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terça-feira, 31 de março de 2020

Estadistas? Não. Humanóides, sim!


Para certos "humanos" pouco valor tem a vida dos outros. Arrepia e dói, bem por dentro, a ausência de sinais de humanidade. O valor da vida diz-lhes muito pouco a avaliar pelas declarações que produzem. Ainda ontem escutei aquilo que não pensava ser possível. Em um sinal de revolta interior, levantei-me e refugiei-me em uma leitura que não tinha acabado. Com um ar pretensamente sereno, Trump, aquele que desvalorizou a epidemia, ao nível de um frustrado capitão de nome Bolsonaro, assumiu que se o número de mortos nos EUA for entre 100.000 e 200.000, tal significará que "nós, no geral, fizemos um trabalho muito bom". É o dólar a falar mais alto relativamente à vida.


Deveria penitenciar-se perante o seu povo pelo facto de ter desvalorizado a pandemia e assumir que, neste momento, tudo estaria a fazer para corrigir o erro primeiro. Lamentavelmente, não foi por aí. E estou a ser tolerante. Porque mesmo que o argumento tivesse sido o da ausência de informação atempada e adequada, o que àquele nível é indesculpável, se tivesse estatura moral, deveria ter renunciado ao mandato, fazendo o "mea culpa" face à tragédia. Mas, enfim... Trump poderia até estar convicto que esta seria mais uma "gripezinha", porém, em circunstância alguma, desvalorizá-la, por respeito à vida do povo que lidera. Comportou-se como um humanóide, bípede, com olhos, nariz e boca, não como um ser racional dotado de inteligência. 

Esta arrepiante pandemia que nos consome, que nos atira para o isolamento e medo, que provoca o pensamento e a necessidade de tudo rever, que nos obriga a colocar em cima da mesa as razões mais substantivas da nossa colossal fragilidade, vale zero para essa espécie de "chefes" políticos, mistura de ignorância com arrogância. 

Ele que deveria suscitar o debate sério e profundo sobre a falência da saúde nos Estados Unidos, reflectida no facto de "30 milhões de pessoas não possuírem seguro médico, e outros 40 milhões só terem acesso a planos deficientes, com a exigência de pagamentos complementares e seguros com custos de tal forma elevados que só podem ser utilizados em situações de extrema gravidade, de acordo com a Kaiser Family Foundation, uma organização dedicada a pesquisar questões de saúde pública", não, preferiu, com total desumanidade, olhar para morte de 100 ou 200 mil concidadãos como se se tratasse de 100 ou 200 dólares na sua recheada carteira de negócios! E há quem o aplauda.

E não é só ele. Um outro imbecil, Jair Bolsonaro, expulso do Exército, portador de um vergonhoso currículo, elevou os decibéis da sua monumental ignorância altifalante para dizer ao mundo que o brasileiro é resistente a infecções, já que "pula no esgoto e nada acontece". Nem percebeu que tal declaração constituía uma afronta à ciência em luta contra o tempo, como colocava a nu as graves assimetrias do seu próprio país! E há quem o aplauda.

Entretanto, porque o momento assusta, sigo as imagens que me entram de forma fria e cruel casa adentro, assisto ao desespero nos hospitais e nos espaços improvisados, a uma morte a cada trinta segundos, a milhares de caixões levados do palco de uma guerra global contra um inimigo invisível e assaltam-me, por isso, tantas perguntas sobre a complexidade das causas da gradativa situação autodestrutiva do Homem, sobre este Homem e a Natureza, sobre a desmedida correria pelo dinheiro, sobre a louca ambição do ter relativamente ao ser, sobre uma economia de sentido único, sobre uma Educação redutora que, intencionalmente, conduz a múltiplas iliteracias, sobre as doentias mentalidades imperialistas, sobre os dados da pobreza mundial em um planeta que oferece riqueza e, no meio de tudo isto, sobre a existência de poderes fabricados, onde os estadistas e os Seres Humanos bons (os verdadeiros líderes) são engolidos pelas máquinas políticas que colocam os medíocres na condução das sociedades.
Não sei se o Mundo mudará depois da pandemia. Tenho muitas e sérias dúvidas. Prevalecerá, certamente, a continuidade do mundo conhecido e esta vivência dramática que estamos a sentir, constituirá um mero episódio, venham ou não a morrer 100, 200, 500 ou mesmo um milhão de seres humanos. O vil metal continuará a dominar.
Ilustração: Google Imagens.

sábado, 28 de março de 2020

Europa, segunda oportunidade


Por
José Sócrates,
in Expresso Diário, 
26/03/2020

1. Como sempre, na aflição, o mercado foge em debandada e só o Estado fica. A utopia neo-liberal de estender a racionalidade do mercado a todas as áreas sociais parece agora sem ponta por onde se lhe pegue. Desapareceram de cena aqueles que durante anos defenderam que deveríamos colocar o limite de três por cento do deficit orçamental na Constituição. Fazer dela um pacto suicida. Só resta o Estado – não há mais ninguém no campo da batalha. E, no entanto, é impossível evitar uma certa sensação de dejá vu.


2. A Europa está agora no centro da pandemia. Pese embora a tragédia dos números nalguns países e as compreensíveis hesitações iniciais, os governos europeus parecem estar a agir com cabeça fria. Primeiro, prioridade à questão sanitária, custe o que custar à economia. A ideia da imunização de grupo que levaria a escolhas utilitárias sobre quem morre e quem vive parece finalmente afastada. Não é mesma coisa, do ponto de vista moral, morrer depois de assistido ou morrer por impossibilidade de ser assistido. Segundo, nesta crise todos os governos (com pequenas diferenças) têm seguido os melhores conselhos da ciência médica. Terceiro e muito importante, tudo isso tem sido feito num clima político de grande responsabilidade, com as oposições a juntarem-se aos governos e suspendendo o conflito partidário. Ele virá, mas não agora, na emergência de saúde. Muito bem.

3. Enquanto isto, na frente da emergência económica, a União Europeia hesita. Sim, o banco central garantiu a indispensável liquidez. No entanto, as indispensáveis medidas de proteção social e de defesa da sobrevivência empresarial são deixadas a cada um dos países que não esqueceram a lição de 2008 e temem ser deixados sós a meio caminho. Sabem que mais tarde serão entregues a um mercado de dívida pública que os visará um a um. Com o relógio a contar, toda a Europa percebe bem que precisará de se endividar para fazer imediatamente chegar dinheiro às pessoas que, por razões sanitárias, estão impedidas de trabalhar. Isso será importante por razões sociais, por razões de confiança institucional e também para preservação da organização económica empresarial essencial à futura recuperação. Todavia, o trauma e a desconfiança resultante da ultima crise financeira está bem presente.

4. A primeira lição da crise anterior tem a ver com a liderança. Um pouco de enquadramento histórico é necessário para explicar o que quero dizer. A construção europeia teve dois ciclos distintos - um antes da queda do muro de Berlim e do desaparecimento do ameaça soviética; um outro depois, com a reunificação alemã e com a mudança do centro de gravidade europeu para leste. A Europa mudou com o alargamento e mudou numa questão central – a liderança.

O primeiro grande teste da Alemanha á frente do projeto europeu veio com a crise financeira de 2008 e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço. A desgraça ficou evidente desde o início - nem proteção, nem preocupação com a unidade, nem diálogo. O que se viu foi apontar culpas, frieza institucional e indiferença ao sentimento nacional nos países em maiores dificuldades. De um momento para o outro, sob orientação alemã (ou, talvez melhor dito, sob orientação da direita alemã), a política europeia deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico da direita contra os seus demónios preferidos – as políticas sociais. A austeridade económica constituiu-se então como única resposta redentora. Primeiro ponto, ela é indiscutível e não tem alternativa - é ditada pela ciência económica. Segundo ponto, ela tem também a sua dimensão moral: é preciso redenção – e redenção reclama castigo e sofrimento. Não deixa de impressionar a maneira como se conseguiu transformar uma típica crise de abuso de liberdade mercantil pelos mercados financeiros (os famosos sub prime) numa crise que aponta como culpados os Estados e o excesso de gasto público. Na verdade, a resposta europeia à crise financeira nunca foi uma política económica, mas um programa ideológico.

5. Todo este desastre só acabou quando, depois de várias catástrofes, o Banco Central Europeu decidiu finalmente fazer o que os alemães não tinham, até aí, deixado fazer – o “quantitative easing”, copiado da política americana, que conteve a desgraça de muitos países expostos (Portugal incluído) e que afastou os riscos contra a moeda única europeia. Aliás, a comparação com a estratégia americana é talvez a melhor fonte de evidência da irracionalidade económica seguida na Europa. Os Estados Unidos estancaram mais rapidamente a crise financeira e recuperaram mais rapidamente o emprego e o crescimento, enquanto a economia europeia, metida num buraco, continuava a usar a austeridade para escavar e enterrando-se cada vez mais.

O resultado desses anos no projeto europeu está ainda bem presente – a periferia ressentida com o centro, o sul desconfiado do norte, os pequenos desiludidos com os grandes. A cizânia não veio de fora, não veio da ameaçadora Rússia, como tantos apregoavam, mas de dentro e motivada por um grave erro de liderança. O desolador balanço desta política económica está ainda por fazer dada a cumplicidade da burocracia europeia (e da esquerda europeia, para ser justo) com a narrativa da austeridade. Mas os estudos sobre o que aconteceu são hoje em dia mais fáceis e a história anda agora mais rápido – não, a crise não veio dos Estados, mas dos mercados; não, não foi o deficit que criou a crise, mas a crise que criou o deficit; e não, não foi a austeridade que acabou com a crise mas o fim da austeridade que acabou com a crise.

6. É preciso falar da crise anterior também para que fique clara a lição número dois: os custos de contenção da crise são inferiores aos custos de reconstrução. Os custos de nada fazer não são apenas económicos, mas sociais e políticos. E desta vez é pior. A crise tem estas duas frentes, a sanitária e a económica, devendo a primeira prevalecer como prioridade. A crise vem agora da economia real e em breve se estenderá ao sistema financeiro. O tempo urge. O que virá a seguir é uma tragédia como penso que ainda não tínhamos visto. Quando se fala de plano Marshall para a recuperação económica futura é preciso que fique claro que nada disso deve desvalorizar a tarefa imediata. Não é possível passar ao lado do que é necessário fazer já - já - para evitar o colapso e o desemprego em massa que se avizinha. Esta semana, por exemplo, o governo dinamarquês comunicou às empresas privadas que vai pagar 75% dos salários dos seus empregados para evitar os despedimentos. Durante três meses o governo paga para os trabalhadores ficarem em casa: 13% do produto anual bruto do País. A ideia é congelar a economia e evitar as rotação de despedimentos e de novas contratações que atrasariam a recuperação futura. A filosofia é simples e resulta da experiência com a crise anterior - se nada for feito agora será mais caro reconstruir depois.

7 Outro exemplo curioso. Costumo passar pelo blog de um economista americano que escreve pouco, mas que, quando o faz, tem sempre alguma coisa a dizer. Escreveu ele a 14 de março : “Considerando a dificuldade de identificar os verdadeiramente necessitados e os problemas inerentes a tentar fazê-lo, enviar um cheque de 1000 dólares a cada americano o mais rápido possível será um bom começo... Há tempos para nos preocuparmos com a subida da dívida estatal. Este não é um deles. Peço atenção para este pormenor – dificuldade de identificar os verdadeiramente necessitados e os problemas inerentes a tentar fazê-lo". Isto é, as medidas devem ser simples por forma a evitar a burocracia e a canga regulamentadora que tantas vezes compromete a sua eficácia. Rapidez, rapidez.

No último ponto do seu pequeno artigo escreveu também que o Presidente Trump deveria calar a boca e deixar quem soubesse alguma coisa do assunto falar em seu nome. Infelizmente, dizia ele, isso não parece que irá acontecer. Na verdade, o governo americano não só ouviu como decidiu fazer exatamente o que foi sugerido. Três dias depois, a 17 de março o Secretário de Estado do Tesouro americano anunciava a decisão de enviar o cheque nas próximas duas semanas. A medida (ou coisa muito parecida) acaba de ser aprovada no Congresso. Julgo que nada haverá de mais parecido com o “helicopter money” de que falava Milton Friedman . Quem diria? Nos Estados Unidos.

8. Regresso ao ponto crítico: a Europa e a liderança. O esforço financeiro que é agora pedido aos Estados europeus não pode ser realizado sem recorrer à dívida publica – a “public blessing” de que falava Alexander Hamilton. Mas os montantes assustam e ninguém quer ser apanhado na emboscada que se começa a montar nos mercados financeiros, esperando as vítimas estatais, que chegarão ao próximo ano com deficits e dívida muito superiores aos que têm agora. O fantasma da última crise está ainda bem presente. A única forma de evitar essa armadilha é assumir essa dívida à escala europeia, havendo várias formas de o fazer.

Não consigo aceitar o que para aí ouço todos os dias nas televisões - convencer Merkel, pressionar Merkel, pedir a Merkel. Toda esta conversa lembra mais a de elites subordinadas do que que de parceiros na construção de um projeto comum. Não se apela à liderança, ela resulta do sentido interior da responsabilidade. Ninguém pode ser obrigado a liderar se não sentir que tem essa obrigação ou essa responsabilidade.

Liderar é convencer, unir - mostrar o caminho. Levantar-se e agir. Eis o que significa liderança. A questão política central e urgente é se enfrentamos esta tempestade juntos ou cada um por si. No final, a pergunta é simples: se a Europa não serve para uma crise destas, para que servirá? O risco que enfrentamos, se bem vejo as coisas, vai um pouco além da questão económica. Ninguém deseja uma Europa de volta à geopolítica das esferas de influência, das Mitteleuropas, e das balanças de poder. A liderança alemã – e a Europa em consequência - tem aqui a sua segunda oportunidade. Francamente, não sei se terá outra. E estou a medir as palavras.

sexta-feira, 27 de março de 2020

A "repugnante" divisão europeia


Em tempo de guerra não se mudam generais, dizia há dias o primeiro-ministro. Ontem foi dia de lamentar que não se mudem ministros. Holandeses neste caso. 


Em tempo de crise global, em vésperas de uma recessão económica a que ainda ninguém adivinha a dimensão e em plena pandemia em Portugal, “repugnante” não é palavra que se queira ouvir a um primeiro-ministro. Mas assim foi no final da reunião de ontem do Conselho Europeu.
Wopke Hoekstra, ministro das finanças holandês, terá dito esta semana que “a comissão europeia devia investigar países como Espanha, que afirmam não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus, apesar de a zona euro estar a crescer há sete anos consecutivos”. E António Costa não gostou de ser confrontado com as declarações. "Esse discurso é repugnante. Ninguém está disponível para ouvir o ministro das Finanças holandês a dizer o que disseram em 2009, 2010, 2011. Não foi a Espanha que importou o vírus. O vírus atinge a todos por igual. Se algum país da UE acha que resolve o problema deixando o vírus à solta nos outros países, não percebeu bem o que é a UE", disse. Também não terá percebido bem o coronavírus.
Nota:
Publicado na edição de hoje do Expresso/Curto pelo jornalista Filipe Garcia.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Coronabonds? Já, mas com cuidado


Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
25/03/2020

Com muitos outros economistas de opiniões variadas, de Mark Blyth a Thomas Piketty ou Jean-Paul Fitoussi e Giovanni Dosi, ou outros colegas portugueses, assinei um apelo para a criação urgente de eurobonds para financiar a recuperação económica e criação de emprego depois da pandemia. Neste artigo dou conta das razões para esta solução de emergência, de alternativas possíveis e dos perigos que estão presentes nas escolhas para a arquitetura desta medida, caso venha a ser criada.


Os eurobonds, ou coronabonds como agora são referidos, são a mais facilmente disponível das várias alternativas para evitar o escalonamento do peso da dívida pública que terá de ser emitida para financiar a recuperação. Mas, se tiverem como contrapartida novas medidas de austeridade, podem tornar-se os coveiros da União. A escolha entre os caminhos da recuperação ou da divisão será a mais importante da história da Europa desde o fim da Guerra.

UMA VELHA IDEIA SEMPRE RECUSADA

A primeira proposta de emissão de títulos europeus de dívida terá sido apresentada por Jacques Delors em 1993, era então presidente da Comissão Europeia. A ideia era financiar o orçamento comunitário, usando um instrumento que complementasse as contribuições diretas nacionais e assegurasse a todos os Estados um preço baixo (e igual) desse esforço. A ideia foi rejeitada. É de notar também que Delors liderou a negociação do Tratado de Maastricht, que abriu a via para o euro e que é o primeiro fundamento jurídico invocado pelos opositores aos eurobonds, dado que estabelece uma separação estrita entre a política monetária e a política orçamental. Essa fronteira é o pilar da ortodoxia do euro e os eurobonds desvaneceram-se por muitos anos.

Houve duas décadas depois uma tentativa de relançamento do debate institucional sobre o tema, quando Hollande, então Presidente de França, e Monti, primeiro-ministro de Itália, propuseram essa resposta à crise das dívidas soberanas de 2011. O assunto foi mais uma vez enterrado e as duas razões para a recusa são ilustrativas das dificuldades que a proposta pode vir a enfrentar agora. A primeira é que a Alemanha e os seus satélites beneficiam comparativamente de uma crise financeira e de uma recessão.

De facto, como aconteceu então e está a começar a acontecer agora, num momento de turbulência as emissões de dívida alemã tornam-se um refúgio financeiro e os seus juros descem, enquanto sobem os juros aplicados aos países do sul. Esse movimento de tesoura premeia a Alemanha, significando que os países do sul a estão a financiar. Além disso, segunda razão, maximiza a pressão política para impor medidas de austeridade, como aconteceu entre 2011 e 2013, e estabelece uma hegemonia neoliberal que também reforça a liderança germânica. A diferença de juros, que favorece a Alemanha e penaliza as economias mais frágeis, é-lhe financeiramente vantajosa e é um instrumento invisível de poder absoluto.

Entretanto, os governos alemães fazem as contas e, nisso, não há nenhuma diferença entre Merkel e os social-democratas alemães: eurobonds significa dívida mais barata para os países do sul e um algo mais cara para a Alemanha. Assim, leem essa diferença como uma transferência de fundos entre países, o que consideram inaceitável política e eleitoralmente (além de temerem que a AfD ou partes da CDU ou CSU levem a questão ao Tribunal Constitucional alemão e consigam uma interdição baseada na jurisprudência e na interpretação ortodoxa que sempre foi favorecida no país). Foi por isto que os eurobonds foram sempre recusados.

Todas estas razões se mantêm hoje e não foram alteradas. Só que a pandemia e a recessão que desencadeia atuam como um revelador: o sistema de troca desigual que sempre favoreceu a Alemanha é a prova de que não vivemos numa verdadeira União e, em momentos de crise, a nudez dessa mentira ameaça fazer desabar o seu edifício. O poder alemão e predomínio das políticas neoliberais foi e é um obstáculo a uma União Europeia.

UMA UNIÃO DEVERIA ADOTAR MEDIDAS CONTRA A RECESSÃO

Mesmo assim, podia não ter sido tão constrangedor. O improviso e a despreparação de Lagarde e de Von der Leyen na primeira resposta à pandemia ficaram patentes, até mais do que a pessoa mais pessimista poderia temer. No seu momento épico, Lagarde desencadeou um ataque à dívida italiana, logo o epicentro europeu de todos os riscos (a crise sanitária, o risco da dívida pública monumental, o risco político com Salvini à frente das sondagens). Terá pedido desculpa. E, para tentar corrigir a sua primeira atuação, o BCE somou ao programa de 150 mil milhões de euros mais outro de 750 mil milhões. É pouco mais do programa que o governo alemão anunciou para o seu país, o que indica a desproporção e falta de meios. A Comissão anunciou 37 mil milhões, resgatados de programas avulsos, ao mesmo tempo que discute tranquilamente a redução do orçamento comunitário, em particular dos fundos de coesão, para os próximos sete anos.

O problema dos programas anunciados é que se trata de linhas de crédito, o que entrega o poder discricionário de decisão sobre a recuperação de empresas à banca, e de compras de ativos no mercado secundário, medida concebida antes de mais para sustentar as bolsas.

Mesmo que os efeitos de curto prazo nos juros da dívida pública reduzam ligeiramente o impacto imediato sobre as economias mais vulneráveis (os juros da dívida a dez anos de Portugal desceram um pouco depois de uma forte subida, mantendo-se em todo o caso em níveis quatro vezes superiores aos de há duas semanas, e algo semelhante se passa com Itália e Espanha), nenhuma destas medidas responde ao aumento do défice que vai ser necessário na segunda metade de 2020. Ora, Lagarde, como antes já o tinha feito Draghi, alerta para os limites da política monetária expansiva e pede crescimento do esforço orçamental de todos os países. É a voz do desespero. Sabe que o BCE não consegue o efeito pretendido só com mais uma injeção de liquidez financeira, por via do quantitative easing. É preciso um monumental esforço orçamental.

Por isso e desta vez, perante o desastre, a Comissão aceitou suspender a obrigação do limite de défice a 3%. Era indispensável. Os défices serão muito maiores, se houver resposta adequada: o custo de reforçar o sistema de saúde, o pagamento de apoios sociais, os subsídios a empresas e o investimento, ao mesmo tempo que a redução do PIB e das receitas fiscais e contributivas, tudo determinará um défice grande. É o que é necessário. Mas já vimos esta solução na última recessão, não vimos? Em 2009, depois do crash financeiro (o Lehman Brothers faliu em setembro de 2008) e com uma recessão profunda, Merkel e Sarkozy, com a Comissão Europeia, convidaram os países europeus a uma expansão orçamental imediata. Quase todos o fizeram. E depois veio a fatura. Quando se tratou de pagar essas medidas anti-crise, os juros da dívida dispararam e os mesmos que queriam mais despesa agregada impuseram cortes orçamentais duros. Tinha chegado a austeridade.

Fica então o problema principal de cada euro gasto em liquidez para os bancos, subsídios de desemprego, linhas de crédito garantido para PMEs, pagamento de salários pela segurança social ou investimento: como é que os países vão financiar esse défice? Com emissão de dívida. A que preço? É aqui que entrariam os coronabonds.

OFERECER RIOS DE MEL?

O BCE e as autoridades europeias poderiam certamente adotar outras medidas. Uma que tem sido proposta é o “dinheiro de helicóptero”, a solução avançada um dia, paradoxalmente, por um liberal de extrema-direita, Milton Friedman, para responder a uma recessão: fazer uma transferência única para cada pessoa, de modo a sustentar a procura agregada. Trump está a fazer isso, pagando 1200 dólares a cada adulto, visto que se apercebeu tarde mas se assustou com a crítica ao seu desprezo irresponsável e, sobretudo, tem eleições dentro de meses. É um alívio possível para uma emergência, mas tem dois problemas.

O primeiro é que, nas circunstâncias presentes, não basta para resolver as dificuldades essenciais, dado que este não é só um problema de procura, é também uma crise dos sistemas produtivos, que provocará um auge do desemprego e novas quedas do investimento, com o risco de deflação. Um momentâneo empurrão à procura não salva a economia e o emprego.

O segundo problema é mais grave. É o que é colocado pelos defensores do “rendimento básico incondicional”, que tentam relançar agora a sua doutrina, depois de um apagão, sugerindo que tudo se resolve se alguma entidade pagar a cada pessoa um donativo mensal. De facto, a proposta desapareceu do mapa nos últimos anos, dado que a única concretização que reclamava como exemplo era a do Alasca, que distribui rendimentos do petróleo oferecendo 80 dólares por mês a cada pessoa. Ora, nem toda a gente tem petróleo, mas ninguém vive com uma esmola dessas. Assim, a ideia do “rendimento básico” é uma fraude. Promete distribuir dinheiro grátis para permitir a cada pessoa viver confortavelmente, mas os seus promotores recusam-se a dizer quanto e como vão pagar. Por uma boa razão: em Portugal, distribuir 500 euros por mês para cada pessoa custaria mais do que o total das receitas fiscais e, para que essa receita pudesse ser usada para distribuir de tal forma, implicaria despedir todos os médicos, enfermeiros, professores e polícias. Consta que os mais afoitos dos defensores desta ideia tentam salvar-se afirmando que os rios de mel virão do BCE por toda a eternidade.

SOLUÇÕES CONSISTENTES

As soluções mais consistentes para esta crise, são as respostas estruturais às condições de financiamento das dívidas que vão ser contraídas, de modo a tornar possível o esforço orçamental.

A mais imediata seria garantir a compra das emissões de dívida pública de 2020 pelo BCE, até um limite fixado de acordo com a sua chave de capital corrigida pelos montantes dos programas de recuperação económica, ao mesmo tempo que as dívidas soberanas que estão no balanço do BCE seriam convertidas em títulos perpétuos sem juro. Isso seria um canhão poderoso, pois responderia parcialmente ao maior de todos os riscos, impedindo que o financiamento da recuperação dependa dos mercados financeiros. Como se notará, esse risco seria reduzido caso os estados emitissem a sua própria moeda, mas não é hoje o caso.

Dificilmente alguma dessas medidas será adotada. Resta por isso a dos coronabonds, que, em exasperação, tanto Lagarde como Von der Leyen já admitiram. Alguma imprensa internacional sublinhou com entusiasmo que há uns dias Merkel não a rejeitou terminantemente, tendo remetido para um parecer do seu ministro das finanças.

A pressão é grande para uma resposta de monta, e esta é para já a única que está em cima da mesa do Conselho Europeu. É, sobretudo, uma solução alcançável, dado que existem os instrumentos técnicos para a concretizar, através de uma combinação do Mecanismo Europeu de Estabilidade e do Banco Europeu de Investimentos, ou da ação direta do BCE. A vantagem é evidente, dado que baixar os juros das próximas (e importantes) emissões de dívida, reduzindo a pressão dos mercados financeiros, é fundamental para proteger as populações.

OS PERIGOS DE CORONABONDS AUSTERITÁRIOS

Ficam, no entanto, as duas objeções fundamentais dos fundamentalistas neoliberais, em particular os da Alemanha e Holanda, que recusam transferências entre as economias e não abdicam da pressão para medidas liberalizadoras. E é aqui que estão os riscos mais graves: a Comissão e o BCE podem – e é natural que tentem – obter o acordo dos falcões com uma contrapartida, que seria uma nova geração de programas de austeridade. Por isso, já se fala de uma solução especial, algo diferente da dos eurobonds, que conseguiria recursos que os estados possam usar para o esforço orçamental sob a forma de programas de empréstimo para as economias. Assim, não recorreriam a emissão nos mercados financeiros mas, em troca desse crédito, submeter-se-iam a medidas de “ajustamento”. As troikas espreitam de novo na esquina da pandemia.

Se lermos os relatórios dos últimos anos das instituições europeias, mas também das mundiais, como o FMI ou a OCDE, os contornos desses programas são fáceis de adivinhar. Tratar-se-ia de avançar e concluir os processos de liberalização, com a transformação do emprego, o que hoje se chama uberização e antes se dizia precarização, quando ainda não tínhamos chegado a tempos tão radicais. Nesse mapa ideológico, reduzir estruturalmente o salário (ou as pensões) não constitui um problema do lado da procura desde que o autoritarismo social permita impor generosas transferências de impostos, sob a forma de rendas, para os poderes financeiros.

O problema é que estes programas não são fáceis de enunciar ou de aplicar. Eles sempre implicaram reduzir os serviços públicos para mercantilizar uma parte crescente dos bens comuns, em particular na saúde, educação e segurança social. Ora, a crise que vivemos é uma pandemia que revela o custo do pirateamento dos serviços de saúde ao longo da última década. Mesmo com esses cortes, os serviços públicos de saúde são, nesta crise, a única âncora que garante segurança às populações. Propor de novo a sua privatização é algo que para já só é ousado por um Ventura, mas era o caminho que se estava a seguir. É por isso de antecipar que, se os partidos do centro ou da direita clássica ousarem promover uma nova vaga de austeridade e de redução da saúde ou do ensino públicos, vão acelerar os processos de desagregação que prometem evitar.

Não é só um problema do euro, que não sobreviveria a uma saída da Itália. O governo francês parece ser o único a dar-se conta da tempestade perfeita que está a ser criada por uma liderança europeia que ignorou os pedidos de apoio das autoridades italianas e se poderia atrever a usar as novas regras para amesquinhar o país. A União Europeia que conhecemos também dificilmente resistiria a uma resposta à pandemia que promova o desastre social. Por isso, os coronabonds são necessários e o Conselho Europeu e o BCE não terão alternativa melhor que seja imediatamente viável. Podem fazer deles uma solução ou uma bomba de pavio curto.

domingo, 22 de março de 2020

Ler e saber ajudam mais a atravessar esta pandemia


José Pacheco Pereira, 
in Público, 
21/03/2020

As debilidades do nosso país face à crise da pandemia da covid-19 não se encontram apenas no Sistema Nacional de Saúde, ou no tecido económico, nem na falta de testes ou de ventiladores. Há uma mais invisível, que é a falta de preparação de muitos portugueses para poderem ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente, eficaz para o que se está a passar. Essa debilidade está a crescer à medida que há uma substituição de uma cultura de experiência indirecta (que se obtém nos livros, filmes, etc.), na curiosidade e no saber, por uma ignorância atrevida e agressiva com origem nas redes sociais. Uma protege-nos mais na crise, a outra agrava os factores de crise e não nos protege.


Bem sei do clamor que estas frases, que hoje são classificadas de “elitistas”, suscitam: “Com que então, os livros, em vez da vida?” Mas qual vida? A dos dependurados 24 horas no Facebook e noutras redes sociais? Sim, a vida protege-nos, se transportar consigo experiência, dificuldades, sentido das proporções, riqueza, enfim, “vida”. E se tiver em acrescento livros, filmes, músicas, arte e jornais, ainda mais nos protege. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Há um outro clamor, mais intelectual: mas o que é isso da “cultura”? Sim, são questões complexas e ambíguas, mas, para o caso, basta o senso corrente, mesmo que seja um lugar-comum. Em tempos de guerra, não se limpam armas e toda a gente sabe o que é ser “culto”, mesmo que saiba menos o que é ser ignorante. 

Culto, interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e não necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

Mas, resumindo e concluindo, três coisas contam nesta pandemia: vida, cultura e dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a última. Mas, pelo menos na cultura, sempre se pode combater a incultura que cresce perante a cobardia e a inércia de muitos que acham que esta é a “realidade” dos nossos tempos e não há nada a fazer. Há e muito. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

Quem lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico, entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam. Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

E não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre as mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia, história, transporta. E na literatura e nos filmes também não se trata de procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo de situações que vivemos, como A Peste, de Camus, ou os contos de Edgar Allan Poe (em ambos os casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros, seja o 1984, de George Orwell, seja a Montanha Mágica, de Thomas Mann (onde o lugar da tuberculose, o sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar um exemplo não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa da mesma maneira que se não o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa experiência estética, é provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto, pela actividade cívica, pela opinião. Como em tudo, não é regra absoluta, mas mais vale ter lido do que ter passado ao largo. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

O problema é que estamos a andar para trás, e não se pense que isso é assim tão excepcional na história. Os progressistas acham que se anda sempre para a frente, que a humanidade caminha sempre para o melhor, e o pior é incidental. Não é assim, claro; há momentos da história em que tensões sociais, epidemias, guerras, destroem o saber e o modo de vida. O problema com a ignorância arrogante dos nossos dias começa logo no bloqueio de toda a informação e a sua substituição pela desinformação. 

Os que vivem nas redes sociais acham que os jornais, os influentes, os políticos lhes sonegam a verdade, lhes ocultam os factos, numa conspiração vinda do Grupo de Bilderberg, da Internacional Sionista, do grupo de pedófilos que governa o país, de George Soros, da Nova Ordem Mundial Maçónica, dos sistemas 5G, de Deus para punir a homossexualidade e a generalizada dissolução dos costumes, seja lá do que for. Todos estes exemplos foram tirados das redes sociais. E o que fazem é disseminar falsas afirmações, teorias conspirativas, boatos e rumores, pseudociência, acusações caluniosas, ressentimentos e invejas sociais, que, por sua vez, são consumidas pelos seus semelhantes num eco especular, que, em tempos de crise, tende a criar um imenso ruído. E a reacção a esse ruído é frágil, porque muitos dos que se lhe deveriam opor nas instituições e individualmente têm soçobrado nessa obrigação.
Uma das grandes forças do livro de Edward Gibbon sobre a queda do império romano é descrever o desprezo pelas ruínas de muitos habitantes de Roma que, muitos séculos depois, viviam nos restos dos monumentos imperiais achando que eram empecilhos – os “romanos eram insensíveis às belezas da arte” – e a humilhação de homens como Petrarca pela “supina indiferença” com que eles eram tratados. Chegados a esta crise, confinados a casa, com os restos da ciência, da arte, da literatura, do saber atacados pelos atrevidos ignorantes, ao menos esta “guerra” tem mais sentido. E ajuda a sobreviver.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Salvar o euro, outra vez (ou: de onde vem todo este dinheiro?


Por
Pedro Santos Guerreiro,
in Expresso Diário, 
20/03/2020

Não está nas primeiras páginas nem nas primeiras preocupações, mas este dinheiro todo tem de vir de algum lado. Lembra-se das dívidas soberanas? Dessa imensa abstração a que chamamos “os mercados”? Então lembre-se de outra coisa: é preciso salvar o euro. Outra vez. E isso já começou. Até porque desta vez não são só os “países periféricos”, são todos. Até porque desta vez inclui a Alemanha.


São tantos os anúncios de milhares de milhões daqui e dali que ninguém percebe nada — o desenho concreto torna-se pintura abstrata. Mas veja este número de ontem: 750 mil milhões de euros do BCE. Não pense em quantos aeroportos do Montijo daria para construir (daria para 580, mas também escusa de pensar no novo aeroporto, não vai acontecer agora), pense antes no que isso significa. Significa que as bazucas, os obuses e os canhões estão a sair do paiol não apenas para salvar a economia, mas para salvar o euro. Sim, esse mesmo, o tal que esteve por um fio até ao verão de 2012, durante as intervenções externas.
A crise de 2008 durou dois a três anos a chegar às dívidas soberanas, porque começou no sistema financeiro. Mas esta crise nasce na economia e é diferente, porque é simultaneamente de procura (compra-se menos, por quebra de rendimento e por medo) e de oferta (produz-se menos por paragem das fábricas, distribui-se menos porque as cadeias de abastecimento estão quebradas). Desta vez, o contágio não espera dois ou três anos, como em 2008: está a ser num ápice. Os mercados parecem loucos, os de ações, de obrigações, de matérias-primas e todos os seus derivados.

DE ONDE VEM O DINHEIRO?

De dívida, claro. Mas quem empresta?
Ninguém se atreve a fazer contas ou dizer as contas que faz, porque ninguém sabe quanto tempo durará e ninguém quer assustar outros com a sua própria escandalização. É como atirar uma pedra para um poço de que não se vê o fundo e ficar à espera de ouvi-la esmurrar a água. Mas as recessões mensais são uma escavação inédita. Mas as despesas do Estado com saúde, com segurança social e com a economia (incluindo a quebra de impostos e de contribuições) são uma gazua terra adentro.
É um exercício destravado sem fecho para balanço, com um jorro de défices mensais crescentes sobre um PIB minguante. Os défices de março e abril sobre o PIB hão de ficar para a História como o maior bungee jumping orçamental das nossas vidas. A corda é a dívida, que hoje nos salva e amanhã não nos pode enforcar. É por isso que as autoridades monetárias, europeias e governamentais, têm de perder hoje as regras de controlo sem perderem o controlo das regras. Amanhã pagaremos: a dívida de hoje são os impostos de amanhã. Estes são meses de mandar o défice à vida, mas não de rasgar as folhas seguintes do calendário.
Sim, mas quem empresta? Quem empresta ao Estado que “empresta” às empresas e às pessoas?
Os bancos centrais, que injetam liquidez direta e indiretamente — por exemplo comprando ativos e dando garantias de liquidez.
A União Europeia, que ou age em função do todo ou não é União Europeia. Não tanto através do seu próprio orçamento, que é relativamente pequeno, mas dando garantias e servindo de intermediário, o que implica criar finalmente instrumentos de dívida poderosos como os eurobonds, obrigações europeias para dar potência às impotências nacionais.
Os próprios mercados, pela deslocação das massas de dinheiro que estão a sair de títulos de risco como ações e procuram refúgios. Sim, há perdas gigantes, mas o dinheiro não desaparece todo, circula pelo mundo, quem vende ações investe noutros sítios, como obrigações do tesouro, ouro ou divisas, mesmo se sabemos que há sempre garimpagem por oportunidades de enriquecimento súbito que despontam em alturas de pânico.

SALVAR O EURO

Glossário: comprar ativos, comprar carteiras de crédito, é na prática emprestar dinheiro; flexibilização quantitativa é na prática emitir moeda (coisa que os bancos centrais nunca admitirão); emitir eurobonds é na prática mutualizar o risco, apondo o menor risco coletivo ao maior risco individual.
Os mercados estiveram quase “fechados”. Nos últimos dias houve crise de liquidez nas obrigações, depois das declarações desastrosas de Christine Lagarde, pelas quais pediu depois desculpa, que prejudicaram os países com mais risco, como Itália, Espanha, Grécia e Portugal. Os juros das dívidas públicas começaram a subir e, sobretudo, a diferença entre os juros destes países e os da Alemanha (os “spreads” das dívidas) aumentaram muito.
As taxas continuam historicamente baixas, mas por exemplo o IGCP (que tem feito um excelente trabalho) quis colocar (pedir emprestado) 1,5 mil milhões de euros há dias e só conseguiu mil milhões. Não é preocupante, é um sinal. Se a zona euro não der cobertura por exemplo a Itália, o país entra em colapso financeiro.
Foi assim que surgiram os 750 mil milhões do BCE, que significam que o banco central quer “aguentar” o mercado, está disposto a comprar dívida para compensar a fuga ou paralisia de investidores. Assim, há uma compensação da quebra de procura, o preço não despenca e continua a haver financiamento. As medidas são extraordinárias, como devem ser: o BCE compra dívida pública (empresta a Estados) mas também de empresas (empresta-lhes dinheiro) e baixa as exigências de garantias colaterais aos bancos (empresta-lhes mais facilmente).
Estas medidas são boas, tanto que “os mercados” desataram a subir desde esta quinta-feira, mesmo se esta arritmia diária segue e continuará a seguir como carrinhos numa montanha russa. E significa que, financiados pelo banco central (na Europa como em todo o mundo ocidental), os Estados têm financiamento para o que precisam: as políticas orçamentais, através da baixa de impostos e do aumento dos seus gastos. E que os bancos não terão falta de liquidez nem serão obrigados a automaticamente aumentar o capital quando perderem ou suspenderem cobranças de créditos a clientes que não podem agora pagá-los.
O BCE já corrigiu o tiro. Falta ainda assumir dívida europeia. Virá o tempo de um “plano Marshall”. E, sobretudo, fazer com que os Estados da UE coordenem as políticas orçamentais e económicas, ou será cada um por si. Os défices de França, de Espanha, de Itália já dispararam, o da Alemanha também subirá. E sim, a Alemanha é uma peça-chave em tudo isto. Pela força económica e pela força política. E porque, como desta vez também a atinge com força, pode tomar decisões coletivas que antes rejeitou.
Estamos ainda no princípio, a pedra atirada ao poço está ainda longe de socar a água. Serão necessárias mais medidas e sobretudo mais coordenação. Se assim não for, podem voltar a mudar o nome à UE, não para voltar a CEE, mas para assumir ser apenas CE: uma Comissão Europeia, mas não uma União. Pior que um Brexit seria ruir por dentro. Seria a ruína.
União Europeia, precisamos de ser mesmo União Europeia. Europa, não precisamos de ti como se fosses outra que não nós. Precisamos que nós sejamos tu e que tu sejas nós.

segunda-feira, 16 de março de 2020

O VÍRUS E A CAMPAINHA DE ALARME


O meu tempo de vida permitiu seguir o melhor e o pior. Foram tantos, mas mesmo muitos os momentos de uma indescritível vivência e desfrute do que foi possível ao Homem, através da ciência, transformar e conquistar no sentido do seu relativo bem-estar; mas também muitos outros, incontáveis, de desesperança nesse Homem que tudo atropelou, gerando desencantos sem fim, provocadores de dolorosas guerras, de fome, de sucessiva degradação ambiental e de arrepiantes e persistentes assimetrias económicas, financeiras e sociais que muito fazem doer. 

E vem um vírus, sorrateiramente, silencioso e invisível, como que, simbolicamente, a questionar sobre o porquê de tanta desmedida ambição, sobre a suja luta pelo dinheiro fácil, sobre a mentira, sobre a corrupção a todos os níveis, sobre a perda do sentido da medida, sobre a desumanidade nos "Direitos do Homem", sobre o individualismo e o egoísmo, sobre a secundarização dos princípios e dos valores que deveriam nortear este tempo que deveria se constituir como consequência da inteligência e do bom senso do Homem. Um vírus que não necessita do enriquecimento de urânio para matar em larga escala. Ele é a "bomba atómica" que se fragmenta a todo o momento, colocando-nos o rótulo da fragilidade.
Não resisto a trazer à colação um pequeno texto do Padre Martins Júnior, publicado no seu blogue "Senso & Consenso":

"Envergonhem-se, parem, escondam-se!
Um breve espirro, saído do mais frágil ser humano, é mais poderoso que todos os vossos arsenais de guerra!!! 
“Vejam agora, ó sábios na Escritura
Que segredos são estes da Natura” - Luís Vaz de Camões
“Lembra-te, ó Homem: Hoje és pó erguido, amanhã serás pó caído” - Padre António Vieira. 

O arrepiante vírus, nos tempos que correm, deveria levar-nos a pensar os actos e a efemeridade da vida. Deveria funcionar como uma campainha de alarme para tanta correria inútil.
Mas este não é um tempo para equacionar, politicamente ou de qualquer outra forma, sobre os desconfortos que ocorrem debaixo dos nossos olhos de actores e observadores. É sobretudo tempo de reflexão, tempo de conceder espaço a outras prioridades e tempo de um rigoroso cumprimento do que recomendam as autoridades de saúde. Temos de vencê-lo e vamos vencê-lo, pelo lado do absoluto rigor e bom senso. Respeitemo-nos uns aos outros nesta luta desigual. Ah, e retiremos os necessários ensinamentos.
Por isso, porque não faz sentido escrever sobre assuntos não prioritários, tal como escreveu o meu Amigo Padre José Luís Rodrigues, "(...) Entro hoje em quarentena de facebook. Não há prazo. Esperemos que seja breve. Não quero contribuir para a intoxicação generalizada que estamos a viver. Coragem e descansem, vai correr tudo bem". 
Ilustração: Google Imagens.

domingo, 15 de março de 2020

Disciplina


Por 
Daniel Oliveira, 
in Expresso, 
14/03/2020

Este é dos momentos mais perigosos das nossas vidas. Agora, não vamos impedir a Covid-19 de se propagar. Vamos tentar que ele se espalhe o mais lentamente possível, evitando que haja um pico de infetados a que os nossos serviços de saúde e o conjunto da comunidade não consiga acudir. Vamos tentar aplanar a curva de infetados, mesmo que isso implique estender no tempo esta crise. E isto exige muita paciência e disciplina. E poucos parasitas da desgraça. Isto pode entrar em colapso e é-nos exigido sangue frio.


É claro que não estamos preparados. Nem os cidadãos, nem as autoridades, nem os políticos, nem os serviços de saú­de. Percebeu-se nas falhas do Saúde 24, que teve um pico de procura a que é impossível responder, vai perceber-se em todas as falhas do SNS e percebe-se no efeito imediato que teve o encerramento de universidades: praias cheias, numa orgia de comportamentos de risco. Não estamos preparados porque nenhum Estado, nenhum governo e nenhum sistema de saúde o está. E o povo também não. O que temos de mudar em poucos dias não é o que se demora décadas a construir — um Estado organizado e eficiente. É perceber que em momentos destes passamos temporariamente a ser uma comunidade repleta de deveres e interditos. Não ter comportamentos de risco, não bloquear serviços sem necessidade, não espalhar boatos e, o mais difícil para democratas como eu, obedecer. 

Temos de confiar nas autoridades e nos técnicos que as aconselham. Isto num tempo de redes sociais e fake news e sabendo que quem decide sabe pouco sobre este vírus. E que lida com escolhas impossíveis. As medidas de saúde pública tomadas na quinta-feira — as outras são tantas que demorará a digeri-las — parecem-me proporcionais. Incluindo o encerramento das escolas, apesar de esperar pela solução para os profissionais de saúde e de outras funções essenciais que ficam com os filhos em casa ou para quem não pode perder um terço do salário e vai pôr os filhos com os avós, que são grupo de risco. Tenho a certeza que António Costa ouviu os técnicos e não, como celebrou o bastonário da Ordem dos Médicos, a “sociedade civil”. Num momento em que o medo se instala, muitos disparates se fariam se as autoridades, em matéria de saúde pública, ouvissem “os portugueses” e não os técnicos.

É impossível enfrentar uma situação destas sem alguma suspensão do espírito democrático. Não me refiro a medidas que restrinjam direitos, liberdades e garantias fundamentais — podemos lá chegar — ou o direito à crítica e ao escrutínio — não podemos lá chegar. Refiro-me a uma confiança nas autoridades pouco aconselhável em momentos normais e uma maior tolerância com quem lidera um confronto com o desconhecido. Em troca, exige-se, dentro dos limites do que é recomendável para não disseminar o pânico, que nos contem a verdade. O coronavírus não é Pedrógão. É do nosso comportamento quotidiano que depende o combate à tragédia. E para não se instalar o caos, que é filho pródigo do pânico e da desconfiança, precisamos de comandantes e de disciplina. É sempre assim em momentos de emergência. Veremos se o povo, quem o lidera e quem faz oposição estará à altura.

sexta-feira, 13 de março de 2020

A direita será devorada pelo bicho que julga domar


Por 
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
10/03/2020

O Movimento Europa e Liberdade (MEL), fundado originalmente para dificultar a vida a Rui Rio (e não para fazer oposição a António Costa), inicia esta terça-feira, na Culturgest, em Lisboa, a sua segunda tentativa de replicar a “Aula Magna das esquerdas”, do tempo da troika, à direita. No cardápio estão várias figuras da direita portuguesa e os diretores do “Público”, “Observador” e “Eco”, numa saudável transparência quanto ao seu posicionamento político. Rui Rio voltou a declinar o convite (por razões de agenda, claro), enviando Paulo Mota Pinto para encerrar os trabalhos das tropas inimigas.


Mas o facto mais interessante, que corresponde a uma estreia e a uma declaração política, é o convite André Ventura, que falará amanhã, quarta-feira. Não vale a pena vir com conversas sobre o pluralismo político. Este é um encontro politicamente circunscrito, para o qual não foram convidadas personalidades do centro-esquerda e da esquerda. Assim sendo, o que os organizadores dizem é que no espaço político em que situam cabe André Ventura mas não cabem pessoas do PS, do BE ou do PCP. Que Ventura é um deles. Que a fronteira entre a esquerda e a direita é, para eles, mais relevante do que, por exemplo, a fronteira entre os xenófobos e os que os combatem. É uma clarificação relevante.

Alguns organizadores verão no Chega um aliado natural. É seguramente a linha dos que venceram a luta interna no CDS e de parte dos que a perderam no PSD, como Miguel Morgado, mais próximo de Ventura do que da matriz original do PSD. Outros acreditarão que integrar André Ventura é a melhor forma de o neutralizar. Tem sido essa a mensagem errada do Presidente da República. É tentador pô-lo ao lado de Daniel Proença de Carvalho e José Miguel Júdice, dois símbolos daquilo a que chamamos “sistema”. Mas este pequeno prazer não neutralizará ninguém.
Em França, a direita republicana manteve durante muitos anos um cordão sanitário com a extrema-direita xenófoba. Não os aceitava no governo, não os apoiava nas autarquias ou nas segundas voltas para a eleição de deputados, não tinha frentes políticas com ela. Esse cordão, a que estupidamente se juntou uma lei eleitoral que permitiu a permanente vitimização da Frente Nacional, não impediu a lenta progressão da família Le Pen, sobretudo depois de Marine ter socializado o seu discurso. Mas conteve-o. Enquanto durou, permitiu que muitos eleitores da direita tradicional olhassem para aquele partido como uma escolha que merecia censura social e política. Em Portugal, esse cordão sanitário não durou umas semanas. Na Europa, o único país que o mantém é a Alemanha. Por pouco tempo, suspeita-se. Do Brasil aos EUA, passando pela generalidade dos países europeus, os partidos da direita tradicional acreditaram no mesmo em que acreditam os promotores do MEL mais bem intencionados, que são provavelmente uma minoria.

A extrema-direita aproveitou o palco e a credibilização que lhe foi oferecida, não cedendo um milímetro na sua agenda e nos seus métodos (especialmente evidente desde que as redes sociais passaram a desempenhar um papel fundamental no debate público), e conseguiu dirigir-se com muito mais eficácia aos eleitores da direita tradicional. Graças à ação dos próprios dirigentes dos partidos em que costumavam votar.

Não preciso de explicar o que aconteceu depois. Por todo o lado, a extrema-direita já não está a receber votos da esquerda, como aconteceu nos anos 80 e 90. Está a dizimar a direita tradicional. Nos seus valores, a extrema-direita é inimiga de todos os democratas e defensores dos direitos humanos e do Estado de Direito. Mas do ponto de vista eleitoral os seus maiores adversários são os partidos da direita tradicional. André Ventura não vai à Culturgest para juntar forças contra António Costa. Vai receber o certificado de credibilidade que o ajudará a roubar votos à direita tradicional.

Claro que, como Miguel Sousa Tavares e Ricardo Sá Fernandes, o excesso de autoconfiança de alguns os faz acreditar que com bons argumentos vencerão Ventura. Talvez num debate civilizado sobre a castração química ou até física, a prisão perpétua e a pena de morte que não repugna o professor de Direito. Como descobriram os dois, Sá Fernandes e Sousa Tavares, em direto e na televisão, rapidamente descobrirão que só se debate com quem quer debater. O jogo de Ventura é outro e nesse terreno não o vencem seguramente.

Quando os ingénuos e os oportunistas que puseram Ventura no seu barco perceberem que estão a repetir os erros de outros derrotados será tarde demais. Ou serão, como a direita francesa e espanhola, reféns da agenda de ódio e intolerância da extrema-direita, ou acabarão por se submeter a ela, como aconteceu nos Estados Unidos, Brasil ou Itália. Também eles julgaram, quando romperam o cordão sanitário, que integrariam a extrema-direita. Foram integrados por ela. Ela é que passou a ser o novo normal. Com a prestimosa ajuda daqueles que dizimou.
Em Portugal, a legitimação de André Ventura começou por ser dada pelo próprio Passos Coelho, quando, ao contrário do CDS, manteve o apoio à sua candidatura à Câmara Municipal de Loures, depois de declarações públicas claramente racistas. Como viram, o resultado não foi a sua integração. Foi a sua legitimação para voos mais altos. Ventura usou o PSD para rampa de lançamento de um projeto a solo e usará esta nova legitimação para crescer mais um pouco, desdramatizando o voto no seu partido.
Afinal de contas, é uma escolha como qualquer outra. São os seus concorrentes mais próximos que o dizem. Julgam que metem o leão na jaula para o domar. Estarão trancados nessa jaula quando o bicho os fizer em postas. Como tem acontecido em todo o lado em que se achou que a convivência era possível. Não aprendem nada.

quarta-feira, 11 de março de 2020

A DISSONANTE HARMONIA DA PARTITURA HUMANA – UM DIA DE SOL!


Padre Martins Júnior
Blogue Senso & Consenso
09 de Março de 2020

Chamem-lhe os filósofos a síntese perfeita entre tese e antítese. Ou quadratura do círculo. Ou, ainda, reduzam tudo à escala dodecafónica de Arnold Shonberg. Mas a evidência aí está, todos os dias e em todos os espaços: a diversidade – simultânea e contraditória - dos acontecimentos da história! Enquanto uns cantam, outros choram. E enquanto estes choram, outros vendem lenços. Enquanto avançam os corono-vírus, outros, todos procuram a água pura e adoram-na. Noutras paragens, até diminuem os efeitos nocivos do CO2. Enfim, o “desconcerto do mundo”!




Parece que o cisne negro roçou a linha vermelha da atmosfera e por aí anda à solta, clandestino e assassino, a abalar as profundezas planetárias, a semear os vírus da neurose e da morte. Mas não assim em todos os mares, não assim em todos os recantos. Em um deles, (com isso, talvez, se chame ‘santo’) as asas são brancas, o corpo é espírito e o pranto é canto – canção de outrora, sempre antiga e sempre nova.
Aconteceu num pequeno rincão situado na ilha vizinha, cuja comunidade e cujo templo tomam o bem selado nome de “Espírito Santo”.
Foi ali que ontem, Domingo, tudo se transfigurou na brancura de um sol convidativo sob um céu azul e tudo se traduziu em paz, harmonia, espiritualidade, confraternização, festa. Reabriram-se as portas da vetusta Capela do Espírito Santo, após dois anos de acurada reparação. O presente abraçou-se com o passado, mais precisamente o rio da história fez-se enorme ponte entre o século XVII (data da sua construção inicial) e o século XXI, o dia 8 de Março de 2020, quando o templo voltou definitivamente à sua vocação originária.
Não houve foguetório nem parangonas publicitárias. Perfeito, como convinha àquele dia. Tudo muito fino como as almas puras, tudo muito genuíno como os corações sem pregas, tudo gracioso e doce como o amor de mãe, no Dia da Mulher, 8 de Março. Para mim, um florilégio de saudades. Com a emoção irresistível destes momentos, recordei 1963 (faz agora 57 anos!): abriram-se aquelas portas e pedi licença para entrar na minha primeira missão de paroquialidade no arquipélago da Madeira.
Como seria a ilha (dourada só a areia, que não a vida) nesses recuados tempos, volvidas que são quase seis décadas?... Nada fácil, sobretudo para um jovem de 25 anos, padre ‘caloiro’, para lá enviado com guia-de-marcha punitiva por causa de um sermão feito na Sé Catedral, no super-patriótico “Dia Primeiro de Dezembro” de 1962.
Mais que não fosse, por um imperativo de gratidão, impunha-se a minha saudação aos presentes, dado que a grande tribuna dos amigos e amigas de outrora (era uma família aquela comunidade) já pertenciam ao cortejo “daqueles que da lei da morte se vão libertando”. Por deferência do Prelado Diocesano, presidente da celebração, prestei a minha homenagem aos filhos, netos e bisnetos dos meus antigos companheiros de estrada do humanismo e da espiritualidade, entre 1963-1965, cuja síntese dou aqui por reproduzida:

“Estas paredes falam-me e sinto-as como desde a primeira hora em que me receberam. Estes arcos de pedra abraçam-me com a mesma emoção com que os abracei há 57 anos. Não estão aqui os homens e as mulheres que me acolheram em suas casas e me mataram a fome em tempos adversos: da sua pobreza fizeram o meu pão e a minha força. Não estão cá, mas eu vejo-os vivos, sorridentes, e sou capaz de colocá-los, um a um, os seus retratos nesta sagrada galeria da vossa igreja. Foram eles que ajudaram este, então jovem padre, lançado num deserto, a não desistir logo da sua missão. Quem me enviou para cá, quis mandar-me para um deserto, mas os vossos pais e avós transformaram a minha vida num paraíso: pela dedicação, pelo sacrifício partilhado, pela amizade, pela música. Sim a música e o teatro, a romagem e missa campal da Comunhão Solene no Pico Castelo, as peregrinações à capela de São Pedro, durante três dias e três noites, para alcançar a chuva (era já Abril e nem um pingo de água para as sementes lançadas à terra em Novembro anterior) e logo a seguir a aluvião benfazeja sobre os campos ressequidos. Permitam-me acrescentar (que ainda hoje estou a ouvir os ecos da "Missa, a Duas Vozes", de Luigi Perosi, cantada em latim por homens e mulheres, nados e criados nesta terra. Já todos ou quase todos partiram. Que beleza, as vozes desses cantores, a maior parte sem escola nem literacia, mas vozes quentes, bem timbradas!). E vós que aí estais, Grupo Folclórico desta ilha, rebentos em flor daqueles homens e mulheres (já cá não estão muitos deles!) que no Campo de Baixo, Campo de Cima, Lapeira e Ponte, criaram um corpo e um espírito de fraternidade artística e são companheirismo que perduram até hoje! Mantende sempre viva a chama dos vossos antepassados.”
“Ao fazer a retrospectiva destes 57 anos, fico com a sensação daquelas pessoas que verdadeiramente se amam: podem passar meses, anos e até décadas sem se verem, mas quando se reencontram parece que nada se passou, parece que foi ontem o primeiro encontro. Se alguma mensagem vos deixo, inspiro-me no Orago desta comunidade: O Espírito Santo! Asas para voar! Porque, como dizia Madame Leseur, “uma alma que se eleva – eleva o mundo”. Elevai a vossa terra. Fazei aquilo que os outros não puderam fazer. E, sobretudo, não deixeis que ninguém vos corte as asas, que ninguém esmoreça no vosso espírito aquele fogo interior, no dizer de Goethe, “ânsias de subir, cobiças de transpor”. Agarrados à terra-mãe e sempre com os olhos mais acima e mais além”. 
09.Mar.20
Martins Júnior

Portugal, um país exótico – A Operação Marquês


Carlos Esperança 
09/03/2020

«No primeiro dia do debate instrutório do processo da Operação Marquês, o Procurador Rosário Teixeira avisou que o país pode perder a confiança na justiça, se o caso, que envolve José Sócrates, não for a julgamento.» (SIC-N)

Como os meus amigos sabem e os leitores podem verificar, mantive sobre o processo o mais completo silêncio, mesmo quando as violações do segredo de Justiça eram graves e os atropelos aos direitos dos arguidos, que em qualquer momento pode ser um de nós, se revelaram danosos para o Estado de Direito. Foram anos de julgamentos na rua e nos média do costume, sem presunção de inocência.

Agora, quando o principal investigador do processo admite a possibilidade da não ida a julgamento do ‘caso’ e invoca, não as provas, mas a necessidade de manter a confiança na Justiça, parece não haver forma mais eficaz de lançar suspeitas sobre a investigação e as provas obtidas.

A agravar as dúvidas, aparece no último Expresso, na primeira coluna da contracapa do primeiro caderno, um artigo do influente jornalista, Ricardo Costa, que declarou que o PSD de Rui Rio era o seu partido e cujos ataques fraternais ao irmão e ao seu Governo lhe garantem o apodo de isento.
Diz Ricardo Costa, que tantas vezes ‘julgou’ os arguidos na SIC e no Expresso, que ‘revisitou o processo da Operação Marquês’ e que será “praticamente impossível que os principais arguidos, incluindo Sócrates, não sejam condenados por fraude fiscal e/ou branqueamento de capitais”, acrescentando que “são crimes que permitem penas de prisão efetiva”. E, admitindo que “a corrupção caia do processo, a probabilidade de condenações continua muito alta”.
Eu, que tinha uma certeza absoluta nas condenações, se fosse crente benzia-me. Depois da prisão do ex-PM, em direto, para o País, via TV, da sua reclusão, da oferta recusada da pulseira eletrónica e do que li nos jornais e ouvi nas ruas, nos cafés, nos autocarros e aos taxistas, fixo perplexo.

terça-feira, 10 de março de 2020

“Silêncio na língua e vergonha na cara”


Por
Deputado do JPP
Edição de hoje do DNotícias

Esta citação é atribuída ao filósofo Sócrates (século V. A.C.), que escreveu: “Há três coisas que os Homens precisam: prudência no ânimo, silencio na língua e vergonha na cara”. Sem qualquer desprimor pelo filósofo, e ao gosto do bando de “pardais da teorização” contratados pela propaganda social-democrata-centrista, a afirmação encaixa a gosto os temas da mobilidade aérea e marítima, do anterior e atual titular dessas pastas. Mas vejamos as três fases, que podem sustentar a eloquência do pensamento socrático, e a falta de sustentabilidade emocional e estrutural do ser-governante.

A “Prudência no ânimo”

Corria o ano de 2017, e o então senhor secretário regional Eduardo Jesus estava possante no ânimo e desgarrado na língua. A euforia do então “renovadinho” motivou o seguinte título, entre aspas em manchete: “Guerra do Grupo Sousa é sinal que os tempos mudaram” (DN, 5 de Outubro de 2017), a propósito a revogação da licença da operação portuária.
Tempos antes, a 4 de Julho de 2017 carimbava, igualmente, o ar destemido. Em plenário da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, afirmara perentoriamente o impedimento do Grupo Sousa no concurso à linha ferry: “Queria também informá-lo de que a Autoridade da Concorrência que referiu, foi a mesma Autoridade da Concorrência que deixou bem claro que relativamente à concentração de operações que foi conseguido com a última aquisição do grupo que opera aqui na Madeira, estão impedidos de concorrer à linha ferry que estamos nós a estabelecer com Portugal Continental.”
A carenciada prudência no ânimo levou ao desfecho conhecido: “Eu não me demiti, fui dispensado”, afirmou em Outubro de 2017 (DN, 11/11/2017).
A saída ou a “promoção” do cargo de executivo a deliberativo, com promessas de integração na governação de posterior governo (o que veio a se confirmar em setembro de 2019), foi, naturalmente, estratégica. O governo PSD e a atual coligação está nas mãos dos grupos económicos. O facto de, agora, lhe terem sido retiradas as competências nos transportes marítimos e entregues à Vice-presidência diz, basicamente, tudo. Com muito silêncio cúmplice do burgo.

O “silêncio na língua”

A mobilidade área foi outra trapalhada da alçada da sua Secretaria, com apoio de uma dupla de neoliberais adeptos do mercado aberto, travestidos de sociais-democratas (Miguel Albuquerque e Passos Coelho). Em Agosto de 2015, lê-se num comunicado da comissão política do PSD: “O novo subsídio de mobilidade nas viagens aéreas será uma realidade a partir de 1 de Setembro e irá possibilitar a todos os madeirenses, e em particular aos estudantes, viagens mais baratas do que aquelas que atualmente vigoram. O novo modelo, recorde-se, permitirá viagens a 65 euros para os estudantes e 86 euros para os residentes.” Anunciava-se o “Eldorado” para as famílias e para as empresas.
E ainda, Eduardo Jesus anunciava a boa-nova: “fica mais barato os residentes da Madeira viajarem para o continente e os Açores”, passando as passagens a custar 86 euros para os madeirenses e 65 euros para os estudantes. (JN, 25 de agosto de 2015). Esqueceu-se de dizer que os madeirenses tinham de adiantar o valor total das passagens.
De “trapalhada política” e de “cópia defeituosa do sistema açoriano” (Miguel de Sousa, DN, 31/03/2018), foi preciso a ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil) e o Provedor de Justiça considerarem que a propaganda governamental estava errada: o novo subsídio social de mobilidade “motivou a concentração das viagens em escalões de valores significativamente superiores aos verificados no anterior modelo” (ANAC, 2017). O teto máximo convidou à subida dos preços das tarifas.

“Vergonha na cara”

Numa recente entrevista (JM, fevereiro de 2020) referiu-se o governante à “vergonha” pessoal perante o estabelecimento da taxa turística em Santa Cruz. De vergonha em vergonha, de trapalhada em trapalhada, de golpada em golpada, de negociata em negociata, de incompetência em incompetência, o atributo da vergonha é sempre canalizado para ação de terceiros. Nunca para a “aselhice” da sua pena, da sua ação pessoal em casa-própria.
Recorde-se, por exemplo, que entre 2015 até à sua saída em 2017, gastou 1,1 milhões de euros em sociedades de advogados (700 mil das quais, apenas, numa sociedade); mais de 200 mil euros em estudos, incluído um sobre as taxas turísticas; 171 mil euros no Museu do Automóvel Clássico (com arranjos de viaturas, sabe-se lá com que critérios); mais de 57 mil euros em formação pessoal e coaching e 46 mil euros enterrados no Brava Valley.

domingo, 8 de março de 2020

Sem dramatizações


ROBERTO FERREIRA
Subdirector do DNotícias Madeira
08 MAR 2020


Perante um problema que se agiganta a cada dia que passa, o conselho dado pelo presidente do Governo Regional é o de sempre. Invariavelmente Miguel Albuquerque reage apelando para que “não se dramatize”. É assim há já alguns anos. Mesmo quando em causa estão situações que impõem intervenção rápida e decidida. É isso que, em essência, se espera de quem tem como missão governar em nome do povo. Mas o tempo de Albuquerque não é medido pelas prioridades quotidianas. Sem dramatizações, o presidente define a agenda conforme lhe apetece e deixa em suspenso o normal funcionamento de instituições que estão na linha da frente do apoio e suporte à população. À cabeça a saúde, esse problema crónico que atravessa executivos e que padece de muitas mazelas que afectam directamente a qualidade de vida da população.

Já todos percebemos que este XIII Governo Regional dá primazia às nomeações políticas e à satisfação da sua clientela ao invés de colocar, em primeiríssimo lugar, a resolução dos problemas crónicos. O caso do SESARAM é a ponta mais visível do desgovernado ‘comboio’. Veja-se o tempo que se gasta, que se perde, em torno daquilo que deveria ser uma simples nomeação para um cargo eminentemente técnico? Veja-se os pormenores sórdidos que rodearam a exoneração/afastamento do médico imposto pelo CDS. No pântano em que mergulhou a direcção clínica do sistema regional de Saúde, ainda houve (e há) tempo para umas ‘brincadeiras’ de permeio. Mário Pereira anunciou a saída, mas entregou o pedido formal dias depois, não se sabe bem como, não se sabe bem a quem o deveria ter feito. Sem dramatizações e com o coronavírus à porta, sabe-se que o serviço de saúde só trata 30% dos doentes com AVC e que os atrasos nas cirurgias de obesidade, um grave problema de saúde pública, levam os doentes a desistir do tratamento. Estes factos são reais para milhares de madeirenses, para não falar dos outros que desesperam por consultas e intervenções cirúrgicas. Aqueles que, com muito drama e angustia, não têm posses para ir “tratar da máquina ao continente”.

Amanhã os médicos que empurraram o CDS para fora da direcção clínica reúnem-se com o presidente do Governo, doze dias (!) após o pedido feito com caracter de urgência. Veremos que dinâmica e que rumo quer Albuquerque imprimir ao sector. Se terá argumentos para impor uma solução pacificadora, que devolva a esperança aos utentes que dele precisam, ou se sucumbirá uma vez mais à vontade do parceiro de coligação, que se prepara, nos próximos dias, para forçar mais nomeações em lugares de destaque da administração pública. Sem qualquer dramatização nem pudor.

NOTA
Com a devida vénia publico a análise da semana da edição de hoje do Dnotícias, da autoria do Subdirector Roberto Ferreira. Às vezes dou comigo a reflectir sobre o que leio e cruzo e fica-me, mor das vezes, um sentimento que se confina a uma pergunta: será que estou certo? Afinal, há quem, com responsabilidades, se compagine com os meus pensamentos e isso é bom, porque me faz não estar só!

sexta-feira, 6 de março de 2020

Um Homem com quem se aprende


Estive ausente da Região durante largos meses. Fundamentalmente por isso fui adiando um encontro que, sabia eu, ia escorrer-me garganta abaixo como mel. Há pessoas que me encantam e que me marcaram ao longo da vida, algumas, mesmo à distância, acompanhei-as e com quem muito aprendi, nas entrelinhas das palavras ditas ou escritas, nas atitudes de perseverança, no pleno respeito pelos princípios e valores de base humanista. Sempre gostei de pessoas que me possibilitassem ver para além do horizonte. E quando encontro uma pessoa assim, lembro-me que tenho dois ouvidos e uma boca por algum motivo!


Ontem foi um dia excepcional. Precisava de o ter. Não pelo pensamento convergente naquilo que é estrutural, mas pela sinceridade irradiante e contagiante do meu interlocutor, pelo olhar que não engana, pela humildade que entra e fica, pela visão do Homem no mundo, pela cultura expressa em palavras que atravessam os tempos, pela noção da efemeridade do tempo de vida e por tudo quanto está em redor de uma simples frase: os outros têm tanto direito à felicidade como nós. Precisava de escutá-lo, serenamente, de amadurecer pensamentos que me invadem. Foram seis horas de comunhão e confissão, de passar em revista anseios e incompreensões, mas, sobretudo, interrogações sobre se ainda vale a pena manter acesa a chama dos desconfortos, perante o monstruoso peso dos interesses, de homens e mulheres que se acotovelam, que pouco tendo para dar, se colocam em bicos de pés e dedo no ar, como se quisessem dizer: eu estou aqui! 
Vieram a propósito tantas figuras que marcaram um tempo de vida, face a tantos outros que falam e nada acrescentam. "Juntam palavras" e não se comprometem, não é meu Caro Amigo? 

Pois, é o dilema de quem se apaixona pela Mensagem, que a contextualiza na vida real, que se dá aos outros sem pedir nada em troca, que faz da Palavra um Mundo melhor, no pleno respeito pela mãe natureza, por esta nossa "casa comum", que sem negar o crescimento e o desenvolvimento, fá-lo, no entanto, segundo o rigor que impõe actuações políticas convergentes com o interesse do Homem. Até porque a Cultura vende e o que é igual, isto é, não distintivo, tendencialmente, fica condenado ao insucesso.

Viajámos no tempo, interrogámo-nos sobre os pequenos e grandes poderes, sobre os ininteligíveis aspectos comportamentais em todos os patamares da intervenção, sobre a desmedida ambição que varre seres humanos indefesos para debaixo de um qualquer tapete, também, sobre a necessidade de construir e "inaugurar" a grande obra, a do ser humano.
A páginas tantas disse-lhe: o Senhor não precisa de uma estátua de corpo inteiro, porque sempre foi inteiro, e a melhor de todas, será encontrada nos seus textos, nos seus livros, na sua poesia, na memória colectiva e naquilo que outros dirão de si, sobretudo aqueles, por respeito a si próprios nunca subverterão a verdade histórica. O Senhor tem muito para dar, apesar dos seus 81 anos. Escreva e deixe-nos esse legado.
OBRIGADO, Padre José Martins Júnior, obrigado por aquelas horas que voaram sem darmos por isso, naquele dia 05 de Março, para mim, inesquecível. 
Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 3 de março de 2020

MORREU UMA ATLETA EXTRAORDINÁRIA...


Li na página de facebook do Doutor Gustavo Pires e aqui transcrevo, pela importância e sufoco de toda a narração. Para ler e reflectir.

Por favor..., entidades públicas e privadas... deixem-se de olímpicas hipocrisias... Não chorem lágrimas de crocodilo na medida em que já ninguém acredita.
Com a devida vénia reproduzimos um texto do blogue Endurance coordenado pelo jornalista Cipriano Lucas.


OS CAMPEÕES QUE PORTUGAL ESQUECEU

"Desde 2006 que os antigos campeões têm, por lei, direito a uma subvenção temporária de reintegração que nunca foi paga. Duas dezenas de ex-atletas candidataram-se a esse apoio pós-carreira. Muitos, sem recursos económicos nem formação, caíram numa situação de precariedade social.
Conquistaram medalhas olímpicas, mundiais e europeias. Bateram recordes. Surgiram com frequência nas televisões e nos jornais. Viajaram pelo mundo. Foram reconhecidos na rua e passaram a ser referência para os mais jovens. Alguns assinaram contratos publicitários e receberam subsídios de clubes e bolsas do Estado. Passaram os anos de juventude numa total dedicação ao desporto. A maioria não estudou. Poucos meses depois de arrumarem os equipamentos caíram no esquecimento. Com pouco mais de 30 anos, sem profissão nem formação, alguns deles investem em pequenos negócios em que só perdem dinheiro. Todas as portas se fecham. Os dirigentes políticos e desportivos esquecem-nos. Muitos passam dificuldades económicas.
Desesperam. Pedem ajuda, mas quem os idolatrou vira-lhes as costas. Hoje, campeões como Albertina Dias, que representou Portugal em três jogos Olímpicos, e a lançadora Teresa Machado, em quatro Jogos, bateram no fundo. Ambas tiveram de recorrer a trabalhos de empregada doméstica para sobreviver. Albertina Dias “Estou cansada de pedir ajuda e de falsas promessas. Decidi colocar as minhas medalhas à venda na Internet”, disse a campeã mundial de crosse em Amorebieta 93, agora com 46 anos. Antes, após o abandono das competições, bateu em inúmeras portas. Chegou a desenvolver um trabalho como monitora de atletismo em Gaia. Foi dispensada.
Apesar de existir um decreto-lei que contempla a integração de atletas no pós-carreira, este nunca foi aplicado (ver peça secundária). A única coisa que o País tem para lhes oferecer é uma colaboração avulso num projecto de Marcha e Corrida, em que poderão receber 120 euros para se deslocarem a escolas ou juntas de freguesia. Rita Borralho, maratonista olímpica em Los Angeles 1984, é outro caso de total indiferença por parte das instituições desportivas. “Bati a inúmeras portas e não tinham nada para mim. Nem nas federações, nem nas câmaras me quiseram receber”, recorda a vencedora da Maratona de Lisboa em 1991. “Quando venci a maratona de New Jersey, nos Estados Unidos, fui convidada para desenvolver actividades na área do atletismo no liceu local. Em Portugal, seria impensável aproveitar os seus ídolos em proveito das comunidades escolares. Nos EUA, todos os campeões estão integrados socialmente, recebendo apoios dos patrocinadores, sendo pagos para dar conferências e promovendo marcas desportivas”, revela para acrescentar de seguida: “Naquele tempo, por questões patrióticas, disse não ao convite americano, mas estou arrependida, até porque tinha a possibilidade de integração na comunidade luso-americana também como comentadora desportiva no jornal de língua portuguesa.” Hoje, revela a tricampeã nacional da maratona, “estou a desenvolver um projecto totalmente privado de assessoria desportiva de atendimento a pessoas que procuram a prática desportiva com atitude e qualidade de vida. Não quero treinar atletas de alto rendimento.” Antes, esteve no Brasil, durante mais de uma década, tendo regressado a Portugal para ser operada a um problema pulmonar. Teresa Machado A única lançadora portuguesa a chegar a uma final olímpica, recorda com amargura: “Antigamente batiam-me nas costas e prometiam mundos e fundos quando chegasse ao fim de carreira. Depois nada.”.
Teresa Machado, recordista de Portugal dos lançamentos do peso e disco, terminou, aos 39 anos, a sua longa ligação de 24 anos ao atletismo. A finalista do lançamento do disco nos Mundiais de Atenas 97, com um sexto lugar confessa: “Já abandonei a ideia de poder continuar ligada ao desporto como treinadora, ou outra actividade qualquer, porque as pessoas pensam que trabalhamos sem ganhar nada. Por outro lado, há muita falta de emprego e nós atletas acabamos por passar ao lado de muita coisa. Se estivesse noutro país, certamente que estaria enquadrada numa escola ou clube. Aqui, toda a gente me conhecia enquanto era campeã mas, agora todos se esquecem”, lamenta a atleta, que já foi mulher-a-dias e agora trabalha em fisioterapia com idosos. Moinhos Segundo estudo da empresa alemã Schips Finanz, 50% dos futebolistas terminam a carreira com dificuldades financeiras. “Cerca de 30% dos jogadores em actividade estão perto da ruína financeira, e 50% deles ficam em sérias dificuldades quando terminam a carreira”, diz esse estudo. Muitos têm vergonha de dar a cara. Em Outubro de 2010, o sindicato dos jogadores ajudou o antigo futebolista Moinhos com cinco mil euros. Tricampeão nacional pelo Benfica na década de 70 foi submetido a um transplante do foro cardíaco.
• Pós-carreira. Decreto-lei Apoio de reintegração de ex-atletas olímpicos “Aos praticantes desportivos de alto rendimento, que tenham integrado de forma seguida ou interpolada o Projecto Olímpico ou Paralímpico por um mínimo de oito anos, é-lhes garantido, após o termo da sua carreira, através do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro o direito a uma subvenção temporária de reintegração, de montante idêntico ao nível da última bolsa que auferiram no âmbito daqueles projectos, a suportar pelo IDP, com os seguintes limites: a) Atletas medalhados: subvenção mensal correspondente a um mês (1375 euros) por cada semestre, até ao limite de 36 meses (48 600 euros); b) Finalistas (8 primeiros): subvenção mensal correspondente a um mês (1100) por cada semestre, até ao limite de 24 meses (26 400); c) Nos restantes casos: subvenção mensal correspondente a um mês (825) por semestre, até ao limite de 16 meses (13 200).”
Ex-olímpicos esperam apoios há 20 anos Os ex-atletas olímpicos têm direito, desde 2006, a uma verba de reintegração social após terminarem a carreira desportiva. Todavia, passados cinco anos, ainda nenhum atleta beneficiou desse apoio. Neste momento, o DN sabe que cerca de duas dezenas de atletas, em que se incluem António Pinto e Teresa Machado, aguardam a decisão final do Instituto do Desporto (IDP) sobre os dossiês de candidaturas de antigos campeões que completaram os oito anos no projecto olímpico, mínimos exigidos para ter acesso a essa verba (ver quadro). Em 1993, o governo de Cavaco Silva decidiu criar uma lei para compensar os ex-atletas pelos altos serviços prestados ao País com as suas vitórias internacionais. Definiu uma verba de 10 000 contos (50 000 euros), em forma de seguro, para a integração social de todos os atletas que durante 12 anos integrassem a alta competição. Todavia, 18 anos e cinco governos depois (com os primeiros-ministros António Guterres, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e José Sócrates), esse projecto de lei nunca foi efectivado. Finalmente, em 2009 – Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro –, foi consagrado um conjunto de medidas de apoio aos atletas após as suas carreiras, em obediência à Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. Neste diploma, o número mínimo de anos em alta competição foi reduzido de 12 para oito, mas a verba prevista em 1993 (50 000 euros) foi reduzida e agora é atribuída em função dos níveis alcançados pelos atletas (medalhado, finalista e semifinalista). Assim, na melhor das hipóteses, só os atletas medalhados poderão receber 48 600 euros (1350 euros a multiplicar por 36 meses)."
(...)
cipriano lucas
DN