. E com razão. Já se admitiram pressões em demasia dos EUA, país que nada perde com esta guerra, pelo contrário.

Consequências económicas da guerra

4. Não é possível uma avaliação objectiva dos efeitos económicos. Qual o tempo de duração da guerra e qual será a sua extensão?

Não é difícil, contudo, identificar quais os povos mais afectados. Em primeiro lugar e de longe os povos da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia, sendo a Ucrânia o país com território já muito devastado. Mesmo na situação actual, já precisará de muito tempo para recuperar. Para os povos da Bielorrússia e da Rússia são os efeitos das sanções económicas e financeiras que paralisam a economia e, em grande parte, o comércio com o exterior. Mas a Europa e, designadamente, os países vizinhos também serão muito afectados. Quem vai pagar os custos com os refugiados da Guerra? A UE admite contrair dívida conjunta, mas quanto tempo levará a decidir?

Os efeitos imediatos já cá estão: a escalada de preços da energia, a subida de preços na generalidade dos produtos. E são poucos os instrumentos que os países europeus têm para enfrentar tudo isto. E isto é apenas uma parcela. As economias vão ser afectadas pela falta de matéria-primas e outros bens e serviços estratégicos. As empresas vão reduzir a sua actividade. O desemprego vai crescer. A recessão económica entrará para ficar. As sanções económicas fazem ricochete para os dois lados. Causam muitos problemas, mas, está provado, não fazem desistir.

Tentar negociações é a solução. No mínimo, desde 2014, deviam estar no terreno e tudo teria sido evitado. E se se pretende desarmar a guerra, as negociações são a prioridade máxima.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Guerra não evitada, escalada evitável


Por
11 Março 2022

Tudo o que está agora a acontecer lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba.



A dimensão bélica do conflito russo-ucraniano persiste e a possibilidade de vir a extravasar o quadro regional aumenta cada dia que passa. Nesta marcha para o abismo, dir-se-ia que as lideranças políticas europeias parecem não estar a perceber o que está realmente em causa. Em vez de lançarem água para o incêndio e de investirem no estabelecimento de pontes de diálogo parecem incrementar a confrontação como se fossem atores imunes às consequências daquela guerra (veja-se a iniciativa de enviar MIG-29 para o teatro de operações ucraniano).

A análise tornou-se a segunda vítima da guerra

É necessário analisar os acontecimentos de um modo objetivo. Como ensina a Teoria dos Jogos, e toda a doutrina disponível, existe uma responsabilidade partilhada e uma interdependência estratégica entre os atores envolvidos numa contenda de interesses. A linguagem engajada e desproporcionada que tem prevalecido na comunicação social a nível internacional não ajuda a compreender o que está em causa nem o desenrolar dos acontecimentos.

Nessa deriva, aliás, ela própria torna-se um obstáculo: induz uma atmosfera pública intolerante, cria visão de túnel, inibe o debate genuíno, e incita a um massivo efeito de rebanho que, por sua vez, exerce tóxicas pressões na decisão política. Sabemos onde isso levou da última vez que houve um sobressalto securitário nos países ocidentais após o 11 de Setembro.

Os riscos de escalada estão em crescendo, assim como a retórica das várias lideranças. Em vez de contribuírem para diminuir a tensão, temos testemunhado exatamente o contrário, desatentos à alteração da natureza dos riscos: a guerra na Ucrânia tem sério potencial para provocar uma confrontação generalizada à escala global, ultrapassando o patamar convencional.

Antes de prosseguir convém clarificar que o objetivo declarado da Rússia é obter garantias de que a Ucrânia não fará parte da NATO, nem albergará unidades e equipamento militar de potências estrangeiras no seu território. As preocupações, os alertas e os protestos russos continuam a não ser ouvidos, aumentando simultaneamente o nível de ameaça percebido por este ator.

Alguns aspetos da insensatez que nos levou a esta situação merecem ser salientados. Desde 2014 que a situação se tem vindo a deteriorar. A Ucrânia tornou-se uma ponta de lança das políticas norte-americanas anti-Rússia. A intervenção sistemática e continuada dos EUA nos assuntos internos da Ucrânia não passou despercebida à Rússia, em particular o fornecimento massivo, durante estes anos, de armamento a Kiev.

A Ucrânia tornou-se a partir de 2014 no ponto de dor (pain point) securitário para a Rússia. Ainda em 2014, a Rússia invade a Ucrânia e ocupa a Crimeia. E, tal como previsto num diálogo de Boris Ieltsin com Bill Clinton em 1995, a presente liderança russa considerou que tinha chegado a hora de ser ouvida com estrondo.

Putin parece ter considerado que poderia, através de uma manobra em que conjugaria a ação diplomática com uma demonstração de força, resolver o impasse de 20 anos causado pelo alargamento da NATO a Leste, a qual não parou com a sua política de porta aberta, e dos oito anos de ouvidos de mercador relativamente à implementação dos acordos de Minsk.

Durante estes anos, a situação militar agravou-se no Donbass, onde o dispositivo militar ucraniano era cada vez maior, em desrespeito frontal pelos acordos de Minsk, diariamente violados. O número de mortos civis durante os oito anos que nos separam do golpe de estado Euromaidan e as cedências de Zelenski às forças mais extremistas, ilustram a frustração cada vez maior de Moscovo.

Dominó de eventos

O ano de 2021 é crucial para se compreender a situação em que presentemente nos encontramos. Só nesse ano, os EUA forneceram cerca de 1,3 mil milhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia. Em março de 2021, a Ucrânia publicou a sua estratégia militar, um documento orientado para a confrontação com a Rússia.

Durante os meses de junho, julho e setembro de 2021 tiveram lugar exercícios da NATO em território ucraniano, que envolveram cerca de 23 mil soldados. O espaço aéreo ucraniano foi aberto aos voos dos aviões de reconhecimento estratégico americano, assim como a drones que permitiam monitorizar o território da Rússia.

Nos últimos meses de 2021, com o pretexto de exercícios, a Rússia estacionou e exibiu um forte dispositivo militar no seu território e na Bielorrússia, nas proximidades da fronteira com a Ucrânia.

Já em plena crise, em novembro de 2021, os EUA e a Ucrânia reafirmaram a importância das suas relações de parceria estratégica e declararam a determinação em aprofundar essa parceria através da cooperação em vários domínios, nomeadamente no da defesa, com o objetivo de contrariar a agressão russa. A ocasião foi aproveitada para os EUA proclamarem o “direito da Ucrânia a decidir sobre o futuro da sua política externa livre de interferências externas, incluindo o respeito pelas aspirações da Ucrânia aderir à NATO.”

Em dezembro de 2021, relembre-se, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros tornou público dois projetos de acordos com os EUA e com a NATO, onde pontificavam as garantias de segurança que a Rússia pretendia ver salvaguardas. Entre outras, a não adesão da Ucrânia à NATO. Os pedidos de garantia foram rejeitados, pelos EUA e pela NATO, não havendo lugar a qualquer convergência ou princípio de entendimento.

Com o aumento da tensão, entram na liça diplomática o Presidente Macron e o Chanceler Sholtz na primeira quinzena de fevereiro de 2022. O máximo que se conseguiu obter desta “shuttle diplomacy” entre Moscovo e Kiev foi uma declaração do Presidente Zelenski em que se comprometia a apresentar no parlamento um projeto de decreto-lei sobre o assunto, que não chegou a apresentar e que nunca iria ser aprovado.

Nos oito anos precedentes, a Ucrânia tinha demonstrado uma manifesta falta de interesse em honrar os acordos de Minsk, e em acomodar uma fórmula que respeitasse os interesses da sua minoria russófona, entretanto perseguida e proibida de falar a sua língua.

O rastilho chega ao paiol

Há que reapreciar os catalisadores específicos da crise. No dia 19 de fevereiro de 2022, na Conferência de Segurança de Munique, o Presidente Zelenski manifestou a intenção de renunciar ao protocolo de Budapeste abdicando da sua neutralidade (na verdade já o tinha feito quando inscreveu na sua Constituição a ambição de aderir à NATO), abrindo a possibilidade de a Ucrânia se rearmar nuclearmente. Esta intervenção é aplaudida de pé pela audiência. Moscovo já tinha denunciado por diversas vezes a pretensão da Ucrânia em possuir armamento nuclear. Tem a tecnologia desenvolvida pela URSS e os meios de lançamento. Desconhece-se se terá recebido ajuda externa para tal.

Em represália pelo discurso de Zelenski em Munique, agravado pela ausência de respostas sobre as pretensões ucranianas de aderir à NATO, e aparentemente assumindo um ponto de não retorno, Putin anuncia no dia 21 de fevereiro, que vai reconhecer a independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk, argumentando que “tem todo o direito de tomar medidas de retaliação para assegurar a nossa segurança [da Rússia]. É exatamente isso que faremos.”

Ao contrário do que aconteceu após o confronto com a Geórgia, em que Moscovo reconheceu de imediato a independência das repúblicas da Abecásia e da Ossétia do Sul (agosto de 2008), no caso da Ucrânia a opção foi outra. Putin optou por abraçar uma solução autonómica para as repúblicas separatistas no quadro da Ucrânia.

E depois da última gota?

Com a situação ao rubro, a sinalização pública e aclamada do patamar nuclear por Zelenski e o abandono dos protocolos de Budapeste pode ser lida como um evento saliente. O que até aí era visto por alguns especialistas (nos quais me incluo) como estando para além dos limites do provável, isto é, uma invasão generalizada da Ucrânia, tornou-se um facto novo. Após este conspícuo momento (pouco enfatizado nos media “ocidentais”) percebeu-se claramente que a situação se tinha alterado, e que os esforços diplomáticos de última hora tinham falhado.

Se era possível vislumbrar algo na neblina, antes do início do conflito, era a certeza de que o Ocidente ajudaria a Ucrânia, mas que não iria assumir com sangue as ansiedades ucranianas. Os EUA instigaram a confrontação ucraniana com a Rússia, sabendo que não estariam disponíveis para combater a seu lado. O mesmo aconteceu com a UE, que andou estes anos todos a encorajar os ucranianos, sabendo que na hora da decisão não se iria apresentar ao lado de Kiev. Os atos heroicos no campo de batalha seriam deixados para os ucranianos.

Os apelos sistemáticos à intervenção militar do Ocidente na Ucrânia, cada vez mais pungentes, são a prova disso. Zelenski queixa-se diariamente da falta de apoio do Ocidente, da insuficiência do seu compromisso, continuando a insistir numa zona de exclusão aérea, ideia de que apesar de rechaçada pela NATO continua presente na agenda mediática. A Zelenski foi dado o papel de peão num transcendente xadrez geoestratégico de “Great Power Politics”, que lhe escapa, não passando de um mandatário de agendas que ultrapassam largamente os interesses securitários do Estado ucraniano, submetendo a sua população a um risco securitário extremo. Podia ter tomado os acontecimentos ocorridos na Geórgia no ano de 2008 como um dado adquirido e empreendido uma “Estratégia de Nash”, i.e., dada a estratégia dos outros, qual a sua melhor resposta?

O próprio Ocidente, que mostrou não estar disposto para se sacrificar operacionalmente pela Ucrânia por saber os custos que iria acarretar, parece insistir na aposta anterior. Com a tensão existente e os nervos à flor da pele, não se entende, numa lógica de atenuar tensões, a necessidade de se retomar, neste momento, o debate sobre a adesão da Finlândia e da Suécia à NATO. A altura para o fazer não podia ser mais inoportuna. A fórmula adotada pela Finlândia e Suécia (membros da UE mas com neutralidade estratégica), a qual inclui a participação ativa destes dois países na Parceria para a Paz da NATO, tem funcionado ao longo de décadas.

A disponibilização de MIG-29 romenos e polacos anunciada pelo Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, de custo-benefício duvidoso, só serve para aumentar a tensão com Moscovo, que já anunciou considerar isso um ato de guerra. Recentemente um senador norte-americano, o republicano Lindley Graham, que é conhecido pelas suas posições intervencionistas agressivas, veio sugerir o assassínio de Putin. Todos estes desenvolvimentos empurram a Rússia para um jogo de soma negativa. Neste cenário, Moscovo pode até jogar para perder, desde que o oponente do outro lado do tabuleiro perca também.

Kiev não é Kabul

Parece insólito acreditar que a Ucrânia sozinha poderá vencer militarmente a Rússia, independentemente do armamento que lhe for proporcionado. Essa ajuda tornará certamente mais oneroso o esforço de ocupação russa, mas devido à sua massa a Rússia muito provavelmente ganhará militarmente. Por mil e uma razões, a Rússia não se pode dar ao luxo de uma derrota no território da Ucrânia, como aconteceu com os americanos no Afeganistão. Não parece estar em causa a vitória russa sobre os ucranianos, mas o custo que essa vitória poderá comportar (com os concomitantes efeitos destrutivos no terreno).

Não sei o que será preciso mais acontecer para se perceber que a Rússia lutará até à exaustão das suas forças para impedir a entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO. Esse limite poderá não ter limite.

Tudo isto lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba. Em momentos diferentes George Keenan, Henry Kissinger, William Perry e John Mearsheimer, e no plano nacional, entre outros, Jaime Nogueira Pinto explicaram com um realismo mais eloquente do que o meu o que está verdadeiramente em causa. Mas é ainda tempo de relembrar aos decisores norte-americanos e ucranianos em que consiste o dilema de segurança e os seus efeitos.

Não restam hoje quaisquer dúvidas de que Washington sabia que se não fosse satisfeita a principal reivindicação russa – a não adesão da Ucrânia à NATO e o seu estatuto de neutralidade estratégica – algo de muito definitivo iria ocorrer. Optou por não fazer nada para o evitar.

Infelizmente, e de um modo sonâmbulo, sem se atentar ao risco que estamos a correr, continua a prevalecer a retórica da confrontação. O prolongamento da atual situação será insustentável. Esperamos ansiosamente que se arrepie caminho e prevaleça o desanuviamento da tensão.

domingo, 13 de março de 2022

As sanções de Washington destruirão a Europa, não a Rússia


Pepe Escobar, 
in Resistir, 
10/03/2022




O campo de batalha está traçado.
A lista negra oficial russa de nações sancionadoras hostis inclui os EUA, a UE, o Canadá e, na Ásia, Japão, Coreia do Sul, Formosa e Singapura (a única do Sudeste Asiático). Repare como a dita "comunidade internacional" continua a encolher.

O Sul Global deveria estar consciente de que nenhuma nação da Ásia Ocidental, América Latina e África se juntou ao comboio das sanções de Washington.

Moscovo ainda nem sequer anunciou o seu próprio pacote de contra-sanções. No entanto, um decreto oficial "Sobre a ordem temporária das obrigações para com certos credores estrangeiros" que permite às empresas russas liquidarem as suas dívidas em rublos, dá uma pista do que está para vir.

As contra-medidas russas giram todas em torno deste novo decreto presidencial, assinado no sábado passado, que o economista Yevgeny Yushchuk define como uma "mina terrestre de retaliação nuclear".

Funciona assim: para pagar empréstimos obtidos de um país sancionador que excedam 10 milhões de rublos por mês, uma empresa russa não tem de fazer uma transferência. Ela pede a um banco russo que abra uma conta correspondente em rublos sob o nome do credor. A seguir a empresa transfere rublos para esta conta à taxa de câmbio do dia e é tudo perfeitamente legal.

Pagamentos em divisas estrangeiras só passam pelo Banco Central numa base casuística. Eles devem receber autorização especial da Comissão Governamental para o Controlo do Investimento Estrangeiro.

O que isto significa na prática é que a maior parte dos cerca de US$478 mil milhões da dívida externa russa pode "desaparecer" dos balanços dos bancos ocidentais. O equivalente em rublos será depositado algures, em bancos russos, mas os bancos ocidentais, tal como estão as coisas, podem não ter acesso a ele.

É discutível se esta estratégia simples foi o produto daqueles cérebros não soberanistas reunidos no Banco Central russo. É mais provável que tenha havido contributos do influente economista Sergei Glazyev, um antigo conselheiro de topo do Presidente russo Vladimir Putin sobre integração regional: aqui está uma edição revista, em inglês, do seu ensaio inovador Sanctions and Sovereignty, que resumi anteriormente.

Enquanto isso, o Sberbank confirmou que irá emitir os cartões de débito/crédito Mir da Rússia em conjunto com o UnionPay da China. O Alfa-Bank – o maior banco privado da Rússia – também emitirá cartões de crédito e de débito UnionPay. Embora introduzido há apenas cinco anos, 40% dos russos já possuem um cartão Mir para uso interno. Agora poderão também utilizá-lo internacionalmente, através da enorme rede do UnionPay. E sem Visa e Mastercard, as comissões sobre todas as transacções permanecerão na esfera Rússia-China. Desdolarização efectiva.

Sr. Maduro, dê-me um pouco de petróleo

As negociações das sanções iranianas em Viena podem estar a chegar à última fase – como reconhecido até pelo diplomata chinês Wang Qun. Mas foi o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, que introduziu uma nova variável crucial nas discussões finais de Viena.

Lavrov tornou a sua exigência da décima primeira hora bastante explícita: "Pedimos uma garantia escrita... de que o actual processo [de sanções à Rússia] desencadeado pelos Estados Unidos não prejudica de forma alguma o nosso direito ao comércio livre e pleno, à cooperação económica e de investimento e à cooperação técnico-militar com a República Islâmica".

Segundo o acordo do Plano de Acção Global Conjunto (Joint Comprehensive Plan of Action, JCPOA) de 2015, a Rússia recebe urânio enriquecido do Irão e troca-o por yellowcake e, em paralelo, está a reconverter a central nuclear Fordow do Irão num centro de investigação. Sem as exportações iranianas de urânio enriquecido não há simplesmente nenhum acordo da JCPOA. É surpreendente que o secretário de Estado dos EUA, Blinken, pareça não entender isso.

Toda a gente em Viena, até os que estão à margem, sabe que para todos os actores assinarem o renascimento da JCPOA, nenhuma nação deve ser individualmente visada em termos de comércio com o Irão. Teerão também o sabe.

Assim, o que agora está a acontecer é um jogo elaborado de espelhos persas, coordenado entre as diplomacias russa e iraniana. O Embaixador de Moscovo em Teerão, Levan Jagaryan, atribuiu a reacção feroz a Lavrov em alguns bairros iranianos a um "mal-entendido". Tudo isto será jogado nas sombras.

Um elemento extra é que, segundo uma fonte de inteligência do Golfo Pérsico com acesso privilegiado iraniano, Teerão já pode estar a vender até três milhões de barris de petróleo por dia, "portanto, se assinarem um acordo, este não afectará de modo algum o fornecimento, apenas lhes será pago mais".



A administração americana do Presidente Joe Biden está agora absolutamente desesperada: hoje proibiu todas as importações de petróleo e gás da Rússia, que por acaso é o segundo maior exportador de petróleo para os EUA, atrás do Canadá e à frente do México. A grande "estratégia de substituição" energética russa dos EUA consiste em mendigar petróleo ao Irão e à Venezuela.

Assim, a Casa Branca enviou uma delegação para falar com o Presidente venezuelano Nicolás Maduro, liderada por Juan Gonzalez, o principal conselheiro da Casa Branca para a América Latina. A oferta dos EUA é "aliviar" as sanções contra Caracas em troca de petróleo.

O governo dos Estados Unidos passou anos – senão décadas – a queimar todas as pontes com a Venezuela e o Irão. Os EUA destruiram o Iraque e a Líbia, e isolaram a Venezuela e o Irão, na sua tentativa de tomar os mercados petrolíferos globais – só para acabar miseravelmente por tentar comprar a ambos e escapar a ser esmagado pelas forças económicas que desencadeou. Isto prova, mais uma vez, que os "decisores políticos" imperiais são absolutamente ignorantes.

Caracas irá exigir a eliminação de todas as sanções contra a Venezuela e a devolução de todo o seu ouro confiscado. E parece que nada disto foi esclarecido com o 'Presidente' Juan Guaido, o qual desde 2019 era o único líder venezuelano "reconhecido" por Washington.

Coesão social dilacerada

Enquanto isso, os mercados de petróleo e gás estão em pânico total. Nenhum trader ocidental quer comprar gás russo; e isso nada tem a ver com a empresa estatal russa de energia Gazprom, a qual continua a abastecer devidamente os clientes que assinaram contratos com tarifas fixas, de US$100 a US$300 (outros estão a pagar mais de US$3.000 no mercado spot).

Os bancos europeus estão cada vez menos dispostos a conceder empréstimos para o comércio de energia com a Rússia devido à histeria das sanções. Uma forte pista de que o gasoduto Rússia-Alemanha Nord Stream 2 pode estar literalmente enterrado é que o importador Wintershall-Dea anulou a sua parte do financiamento, assumindo de facto que o gasoduto não será lançado.

Todos os que têm cérebro na Alemanha sabem que dois portos metaneiros extra para a recepção de gás natural liquefeito (GNL) – ainda por construir – não serão suficientes para as necessidades de Berlim. Simplesmente não há GNL suficiente para os abastecer. A Europa terá de lutar com a Ásia sobre quem pode pagar mais. A Ásia vence.

A Europa importa cerca de 400 mil milhões de metros cúbicos de gás por ano, sendo a Rússia responsável por 200 mil milhões. É impossível a Europa encontrar 200 mil milhões de dólares em qualquer outro lugar para substituir a Rússia – seja na Argélia, no Qatar ou no Turquemenistão. Para não mencionar a sua escassez dos portos metaneiros necessários.

Assim, obviamente, o principal beneficiário de toda esta confusão serão os EUA – que poderão impor não só os seus terminais e sistemas de controlo, mas também lucrar com empréstimos à UE, vendas de equipamento, e acesso pleno a toda a infraestrutura energética da UE. Todas as instalações de GNL, tubagens e armazéns serão ligados a uma única rede com uma única sala de controlo: um sonho empresarial americano.

A Europa será deixada com uma produção de gás reduzida para a sua – em declínio – indústria; perdas de emprego; diminuição dos padrões de qualidade de vida; aumento da pressão sobre o sistema de segurança social; e, por último mas não menos importante, a necessidade de solicitar empréstimos extra-americanos. Algumas nações voltarão ao carvão para aquecimento. O Desfile Verde será lívido.

E quanto à Rússia? Como hipótese, mesmo que todas as suas exportações de energia fossem reduzidas – e não o serão, os seus principais clientes estão na Ásia – a Rússia não teria de utilizar as suas reservas estrangeiras.

O ataque russofóbico total às exportações russas também visa metais como o paládio – vital para a electrónica, desde computadores portáteis a sistemas aeronáuticos. Os preços estão a disparar. A Rússia controla 50% do mercado global. Depois há os gases nobres – néon, hélio, árgon, xenon – essenciais para a produção de microchips. O titânio subiu um quarto e tanto a Boeing – em um terço – como a Airbus – em dois terços – dependem do titânio da Rússia.

Petróleo, alimentos, fertilizantes, metais estratégicos, gás néon para semicondutores: tudo a arder aos pés da Feiticeira Rússia.

Alguns ocidentais que ainda apreciam a realpolitik bismarckiana começaram a interrogar-se se a blindagem da energia (no caso da Europa) e os fluxos de mercadorias seleccionadas das sanções não terá tudo a ver com a protecção de uma imensa extorsão: o sistema de commodities derivativas.

Afinal, se isso implodir, devido a uma escassez de mercadorias, todo o sistema financeiro ocidental explode. Isto é que é um verdadeiro fracasso do sistema.

A questão chave para o Sul Global digerir é se o "ocidente" não está a cometer suicídio. O que temos aqui, essencialmente, são os Estados Unidos a destruírem deliberadamente a indústria alemã e a economia europeia – bizarramente, com a sua conivência.

Destruir a economia europeia significa não permitir espaço extra de mercado para a China, e bloquear o inevitável comércio extra que será uma consequência directa de trocas mais estreitas entre a UE e a Parceria Económica Global Regional (Regional Comprehensive Economic Partnership, RCEP), o maior acordo comercial do mundo.

O resultado final será os EUA a comerem as poupanças europeias ao almoço enquanto a China expande a sua classe média para mais de 500 milhões de pessoas. A Rússia vai sair-se muito bem, tal como esboça Glazyev: soberana – e auto-suficiente.

O economista americano Michael Hudson esboçou de forma concisa os lineamentos da auto-implosão imperial. Mas muito mais dramático, como catástrofe estratégica, é como os surdos, mudos e cegos desfilam em direcção a uma recessão profunda e a uma quase hiperinflação, que irá dilacerar o que resta da coesão social do Ocidente. Missão Cumprida.

08/Março/2022

[*] Jornalista.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Paz em tempos de guerra


Carmo Afonso, 
in Público, 
09/03/2022

Dá-se o improvável: quem está envolvido no conflito parece estar disposto a negociar. Quem assiste não.


(O meu comentário: Os líderes europeus, presos pela trela dos EUA, tentam dar cabo de todas as negociações. Que os EUA queiram uma guerra na Europa porque é fora do seu território até se percebe. Que a Europa queira caminhar alegremente para tal é a insanidade total, que só revela que a Europa atual não passa de uma colónia dos EUA, sendo os nossos líderes uma espécie de marionetas. Estátua de Sal, 09/03/2022)



Notam-se tímidos sinais de paz. O caminho está encetado.

A China, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, declarou estar disponível para promover as negociações de paz e ser mediadora no conflito. Não se consegue pensar em melhor mediador.

Zelenskii, numa entrevista à estação de televisão ABC News, afirmou ser possível um compromisso para a Crimeia e para o Donbass (que integra as regiões separatistas de Lugansk e Donetsk). Declarou igualmente um recuo na sua pretensão de adesão da Ucrânia à NATO. Desde o início ficou clara, para quem quis dar atenção aos antecedentes desta guerra, a importância da possibilidade de adesão à NATO na infeliz decisão de Putin.

Do lado de Putin - e atendendo à lista de condições para a paz que a Rússia deu a conhecer – parece ter existido a desistência da suposta desnazificação e a concretização da solução pacífica assente nos exatos pontos (apesar de em moldes diferentes) que Zelenskii referiu na entrevista; Putin insiste no reconhecimento da independência das regiões separatistas e numa revisão constitucional que impeça a Ucrânia de aderir à NATO, ficando obrigada a manter a sua neutralidade. Parece que nada é dito sobre a UE, o que indicia que poderá ser mais uma razão de entendimento. A Ucrânia pretendia essa adesão.

Falta muito para um entendimento e existem claros sinais que apontam para a intensificação do conflito. Mas hoje vamos continuar a falar sobre a possibilidade da paz.

Ela pode chegar só depois de mais mortes e de mais destruição, mas acabará sempre por chegar. Diz-se no ditado: “Não há bem que sempre dure, não há mal que não se acabe”. Esta expressão da sabedoria popular parece indicar que o futuro é mais risonho para quem está mal do que para quem está bem. É certo que traz bom augúrio para quem mais precisa.

O bom senso costuma exigir que se privilegiem os esforços para a paz; que seja valorizado cada pequeno avanço. Por estranho que pareça este é um tema entre nós. E é também esse o tema aqui e não uma qualquer adivinhação acerca do bom ou mau desfecho destas negociações: porque é que tão poucos acreditam nas negociações? Porque se nota apego pela ideia da derrota militar de Putin em detrimento da solução pacífica?

Dá-se o improvável: quem está envolvido no conflito parece estar disposto a negociar. Quem assiste não. As negociações para a paz contrariam o princípio da maldade intrínseca e gratuita de uma das partes. Assim sendo, contrariam quem a tem defendido. As pessoas ficam de facto reféns das posições que defendem e ninguém gosta de perder. Agora reparem que este é o princípio que leva à guerra e que a agudiza.

Na guerra existe sempre um derrotado, numa negociação não pode, e não deve, ser assim

Não obstante o conflito que está a decorrer, as partes entregam esforços a um propósito conciliatório. E as negociações têm implícitas cedências. Existe aqui a frágil possibilidade de ceder sem perder. Uma negociação deve distinguir-se da antecipação dos resultados práticos de uma derrota. Na guerra existe sempre um derrotado, numa negociação não pode, e não deve, ser assim.

O caminho instintivo de cada um é o da guerra, o de fazer valer as suas razões. É sabido que quem quer ter sempre razão quase nunca tem paz. Mas este caminho é possível, e pode até ser meritório, a nível individual. Nada a corrigir. Só que as soluções individuais são perigosas quando trazidas ao nível colectivo.

Recordar um excerto da Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville: “Todos os dias se cometiam delitos nessa colmeia (...). Mas nem por isso a colmeia era menos próspera porque os vícios dos particulares contribuíam para a felicidade pública”. Será talvez o melhor a que conseguimos chegar como grupo. Um mundo em que os nossos defeitos privados se diluem na harmonia da vida colectiva. Salve-se essa parte.

Em tempos de paz houve quem se preparasse para a guerra. Pois agora é justo e consolador ver que, em tempos de guerra, existe quem se prepara para a paz. Novamente um bom augúrio para quem mais precisa.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico