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terça-feira, 31 de maio de 2022

A DEMOLIÇÃO DE UMA CICLOVIA

 

Designo isto por vergonha, desplante, ofensa, acto ditatorial, falência de pensamento relativamente ao futuro, atrevimento, ignorância, tudo isto me vem à cabeça quando assisto à demolição de uma ciclovia. Custa-me aceitar o desperdício dos valores investidos, que constitui dinheiro dos impostos de todos, mas ainda menos aceito é que, em tempo de novos hábitos a aprender, destruam neste caso uma ciclovia visando uma, dizem, melhor circulação automóvel. Isto caracteriza a personalidade de vista curta, persistência em convicções próprias e não colectivas, ignorância sobre todos os efeitos para as cidades e até para a saúde dos cidadãos.



Mesmo em cidades como o Funchal, orograficamente complexas, com uma pressão automóvel significativa, quer nos percursos pendulares quer nos horizontais, as ciclovias são o futuro, onde for possível construí-las. É um trabalho a prazo, pois quem tem hoje dez, quinze anos, terá vinte, vinte, cinco num lapso de dez anos. São os tais novos hábitos a aprender. 

Deram cabo dos "park & ride", de um sistema de estacionamento e transporte que viria a diminuir os efeitos do automóvel no centro do Funchal e, agora, a ciclovia. Somados todos os automóveis em circulação, uns encostados aos outros, a Madeira tem o equivalente à distância entre Lisboa e Viana do Castelo. Ninguém toma consciência disto?

Tinha alguma esperança, confesso, que a ciclovia que atravessava a Ponto dos Socorridos, tarde ou cedo, pudesse vir a ligar os três percursos planos do Funchal (Pontinha - Zona Antiga da cidade / Mercado - Infante / Campo da Barca / Carreira. Mas não, a caterpílar começo a funcionar, por exagero da minha parte, só falta, agora, regressar aos estacionamentos nas placas da Avenida Arriaga ou no Chafariz. 

Não abasta apregoar a defesa do ambiente. Os actos é que contam. E daí perguntar o que pensará a secretária do Ambiente sobre esta inaudita destruição? E a população?

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 28 de maio de 2022

Agora vejo ao longe


Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
27/05/2022


Esta semana vim a Lisboa — uma semana bem escolhida, a semana dos jacarandás em flor. Já não vinha aqui há dois meses, desde que me mudei, de armas e bagagens, para o Sul-Sul, onde Portugal acaba. Não foi um impulso nem uma decisão covid. Foi um projecto de vida, longamente meditado e amadurecido, que passou por um ano de busca de um local onde plantar uma casa e depois por dois anos de construção da casa, imaginada, desenhada e acabada ao mais pequeno pormenor ao longo de incansáveis viagens e infinitas noites acordado — durante e apesar dos dois anos de covid e confinamentos e dificuldades de toda a ordem. Mas a casa fez-se e plantaram-se árvores, nasceu um jardim, um pequeno pinhal, uma vinha, terraços, fontes, um mar, um céu de estrelas e uma ilusão de eternidade ou de felicidade em frente e para sempre. Mas tudo tem um preço: nada disto teria sido possível sem as redes sociais. E é disto que eu vos quero dar testemunho, não dar exemplo: nada disto me teria sido possível se ao longo destes anos eu tivesse perdido um minuto que fosse nas redes sociais. Eu jamais estive no Facebook, no Twitter, no Instagram, no TikTok, no WhatsApp, no Não Sei Quê — um minuto que fosse. E sabem que mais? Não apenas tenho sobrevivido como tenho aproveitado para viver. Para aproveitar o tempo assim não desperdiçado para imaginar, sonhar, meditar, fazer, construir.



Agora, lá onde vivo, acordo de manhã, tomo um duche num chuveiro que tem uma janela de onde vejo os melros, os rabilongos, as rolas e os coelhos, depois vou até à aldeia, onde compro os três jornais em papel que leio todos os dias (mais os três que leio online, porque, sim, a net eu uso como instrumento de trabalho), e sento-me a tomar o pequeno-almoço, conversando com os velhos da terra, avaliando de que lado vai soprar o vento e se é dia para ir à praia ou ao mercado do peixe, e em tudo isso eu posso perder tempo porque não tenho de postar fotografias a dizer onde estou nem de escrever posts ou de alimentar as minhas contas de correspondência com gente que não está ali a conversar comigo cara a cara. Assim fazendo, sei que estou vivo e não apenas a imaginar que estou a viver. Porém, é verdade que na sua instantânea sabedoria, na sua irreprimível ânsia de jamais chegarem atrasados ao lado certo de cada causa, os das redes sociais vêem tudo muito mais depressa e muito mais irremediavelmente do que eu, que me tomo de vagares, de dúvidas ou de memórias que tento esclarecer nos livros da estante, de pensamentos ao luar ou de perguntas estúpidas que faço a mim mesmo, sem “amigos” de Twitter para me socorrerem. E, por isso, perdoem-me se me ocorrem comentários porventura tão deslocados como os que abaixo se seguem.


2 Durante anos fiz a Avenida de Ceuta duas ou três vezes ao dia e não me lembro de ter presenciado mais do que um acidente ou atropelamento. Mas agora que ao fim de longas obras entraram em vigor os novos radares panorâmicos controlando a velocidade máxima de 50 km/hora, assisti a dois acidentes em três dias. Pergunto-me se não terá sido a distração de circular a passo de caracol numa avenida com três faixas de rodagem e que durante o dia está completamente desimpedida que os causou. Agora, um deputado municipal do Livre — aliás, ‘o’ deputado do Livre — lembrou-se de propor, e os outros da oposição de aprovar, a velocidade máxima de 40 km/hora em toda a cidade de Lisboa. Vai acontecer uma de três coisas: ou ninguém cumpre e ninguém consegue fiscalizar, ou ninguém cumpre e a polícia vai dedicar-se a um massacre fiscal sobre todos, ou todos cumprem e o trânsito ficará caótico, as filas imensas e a poluição insuportável. Mas, de caminho, o mesmo deputado e os seus prestimosos apoian­tes aprovaram também a proibição de circulação na Avenida da Liberdade e ruas adjacentes aos domingos e feriados — sem estudos prévios, sem consultar ninguém, sem ponderar os interesses económicos atingidos, sem pensar se as pessoas queriam. Não há pior demagogia do que a destes impulsos pseudomodernos e politicamente correctos, e são sobretudo os partidos minúsculos que gostam de recorrer a eles para dar nas vistas: um só deputado decide sobre a vida prática de milhares ou milhões de pessoas, inchado no seu pequeno-grande poder. E os outros vão atrás, ou porque têm medo de não parecerem “modernos” ou porque a sua grande visão para a cidade é lixar a vida a quem ganhou as eleições. Podiam antes ocupar-se de causas consensuais, tais como proibir a atracagem de navios de cruzeiro, os grande poluidores do ar de Lisboa, enquanto não tivessem terminais de carga eléctricos, ou proibir a poluição visual dos guarda-sóis e cadeiras em cores berrantes dos patrocinadores nas esplanadas da cidade. Mas para isso era preciso coragem, atingir interesses organizados e concretos, não bastando a falsa coragem de atingir a população anónima e silenciosa. Ainda bem que já não vivo em Lisboa.

3 A vida política portuguesa está tão interessante que há dias o principal diário do país fazia manchete com a descida do IVA nos produtos de “higiene menstrual”. Aliás, uma proposta de outro partido de um só deputado, o PAN, pôs a questão menstrual no centro do debate do Orçamento no Parlamento. Em nome “das mulheres e outras pessoas com útero” (é assim que se deve dizer agora), a deputada Surreal queria introduzir uma licença de menstruação laboral, copiando o que terá visto em Espanha. A questão acirrou os ânimos de umas deputadas contra as outras, fazendo estalar a guerra entre o “feminismo bacoco” e o “retrocesso civilizacional”. Senti-me um saloio de visita à capital.

Não há pior demagogia do que a destes impulsos pseudomodernos e politicamente correctos

4 Entretanto, nas suas intermináveis, doutíssimas e chatérrimas alegações a favor da regionalização, a dupla Valente de Oliveira/Miguel Cadilhe veio, entre outros, questionar o argumento de que a coisa engrossaria ainda mais o já desmesurado número de funcionários do Estado. Não, dizem eles, pois que com a transferência de competências do Estado central para as regiões muitos funcionários de Lisboa mudar-se-iam alegremente para a província. Dias depois, ficou a saber-se que o programa de incentivos que o Governo lançou há dois anos — aproveitando as apregoadas novas tendências de trabalho à distância e a apetência pela vida no campo — havia atraído exactamente dez entre 733.495 funcionários públicos dispostos a trocarem o centro pela periferia. Também já se tentaram mudar serviços em bloco — o Infarmed ou o Tribunal Constitucional — e a revolta dos funcionários matou à nascença as iniciativas. Ou se muda radicalmente o estatuto dos funcionários públicos, arriscando uma guerra civil ou não adianta estar com teorias que a realidade não sustenta.

5 Dos jornais cito as conclusões de dois estudos, daqueles que, verdade se diga, nunca se percebe bem com que rigor são feitos, mas que produzem sempre conclusões muito citáveis: “Um terço dos alunos apresenta sinais de sofrimento psicológico; mais de metade dos professores sente-se triste e irritada.” Ao que parece, concluindo, uns e outros não se suportam. Assim vai a nossa escola.

6 Seria sem dúvida interessante — e importante — perceber as diferenças que separam os dois candidatos à liderança do PSD. Mas parece que tal nos é vedado pela sobrecarga da agenda do candidato Luís Montenegro. Seria muito curioso conhecer a agenda do candidato para saber que coisas tão importantes e inadiáveis o impedem de ter uma hora disponível para debater com o seu adversário.

7 Depois de sucessivas ameaças à Rússia, Biden foi à Ásia ameaçar a China com outra guerra. Por onde passa, o homem é uma bomba nuclear em movimento. Observadores bondosos trataram logo de classificar as suas declarações como “gafe” — mais uma. Mas logo no dia seguinte, em Davos, o secretário-geral da NATO, Stoltenberg, pegou na “gafe” e avisou os países ocidentais para se restringirem no comércio com a China, pois estava ali o próximo inimigo. Estarei enganado ou qualquer coisa no nome NATO remete para o Atlântico Norte?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quarta-feira, 25 de maio de 2022

A tua verdade; a minha verdade


Por
23 Maio 2022

Apesar do que se diz, a Europa não está unida, porque as sanções avançadas até à data não tocam a todos por igual. Seria importante que se sentisse o mínimo de solidariedade.



1. Os actores-chave, no tabuleiro da política mundial, são os EUA, a Rússia e a China, embora com papéis e razões bem diferentes. Os EUA e a Rússia, nomeadamente pelo seu poderio militar nuclear, e a China, cada vez mais como potência económica e tecnológica. Fica de parte quem melhor estará a pontuar em termos de tecnologia, pois isso levaria a uma larga discussão, onde a Europa, infelizmente, está em desvantagem em quase todas as áreas, quando dispõe à partida de atributos para uma posição de vanguarda. Inoperância política, burocracia, falhas de gestão e de opções próprias explicam esta realidade.

São estes três países, em conflito latente e/ou permanente, que gerem a batuta do destino da Humanidade, mesmo quando não aparecem na linha da frente, como acontece agora com a China, na guerra Rússia-Ucrânia.

A União Europeia, infelizmente para os europeus, não marca pontos neste jogo. É um actor sem peso bastante, porque se demitiu de ter estratégia própria. A melhor prova, o tipo de sanções aplicadas à Rússia na guerra com a Ucrânia, em que a solidariedade entre os países-membros deixou de contar. Problemas diferentes, a mesma receita.

2. No 9 de Maio, dia das comemorações da Europa, Emmanuel Macron, na qualidade de Presidente da União Europeia, perdeu-se em floreados. Uma Europa alargada para os que saíram, para os que não entraram, menos decidido por uma União Europeia (UE) orientada para uma linha estratégica própria.

Macron já pronunciara estas palavras bonitas de opções próprias, no caminho para a primeira Presidência de França. Bonitas palavras, na altura, certamente a perder sentido, hoje, por falta de comando europeu forte.

A falta de pensamento e de jeito dos dirigentes políticos causa-nos apreensão. Basta concentrarmo-nos um pouco no conteúdo das propostas das sanções económicas contra a Rússia que tem partido da Comissão Europeia e, nomeadamente, da sua Presidente, por quem, aliás, há uns tempos atrás nutria alguma consideração.

Hoje, apressa-se pura e simplesmente a responder atabalhoadamente à pressão do ditame americano, não tendo em conta os interesses reais dos Estados-membros, caminhando de insucesso em insucesso em termos de resultados, onde a realidade do não pagamento em rublos das importações do gás russo ou o embargo ao petróleo russo são a montra mais perfeita do descalabro da Comissão.

Apesar do que se diz, a Europa não está unida, porque as sanções avançadas até à data não tocam a todos por igual. Um outro tipo de sanções poderia reunir consenso, desde que não contendesse com os interesses dos países e se sentisse o mínimo de solidariedade.

A UE recusa pagar o gás importado da Rússia em rublos

3. Esta exigência de Putin constitui “uma modificação unilateral e injustificada dos contratos e é legítimo rejeitá-la”, declarou a Comissária europeia da energia, Kadri Simson.

De acordo com Simson, “97% dos contratos [fechados pelas empresas europeias] especificam a divisa para pagamento e trata-se do euro ou do dólar americano”. Os pagamentos estão previstos para meados de Maio e a maioria das empresas respeitará as regras dos contratos, pagando em euros ou dólares, assegurou.

A UE avisa que o pagamento do gás russo em rublos “é uma violação das sanções e não pode ser aceite” (in Multinews, 2Maio 2022). A presidente da Comissão Europeia, Ursula ven der Leyen, incitou amiudadas vezes os países e as empresas a não pagar em rublos. E, afinal?!

A maioria dos importadores de gás russo paga em rublos

4. O primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, afirmou no dia 12/05/2022 (Lusa) que a maioria dos importadores europeus de gás russo “abriu contas em rublos” para efectuar os pagamentos a Moscovo, cumprindo assim o decreto de Putin, assinado em 1 de Abril, em que exigia aos países “hostis” o pagamento em moeda russa. Nos países “hostis” entram todos os países da UE, segundo o decreto de Putin.

Draghi acrescentou que a UE não se pronunciara oficialmente sobre se o pagamento em moeda russa infringia ou não as sanções impostas à Federação Russa pela invasão da Ucrânia. E refere que o conglomerado de hidrocarbonetos italiano, ENI, controlado pelo Estado em 30%, deve fazer o pagamento das suas compras em meados de Maio em rublos.

Com efeito, acrescentou Draghi, “a maioria dos importadores já abrira a sua conta em rublos junto da Gazprom”, e sustentou que numerosas empresas na Alemanha “já tinham pago em rublos”.

Onde começa e termina a verdade da UE

5. Onde paira a verdade dos membros da Comissão Europeia? Nesta matéria, sobretudo da Presidente von der Leyen e da Comissária Europeia da Energia, mas também dos ministros e Presidência actual da UE-França. Nesta e, em muitas outras, a verdade é a sua não verdade.

6. Outras verdades, por exemplo, as grandes conjecturas avançadas pelos “bem informados” – expressão magnífica de Miguel Sousa Tavares – para as muitas lérias que, aqui e ali, foram sendo inventadas, acerca do que seria o discurso de Putin a 9 de Maio, Dia da Vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi.

Os portadores destas “verdades” eram analistas da “mais fina espécie”, socialmente acreditados como politólogos, jornalistas-comentadores, comentadores civis e também militares.

Os ditos “bem informados”, a título de aviso, iam lançando nuvens negras para o público em geral, dizendo que Putin iria “fuzilar” o mundo, anunciando ou a mobilização geral tendo em vista ganhar a guerra, ou a proclamação da guerra formal à Ucrânia, ou a ameaça da guerra nuclear, ou ainda uma marcha triunfal pelas ruas de Mariupol…

Afinal, nada disto se deu. Nada! Putin folheou a história, referenciou duas das grandes batalhas em que a Rússia se bateu contra invasores externos, exactamente em defesa da “Mãe Pátria”, tentando insinuar algum paralelismo com a invasão da Ucrânia, que sempre justificou ser em defesa do povo russo e dos russos ucranianos.

Os “bem informados” criaram as conjecturas que, no seu entender, melhor serviam ou estariam em consonância com os interesses do Ocidente, entendido este como os EUA e a NATO. Estariam convencidos, todos eles, das “verdades que foram fabricando e espalhando”, por muito tempo, sem o mínimo de bases empíricas.

Ou seja, minimamente sustentadas em documentos da Rússia ou em posições dos seus dirigentes máximos?! Nada disso tinha sustentação. Foi o que nos trouxe e ensinou a experiência e a vida.

Eis o retrato do que vão dizendo e escrevendo os “bem informados” sobre o que ocorre no Mundo, no dia-a-dia e, em especial, sobre a guerra Rússia-Ucrânia. Esta será a tua verdade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 10 de maio de 2022

Uma boa notícia: crescimento real do PIB em 11,9%


Por
09 Maio 2022

As políticas de aumentos salariais seguidas pelo Governo são uma forma de retirar poder de compra aos rendimentos do trabalho pois não jogou, quando podia, com um mix de políticas: aumento de salários e alívio da fiscalidade sobre o trabalho.



1. A economia portuguesa cresceu em termos reais 11,9% no primeiro trimestre de 2022 face a igual período do ano anterior, e 2,6% quando comparada com o quarto trimestre de 2021. Uma boa notícia que as estimativas rápidas do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgadas em 29 de Abril último, nos proporcionam.

Portugal apresenta, assim, o valor mais elevado da Zona Euro, rompendo com as expectativas dos economistas portugueses mais optimistas que apontavam para valores em torno dos 9%.

Dois valores interessantes quando, por exemplo, os EUA registam uma queda de -1,4%, e a União Europeia (UE) 0,2% (valores em cadeia) e 5% de variação homóloga, que compara com 2,6% e 11,6% em Portugal. Na UE, apenas a Áustria se aproximou de Portugal, com 2,5%.

Olhar para estes valores de forma acautelada


2. Temos, no entanto, de olhar para estes valores de forma hábil. Não podemos esquecer que 11,9% é um valor dos primeiros três meses (Janeiro, Fevereiro e Março) de 2022, que não reflecte ainda os efeitos da guerra Rússia-Ucrânia, sendo que para a frente nada nos garante.

Também importa não esquecer que, no período de comparação (primeiro trimestre de 2021), o País atravessava um ponto baixo (-5,4%), com a Covid-19, o que relativiza e bem os 11,9%.

De qualquer modo, a situação económica era então comum a toda a Europa, pelo que não temos que denegrir a nossa situação, como muitas vezes há tendência, antes pelo contrário analisá-la e ver se algum ensinamento se pode retirar.

O INE, sem uma explicação detalhada, atribui o crescimento da riqueza neste primeiro trimestre fundamentalmente à procura interna, em especial, ao consumo privado e ao turismo. As trocas económicas externas deram um contributo reduzido.

A subida galopante de preços da energia que tem vindo a registar-se desde meados de 2021 vai levar a uma retracção do consumo privado no curto/médio prazo, pois a grande maioria da população está a perder poder aquisitivo, ou seja, com o mesmo rendimento ou um poucochinho mais (aumentos salariais ínfimos) vai passar a poder adquirir menos bens. Assim, o consumo privado vai reduzir-se, as empresas diminuirão os seus negócios e, por conseguinte, o PIB sofrerá os efeitos desta mudança de trajectória de rendimentos.

Evidente. Poderá haver um esforço na exportação, mas nunca o suficiente para operar a compensação. O aumento de rendimentos das pessoas é, assim, fundamental na dinâmica da economia.

Com pés de barro não se caminha


3. Pés de barro ou pés bem seguros de quem nos governa faz bem a diferença na gestão política da economia. Há que olhar para as circunstâncias, analisá-las e ter objectivos. O turismo, por exemplo, tem tido um impacte retumbante e o ambiente que se respira em termos de reservas hoteleiras permanece favorável por todo o país.

Com muitos outros sectores, porém, não sucede o mesmo, pois enfrentam condicionalismos com os preços dos inputs necessários à produção. Ouvimos queixas reais em muitas áreas, e até a Infra-Estruturas de Portugal se queixa da subida galopante de preços e das obras que vão derrapar.

Estamos perante uma situação inflacionista que não é transitória, como diz o Governo. Uma situação inflacionista que veio para durar pelo menos enquanto os problemas energéticos se mantiverem em turbulência, ainda mais com toda a confusão reinante no seio da UE, onde ninguém se entende e as pressões externas, sobretudo dos EUA, são uma constante no pior sentido.

Os aumentos de rendimentos e a dinâmica económica


4. Assim, os salários não podem ser analisados de forma mecânica até porque há aquele ponto de equilíbrio com efeitos positivos na dinâmica económica que, de certeza, não são os 0,9% de aumento previstos para a função pública.

Um aumento de rendimentos equilibrado na sociedade pelo aumento de salários não provoca uma espiral inflacionista, pois estamos perante uma inflação pelo lado da oferta – são os custos das matérias primas e dos bens intermédios a subir que determinam o aumento dos preços.

Assim, um aumento de salários a um nível equilibrado seria acomodável e para cobrir a diferença para o nível da inflação, uma política de actuação fiscal através do alívio da carga sobre os rendimentos do trabalho, por exemplo, a actualização dos escalões dos impostos no mínimo pela taxa de inflação e a revisão em baixa de uma ou outra taxa fiscal nos escalões reporia o “mix” de rendimentos a injectar na economia portuguesa.

Com uma política deste tipo atingir-se-iam vários objectivos, nomeadamente:
Criava-se mais riqueza dinamizando a economia pela procura interna;
Não se perdia poder de compra, o que vai acontecer com a política “reducionista” subjacente ao orçamento aprovado já na generalidade para 2022;
Corrigir-se-iam salários médios esmagados;
E, se tudo isto se articulasse com o investimento, designadamente através dos fundos comunitários, melhor ainda porque podia proceder-se a mudanças qualitativas tão necessárias à estrutura e organização da economia (pública e privada).

Desta forma, ganharíamos todos. Os que têm rendimentos mais ou menos fixos decorrentes do trabalho e as empresas, com o poder de compra restabelecido, mais facilidade obteriam nos seus negócios. E, no conjunto, a economia do País sairia beneficiada.

Com a perda de poder de compra previsto, todos perdemos.

Conquistar pontos no PIB


5. Ouvi o primeiro-ministro António Costa destacar o reforço do peso dos salários no PIB como um objectivo de convergência com a Zona Euro até ao final da legislatura, em 2026. Uma boa ideia, mas a política salarial em curso navega em direcção oposta.

À data, o peso dos salários no PIB é, em Portugal, de 45% e a média da UE 48%. Se, em 2022, pela política do Governo, os salários vão se contrair face ao PIB, que vai crescer mais que os salários, andamos por maus caminhos.

Então, como vamos recuperar nos anos seguintes sabendo que a inflação veio para durar, e na Europa reina uma grande instabilidade e sem capacidade para sanar as causas que lhe estão na origem: a inexistência de uma política energética europeia?!

Os dados apontam mais para uma Europa a flutuar, de uma dependência para outra, em termos de energia e menos no concerto de uma política comum. Sabemos que há dois grupos de países capturados pelos grandes interesses dos grupos económicos que se digladiam arduamente pelo poder. Não por uma política estratégica comum que sirva os interesses da Europa.

Deste modo, as políticas de aumentos salariais seguidas pelo Governo português são uma forma de retirar poder de compra aos rendimentos do trabalho pois não jogou, quando podia, com um mix de políticas: aumento de salários e alívio da fiscalidade sobre o trabalho.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 8 de maio de 2022

Bons pastores


Por
Público
8 de Maio de 2022

Repetir que o ser humano concreto, em todas as suas coordenadas, é o primeiro caminho da Igreja ou acusar a Igreja de atraiçoar o seu próprio programa não leva a lado nenhum.



1. Comunicaram-me que, no dia 3 deste mês, o PÚBLICO e o 7Margens iam lembrar-se de que, nessa data, se cumpriram 30 anos das minhas crónicas neste jornal. Não vou falar das crónicas, mas apetece-me relembrar a introdução que escrevi para o primeiro livro, editado pelo Mário Figueirinhas [1], porque tentei exprimir, por contrastes, uma teologia que implicava uma antropologia. Há, no entanto, nessa introdução, o uso do termo homem para significar homem e mulher, mas que oculta as mulheres. Por isso, desde há muito, utilizo sempre a expressão ser humano.

Recordei, nessa introdução, que em 1935 pediram a Yves Congar, OP, um diagnóstico sobre o inquérito, então realizado pela famosa revista La Vie Intelectuelle, sobre as razões da “descrença actual”. A análise teológica do longo processo do divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais que agitaram a gestação do mundo moderno ficou condensada numa frase que sempre me impressionou: “A uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião.”

Trinta anos mais tarde, em pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto: “O maior obstáculo, que os seres humanos de hoje encontram no caminho da fé, vem da falta de ligação que julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus, no seu Reino e, por outro, o ser humano e a sua obra terrestre. É urgente mostrar o laço íntimo que os une. É na superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às razões da descrença moderna” [2].

Teilhard de Chardin, em 1920, numa breve nota sobre a evangelização dos novos tempos, pressente a gravidade do que está a acontecer: “Cristão e humano tendem cada vez mais a não coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja.”

Nos anos 50, esta impressão ainda não se tinha apagado: “Indubitavelmente, por alguma razão obscura, há qualquer coisa que já não passa entre o ser humano e Deus, tal como é apresentado aos seres humanos de hoje. É como se o ser humano não tivesse diante de si a figura do Deus que procura adorar” [3].

Em 1960, o grande medievalista Marie-Dominique Chenu, OP, verifica que “o novo mundo dos nossos dias ainda não foi integrado no pensamento cristão” [4]. Philippe Roqueplo, no começo da sua tese de doutoramento – Experiência do mundo, experiência de Deus? – mostrou a que ponto a teologia oficial permanecia impermeável a todas as tentativas de integrar, na experiência cristã, as tarefas da construção do mundo e de acolhimento do Reino de Deus. Percorreu o monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, constituído por 22 grandes e compactos volumes. Este dicionário pretendia abarcar “todas as questões que interessavam ao teólogo”. Veja-se o resultado:

“Na entrada profissão, vem um artigo ‘profissão de fé’; em emprego: nada; em mulher: nada; em amor: um terço de coluna assim distribuído: v. ‘caridade’; amor do próximo: v. ‘caridade: amor próprio: algumas linhas que reenviam para ‘ambição’; amor puro: v. ‘caridade’; mas sobre amor humano propriamente dito: nada; em amizade: nada (…); em vida: um artigo ‘vida eterna’ (…); em mal: vinte colunas; em economia: nada; em política: nada; em poder: finalmente um artigo de 103 colunas (quatro vezes mais que ‘mal’) sobre… ‘o poder do Papa na ordem temporal’. Em técnica: nada; em ciência: mais um longo artigo dividido em quatro pontos: ciência sagrada; ciência de Deus; ciência dos anjos e das almas separadas; ciência de Cristo… mas sobre o que nós chamamos ciência: nada; em arte: um longo artigo sobre… a arte cristã; em beleza: nada; em valor: nada; em pessoa: v. ‘hipóstase’; em história: nada; em leigo e laicado: nada, a não ser um longo artigo sobre o laicismo estigmatizado como uma heresia’ [5].

Estas ausências revelam um sobrenaturalismo teológico ignorante da significação das realidades terrestres com as quais é tecida a história humana, lugar da experiência cristã.

Veio o Concílio Vaticano II. Abriu com uma generosa mensagem ao mundo feita pelos padres conciliares. A constituição pastoral Gaudium et Spes é um abraço franco ao mundo contemporâneo: “As alegrias e as esperanças dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por seres humanos, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do Reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história” (n.º 1).

2. É certo que João Paulo II percorreu o mundo, arrastou multidões e disse logo no começo do seu pontificado o essencial: “O ser humano, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim, no âmbito de toda a humanidade — este ser humano é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção” [6].

No entanto, muita gente considera que há posições das autoridades eclesiásticas, assumidas em nome da lei de Deus e da vontade de Cristo, que são actos da maior desumanidade. De onde virá este profundo desencontro? Não sei. Repetir que o ser humano concreto, em todas as suas coordenadas, é o primeiro caminho da Igreja ou acusar a Igreja de atraiçoar o seu próprio programa, não leva a lado nenhum.

Adianto a hipótese que tem guiado a minha colaboração no PÚBLICO. A questão talvez esteja em identificar apressadamente a Igreja com o próprio Jesus Cristo.

Jesus sabia e sabe o que há no ser humano. Conhece a profundidade do nosso coração. Em todos os seus gestos e palavras canta e chora uma inesgotável ternura e compaixão pelo mundo. Jesus é a humanidade de Deus. A Igreja, não. A Igreja tem de aprender a ser humana com Jesus Cristo e com todos os seres humanos da terra.

3. A celebração deste domingo é dedicada a evocar Cristo como Bom Pastor. As principais figuras do Bom Pastor que encontrei, no meio de muitas pessoas que vivem a espiritualidade do cuidado, foram o Papa João XXIII, nas audiências públicas a que fui fiel, enquanto estive em Roma por conselho de Giorgio La Pira, e o Papa Francisco que nos acompanha dia a dia. Com eles, as parábolas do Novo Testamento, as pinturas que, desde as catacumbas até hoje, as tentam exprimir, são pessoas que incarnam a misericórdia divina por todos os que se sentem perdidos nas periferias da desumanidade.

[1] Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus. Religião sem mundo, mundo sem religião, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1995
[2] Chrétiens en dialogue, Paris, Cerf, 1964, p. XXXIII
[3] L’Avenir de l’home, Paris, Seuil, 1959, p. 339
[4] ICI, xperience du monde: experience de Dieu?, Cerf. Paris, 1968, p.19-20
[6] Redemptoris Hominis, nº 14

sábado, 7 de maio de 2022

O Ocidente


Por
estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
06/05/2022

O colossal erro político e estratégico de Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia tem conseguido, até agora, produzir todos ou quase todos os efeitos opostos àqueles que ele visava com essa invasão. Na exacta medida em que ele, ditador iluminado, conseguiu confundir a Rússia com a sua própria pessoa, está a caminho de transformar o país num Estado pária e de desencadear um sentimento universal de russofobia, que vem a par com a exaltação, por contraponto, do que chamam as “sociedades liberais” — ou seja, as democracias ocidentais ou o Ocidente tout court. Este movimento, fomentado por jornalistas, políticos e intelectuais — e, na sombra, por outros poderes menos inocentes —, é em si mesmo perigoso, antes de ser arrogantemente inculto.



Mas comecemos pelo princípio. A ideia de Ocidente não é hoje um conceito geográfico, mas sim político ou geopolítico: não abrange África, excepto alguns países do Norte que estão a ser subtilmente comprados pelo Ocidente “democrático”, nem a maioria dos países da América Latina, mas incluí países asiáticos como a Índia e o Paquistão. No conceito de Ocidente cabem, então, todos os países que o “núcleo duro” das democracias liberais aceita dentro do seu clube e que, umas vezes melhor, outras vezes pior, cumprem um mínimo de regras que o clube apregoa defender: eleições livres, liberdade de expressão e de imprensa, justiça independente, economia de mercado, liberdade de circulação de pessoas e bens. Na prática, porém, o cumprimento das regras é tão elástico quanto as necessidades políticas conjunturais do clube o justificam. Assim se passa com Israel sempre, com países como o Chile ou a Argentina em períodos alternados, com a Índia ou o Paquistão em época de monções, com Angola em alturas de oportunidades ou, na própria Europa, com a Hungria ou a agora “heróica” Polónia. Mesmo a Rússia de Putin, antes da funesta decisão de entrar Ucrânia adentro, era tolerada dentro do clube, apesar das suas eleições muito pouco livres, de Navalny e de outros dissidentes misteriosamente envenenados.


Mas, politicamente, o clube está certo nos seus fundamentos. Qualquer cidadão do clube prefere ser “árabe” em França do que palestiniano em Israel, prefere ser da oposição em Itália do que ser dissidente na Rússia. Mas o clube faz as suas próprias excepções: o príncipe e regente saudita Mohammed bin Salman, que mandou matar e cortar aos bocados o jornalista saudi-americano Jamal Khashoggi na Embaixada da Arábia Saudita em Ancara, continuou um respeitado parceiro de negócios do clube; e os melhores amigos de Putin, os salteadores da arca russa, vulgo “oligarcas”, eram os melhores amigos dos tories e da elite inglesa até há dois meses, quando Boris Johnson descobriu em Putin um novo Estaline e em Zelensky um novo Churchill. Mas essas excepções casuísticas às boas regras não invalidavam aquilo que constituía um dos melhores atributos das nações democráticas, actuando sozinhas ou em conjunto, que era a sua capacidade para entenderem e se relacionarem com outras nações de crenças e ideologias diferentes, estabelecendo pontos para o comércio justo e a convivência pacífica.

A democracia é, por definição, o sistema que não exclui nem persegue os que pensam diferente. E a Europa, onde hoje se pensa acriticamente a reboque da vontade de ingleses e americanos, era um belo exemplo disso — embora infrutiferamente, como agora nos contam. Desde que existe qualquer tipo de organização política nas sociedades humanas, nenhuma foi tão longe e foi tão perfeita em matéria de garantia de direitos individuais e de solidariedade entre Estados como a União Europeia.

A tal ponto que até podemos dizer que o país-farol da democracia, os Estados Unidos da América, se quisessem aderir à UE, não cumpririam os critérios de adesão, de tal forma a sua “democracia liberal” consente a usurpação de direitos individuais que os europeus têm como adquiridos e é baseada numa absoluta libertinagem do mercado, corrompendo os fundamentos da própria democracia, como Elon Musk acaba de demonstrar.

Aliás, os Estados Unidos são o melhor exemplo da dificuldade em apresentar um padrão de conduta que justifique a invocada superioridade moral, adquirida e permanente, das “democracias liberais” sobre tudo o resto. Em todos os campos — científico, artístico, económico, militar — os Estados Unidos são capazes do melhor e do pior. São capazes de liderar pelos direitos humanos e depois transformarem-se quase num Estado teocrático, ao nível das comunidades, dos Estados, do Supremo Tribunal; são capazes de derramar o sangue dos seus para socorrerem os aliados, mas também de os abandonar no campo de batalha, como fizeram com os afegãos e os curdos da Síria; são capazes de se moverem por princípios mas também de conviverem e conspirarem com assassinos da América Latina ou do Médio Oriente. A sua bússola moral varia conforme as maiorias no Congresso e no Supremo Tribunal e conforme o ocupante da Casa Branca: depois de um Kennedy vem um Nixon, depois de um Carter vem um Reagan, depois de um Clinton vem um George W. Bush, depois de um Obama vem um Trump. Toda esta gritaria que Biden faz agora em nome do Bem contra o Mal, não existiria se ele tem perdido as eleições há ano e meio: com Trump reeleito, a Ucrânia estaria entregue à sua sorte.

Mas agora, graças a Putin, aqui, no Ocidente, estamos confrontados com uma ofensiva dos novos Cruzados para quem, sorte a deles, tudo se tornou cristalinamente claro e quem assim não vê é fuzilado na praça com um rol de novas ofensas: “antiamericanos”, “iliberais”, “russófonos”, “diletantes”. Presumo que tanto fervor ocidental tenha ainda por matriz filosófica a louvada civilização judaico-cristã, mãe inspiradora de todos os nossos valores. Lamento, mas não é a minha. Eu sou filho dilecto da civilização greco-romana-árabe, a que nasceu e floresceu no Mediterrâneo, a civilização da luz e da liberdade, dos pátios, dos terraços e dos templos, e não a das catedrais e do terror, a civilização que derrotou os “bárbaros” (alemães e povos do Norte), a que construiu o único império onde os conquistados preferiam reger-se pela lei do conquistador (Roma) do que pela própria lei, que lhes parecia mais injusta. A minha “casa” na Europa fica nas ilhas gregas, em Roma ou em Taormina, em Trás-os-Montes, em Córdoba ou em Lisboa, e mesmo no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires. Não fica em Frankfurt, nem em Manchester ou em Varsóvia, por muito que eu goste de ir a toda a parte e em toda a parte goste de voltar para casa.

Em “O Sentimento dum Ocidental”, Cesário Verde escreveu: “Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo”. Fosse hoje, e ele teria de cortar São Petersburgo da lista, pois que, pelos novos mandamentos, a Rússia deixou de ser sinónimo de Europa e de “mundo”, no sentido de civilização ocidental — ou apenas de civilização — que ele lhe deu no seu poema. E, todavia, poucas cidades são hoje tão europeias, sob todos os pontos de vista, como São Petersburgo. E não apenas porque Pedro, o Grande sonhou com uma Nova Amesterdão ali, no Báltico, e trouxe alguns dos melhores arquitectos europeus para a desenharem e Catarina, a Grande encheu o Hermitage com milhares de obras que testemunham séculos da melhor pintura europeia. Apesar de Putin e tudo o resto, apesar do discurso de Putin sobre o destino euro-asiático da Rússia (de que não foi o inventor nem o único sonhador e que é natural num país que se estende de Murmansk e Vladivostoque, ao longo de 12 fusos horários), a verdade é que São Petersburgo, tal como Moscovo, é hoje uma cidade exuberantemente europeia. Nas “noites brancas” de São Petersburgo, os extraordinários restaurantes da cidade estão abertos até às duas da manhã e há uma animação e uma história latente em toda a cidade que contrasta de forma chocante, assim que se faz a curta travessia férrea para Helsínquia, com a desolação e a tristeza fúnebre da capital finlandesa, onde os restaurantes fecham às 8 da noite e a grande distração dos locais é atravessar de ferry para Taline, na Estónia, para irem comprar álcool mais barato. No meu conceito de civilização, São Petersburgo é irremediavelmente ocidental, geneticamente europeia e até tem qualquer coisa de estranhamente mediterrânico; Helsínquia... não é nada, é como se nada ali tivesse acontecido. Mas parece que agora, indo paradoxalmente ao encontro das ideias de Putin, a Rússia deixou de ser Europa e Ocidente aos nossos olhos, enquanto que a Finlândia — futuro membro da NATO, terra de pilotos de rallies e Fórmula 1 e pátria de dois arquitectos notáveis, Alvar Aalto e Eero Saarinen, e nada mais — é um verdadeiro símbolo dos nossos valores culturais e civilizacionais. Assim sendo, só resta regressar, concordando, a “O Sentimento dum Ocidental”: “Nas nossas ruas, ao anoitecer/ há tal soturnidade, há tal melancolia/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Ilustração: Hugo Pinto

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Geopolítica contra a globalização




Rui Tavares Guedes, na editorial do Courrier Internacional (Maio de 2022), escreve sobre o "risco que foi identificado há já algum tempo", pelo Secretário-Geral da ONU, o português António Guterres. Fê-lo de forma muito clara: "Receio a possibilidade de uma grande fratura (...) o mundo a dividir-se em dois, com as suas maiores economias da Terra a criar dois mundos separados e concorrentes, cada um com a sua moeda dominante, regras comerciais e financeiras, a sua internet, capacidades de Inteligência Artificial e as suas capacidades geopolíticas e militares".

Quase ninguém deu atenção, mas parece que, passados três anos, é exactamente isso que está a acontecer. A premonição de António Guterres provavelmente confirmar-se-á, pelo que se assiste após a invasão da Rússia na Ucrânia.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

DEPOIS DO DIA O DIA PARA PENSAR A HISTÓRIA


Por
estatuadesal
Altamiro Borges,
in Revista Diálogos do Sul

SAIBA QUAL A ORIGEM E O SIGNIFICADO
DO 1º DE MAIO

Notas
1. Uma pergunta nada inocente: Terá sido esmiuçado na Escola?
2. Transcrito do original.























"Se acreditais que enforcando-nos podeis conter o movimento operário, esse movimento constante em que se agitam milhões de homens que vivem na miséria, os escravos do salário; se esperais salvar-vos e acreditais que o conseguireis, enforcai-nos! Então vos encontrarei sobre um vulcão, e daqui e de lá, e de baixo e ao lado, de todas as partes surgirá a revolução. É um fogo subterrâneo que mina tudo”.
Augusto Spies, 31 anos, diretor do jornal Diário dos Trabalhadores.

"Se tenho que ser enforcado por professar minhas ideias, por meu amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade, então nada tenho a objetar. Se a morte é a pena correspondente à nossa ardente paixão pela redenção da espécie humana, então digo bem alto: minha vida está à disposição. Se acreditais que com esse bárbaro veredicto aniquilais nossas ideias, estais muito enganados, pois elas são imortais''.
Adolf Fischer, 30 anos, jornalista.

“Em que consiste meu crime? Em ter trabalhado para a implantação de um sistema social no qual seja impossível o fato de que enquanto uns, os donos das máquinas, amontoam milhões, outros caem na degradação e na miséria. Assim como a água e o ar são para todos, também a terra e as invenções dos homens de ciência devem ser utilizadas em benefício de todos. Vossas leis se opõem às leis da natureza e utilizando-as roubais às massas o direito à vida, à liberdade e ao bem-estar”.
George Engel, 50 anos, tipógrafo.

“Acreditais que quando nossos cadáveres tenham sido jogados na fossa tudo terá se acabado? Acreditais que a guerra social se acabará estrangulando-nos barbaramente. Pois estais muito enganados. Sobre o vosso veredicto cairá o do povo americano e do povo de todo o mundo, para demonstrar vossa injustiça e as injustiças sociais que nos levam ao cadafalso”.
Albert Parsons lutou na guerra da secessão nos EUA.

As corajosas e veementes palavras destes quatro líderes do jovem movimento operário dos EUA foram proferidas em 20 de agosto de 1886, pouco após ouvirem a sentença do juiz condenando-os à morte. Elas estão na origem do 1º de Maio, o Dia Internacional dos Trabalhadores.
Na atual fase da luta de classes, em que muitos aderiram à ordem burguesa e perderam a perspectiva do socialismo, vale registar este marco histórico e reverenciar a postura classista destes heróis do proletariado. A sua saga serve de referência aos que lutam pela superação da barbárie capitalista.

Origens

A origem do 1º de Maio está vinculada à luta pela redução da jornada de trabalho, bandeira que mantém sua atualidade estratégica. Em meados do século XIX, a jornada média nos EUA era de 15 horas diárias.
Convenção Nacional da União de Trabalhadores Negros nos EUA, em 1869
Contra este abuso, a classe operária, que se robustecia com o acelerado avanço do capitalismo no país, passou a liderar vários protestos. Em 1827, os carpinteiros da Filadélfia realizaram a primeira greve com esta bandeira.
Em 1832, ocorre um forte movimento em Boston que serviu de alerta à burguesia. Já em 1840, o governo aprova o primeiro projeto de redução da jornada para os funcionários públicos.
Greve geral pela redução da jornada
Esta vitória parcial impulsionou ainda mais esta luta. A partir de 1850, surgem as vibrantes Ligas das Oito Horas, comandando a campanha em todo o país e obtendo outras conquistas localizadas.
Em 1884, a Federação dos Grêmios e Uniões Organizadas dos EUA e Canadá, futura Federação Americana do Trabalho (AFL), convoca uma greve nacional para exigir a redução para todos os assalariados, “sem distinção de sexo, ofício ou idade”'.
A data escolhida foi 1º de Maio de 1886 — maio era o mês da maioria das renovações dos contratos coletivos de trabalho nos EUA.
A greve geral superou as expectativas, confirmando que esta bandeira já havia sido incorporada pelo proletariado. Segundo relato de Camilo Taufic, no livro “'Crônica do 1º de Maio”, mais de cinco mil fábricas foram paralisadas e cerca de 340 mil operários saíram às ruas para exigir a redução.
Muitas empresas, sentindo a força do movimento, cederam: 125 mil assalariados obtiveram este direito no mesmo dia 1º de Maio; no mês seguinte, outros 200 mil foram beneficiados; e antes do final do ano, cerca de 1 milhão de trabalhadores já gozavam do direito às oito horas.

“Chumbo contra os grevistas”, prega a imprensa

Mas a batalha não foi fácil. Em muitos locais a burguesia formou milícias armadas, compostas por marginais e ex-presidiários. O bando dos “'Irmãos Pinkerton” ficou famoso pelos métodos truculentos utilizados contra os grevistas.
O governo federal acionou o Exército para reprimir os operários. Já a imprensa burguesa atiçou o confronto. Num editorial, o jornal Chicago Tribune esbravejou:
“O chumbo é a melhor alimentação para os grevistas. A prisão e o trabalho forçado são a única solução possível para a questão social. É de se esperar que o seu uso se estenda”.
A polarização social atingiu seu ápice em Chicago, um dos polos industriais mais dinâmicos do nascente capitalismo nos EUA. A greve, iniciada em 1º de Maio, conseguiu a adesão da quase totalidade das fábricas. Diante da intransigência patronal, ela prosseguiu nos dias seguintes.
Em 4 de maio, durante um protesto dos grevistas na Praça Haymarket, uma bomba explodiu e matou um policial. O conflito explodiu. No total, 38 operários foram mortos e 115 ficaram ferido.
Os oito mártires de Chicago
Apesar de a origem da bomba nunca ter sido esclarecida, o governo decretou estado de sítio em Chicago, fixando toque de recolher e ocupando militarmente os bairros operários; os sindicatos foram fechados e mais de 300 líderes grevistas foram presos e torturados nos interrogatórios.
Como desdobramento desta onda de terror, oito líderes do movimento — o jornalista Auguste Spies, do “'Diário dos Trabalhadores”', e os sindicalistas Adolf Fisher, George Engel, Albert Parsons, Louis Lingg, Samuel Fielden, Michael Schwab e Oscar Neebe — foram detidos e levados a julgamento. Eles entrariam para a história como “Os Oito Mártires de Chicago”.
O julgamento foi uma das maiores farsas judiciais da história dos EUA. O seu único objetivo foi condenar o movimento grevista e as lideranças anarquistas, que dirigiram o protesto. Nada se comprovou sobre os responsáveis pela bomba ou pela morte do policial.
O juiz Joseph Gary, nomeado para conduzir o Tribunal Especial, fez questão de explicitar sua tese de que a bomba fazia parte de um complô mundial contra os EUA. Iniciado em 17 de maio, o tribunal teve os 12 jurados selecionados a dedo entre os 981 candidatos; as testemunhas foram criteriosamente escolhidas.
Três líderes grevistas foram comprados pelo governo, conforme comprovou posteriormente a irmã de um deles (Waller).

A maior farsa judicial dos EUA

Em 20 de agosto, com o tribunal lotado, foi lido o veredicto: Spies, Fisher, Engel, Parsons, Lingg, Fielden e Schwab foram condenados à morte; Neebe pegou 15 anos de prisão. Pouco depois, em função da onda de protestos, Lingg, Fielden e Schwab tiveram suas penas reduzidas para prisão perpétua.
Em 11 de novembro de 1887, na cadeia de Chicago, Spies, Fisher, Engel e Parsons foram enforcados. Um dia antes, Lingg morreu na cela em circunstâncias misteriosas; a polícia alegou “suicídio”.
No mesmo dia, os cinco “'Mártires de Chicago” foram enterrados num cortejo que reuniu mais de 25 mil operários. Durante várias semanas, as casas proletárias da região exibiram flores vermelhas em sinal de luto e protesto.
Seis anos depois, o próprio governador de Illinois, John Altgeld, mandou reabrir o processo. O novo juiz concluiu que os enforcados não tinham cometido qualquer crime, “tinham sido vítimas inocentes de um erro judicial”. Fielden, Schwab e Neebe foram imediatamente soltos. A morte destes líderes operários não tinha sido em vão.
Em 1º de Maio de 1890, o Congresso dos EUA regulamentou a jornada de oito horas diárias. Em homenagem aos seus heróis, em dezembro do mesmo ano, a AFL transformou o 1º de Maio em dia nacional de luta. Posteriormente, a central sindical, totalmente corrompida e apelegada, apagaria a data do seu calendário.
Em 1891, a Segunda Internacional dos Trabalhadores, que havia sido fundada dois anos antes e reunia organizações operárias e socialistas do mundo todo, decidiu em seu congresso de Bruxelas que “no dia 1º de Maio haverá demonstração única para os trabalhadores de todos os países, com caráter de afirmação de luta de classes e de reivindicação das oito horas de trabalho”.
A partir do congresso, que teve a presença de 367 delegados de mais de 20 países, o Dia Internacional dos Trabalhadores passou a ser a principal referência no calendário de todos os que lutam contra a exploração capitalista.