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sábado, 31 de outubro de 2020

Sobre gelo fino


Por 
Miguel Sousa Tavares
Expresso
31.10.2020

1 O que torna os tempos actuais verdadeiramente terríveis para tomar decisões — sejam decisões políticas, económicas, empresariais ou até pessoais — é que ninguém conhece ao certo um factor determinante em qualquer tomada de decisão: o timing adequado para cada medida, quando deverá ser tomada e por quanto tempo. Em relação à tão esperada vacina, por exemplo, dizem os optimistas que antes da próxima Primavera não haverá uma vacina eficaz e segura, pronta a ser distribuída à escala global; dizem os realistas que isso não acontecerá antes do final do ano; e dizem os pessimistas que nem mesmo a existência de uma vacina significará o fim do problema. E sem saber quando e como é que o problema terá fim, não é possível escolher medidas para o combater, desconhecendo-se a necessidade da sua duração e as suas consequências. É por isso que todos os governos parecem paralisados ou, na melhor das hipóteses, navegando à vista, sem bússola nem rumo fixado.



O dilema mais óbvio é o da escolha entre a economia e a saúde das pessoas. Diz-se que uma vida humana não tem preço, mas também se diz que matar a economia é uma outra forma de matar pessoas — e ambas as coisas são afirmações incontestáveis. Só que isso não facilita qualquer opção. O economista francês Patrick Artus resolveu fazer um exercício politicamente incorrecto, que foi o de calcular o custo de cada vida humana salva pela decisão de confinamento geral tomada pelo Governo de Emmanuel Macron na Primavera passada (e num momento em que a França, se não acontecer um milagre até lá, se prepara para regressar ao confinamento na próxima quarta-feira). Partindo dos dados dos epidemiologistas que calcularam que cada um dos dois meses de confinamento em França evitou 20.000 mortes, e calculando, por seu lado, que um mês com a economia parada custou à França 5% do PIB e 2,5% de aumento da taxa de desemprego a longo prazo, ele chegou a um número representativo do custo de uma vida humana salva pelo confinamento. Um número arrasador: seis milhões de euros! Não sei se as suas contas estão certas ou erradas, mas são contas semelhantes a estas que os governantes de toda a Europa têm em cima da mesa, na hora de decidir o que fazer.

Porém, ouvindo e lendo as opiniões sobre o assunto (e os comentários online a essas opiniões), parece que os portugueses, em geral, estão carregados de certezas absolutas, mesmo que de sinal oposto. Todos acreditam saber mais do que os outros sobre a covid, as medidas que já deveriam ter sido tomadas e não foram, ou aquelas que foram tomadas e não deveriam ter sido, porque tudo isto, afinal, não passa de um embuste, as máscaras não servem para nada e o que o Governo quer é “roubar-nos o Natal” (não por acaso, Trump diz o mesmo de Biden), como se algum Governo ganhasse popularidade estragando o Natal aos governados. Uns indignam-se com a Fórmula 1 na Mexilhoeira Grande, outros acham-na essencial para relançar o turismo no Algarve. Mas em duas coisas, pelo menos, todos parecem concordar: estão todos fartos da covid — o que é uma boa pista para encontrar uma solução; e todos já teriam despedido a ministra Marta Temido, incluindo um colunista que, alicerçado nos seus invocados 120.000 seguidores no Facebook, o faz em linguagem de carroceiro, que explica, afinal, porque é importante a frequência da tal disciplina liceal de Cidadania. E, no fim, não tendo mais desabafos nem verdades evidentes para descarregar nas redes sociais, vão às dezenas de milhares fazer fila para votar nas eleições do Benfica ou ver as ondas gigantes do canhão da Nazaré. Horas a fio, em dias de semana e em horário de trabalho: a vida como sempre, o antigo normal.

2 De facto, já era madrugada aqui e regressava eu do meu fuso horário das eleições americanas, como sempre carregado de espanto, angústia e pavor, quando faço um zapping final pelas nossas televisões. Nada menos do que seis canais — seis! — estavam em directo do Estádio da Luz, transmitindo o desfecho das eleições do Sport Lisboa e Benfica. No nosso late night news era o único, rigorosamente o único assunto que ocupava as televisões: nem covid, nem Orçamento do Estado, nem eleições americanas, nem a tensão Turquia-França, nada mais — só as eleições no Sport Lisboa e Benfica. Subiu ao palco dos seis canais o candidato derrotado com 36% dos votos, que falou como um vencedor e como falaria um futuro primeiro-ministro da nação: agradeceu ao pai, à mulher e aos filhos, e, como político sabido, respondeu à pergunta sobre se voltaria a recandidatar-se dizendo que prometera que não à família mas que nunca diria que não aos benfiquistas. Depois, as televisões foram em directo até à ‘sede de campanha’ do terceiro candidato: um fulano que viveu nos últimos anos a vomitar ódio aos rivais nos programas de futebol gritado das televisões, julgando com isso angariar popularidade entre os benfiquistas, mas recolhendo, afinal, uns humilhantes 1,6% dos votos. Compreensivelmente, o candidato bem-falante não estava à vista e regressaram ao Estádio da Luz, onde o candidato vencedor se preparava para tomar posse para o que, avisadamente, prometeu ser o seu último mandato, no final do qual terá cumprido 22 à frente do S.L.B. — ainda longe dos 42 de Pinto da Costa à frente do F.C.P. E cada um deles recandidatando-se ao arrepio das melhores teorias políticas, não por causa dos seus êxitos, mas justamente por causa dos seus fracassos: o primeiro, para conseguir que o clube deixe de ser uma anedota desportiva, em termos europeus; o segundo para tirar o clube da falência a que a sua gestão o levou. Mas, nessa altura da noite, já tinha visto o suficiente e também não fiquei para ouvir o discurso de vitória do candidato apoiado pelo primeiro-ministro, pelo presidente da Câmara de Lisboa e pelo líder parlamentar do CDS.

... no fim, não tendo mais verdades evidentes sobre a covid para descarregar nas redes sociais, os portugueses vão às dezenas de milhares fazer fila para votar nas eleições do Benfica ou ver as ondas gigantes do canhão da Nazaré. Horas a fio, em dias de semana e em horário de trabalho: a vida como sempre, o antigo normal

3 Depois do atentado terrorista que causou vários mortos na redacção do jornal francês “Charlie Hebdo”, foi moda de bom tom todos se declararem “Je suis Charlie”. Fizeram-se T-shirts, toalhas de praia e cartazes, organizaram-se manifestações, proclamações e abaixo-assinados. Nunca me apeteceu aderir: je ne suis pas Charlie. Não que tenha a menor complacência com o terrorismo, seja qual for a sua motivação, a sua justificação ou a sua desculpa. Uma coisa é a guerrilha, a luta armada, a resistência, certa ou errada, contra um inimigo armado, outra coisa é o terrorismo cobarde contra inocentes desarmados. Mas o que o “Charlie Hebdo” faz hoje não é jornalismo nem é um exercício de liberdade de imprensa: é pura provocação gratuita e ofensa às crenças religiosas alheias: é terrorismo jornalístico. Ainda a semana passada trazia uma caricatura do primeiro-ministro turco, Erdogan, sentado numa retrete a defecar. Ora, Erdogan, é um dos tiranos europeus da actualidade, um homem decerto sinistro, que se toma pelo novo sultão otomano e que tem planos perigosos para toda a região do Oriente próximo. Fruto — mais um — da ausência de uma visão de política externa de Donald Trump, ele vem conquistando espaço e influência na região, passo a passo e com intenções que são uma ameaça à segurança da Europa e dos seus vizinhos, e a que só a França tem tido a coragem de se opor. Certamente que ele merece ser atacado e confrontado, mas não como o “Charlie Hebdo” o fez. E, pior ainda: acrescentando à caricatura uma referência ordinária ao Profeta — o que é uma obsessão do jornal.

Ora, atacar o Islão desta forma é ofender gratuitamente centenas de milhões de fiéis seguidores do islamismo, cuja fé a França laica respeita, por imperativo constitucional. Mas não apenas isso: o Islão representa também uma civilização e uma cultura que fazem parte da nossa história de povos do sul e que foi absolutamente extraordinária. Os meninos do “Charlie Hebdo”, que brincam aos jornalistas, não sabem o que fazem nem do que falam: deviam ir visitar o Alhambra, em Granada, para começarem a perceber a imbecilidade das suas caricaturas.

Isto posto, resta dizer que Emmanuel Macron tem toda a razão quando diz que a França está sob ataque aos seus valores republicanos fundamentais. Se alguns, infelizmente, usam o valor inalienável da liberdade de expressão para ofender a fé e a cultura de outros, a solução não é abolir a liberdade de expressão. E se os outros, sentindo-se ofendidos, não entendem esses valores e julgam que a resposta se dá degolando pessoas ou colocando bombas para matar inocentes, se são eles próprios que transformaram a ideia luminosa do Islão na ideia sinistra do regresso à barbárie e às trevas e se são eles que escolheram fazer do “Alcorão” um manual de assassínios, a França tem o direito e o dever de se defender por todos os meios — todos — desta gente que não merece viver nas nossas sociedades. E todos nós temos o dever de ser solidários com a França.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

António, chame o Pedro Nuno


Por estatuadesal
Ana Sá Lopes,
in Público,
27/10/2020

O que aconteceu não podia ter acontecido. O PS e o Bloco têm que se entender para que o Governo aguente quatro anos.



Enquanto nos Açores começava o princípio do fim do ciclo socialista (com a perda da maioria absoluta ao fim de 24 anos no poder), a líder do Bloco de Esquerda anunciava o voto contra o Orçamento do Estado, pré-anunciando um fim de ciclo no governo da República. O PS é minoritário e, a menos que deseje governar em bloco central, o que já disse que não faria, está condenado a entender-se com o Bloco de Esquerda. O PCP, relativamente ao qual António Costa não esconde as suas preferências, não chega para fazer a maioria. PAN e deputadas independentes vão agora ajudar, mas no ano que vem não sabemos.

Costa contava com a maioria absoluta em 2019 e começou a descartar a “geringonça”, que formou para chegar ao poder, já no fim da última legislatura. Ao não aceitar novos acordos escritos, sonhou com aquilo que as urnas não lhe deram: um poder para fazer exactamente aquilo que quisesse, conforme os seus melhores interesses. À “humildade” de 2015 sucedeu a arrogância de 2020. A relação estragou-se. Quem ouvisse Duarte Cordeiro e, no dia anterior, Catarina Martins, não acreditava que estes dois partidos tiveram um acordo durante quatro anos.

Não vai adiantar grande coisa a fúria de vários dirigentes do PS contra o Bloco, criticando-lhe “a sua natureza” ou afirmando agora velhos ódios que, nos últimos anos, estiveram mais ou menos escondidos. Há um problema de base: a menos que o PCP suba muito – e, infelizmente, as sondagens não mostram que isso esteja a acontecer –, o PS está condenado a entender-se com o Bloco de Esquerda, agora e no futuro, assim como o PSD está, desde os alvores da democracia, condenado a governar com o CDS. E isso também não é fácil: perguntem a Passos Coelho, que assistiu à “demissão irrevogável” de Paulo Portas. Ou a Marcelo – que não foi primeiro-ministro porque Portas acabou com a AD de 1999, na qual o próprio Marcelo também já não acreditava.

A relação entre Costa e o Bloco de Esquerda está agora completamente deteriorada. Apesar de Duarte Cordeiro ser um dos melhores activos do PS da nova geração, é caso para perguntar se, caso fosse o “esquerdista” Pedro Nuno Santos a conduzir as negociações, as coisas tinham chegado a este ponto. Na altura, atribuía-se parte do sucesso da geringonça ao facto de o negociador ser um homem que sempre defendeu a coligação das esquerdas, por quem tinha apreço manifesto. Uma coisa que, em relação ao Bloco, há muito que Costa não tem.

É claro que vai ser difícil para o Bloco explicar a parte do seu eleitorado porque é que vota contra um Orçamento que tem uma forte componente social. O Bloco pode perder votos – e as presidenciais serão uma “grande sondagem”. Mas quem quer continuar a ser governo até 2023 é o PS. E para que isso aconteça tem que rapidamente refazer as relações com o Bloco. Chamem o Pedro Nuno. Ele, que quer ser líder do PS quando António Costa “meter os papéis da reforma”, sabe melhor do que ninguém que precisa do Bloco para fazer um governo, se for caso disso. E vai matar-se para arranjar um acordo.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Covid-19: urge pôr fim à mercantilização dos serviços públicos


Por
Olivier De Schutter, Relator Especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos 
e Léo Heller, Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Água Potável e Saneamento 
26 Outubro 2020

Um grupo de relatores especiais das Nações Unidas deixa um alerta: “levar os direitos humanos a sério implica abandonar a ideia de que os Estados ocupam o segundo lugar face às entidades privadas.” A pandemia de Covid-19 veio expor as terríveis consequências de décadas de privatização e mercantilização. De um dia para o outro, vimos hospitais a transbordar, profissionais de saúde sem equipamento de proteção, lares de idosos transformados em morgues, filas para fazer testes ao longo de semanas e escolas que tudo tentaram para se conectar com crianças e jovens confinados. Durante todo este tempo, as pessoas foram instadas a ficar em casa quando, na verdade, centenas de milhões não tinham um local de residência adequado, não tinham acesso a água e saneamento, não tinham proteção social.




Precisamos, assim, de uma mudança de rumo radical. Décadas de transferência do fornecimento de bens e serviços sociais para entidades privadas resultaram, muitas vezes, em ineficiência, corrupção, diminuição da qualidade, aumento de custos e consequente endividamento das famílias. Os pobres foram marginalizados e o valor social das necessidades básicas acabou por ser destruído. Houve um lampejo de esperança quando, de repente, no meio da crise, as pessoas começaram a reconhecer o papel central dos serviços públicos para o funcionamento da sociedade. “O que esta pandemia revelou é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado”, resumiu o presidente francês Emmanuel Macron.

Mas, além das declarações políticas, há sinais preocupantes de que não se foi além das declarações retóricas. Basta ver o que está a acontecer com a água, um bem ainda mais vital agora que lavar as mãos é a melhor maneira de nos protegermos do vírus. Cerca de quatro biliões de pessoas no mundo sofrem de grave escassez de água durante pelo menos um mês por ano. É o caso, por exemplo, da província chilena de Petorca, devido ao uso excessivo de água por empresas produtoras de abacate que operam na área. O Ministério da Saúde decidiu aumentar a alocação diária de água para 100 litros por pessoa, mas apenas oito dias depois revogou a decisão, colocando os interesses das empresas privadas acima dos direitos da sua população.

E o que dizer da tão esperada vacina? Reconhecendo que não se pode confiar nas forças de mercado, mais de 140 líderes e especialistas mundiais apelaram aos governos e instituições internacionais para garantir que os testes, tratamentos e vacinas Covid-19 sejam disponibilizados a todos sem nenhum custo. Isto parece irrealista, uma vez que as empresas farmacêuticas continuam a competir pela primeira vacina e a vendê-la a quem fizer a melhor oferta.

O setor da Educação também foi afetado. Apesar de centenas de escolas privadas terem abandonado os seus alunos e funcionários durante a crise, o Banco Mundial mantém a sua posição de que sistemas privatizados e soluções de mercado devem ser promovidos a todo o custo. Esta é uma recomendação particularmente influente, num momento em que os países de baixo rendimento estão a endividar-se.

O mantra global de praticar uma “distância saudável” para evitar a propagação do coronavírus é inútil para os cerca de 1,6 biliões de pessoas que não têm habitação adequada e para os 2% da população mundial em situação de sem-abrigo. Pior, na área da habitação, a maior parte dos governos não parecem estar dispostos a regular os players financeiros que ajudaram a criar estas condições.  A financeirização da habitação resultou no aumento das rendas, no despejo de inquilinos, na falta de manutenção e no açambarcamento de unidades vazias para reforçar os lucros. Os efeitos são ainda mais graves no contexto da pandemia.

Com a mercantilização de bens e serviços públicos, os governos não estão a cumprir com as suas obrigações em matéria de direitos humanos. Não somos mais titulares de direitos, senão clientes de empresas privadas que buscam somente a maximização do lucro e são responsáveis apenas perante os seus acionistas. Isto afeta as nossas democracias, acentua as desigualdades e gera uma segregação social insustentável.

Somos seis especialistas independentes das Nações Unidas, atuais e antigos Relatores Especiais sobre direitos humanos. É nesta qualidade que queremos partilhar esta mensagem: levar os direitos humanos a sério implica abandonar a ideia de que os Estados ocupam o segundo lugar face às entidades privadas. Precisamos de alternativas. Chegou o momento de dizer claramente que a mercantilização da saúde, da educação, habitação, água, saneamento e outros bens e serviços não só exclui os mais pobres, como pode levar a violações dos direitos humanos.

As obrigações dos direitos humanos não cessam para os Estados quando eles delegam bens e serviços básicos a empresas privadas e ao mercado, muito menos quando o fazem sob condições que prejudicam o cumprimento dos direitos e a subsistência de muitas pessoas. Também é necessário que as organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, deixem de impor aos países a privatização dos serviços públicos.

Apelamos a todos aqueles que estão empenhados na salvaguarda dos direitos humanos que enfrentem as consequências da privatização. Assim como algumas organizações de direitos humanos começaram a alertar sobre a necessidade de sistemas fiscais justos, chegou o momento de responsabilizar os responsáveis pelos impactos tremendos da privatização.  Os direitos humanos podem ajudar a articular o tipo de bens e serviços públicos que desejamos: participativos, transparentes, sustentáveis, responsáveis, não discriminatórios e ao serviço do bem comum.

Esta pandemia é provavelmente a primeira de uma série de grandes crises que se avizinham, desencadeadas pela emergência climática. O mundo assinalou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, a 17 de outubro, imerso numa recessão económica sem precedentes desde a Grande Depressão. A crise da Covid-19 deverá empurrar mais 176 milhões de pessoas para a pobreza. Os direitos humanos estão em risco de ser violados, a menos que haja uma mudança drástica do modelo e investimento em serviços públicos de qualidade. Não é uma normalidade a que se possa regressar.

Este texto é assinado em conjunto com Juan Pablo Bohoslavsky, ex-Especialista independente das Nações Unidas em Dívida Externa e Direitos Humanos; Koumba Boly Barry, Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Educação; Leilani Farha, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Direito a Habitação Adequada; e Magdalena Sepúlveda Carmona, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos

Incongruências e falhas


Por
João Abel de Freitas,
26 Outubro 2020

Revejo-me em Mariana Mazzucato. O Estado empreendedor não é “o sector público em combate com o sector privado, mas um Estado com efeito catalisador e motor do desenvolvimento económico, assente na inovação”. 



Este artigo não é uma análise do OE 2021, nem pretende ser. Apenas se constata que nele as pessoas contam, embora em certos aspectos tenha faltado ambição. Estamos perante um OE de elevado cunho social. Na situação de pandemia que vivemos, em que muitos grupos e profissões viram os seus rendimentos cerceados, seria até anti natura um governo de pendor socialista não assumir a saúde e a solidariedade, e porque não a educação, como as suas principais prioridades. 

Mas não se espere deste orçamento o “milagre” para a crise económica. Neste domínio deveria ter vindo munido de visão e enquadramento. Umas páginas bem urdidas, onde se tecesse a filosofia do financiamento do investimento futuro, ou seja, o papel do Estado, Empresas e Fundos comunitários, bastavam. 

Aqui, limito-me a apontar algumas incongruências e falhas, umas simples, outras de princípio. Evitariam tanta conversa oca, descontextualizada e despropositada, de políticos (pouco inteligentes) e sobretudo de comentadores, com recurso a “especialistas” de estudos das multinacionais, para atacar este OE no tocante aos incentivos às empresas. 
Família grisalha 

A família grisalha, entendida como o grupo populacional dos aposentados, pensionistas e reformados, já foi aqui comentada algumas vezes. Nomeadamente, no artigo “Governo esquece família grisalha”, no qual referi que a devolução de rendimentos a este grupo estava longe de estar tratada em pé de igualdade com as pessoas no activo. Em vencimentos acima de mil e poucos euros escrevi o “governo da geringonça” ainda não tinha devolvido os cortes salariais nos moldes das pessoas no activo, situação que permanece. Daí poder inferir tratar-se não de um caso de circunstância a aguardar melhor desafogo das finanças públicas, mas de discriminação efectiva. 

E neste OE 2021 um governo de esquerda discrimina de novo a família grisalha na questão “redução da retenção na fonte do IRS”. 

Por que razão a pessoa no activo é apanhada por esta medida e o reformado, pensionista ou aposentado não o é? De todo, não entendo. Ou melhor, entendo. Discriminação pura e cega. Uma atitude de fundo, profundamente discriminatória e reaccionária. Em bom português, está-lhe na massa do sangue. 

Esta discriminação espanta e até levou ao engano os fiscalistas comentadores. Só o secretário de Estado, Nuno Mendes, tentou justificar o injustificável de forma “gaga” e não verdadeira, afirmando que neste grupo de contribuintes a taxa de retenção corresponde sensivelmente ao real. Fica-lhe mal. Assuma que assumiu uma atitude que fere princípios de equidade. 

Tem muito pouco impacto a medida e até há quem prefira como está. A mim repugna-me a discriminação de princípio que, repito, fere uma filosofia de esquerda. Amputar o país desta “fatia” é deitar muita gente fora. E também me espanta que os partidos com relevo para os de esquerda nem tenham falado desta situação. 

Como informação bruta, isto é, não trabalhada, registo que o número total de pensões no país era de 3,6 milhões, em 2019, atingindo 40,5% da população. Em 1970, apenas 4,2%. 

O orçamento devia conter uma perspectiva relacionada 

A este OE 2021 falhou uma perspectiva relacionada, importante em todos os OE, mas neste de forma especial e, provavelmente nos próximos, enquanto houver pandemia e os orçamentos saírem fora do normal. 

O que quero dizer com isto? 

Que pelo menos no que se refere aos investimentos no curto e médio prazo devia constar, em paralelo ou como peça do próprio orçamento, uma análise das potencialidades que se oferecem ao país ao nível do financiamento para investimento. Evidente, este documento não podia ser da responsabilidade apenas do Ministério das Finanças. Com este documento ficava claro o papel do Estado, das Empresas e dos Fundos. 

Vantagens? 

Clarificação. Tinha-se ficado a saber, por exemplo, que o Plano de Recuperação e Resiliência entregue em Bruxelas contém 6.000 milhões de euros para as empresas, o que não é nada pouco (48%) em 12,5 mil milhões. Sei que não é fácil produzir este trabalho porque a Administração Pública foi decapitada destas funções. Alguém sabe onde anda, por exemplo, o Departamento de Planeamento e Prospectiva (DPP)? 

Já ouvi o actual ministro do Plano falar destas limitações técnicas e dizer “preparar técnicos nesta área é urgente”, mas já foi há uns tempinhos… Um excelente campo bem “rentável” para investir na Administração Pública verbas a fundo perdido! 

Se tivesse sido feito o documento complementar podíamos estar aqui a discutir outros temas da maior relevância relacionados com as Empresas, o País e os Fundos. 

Por exemplo, por que razão em Portugal (2019 Eurostat) se trabalha 39,3 horas por semana (um dos índices mais elevados da União Europeia) quando a média é de 36,2 e em países como a Holanda 32,6 horas? Na vizinha Espanha apenas 36,4 horas. 

E apesar de mais trabalho ganha-se tão pouco em Portugal. 

Seria bem mais útil debruçarmo-nos sobre estas razões, inclusive relacionando as causas com as potencialidades de financiamento, no sentido de preparar as normas de orientação e enquadramento. 

De certeza existem causas diferenciadas de produtividades tão baixas na Administração Pública e no sector privado. 

No sector privado serão múltiplos os factores, a dimensão empresarial, a estratégia de muitas empresas em apostar no preço como factor de produtividade em vez da qualidade dos produtos e inovação e, sobretudo, o facto de grande parte das empresas ser gerida por empresários pouco habilitados. Tudo isto coloca a questão: como adequar a gestão dos fundos à mudança desta realidade?! 

Houve actividades que se modernizaram com os fundos anteriores, calçado, vinho, azeite, têxtil, componentes automóveis… Mas o país acusa uma forte desindustrialização, desde a última década do século passado. É preciso uma nova estratégia de desenvolvimento assente na INOVAÇÃO. 

E nesta linha revejo-me em Mariana Mazzucato, ilustre economista, professora de Economia e Inovação em Londres, uma acérrima defensora de um Estado empreendedor, forte e inovador. 

Para ela, o Estado empreendedor não é “o sector público em combate com o sector privado, mas um Estado com efeito catalisador e motor do desenvolvimento económico, assente na inovação”. 

Na realidade, o Estado desempenha o papel crucial na Inovação do país, através das Universidades e de outros Centros de Investigação, e será sempre assim. O capital privado arrisca pouco e o processo da Inovação em si exige tempo, acarreta insucessos e por isso apresenta sérios riscos. As empresas usam a inovação em fase adiantada. 

Mariana Mazzucato afirma mesmo que há inovações que levam 20 anos ou mais a atingir o sucesso e que todos os megassucessos globais nas grandes farmacêuticas, na Internet, etc., só aconteceram porque o Estado esteve presente e desempenhou o papel-chave. Como exemplo aponta os EUA, onde tudo tem por base o Estado, seja na parte civil seja na militar. 

E sobre a apropriação final dos resultados económicos do processo de inovação, uma outra questão societária de fundo, Mariana Mazzucato “acusa os privados de ficarem com os lucros e os louros e não os partilharem com quem os apoiou crucialmente, os contribuintes”. 

Aproveitar o tempo dos Orçamentos para debate de temas tão importantes seria bem mais formativo e pedagógico do que andar à deriva focado apenas nos incentivos às empresas e na atracção do investimento apontando apenas para a baixa de impostos, quando as condições globais no seu conjunto são determinantes. Estado, Empresas e Fundos eis o que falta estudar e debater na perspectiva de uma transformação de fundo da nossa sociedade. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 25 de outubro de 2020

Entre a Encíclica "Fratelli Tutti" (todos irmãos) e o direito dos homossexuais a uma cobertura legal


Texto do Padre Anselmo Borges, doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra, professor da Faculdade de Letras desta Universidade. Foi ordenado em Fátima, em 15 de Agosto de 1967. É autor de vários livros, entre os quais destaco: "Deus no século XXI e o futuro do cristianismo" e "Religião - Opressão ou Libertação".



"Dá que pensar: Francisco publicou uma encíclica histórica, "Fratelli Tutti" (todos irmãos) com orientações proféticas para o futuro de uma humanidade ameaçada e desorientada, e ela passou quase despercebida; veio agora declarar que os casais homossexuais têm direito a uma cobertura legal, e isso é uma das maiores notícias. Entre outras coisas isto revela bem a obsessão sexual com que a Igreja tem vivido e, por isso, a necessidade de pôr fim a essa obsessão, para deixar de ser notícia fundamentalmente por causa do sexo: o celibato (quando acaba essa lei que não vem de Jesus?); a misoginia (como se pode continuar a negar a igualdade de direitos às mulheres?), divorciados, recasados (felizmente Francisco abriu já a porta à possibilidade da comunhão); pedofilia (como foi possível tolerar essa infâmia?). É claro que não vale tudo, mas, com o fim desta obsessão, a Igreja ficará liberta para o anúncio e prática do essencial: o Evangelho, a maior mensagem de felicidade, libertação e dignificação. (...) Trata-se de um passo gigantesco (...) as declarações de Francisco mudam e ajudarão a mudar a posição da Igreja em relação a este tema, nomeadamente quando se pensa em Conferências Episcopais que pretendem a cura homossexual com pseudoterapias (...)"

Publicado no semanário Expresso (24.10.2020)

sábado, 24 de outubro de 2020

Forte de S. José



FACTO

"O Forte de S. José, localizado à entrada do Molhe da Pontinha, deverá ser transformado num restaurante com esplanada. O investimento no valor de um milhão de euros, é da responsabilidade da empresa "Tremel Investments", mas detida por investidores oriundos da Venezuela". Fonte Dnotícias.

COMENTÁRIO

Muito haveria a dizer sobre aquele forte, há alguns anos adquirido, em 2000, pelo madeirense Prof. Renato Barros. Por razões que não domino, nem me interessam, hoje, é património público. Mas não é essa interessante história do designado "Principado da Pontinha" que aqui me traz. O problema é outro e designa-se por saque no quadro do desrespeito pela História.

Não sou historiador e não sou arqueólogo, apenas tenho sensibilidade para a defesa do património. Por esta razão visitei três vezes o Forte de S. José. Duas, para mostrar aos netos um forte com História. Uma terceira para fotografar o novo Savoy. Porque daquele forte a vista é privilegiada. Em todas essas visitas vi o potencial que ali existia enquanto espaço de importância histórica, porque consta terem ali estado João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira. O seu interior é interessante.

Ao longo da minha vida tive a oportunidade de visitar espaços monumentais, tal como outros, pequenos, de menor relevância, muitos "escondidos" por não fazerem parte dos roteiros tradicionais, porém carregados de História. Em todos eles, obviamente, uns mais que outros, senti-me, muitas vezes, esmagado pela História dos povos. Em muitos casos comovi-me, ou pela grandeza ou pelas particularidades. Por isso, pasmo, quando a máquina económica, os interesses particulares e o despudor político, conseguem devorar aquilo que as circunstâncias deveriam aconselhar prudência e respeito. Para a goela sôfrega de uns quantos, aquilo não é mais do que um "rochedo", ao longo dos tempos ligado a um outro que acabaria por dar o actual Molhe da Pontinha. Um restaurante e esplanada possivelmente irão matar o genuíno, quando ali mesmo, a uns 150 metros existe outro (Design Center Nini Andrade Silva).

Eu sei, por isso não estranho, apenas revolta-me, que nos últimos 40 anos, por incúria ou insensibilidade, muito património caiu às mãos de uns quantos camartelos da política. Ou deixaram que o tempo se encarregasse de fazer ruir; ou autorizaram obras sem olhar à História; ou porque a prioridade não era recuperar e preservar, mas "fazer obra" que enchesse os olhos; ou, por desleixo, não classificaram espaços de notoriedade. Tenho para ali uma lista com dados oficiais, que me caiu na mesa, elaborada nas décadas de 1990 e 2000, que testemunha o abandono e ausência de uma cultura de responsabilidade na defesa do património. Curvo-me, no entanto, perante alguns trabalhos realizados. Estou a lembrar-me, entre vários, as espantosas obras de conservação e restauro da Igreja de S. João Evangelista (Igreja do Colégio). Fantástica! Em contraponto, a Capela de S. Paulo (1426), desactivada, à qual estou ligado por laços afectivos, cai aos pedaços apesar dos sucessivos alertas do Historiador Doutor Nelson Veríssimo. 

Espero que os cidadãos em geral se movimentem em defesa do Forte de S. José por maior que seja a sua descaracterização. Há que ir à História, provar a sua importância e proceder a obras que tornem aquele espaço como mais um que ajude a contar a História da Região. Basta de restaurantes e de esplanadas. 

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

42883


Luís Filipe Castro Mendes, 
in Diário de Notícias, 
17/10/2020

Il fenómeno è stato fulmineo e folgorante. Dopo pochi anni le lucciole non c"erano piú.
(Pier Paolo Pasolini)
 

Em criança vivi algum tempo na ilha Terceira. A base aérea americana nas Lajes era todos os fins de semana um lugar de visita em família, onde sons e objetos de um novo mundo, ainda mal conhecido por cá, convidavam ao consumo e acenavam à minha curiosidade.

À data, em 1955, era presidente dos Estados Unidos o republicano Dwight Eisenhower (Ike), o general que comandara as forças que, do lado ocidental, fizeram cair o nazi-fascismo na Europa. Um soldado americano (negro, por sinal) que gostava de brincar comigo, o Jimmy, ofereceu-me então um pin lindíssimo (achei eu na altura) que encerrava o slogan eleitoral de Eisenhower: I LIKE IKE.

Muito mais tarde, quando li Roman Jakobson, descobri que esta sigla lhe serviu para exemplificar aquilo a que o autor chamou "função poética da linguagem", que eu glosarei aqui como a faculdade de as palavras brincarem consigo próprias.

A música das palavras, o jogo das palavras umas com as outras, a chamada função poética, tudo isto é coisa que aprendemos muito pequenos, logo que começamos a falar. No meu caso, a beleza de I LIKE IKE foi seguida de muitos poemas que minha mãe me lia e que eu, mesmo que não atingisse todo o seu sentido, vivia na música, no ritmo e no jogo sem fim que as palavras brincavam no poema.

A poesia não é difícil, ela dá-se a cada um de nós muito cedo na vida e aceitá-la ou recusá-la está desde sempre ao nosso alcance. Mas entre nós (e não só entre nós) a poesia parece estar a viver hoje como a Cinderela da literatura.

Já ninguém sabe já muito bem para que serve a poesia e os que a leem são quase sempre os que também a escrevem ou os que fazem parte de uma tribo silenciosa e secreta, assintomática eu diria, que poucas vezes encontra os seus semelhantes e por isso faz uma festa cada vez que reconhece algum: os leitores de poesia.

O espanto que causou a atribuição do Prémio Nobel a uma criatura que escreve poemas e não aparece na televisão é paralela a uma corrente atitude de maravilhamento bacoco com uma ideia arcaica da poesia como aura sagrada que investe de distinção e doura de vaidade as elucubrações de quem se professe seu seguidor. E é coexistente essa ideia sublimada de poesia, que inventa aprendizes de feiticeiro e promove maldições de ópera bufa, com o real desprezo pela poesia que o dia a dia e a leitura dos jornais nos vai indicando. E no entanto cada vez mais vozes jovens e menos jovens se aventuram por esse caminho, escrita que dificilmente promete publicação ou reconhecimento a quem começa, escrita que exige tudo e nada dá a quem a ela se vota. Só os que escolhem a dificuldade merecem esse rumo, por isso os poetas não começam por ser populares, bonzinhos, jeitosos ou engraçadinhos. Começam por reconhecer que, como avisava Jorge de Sena na sua Carta a Um Jovem Poeta: a poesia é a solidão mesma, não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. E isso é reconhecer que na poesia tudo aprendemos e nada sabemos, nada a não ser a necessidade bruta de seguir essa obstinação sem recurso e sem remédio de continuar a ferirmo-nos contra as palavras.

De Louise Glück, poeta mais que consagrada no cânone da poesia moderna dos Estados Unidos, parecia que nunca aqui ninguém ouvira falar. Tivesse ela escrito um romance saboroso e badalado, fosse ela porta-voz de uma qualquer causa identificada, já os meios de comunicação lhe teriam concedido a mercê de uma referência. Mas não era o caso. Louise Glück só carregava consigo a ferida da poesia, só trazia com ela a sua própria voz sofrida. É uma solidão que assusta e convida a afastar-nos. Só a tribo solitária e assintomática dos leitores de poesia reconheceu nela o odor selvagem de caça por que a poesia se dá a conhecer.

A poesia coexiste mal com o ruído em que estamos a ver desfazer-se a música do mundo. A poesia não é fácil, mesmo quando se dá sem reservas nem disfarces. Por isso ela é relevante e valiosa, mesmo que pouco já esperemos dela. E por isso as palavras de que é feita continuarão a acender luzes por dentro das nossas noites. Teimosamente, como os pirilampos antes de desaparecerem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

A voo de pássaro


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
17/10/2020

"Uma sociedade que troca um pouco de liberdade por um pouco de ordem acabará por perder ambas, e não merece qualquer delas" - Thomas Jefferson a Madison

 

Numa altura em que não há verdadeira crítica mas muita intriga, ou seja, falsa crítica pelas costas e para as costas, num país pequeno, onde toda a gente depende de toda a gente, ou, como eu costumo dizer, “somos todos primos uns dos outros, a fome é muita e os bens são escassos, por isso a democracia é difícil” (perdoe-se a extensa citação mas a frase saiu bem), vale a pena voltar a Camilo, e aos seus textos polémicos, para respirar melhor. E como hoje vou fazer um daqueles artigos que se escrevem quando não apetece nenhum dos temas correntes, vou acantonar-me na velha expressão francesa de a vol d’oiseau e andar por cima das coisas e supostamente a direito. E que Camilo me guie para que o vol d’oiseau não se torne no voo de pássara.

Começo na pássara. Leiam o texto magnífico e corrosivo, machista até ao limite, que Camilo escreveu, num tom muito moderno usando a imaginação poliglota das palavras, para castigar um livro mau, escrito pela Princesa Ratazzi sobre Portugal “de relance”, como foi traduzido o a vol d’oiseau. Como hoje não há livros maus, porque ninguém diz que eles são maus para não irritar as múltiplas pequenas cortes culturais que dominam o que sobra dos suplementos “culturais” e os vários grupos de pressão associados, fico-me pela sombra do pássaro sobre a pássara.

Que vejo eu no meu voo? O tema que estava predestinado para este artigo era a intenção governamental de nos obrigar a ter por força de lei a aplicação StayAway Covid no telemóvel. Mas como várias pessoas disseram tudo sobre o carácter inconstitucional e violador de direitos que tal obrigação representa, não vale a pena acrescentar mais nada. Tudo estava e está mal feito nessa intenção, de tal maneira que sou capaz de enumerar dezenas de perguntas sobre tal obrigatoriedade cuja resposta é muito complicada de dar, ou mesmo impossível. A proposta também foi feita de “relance”. Acrescento que esta evidente falta de bom senso revela como no Governo prevalece uma forma pervertida de tecnocracia, que acha que tudo se pode resolver com aplicações de telemóvel, sem a mínima preocupação com direitos, liberdades e garantias, que acham que são do mundo pré-Internet.

Afirmo por isso que nunca, jamais, em tempo algum, usarei a dita aplicação, nem que isso signifique ter de deixar de andar de telemóvel. De facto, a pior ameaça nos dias de hoje aos direitos individuais e à privacidade vem de devices e aplicações que usam o actual instrumento de controlo mais eficaz, o telemóvel, até porque está colado ao nosso corpo. Como o relógio de bolso ou de pulso nos impôs o tempo industrial, o telemóvel inseriu-nos na rede de controlos que usam a Rede, uma forma moderna do mundo kafkiano do Processo, onde K. caminha até à morte sem nunca ter acesso a saber o que se passa com ele, quem o acusa, quem o julga, quem o condena.

Ele não teve o poder do voo de pássaro, hoje o verdadeiro poder dos poderosos, perdoe-se o excesso, que é não o de estar na “rede”, que é o destino dos que não têm poder, mas o de a poder ver de cima, qual o sentido e direcção das diferentes teias e, mais do que isso, poder tecê-las com algoritmos numa ou noutra direcção.

A StayAway Covid controla-nos de forma cómoda, barata e eficaz, por isso os governos preferem este tipo de mecanismos a gastar mais dinheiro na saúde pública, e aproveitam-se dos preguiçosos, que somos quase todos nós, que não se importam de trocar a sua privacidade por um falso sentimento de segurança.

Aliás, é o que fazem já todos os dias, aceitando aplicações aparentemente grátis em troca de serviços, numa cultura crescente de promiscuidade na rede, que vai do bullying nas escolas com fotografias às fake news. Sabem quem ganha com isto? Quem sabe o que “isto” é: as grandes empresas de tecnologia e os serviços de informação.

Chegados aqui, estamos no mesmo sítio. Pássaro, pássaro, levanta-te! Mostra-me o mundo lá de cima! Pois sim! O objectivo do voo era escapar do StayAway Covid e não é que o malvado pássaro nos ensina que não voa quem quer, mas quem pode, e me deixou a falar do mesmo que eu não queria falar. Em 700 palavras, só se pode voar como a pássara Ratazzi, baixinho. Acho, mesmo assim, que a vou enviar para aconselhar os nossos governantes a pensarem duas vezes antes de nos colocarem um chip como aos cães.

domingo, 18 de outubro de 2020

Um cão a dançar na chuva


Por 
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 
17/10/2020)

Ontem fiquei feliz a ver um cão dançar na chuva. Sei que o meu ontem não é o vosso ontem, mas ontem é um conceito elástico e sendo um e outro ontem diferentes, não passam do mesmo. O tempo covid está dissolvido na água dos dias iguais. Ontem, portanto. Era um vídeo do WhatsApp e o cão dançava ao som de ‘Singing in the Rain’, de Gene Kelly. Uma canção do tempo em que importávamos felicidade da América. O cão saltava e parecia brincar com as gotas de chuva grossa num bailado de felicidade e liberdade. Felicidade é o que nos falta, tornou-se um bem proibido. Não podemos consumir um instante de alegria sem que venha a suspeita. 

Não podemos abraçar os pais e os filhos, não podemos abraçar os amigos, beijar os amantes, ou ter amantes, não podemos, nas palavras melífluas e orwellianas dos vigilantes, confraternizar. Nem com a família. Nem beber álcool fora de horas. Nem dançar na chuva ao som de uma canção. A polícia pode pensar que nos embriagámos. Deixem-se disso. Talvez pela mesma razão que um cão a dançar na chuva nos emociona, as prédicas de mestre-escola têm efeito por causa do grau de infantilização a que estamos remetidos.

Quando digo nos emociona, no plural, em vez de me emociona, sei o que digo. Reenviei o cão a dançar na chuva a meia dúzia de amigos e todos expressaram, por palavras breves ou emojis, a sua alegria. Aquilo tinha-lhes feito bem. O emoji com dois corações no lugar dos olhos foi o mais utilizado. Estou a falar de adultos com vidas profissionais completas, uma educação superior, experiência de vida e o cinismo protetor que a acompanha. Quando passámos a utilizadores em vez de cidadãos, sendo utilizador o update de consumidor, passámos a usar as partes menos complexas do cérebro. Em vez de articular uma frase, grande trabalho, podemos usar uma careta amarela e engraçada e assim demonstrar as nossas emoções. Crianças, portanto. Crianças com signos simples e evidentes, mais fáceis de combinar do que um brinquedo da Lego.

Tudo foi simplificado para nos neutralizar, equalizando as emoções individuais num emoji coletivo, para normalizar no mínimo tempo e espaço disponíveis. Na sociedade em que vivemos, economizar tempo é mais importante do que economizar dinheiro, e quando nos sobra tempo podemos gastá-lo a colecionar mais cães a dançar na chuva, gatos furibundos e outros bonecos e vídeos das redes sociais, que têm uma hierarquia de popularidade. Em todo o caso, prefiro o cão feliz a dançar na chuva do que um sul-coreano a dançar gangnam, que foi outrora e durante um bater de pestanas o mais popular vídeo da internet. Visto por milhões, o selo da qualidade.

Infantilizámos. Passámos de ser uma sociedade europeia que privilegiava o pensamento e a racionalidade, a filosofia e a literatura, ou a literatura como filosofia moral, a uma sociedade de crianças grandes que brincam umas com as outras ou mutuamente se agridem com furor por coisas sem importância. A agressão tem como contrapartida a lisonja, propiciada por fotografias idiotas em pose e dando a ilusão da beleza e da viagem, ou do luxo e da intimidade, do erotismo empacotado. É um filme inofensivo de banalidades que nada acrescenta nem diminui, serve de sintoma da infantilização.

As sociedades ditatoriais são sociedades infantilizadas, onde as ordens são para cumprir e a opinião é censurada ou, como tudo o resto, relativizada ou neutralizada. A selfie não é perigosa. Nas sociedades asiáticas ditatoriais ou semidemocráticas, quase todas, as massas não têm o poder de contraditar os poderes, o partido, o rei, a nomenclatura, o politburo, a corte, os generais, a tradição, o costume, com todos os acessórios da ditadura tosca ou da ditadura centrada e inteligente. Nessas sociedades, como qualquer viagem num transporte público pode atestar, as pessoas veem bonecos no telemóvel o tempo todo. Manga, posts, fotografias, vídeos, desenhos ou grafismos de qualquer ordem. As massas consomem imagens, não consomem discursos, porque não os podem contraditar. Livros e filmes são censurados quando quebram um tabu nacional ou local. Talvez venha desta obediência o êxito destas sociedades no combate à pandemia. Do mesmo modo que se diz a uma criança cala-te e obedece porque sim, diz-se a um povo, faz o que te mando porque sim. Se aliarmos a este diktat a tecnologia e a riqueza e disponibilidade dos recursos, temos a receita para eliminar a covid sem danos. É isto ou o isolamento total, que estará condenado no dia em que se abrir a primeira janela para deixar entrar o ar fresco. Caso da Nova Zelândia.

No meio de mensagens vagas ou contraditórias, avançamos como crianças com medo do escuro. Nem ousamos perguntar se este modo de abordar a pandemia será o certo, o racional, o útil e o eficaz. Os governos comportam-se como crianças caprichosas e assustadas, decretando quarentenas, novas regras e confinamentos de um dia para o outro, destruindo indústrias e milhões de empregos, assustando as pessoas e usando a esmo profissionais e peritos, alguns de última hora e mais peritos do que seria desejável, quase todos com ameaças e profecias de charlatães. Salva-se meia dúzia. No escuro, jaz o vírus e aquilo que não nos é dito. Como são tratadas as pessoas no hospital? Qual o perfil dos internados e dos mortos? Quais os medicamentos que estão a ser usados? Quantos recuperados estão doentes e com sequelas? Como mata e quanto debilita o vírus, ao certo? A estatística não cobre as nossas dúvidas, mas a estatística diz-nos que uma pequeníssima percentagem de pessoas morre. O que interessa é saber como e quanto se recupera. É das sequelas que as pessoas têm medo. E sobre isso sabemos pouco. E quantos mortos continuam a fazer as doenças do costume, aquelas de que ninguém fala e que não estão a ser tratadas? Mais. Muito mais.

As dúvidas são legítimas porque já nos foi dito tudo e o seu contrário. Desde as máscaras não serem úteis e serem perigosas à obrigatoriedade de máscaras na rua e ao vento.

Infantilizados, coagidos, aprisionados em regras que não entendemos, aterrorizados por mensagens e contagens, abdicámos de pensar pela nossa cabeça. Estamos proibidos não apenas de fazer o que queremos, estamos proibidos de pensar o que queremos porque nada sabemos. Eles é que sabem. E cenas como as de Trump, a criança mal-comportada que contamina com o vírus da estupidez tudo o que toca, não ajudam à clareza.

Quando sairmos deste pesadelo, e este quando é opcional, estaremos mais tristes, mais irritados, mais agressivos, mais violentos, muito mais doentes do que quando entrámos. E infinitamente mais pobres. E talvez um dia possamos perceber como é que um cão a dançar na chuva se tornou na nossa alegria.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Stay Away


Por
Daniel Oliveira, 
in Expresso, 
15/10/2020
Daniel Oliveira



Na entrevista que deu ao "Público", o epidemiologista sueco Johan Giesecke deixou alguns avisos interessantes. Não vou escrever sobre a “via sueca”. Como o próprio diz, saberemos no fim se com a sua estratégia terão números semelhantes aos nossos, sempre com o cuidado de não tentar fazer transposições para realidades económicas, sociais, institucionais e culturais muito diferentes.



Interessa-me o que Giesecke disse sobre a coerência do discurso e das medidas das autoridades suecas: “As restrições e recomendações foram instituídas em Março e não foram muito alteradas. Isso é importante para a forma como o público vê as recomendações e restrições. (...) Vários países impuseram o confinamento, depois abriram o confinamento e a seguir instalaram outra vez o confinamento. Isso confunde as pessoas.” Não há nada mais desgastante do que o confinamento intermitente e espero que nunca cheguemos a esse desnorte que alguns médicos, incapazes de compreender a gestão da psicologia coletiva, já propõem.

Sem ter voltado a confinar, a coisa mais evidente no discurso público tem sido o ziguezague. Inicialmente compreensível (seguimos todos esse estado de espírito), pela ignorância geral. Agora, é inaceitável. Só que a emotividade geral, que salta da euforia para a depressão, marca a nossa forma de estar no espaço público. Como canta Sérgio Godinho, vivemos “entre o granizo e a combustão”. E há, acima de tudo, pouca confiança nas instituições. E as instituições são, elas próprias, fracas. São fracas porque não confiamos nelas, não confiamos nelas porque são fracas. Tanto dá. Esta falta de confiança faz com que sejam elas a acompanhar os humores dos cidadãos. Não sei se a forma de estar dos escandinavos será excessivamente obediente, mas alguém imagina Portugal a aguentar o número de mortes que teve a Suécia e, mesmo assim, confiar no caminho que está a ser seguido? Nem durante uma semana.

A comunicação social contribui para esta impossibilidade. É absurda a rapidez com que se chega ao cume da histeria, com telejornais a anunciaram o caos com 135 pessoas internadas em UCI, em todo o país. Também não ajuda a overdose de covid. Mais uma vez, cito Johan Giesecke sobre os anúncios diários de número de infetados: “É demasiado aberto ao acaso. Os números sobem num dia e pensamos que fizemos algo de errado; noutro descem, também por acaso, e pensamos o contrário. Por isso, fazem-se associações aleatórias na narrativa. Seria melhor termos números uma vez por semana.”

Giesecke tem razão quando defende uma constância nas medidas de prevenção, que não salte do “vão todos para a praia” para o “vamos repensar o Natal”. Que mantenha medidas mínimas e praticáveis, suportáveis pela comunidade durante muito tempo, em vez das exigências irem acompanhando os estados de pânico ou de otimismo da opinião pública. Mas para isso ser praticável era preciso que não sujeitássemos as pessoas a um massacre psicológico diário a que qualquer comunidade acaba por sucumbir e que as pessoas confiassem nas instituições. Ainda assim, podemos tentar. Pedir o possível, mudar pouco, cumprir o pouco possível que é pedido. E baixar os índices de ansiedade.

É no contexto desta fraqueza das nossas instituições, da dificuldade em preparar o SNS e as escolas para a segunda vaga e de um ziguezague entre a dramatização e a desdramatização que surgem as propostas de ontem, com o regresso ao estado de calamidade. Elas seguem o tal movimento incoerente criticado por Giesecke. Era inevitável que o discurso da responsabilidade individual, que corresponde ao discurso da desresponsabilização do Estado, acabasse com o Estado a fazer o que lhe resta: controlar a responsabilidade de cada um.

Para mostrar serviço, chegássemos aos limites do exibicionismo desnorteado. As máscaras obrigatórias na rua, de necessidade discutível, até se tornaram secundárias perante a obrigatoriedade de uso da “Stayaway Covid”. Talvez tenha sido essa a sua função.

Nenhum governo democrático pode tornar obrigatória a instalação de uma aplicação nos telemóveis de cidadãos, mesmo que seja em contexto laboral ou escolar, como foi anunciado que se vai propor na próxima quarta-feira. O facto da imposição ser impraticável na sua aplicação e fiscalização, não a torna menos grave. Torna-a apenas mais estúpida. Cria ruído sobre as medidas essenciais, banaliza a lei e viola princípios democráticos sem sequer conseguir mais eficácia por isso.

Mostrar-me-ão muitos números, fazendo por falar mais dos infetados do que dos óbitos. E eu responderei que morreram três mil pessoas nas Torres Gémeas e morrem muitos milhares de pessoas em todo o mundo às mãos de criminosos. E eu não deixo de combater os Bush e os Bolsonaros que por aí andam. Nem uma coisa nem outra me fazem abandonar valores democráticos fundamentais em nome da eficácia.

Na sociedade livre onde eu quero viver, ninguém pode ser obrigado a instalar localizadores nos seus telemóveis. E não venham falar das apps que as pessoas voluntariamente instalam. Porque, lá está, é voluntário. Há limites para o show-off para conter danos políticos que qualquer governo sofre com esta pandemia. Esses limites são as portas que abrimos e que, diz-nos a História, nunca mais se fecham.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Sexta extinção em massa já começou. Mas podemos mudar, diz Attenborough


Por
Daniel Deusdado, 
in Diário de Notícias, 
09/10/2020

Pode parecer estranho mas a covid-19 não é a maior tragédia do planeta. É apenas a consequência do processo humano de ocupação ilimitada do espaço natural e que nos trouxe esta trágica zoonose. Agora estamos atolados neste doloroso outono-inverno que não sabemos onde nos levará. Depois retornaremos à vida, algures, em 2021. Mas continuamos a perder tempo sobre o mais que anunciado desastre climático. Será que as opiniões públicas acreditam realmente na ciência?



Não se pressente um sentimento de mudança na Humanidade. Não só em Trump ou nos negacionistas instalados. Parecemos todos embrutecidos por um processo nos salvarmos enquanto indivíduos, não percebendo que é exatamente esse movimento coletivo que nos levará a uma destruição gigantesca, talvez muito mais rápida do que julgaríamos.

É por isso notícia este grande documento/testamento audiovisual do grande David Attenborough, com uma carreira extraordinária na BBC e agora num documento especial para o Nextflix. O "doc" chama-se "Uma vida no nosso planeta" e é imperdível. Quem não gosta do "oportunismo" de Al Gore ou da "ira" de Greta Thunberg, vai ter dificuldade em escolher a pedra a atirar ao naturalista inglês. Exatamente porque ele, nos seus atuais 94 anos, atravessou décadas e décadas para concluir isto: 

"Nós destruímos o planeta. Não nos limitamos a estragá-lo. Aquele mundo não humano desapareceu". O que é este "mundo não humano"? Dois pontos-base: a devastação florestal e a delapidação dos oceanos.

Diz Attenborough que vivemos um declínio global acentuado por uma só geração. Talvez o mais simbólico exemplo seja o da destruição da Amazónia. Não é só um desastre de proporções inimagináveis para a biodiversidade terrestre, como está a ser alterado o ciclo dos oceanos - a Amazónia é a maior contribuinte para o alimento dos peixes a nível global e decisiva para o seu movimento oceânico.

Com a continuação do abate de árvores, a Amazónia perde o entrelaçar do seu ecossistema húmido e morre de forma vertiginosa e coletiva, transformando-se numa savana, à imagem de África.

Em paralelo, o aquecimento da atmosfera faz desaparecer o gelo nos polos. Esses gigantescos territórios, nus, passam a emitir o catastrófico metano, fatal para uma ainda maior aceleração do aquecimento do planeta. Entretanto, os oceanos acidificam-se cada vez mais pelos nitratos libertados pela agricultura intensiva que destroem rios e depois mares, pelas consequências dos incêndios cada vez mais devastadores, e pelo aumento da temperatura da atmosfera. Sem oceanos saudáveis não há oxigénio na Terra.

David Attenborough sublinha o mesmo ponto doutro documentário também da Netflix, "Kiss the Ground - agricultura regenerativa": estamos a curtíssima distância de perder a capacidade de ter solo fértil para manter a agricultura produtiva. Quando? Algo tão assustador como... daqui a 60 colheitas... Isto acompanhado de uma galopante perda de insetos polinizadores, outra faceta decisiva para a nossa alimentação. Em resumo: um cenário de fome extrema, generalizada, por mais que a ilusão da tecnologia alimentar nos faça pensar que a abundância é eterna.

Outros dados: 30% dos stocks de pesca no mundo estão em estado crítico devido à sobrepesca; 15 mil milhões de árvores são abatidas por ano; a biodiversidade das espécies nos ecossistemas de água doce foi reduzida em mais de 80%.

Mais: estamos a substituir a natureza selvagem pela natureza domesticada. Metade dos solos férteis da terra são agora agrícolas (e não zonas de biodiversidade para espécies que não a humana). Setenta por cento das aves no planeta são aves domésticas, a maioria delas galinhas.

Talvez ainda mais impressionante: os seres humanos são mais de um terço de todos os mamíferos da Terra. E, surpresa... os outros 60% são animais que comemos. Os selvagens - de ratos a baleias - são apenas 4%. "Este é agora o nosso planeta. Gerido pela humanidade, para a humanidade. Resta pouco para os outros seres vivos", sublinha o inglês.

O que fazer então? Ele defende a corrente ambientalista que considera a "Renaturalização" do planeta como a medida-chave.

Uma das ações essenciais é a da redução de agricultura intensiva e das monoculturas florestais. Por exemplo, o dendezeiro (óleo de palma) é um problema global, fruto do uso intensivo na indústria alimentar. Por cá, a nossa monocultura crítica é a do eucalipto, espécie exótica incapaz de gerar biodiversidade e que alimenta fogos de grande dimensão por não ser enquadrada num rigoroso mosaico florestal que trave os incêndios.

A Costa Rica é o exemplo que David Attenborough escolheu para mostrar como um país, há 100 anos coberto em dois terços por floresta, acabou por deixá-la reduzir a apenas 25% do território, na década de oitenta. Nessa altura o Governo apoiou os proprietários a replantarem floresta selvagem. Hoje o país está recoberto de novo em 50% pela floresta e é um caso de sucesso mundial em turismo de natureza.

Ocupar menos espaço humanizado significa recuperar florestas - selvagens e biodiversas. Este seria o mecanismo mais rápido e inteligente de voltarmos a aprisionar carbono a grande escala. Sem isso não sobrevivemos.

Há outra nota essencial: a da revolução alimentar. "Sempre que optamos por comer carne, reclamamos - mesmo que involuntariamente - uma enorme quantidade de extensão de território. O planeta não consegue suportar milhares de milhões de grandes comedores de carne. Não há território para isso. Se tivéssemos todos uma alimentação baseada em plantas precisaríamos de metade do espaço que ocupamos hoje", frisa Attenborough.

Demografia. O naturalista alerta para a necessidade de se diminuir o crescimento demográfico a médio prazo. Vamos chegar a 11 mil milhões no final deste século porque viveremos muito mais anos. Reduzir a população passaria também por aumentar o tempo de formação académica para as mulheres, dando-lhes ferramentas de escolha para uma vida profissional e pessoal mais igualitária, além de acesso generalizado a planeamento familiar. Em muitos países os rapazes prosseguem os estudos enquanto as raparigas vão trabalhar.

Ponto essencial: "É uma loucura que os nossos bancos e os fundos de pensões estejam a investir em combustíveis fósseis quando são precisamente eles que estão a comprometer o nosso futuro". O que financiam as nossas poupanças para a reforma nos fundos a cargo da Segurança Social? Enquanto o dinheiro for usado sem critérios aprovados pelos seus detentores, a especulação financeira mundial continuará a aplicá-lo onde a rentabilidade usurária for mais elevada, mesmo destruindo a rentabilidade natural do planeta.

Uma nota final: espera-se que David Attenborough viva ainda muitos anos, para continuar a ser veemente e certeiro como foi agora. Mas, mesmo que os seus dias cessassem hoje, ter-nos-ia deixado um documento definitivo sobre a soberba e a ganância humana que deveria passar a ser obrigatório nas escolas (e nos Natais em família). Ele usa frases simples e que reforçam princípios cada vez mais óbvios: temos de parar de crescer, entrar em equilíbrio, sermos sustentáveis.

"No mundo natural uma espécie só prospera quando as outras à sua voltam também prosperam".

"Se tomarmos conta da Natureza, ela tomará conta de nós".

"A Natureza é o nosso maior aliado".

"A espécie humana tem de deixar de ser a mais inteligente para ser a mais sábia".

Este não é apenas um documentário. É uma vida inteira. Muito obrigado Sir David.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

As verbas da bazuca


Por
12 Outubro 2020

Será que a burocracia actual que condiciona o andamento dos processos tem impedido de facto o aumento da corrupção? A experiência da vida não vai por aí e até nos ensina que nos corredores da burocracia se gera muita corrupção. 



Muitos programas, muitas siglas e a bazuca na boca de toda a gente. E a maior confusão sobre as verbas de origem comunitária a que Portugal poderá aceder na década 2021/2030. 

Tentando não baralhar ainda mais a situação, é minha intenção alinhar, aqui, uns quantos números para se chegar a um montante indicativo e aproximado das verbas finais, porque ainda não há valores definitivos. São verbas estimadas embora com elevado grau de probabilidade. E as razões são várias: ou estão dependentes de certos indicadores como a evolução do PIB em Portugal e na União Europeia, ou as negociações entre os 27 Estados-membros não estão finalizadas, ou o próprio Parlamento Europeu ainda não se pronunciou, ou a fixação exacta percorre os meandros dos corredores europeus. 

Uma primeira ideia convém, no entanto, reter: nem todas as verbas têm origem na “bazuca” de António Costa. Aliás, as verbas a que o primeiro-ministro se referiu quando usou a figura da bazuca são uma pequena parcela do montante global (22% na hipótese mínima adiante estimada), tanto mais quando é intenção do primeiro-ministro não recorrer, para já, à componente de empréstimo do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, diminuindo assim o alcance da bazuca de que Portugal pode usufruir. 
Avançando por partes e sem uma análise do enorme apoio à economia resultante do Banco Central Europeu (BCE), aliás, a quem ficou a dever-se a expressão “bazuca” no tempo do anterior presidente, Mario Draghi. Mario Draghi disparou, então, a grande bazuca e com ela salvou o Euro. “O presidente do Banco Central Europeu vai comprar 60 mil milhões de euros de ativos por mês a partir de março até setembro de 2016, maioritariamente dívida pública. As compras serão feitas com base na proporção de capital de cada país no BCE” (Euronews, Janeiro de 2015). 

Poucos ficaram com a percepção exacta do impacto desta decisão de Mario Draghi. Foi mesmo a “safa” da moeda europeia. Imagine-se o que seria uma desvalorização descontrolada da moeda Euro! 

As verbas da década 
12,9 mil milhões de euros (as verbas da bazuca) a fundo perdido 

É a verba indicada a Portugal através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência no contexto das subvenções da União Europeia, cujo valor global é de 312,5 mil milhões. De momento, Portugal já dispõe de 9 mil milhões para utilizar em 2021 e 2022, quando estiver negociado com a Comissão o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência, que o Governo português tem tentado negociar com os partidos políticos e parceiros sociais e entregar a 15 de Outubro em Bruxelas para negociação. Os restantes 3,9 mil milhões só ficarão definidos em Junho de 2022 consoante a evolução do PIB nos dois anos anteriores. Há quem admita que este valor possa subir ligeiramente. Assinale-se que a componente de empréstimo da bazuca que o primeiro-ministro não pretende utilizar é da ordem de 15,7 mil milhões de euros. 

29,8 mil milhões de euros 

É o montante do envelope que Portugal deverá obter do próximo Orçamento Comunitário 2021-27 (QFP – Quadro Financeiro Plurianual), também conhecido por programa vinte/trinta, devido ao deslize normal de três anos na utilização das verbas. Aqui estão incluídas as verbas da Coesão (21 mil milhões), da Política Agrícola Comum (8,4 mil milhões), da Pesca (116 milhões) e do Fundo de Transição Justo (87 milhões). Valores estimados, pois ainda decorrem as negociações entre os 27, com a possibilidade de pequenos ajustamentos. 

12,8 mil milhões de euros 

É o valor que falta aplicar do actual Quadro Financeiro Plurianual (QFP), conhecido pelo programa vinte/vinte (2020) que se estende até 2023. Representa um montante muito significativo. A sua aplicação vai sobrepor-se durante três anos à do PRR, o que exige olear os mecanismos de execução em todas as frentes. Há incertezas e retraimento da parte empresarial sobre a capacidade de concretização de alguns projectos do 2020. A comunicação social tem sido eco de empresas com dificuldades neste domínio, receando-se que vários projectos do 2020, devido aos efeitos e incertezas da pandemia na viabilidade dos mesmos, possam acusar atrasos ou mesmo desistências. 
1,8 mil milhões de euros 

Esta verba corresponde a um reforço da coesão através do REACT/EU. Com estes valores podemos fazer umas primeiras contas. E mesmo sem contar com o valor do empréstimo da bazuca, Portugal terá acesso na década 2021/30 a um montante da ordem de 57,3 mil milhões de euros (hipótese mínima). 

Adicionando o valor do empréstimo (15,7 mil milhões) atinge-se os 73 mil milhões de euros. 

A estes 73 mil milhões seria possível acrescentar ainda algumas verbas de empréstimo relacionadas com o aprovado no Eurogrupo e outras fontes, que nos aproximariam de um montante na ordem dos 78/80 mil milhões de euros, verba ao nível dos empréstimos globais do tempo da troika, mas em condições completamente diferentes em juros e exigências. Isto sem considerar o recurso ao BEI, uma fonte de financiamento para projectos específicos. 

Por outro lado é possível reforçar os 12,9 mil milhões a fundo perdido, podendo chegar-se a um montante de cerca 15,3 mil milhões pelo recurso a verbas de coesão, fundo de transição justo e desenvolvimento agrícola. 

Estamos assim perante uma hipótese mínima da ordem dos 58 mil milhões e de uma outra mais elevada em torno dos 80 mil milhões de euros. 

Neste ponto, a questão é: estamos a prepararmo-nos para este combate? Francamente, o País está perante uma oportunidade única. Há que apostar. Mas estou algo desiludido. Quando olho para algumas entidades como o Tribunal de Contas a rejeitar liminarmente a ideia da simplificação dos concursos públicos, alegando que tal simplificação abre uma porta à corrupção, sem avançar contrapropostas de alteração, mantendo o statu quo, numa atitude conservadora de defesa da sua “capela”. 

Abstenho-me de contra-argumentar e prefiro citar a cientista Elvira Fortunato numa entrevista muito recente ao “Expresso”: “A burocracia da Administração Pública é um problema fundamental. No limite até preferia ter menos financiamentos mas um sistema científico com menos burocracia. Há mais de um ano que estamos a tratar de um concurso público para a aquisição de um grande microscópico que custa dois milhões de euros, apesar de termos o dinheiro, que vem da minha segunda bolsa avançada atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação, no valor de €3,5 milhões. Porque há muitas portas, muitas autorizações, muitos procedimentos. E porque mesmo sendo o dinheiro de um projecto europeu tem um tratamento nas contas da universidade como se fosse do Orçamento do Estado”. 

Elvira Fortunato acrescenta ainda: “Na máquina da AP até os próprios ministros têm dificuldade em se mover. Depois dizem-nos sempre que o problema está relacionado com as regras europeias, mas é mentira, porque a burocracia da Administração Pública portuguesa é diabólica, as plataformas informáticas e os formulários são muito complexos”. 

Se toda a gente se queixa da burocracia nefasta e excessiva porquê rejeitar uma mudança sustentada? Será que não se podem montar modelos de funcionamento eficazes com as novas tecnologias que permitam percorrer o caminho da transparência e de maior controlo?! Será que a burocracia actual que condiciona o andamento dos processos tem impedido de facto o aumento da corrupção? A experiência da vida não vai por aí e até nos ensina que nos corredores da burocracia se gera muita corrupção. 

Preocupa-me não ter vindo do Tribunal de Contas uma posição construtiva, de apoio à simplificação segura e, pelo contrário, uma posição defensiva do status existente. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

domingo, 11 de outubro de 2020

Memórias


Por 
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
10/10/2020


A grande discussão do momento — em que gastar os 56 mil milhões de euros que vamos receber da Europa nos próximos nove anos — destapou um lado positivo e um lado negativo das coisas. O positivo é que agora parece haver uma consciencialização e uma mobilização de muita gente e de vários sectores para não deixar que os mesmos de sempre, pelos processos de sempre e pelas influências de sempre, se apropriem do grosso do dinheiro em benefício próprio e não do país. O lado negativo é o contraponto desta preocupação: o país não confia na honestidade dos seus — de quem vai distribuir e de quem vai beneficiar do dinheiro. São penosas memórias de circunstâncias semelhantes, que dizem muito sobre nós e as razões do nosso invencível atraso. Se tal fosse possível, só veria uma maneira de calar as desconfianças e garantir que não vamos desperdiçar mais esta oportunidade: pedir à própria UE que mandasse para cá uma equipa com poderes para gerir e vigiar todo o processo. Seria uma afronta à nossa sagrada soberania (que só se manifesta de vez em quando, quando o dinheiro nos é dado, mas não quando precisamos de o esmolar). Mas, entre orgulho e preconceito, eu não hesitava.

2 Outra discussão conexa com esta é a de saber se o Estado deve gastar o que for preciso para fazer frente à crise, sem se preocupar com o défice e com a dívida pública, que vai acabar o ano no valor assustador de 130% do PIB. A tentação imediata é rendermo-nos, sem estados de alma, às velhas lições keynesianas: numa crise, o Estado gasta e investe; na abundância, poupa e recolhe. Mas, mais uma vez, assalta-me a memória o ano de 2008, quando José Sócrates veio de Berlim e de Bruxelas com luz verde para gastar sem pensar e depois foi o que se sabe: ou o enganaram ou ele se deixou enganar, mas pagámos dolorosamente a experiência. Preocupa-me duas coisas: que o Estado — isto é, conjunturalmente, o Governo da esquerda e extrema-esquerda — se tome pelo salvador da pátria, asfixiando todo o papel da iniciativa privada e alargando ainda mais o modelo pernicioso, e tão caro à esquerda, de uma economia assente essencialmente nos dinheiros públicos e na inevitável dependência e clientelismo que ela fatalmente traz consigo. E, escutando o soberbo desprezo do PCP e do BE por essas questões menores do défice e da dívida, preocupa-me igualmente o regresso a uma mentalidade tão cara neste tempo de egoísmos e que é a raiz profunda dos nossos males: gastar hoje e com os de hoje, deixando a conta para pagar amanhã e pelos de amanhã.

3 A escolha do juiz conselheiro José Tavares para o Tribunal de Contas foi, no mínimo, infeliz no timing e na pessoa, sem prejuízo de todos esperarmos nada menos do que uma boa surpresa. Nada tenho contra o princípio dos mandatos únicos, mas desde que a regra seja anunciada antes e não depois. E nada tenho contra a pessoa, fora algumas amizades cultivadas que remetem para memórias de um passado que não se recomenda. Outro problema é quando o timing da sua escolha coincide com várias outras escolhas com um certo ar de “família”, como as do Conselho Geral Independente da RTP.

Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós

4 Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós. Ele sempre soube que o PCP não tem nada para dar ao PS nem ao país, a não ser um discurso repetitivo e museológico, sejam quais forem os tempos e as circunstâncias, e a chantagem de uma paz sindical que um Governo com coragem pode enfrentar e vencer. Já as três condições que, ao que consta, ainda separam o BE do PS para a aprovação do Orçamento são concretas e merecem reflexão. É justa a reivindicação de uma nova prestação de apoio social aos verdadeiramente pobres e é inteiramente justificada a recusa em aceitar mais dinheiro dos contribuintes para a Lone Star enquanto não se apurar, sem margem para dúvidas, em que o vêm gastando e porquê. Já li muitas posições defendendo que não há alternativa, pois o Estado tem de honrar os compromissos assumidos e não pode, além disso, sobressaltar o sistema bancário. Este último argumento deve ser o lado para que dormimos melhor, depois de tantos “sobressaltos”, e todos ruinosos, que o sistema bancário tem servido aos contribuintes portugueses. Sobre o Estado dever portar-se como uma pessoa de bem, concordo — desde que os outros se comportem também consigo como pessoas de bem. O que está por apurar no caso do Novo Banco.

Mas a terceira reivindicação do BE — a revisão da legislação laboral, nomea­damente proibindo despedimentos nas empresas com lucros — resulta apenas de um preconceito ideológico característico da extrema-esquerda, que é o da perseguição ao triunfo da iniciativa privada. Mesmo partindo da premissa de que a proposta deixaria de fora os despedimentos com justa causa, ela teria como consequência imediata o aumento exponencial das empresas que passariam a declarar prejuízos onde antes declaravam lucros, coisa fácil de conseguir com um mínimo de imaginação fiscal. Porém, ainda que ineficaz na prática, a medida serviria para transmitir uma mensagem fatídica aos empresários: os lucros são inadmissíveis e a vossa única função é manter postos de trabalho, mesmo que à custa da reconversão, do investimento e até da própria sobrevivência da empresa. Também já conhecemos a receita e todos recordamos o seu sucesso.

5 E, das catacumbas da memória, emergiu o escritor Aníbal Cavaco Silva com mais um livro a acrescentar à sua obra literária. O tema é o mesmo de sempre: o elogio de si próprio e da obra feita. Ciclicamente, e decerto desesperado por não ver quem o faça, o professor Cavaco Silva oferece-nos um novo capítulo da sua biografia, temendo que a gente o esqueça e à sua obra. Aquele que um dia jurou, em tom de desprezo, não ser um “político profissional”, como os outros, viu agora o apresentador do livro, Marques Mendes, descrevê-lo como “o mais profissional” dos políticos portugueses. E, de facto, nunca terá havido outro que, tanto desdenhando da actividade política, dela se tenha sabido aproveitar tão bem. É por isso que ele volta sempre à carga, escrevendo, ao que imaginará, para memória futura. O problema é que a sua memória não coincide com a de muitos de nós.

Forte da convicção (aliás, acertada) de que somos um país sem memória, Cavaco Silva diverte-se hoje a dizer que “os analistas” não sabiam se deviam classificá-lo como de esquerda ou de direita (mas que analistas eram esses?). E, a posteriori, define-se agora como um “social-democrata moderno”, o único e verdadeiro introdutor da social-democracia em Portugal e um continuador da obra do seu inspirador, Olof Palme. É pena que Olof Palme já não esteja vivo, para nos dar a sua opinião, à luz da obra do seu autoproclamado continuador. Mas eu, que visitei a social-democracia sueca no tempo de Palme, posso dar-lhe a minha opinião: não, senhor professor, talvez o adjectivo “moderna” faça a diferença, porque, em relação à social-democracia “antiga” — a de Palme —, ela não tinha nada que ver com o que o senhor andou por aqui a fazer, durante 10 anos de Governo. Assim como o senhor não tem nada a ver com Olof Palme. E assim como a obra feita, desde os hospitais ao CCB, que arrola e reivindica como mérito próprio e exclusivo, assenta num pequeno pormenor que o senhor se esqueceu de lembrar: que só quis o poder depois de um senhor chamado Ernâni Lopes ter posto as contas públicas em dia, ultrapassado a segunda intervenção do FMI, e depois de Bruxelas ter aberto a torneira a um dilúvio de dinheiro como o país nunca havia visto em toda a sua existência. E se já num anterior livro seu, “As Reformas da Década”, podemos encontrar enumeradas todas as reformas que diz ter feito e que, curiosamente, ainda hoje permanecem por fazer, a única pergunta com que, queira ou não, a História o confrontará é esta: que fez o senhor que, efectivamente, tenha mudado o país, durante esses 10 anos em que teve ao seu dispor oportunidades e circunstâncias de que mais ninguém dispôs?

6 No tribunal de Beja julga-se uma rede acusada de promover o trabalho escravo de trabalhadores moldavos para a agricultura intensiva do Alqueva. O cenário descrito pela acusação é aquele que todos sabem existir e fingem não saber: trabalho de 12 horas por dia, seis dias por semana e pago a 3,5 euros à hora; trabalhadores a viver em contentores sem o mínimo de condições humanas, passando fome, frio e calor insuportável; passaportes retidos, entidade patronal inidentificável, zero de protecção legal. Por onde andam os sindicatos em situações destas? Que pensa deste “sucesso” da nossa agricultura a ministra da respectiva pasta? E a do Trabalho? E o do Ambiente, que diz, por exemplo, que a nova moda do abacate no Algarve, em regime de agricultura intensiva e intensivamente sorvedoura de água, é um problema que se resolve quando acabar a água no Algarve? Portugal, garantem-nos, é um modelo no acolhimento de imigrantes e refugiados. E o Inferno está cheio de crentes distraídos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia