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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Energia nuclear e Inteligência Artificial


Por

Para além dos elevados consumos de energia, a Inteligência Artificial também é uma forte consumidora de água para manter os seus supercomputadores refrigerados.



Um namoro de bom augúrio, ainda a desabrochar e a acomodar-se. A energia nuclear anda numa caminhada de novos desafios. A sua ligação à Inteligência Artificial (IA) não deixa de ser um deles e a oferecer múltiplas saídas. Para já, um duplo relacionamento está a antever-se num horizonte próximo.

Um, onde a IA está a ser chamada a intervir, situa-se no domínio da fusão nuclear. E, se houver sucesso, poderá desempenhar um papel crucial. Esta intervenção consiste em criar “um algoritmo”, ou seja, um instrumento de apoio IA, para o controlo da estabilização do plasma a altas temperaturas, no interior do reactor de fusão. Estes desenvolvimentos estão a decorrer desde algum tempo e, segundo li, levaram à constituição de equipas específicas no sentido de gerar instrumentos IA que respondam segundo a capacidade e a função requeridas.

Outra linha bem diferente é a nuclear como fonte de alimentação de energia no próprio processo de desenvolvimento da IA.

Debruçando-nos um pouco sobre esta última vertente, pois a disponibilidade de informação é maior, o problema no essencial resume-se no seguinte: as grandes tecnológicas e, nomeadamente, os cinco maiores grupos de origem americana, conhecidos pela sigla GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), precisam, para entrar, a fundo, na Inteligência Artificial nas suas áreas específicas, de lançar grandes Centros de Dados (Data Centers), pois, como se sabe, quanto maior for a quantidade e qualidade de dados do sistema, de melhor qualidade serão os seus produtos finais apurados.

Os Centros de Dados são actividades de consumo muito intensivo em energia e água. E, pelo menos, a Microsoft já está no terreno com a intenção declarada de constituir uma equipa para planear o uso da energia nuclear no grupo e, nesse sentido, tem avançado com o processo de recrutamento de especialistas e manifestou a intenção de recorrer a SMR, pequenos reactores modulares, como solução para o problema do elevado consumo energético.

Os EUA, através da Lei de Redução da Inflação (IRA), um programa para a redinamização da indústria americana no contexto de competição com a China, criaram condições favoráveis de financiamento (incentivos) a este tipo de projectos, tanto mais quanto a IA entra, para os EUA, nos domínios da geoestratégia global, política, económica e tecnológica.

Na base desta lei, mais de uma dezena de locais encontram-se já identificados ao longo do país e vários modelos de SMR têm recebido ajudas significativas. A título de exemplo, o Departamento de Energia dos EUA atribuiu à TerraPower, uma empresa fundada em 2006 por Bill Gates, um subsídio de cerca de dois mil milhões de dólares para a construção de um reator “rápido de neutrões refrigerado a sódio” e um outro subsídio de 1,2 mil milhões à X-energy para o seu reactor “a alta temperatura, refrigerado a gás”, (ler in “La relance du nucléaire dans le monde, édition 2023”).

O apoio aos múltiplos projectos de pequenos reatores modulares (SMR/AMR) no programa IRA presta-se, sobretudo, a incentivar a inovação rápida.

Os SMR têm a vantagem de alimentar os Centros de Dados com energia limpa, emissões de CO2 a tender para zero e, assim, as empresas conseguem com esta opção de investimento cumprir também os seus compromissos no carbono. Desta forma, a IA que é muito mais intensiva em consumo de energia que outros usos digitais veria o problema resolvido com uma pegada de carbono muito reduzida.

Mas a Microsoft anda interessada em tecnologias avançadas de reatores de forma mais ampla e decidiu mesmo avançar para a fusão nuclear. Em Maio de 2023, anunciou a assinatura de um contrato com a Helion Energy (uma Startup da fusão nuclear) para a construção de um SMR com a capacidade de 50MW, a operar a partir de 2028.

A resultar, concretizar-se-á um sonho tão ambicionado por se tratar de um SMR de Fusão. O Programa IRA também aponta para SMR em 2028, mas ainda da nuclear clássica (fissão).

Face a alguma descrença acerca deste projecto, a Helion Energy afirma que se trata de uma “assinatura” para vingar e que já em 2024 vai dar provas da sua capacidade tecnológica de concretização. Sobre este contrato, há quem o apelide de anúncio louco da Microsoft e da Helión (ver SFEN, 13 Outubro 2023).

Para além dos elevados consumos de energia, a IA também é uma forte consumidora de água para manter os seus supercomputadores refrigerados. No seu relatório de sustentabilidade 2023 a Microsoft refere que está a gastar mais 30% de água que antes e “investiu milhares de milhões de dólares numa parceria com a OpenAI, criadora do ChatGPT, e agora está sendo forçada a alimentar e a resfriar as crescentes necessidades de energia de seu parceiro para treinar os modelos mais recentes da OpenAI”.

É bem notório do que se disse antes que, entre o Estado americano e as grandes tecnológicas, existe uma grande sintonia para se posicionarem na linha da frente em duas áreas tão importantes de futuro como a Energia Nuclear e a Inteligência Artificial. E é nessa base que a Lei de Redução da Inflação está a operar criando muitos problemas à União Europeia (UE), através do desvio de investimentos para o território americano e até a deslocalização de empresas sedeadas na União.

A UE tentou responder com o programa “Green Deal Industrial Plan”, the road to net.zero (há quem acrescente). De facto, há sempre um “mas”, e os impactos na reindustrialização europeia tendem para zero ou quase.

Os desentendimentos em áreas tão sensíveis como a Energia, em que é mais correcto falar-se de duas Uniões, pois a Aliança Nuclear europeia é uma realidade já maioritária, em termos de países aderentes no seio da UE, embora não reconhecida pela máquina burocrática que continua a emperrar a sua influência e a não referir a nuclear como energia de baixo carbono nos seus documentos.

Evidentemente, os EUA não estão sós, estão dinâmicos, inclusivamente avançaram recentemente com uma unidade de tratamento de urânio enriquecido para reactores nucleares inovadores (SFEN 13/10/2023), tendo fechado a sua última unidade tecnicamente obsoleta em 2013 e abasteciam-se na Rússia através da Rosatom.

E como os EUA não estão sós e esta é uma área sensível e de grande competição agora e no futuro a nível do Planeta vamos tentar trazer aqui o que se está a passar, nestas áreas, nomeadamente na China, principal concorrente.

Infelizmente, enquanto a China e os EUA estão a implantar “meios de circulação” que lhes permitem circular nestes domínios a alta velocidade, a Europa circula a baixa rotação. Com desentendimentos, desnorteamentos e sem metas concretas de longo prazo, a situação é paralisante e desanimadora. A União Europeia, assim, está a perder o comboio e não se encontra numa política energética a sério.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Desilusão

 

Invade-me uma infinita desilusão. Sei contê-la, mas ela está lá em todos os passos, todos os olhares e em todos os diálogos que vou mantendo. Quando cerro os olhos e passo em revista o dia, sinto a infindável beleza do mundo em contraponto com a progressiva falência do ser humano; sinto a nossa imensurável capacidade de inteligência que soçobra perante o que os irracionais, por norma, não fazem aos seus; examino o bem e o mal, os direitos e os deveres, a verdade e a mentira, a salutar ambição face à ganância que tudo subverte; a interpretação e o respeito pelas religiões em contraponto com os actos fundamentalistas que vão contra o amor, a tolerância, a fraternidade entre os povos e a irmandade entre as nações. E para quê, questiono-me. 



Daí a desilusão face a um Mundo que acelera nas correntes da desgraça, jamais contra a infelicidade e a miséria. Vive-se na constante elaboração sofisticada da mentira, da desonestidade, da exploração de uma vida vazia e doentia para milhões, da permanente ilusão dos sonhos, enfim, vive-se numa atmosfera de escuridão consentida.

Por todo o lado, de diversas maneiras, mata-se de forma selvagem inocentes, enquanto os senhores se passeiam nos labirintos do poder, na rede de túneis à superfície, sem colete, mas protegidos até aos dentes. Vivem, sem pingo de compaixão, dos acordos pelas proximidades ideológicas que dividem o mundo entre bons e maus. Uma desilusão, quanto tudo podia ser sereno e diplomaticamente conducente à paz. Para quê? - perguntará a maioria. Quando tudo acaba em quatro tábuas!  

Já poucos respeitam a Organização das Nações Unidas (ONU), o Papa Francisco, por mais que apele, é uma voz inaudível, a União Europeia é uma crescente fantasia ou uma "passerelle" de gente enfeitada mas distante da credibilidade necessária aos novos tempos. Quase definem as regras do papel higiénico, mas esquecem-se do sofrimento que não é legislável! Nada sabem de pobreza. E o que dizer do Banco Central Europeu que também mata sem matar, com juros absolutamente pornográficos e que, com uma distinta lata, uma senhora, ornamentada de "Chanel", ainda ontem, com total desdém, dizia que tudo isto era para continuar, sublinhando e perguntando com uma tez arrogante e nariz aquilino: "ok?"! Como quem diz, portem-se bem, senão cá estarei para o correctivo. Importante é manter a corja sossegada, iludida com uns apoios e que tudo é feito para seu bem. E, entretanto, outra crise será fabricada para gáudio dos que manipulam as marionetas.

Sejamos claros, intencionalmente, os mandantes matam sem um único tiro. Parecem dar com uma mão, mas logo retiram com a outra, vangloriam-se das taxas que exprimem quase pleno emprego, mas ignoram que milhares, milhões, trabalham e vivem num quadro de pobreza descarada ou envergonhada. Ao mesmo tempo, sem pingo de vergonha, o próprio Estado, as grandes distribuidoras e a banca sugam até ao tutano apresentando lucros obscenos. O que fazer? - pergunto. A nossa impotência é flagrante por maior que seja a sensatez e os gritos escutados. Somos reféns da teia pacientemente criada e consentida. Por agora, apenas desilusão. 

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 21 de outubro de 2023

Disse o abastado: "Não sei nada de POBREZA"

 

Cristina Pedra recusou, ontem, a existência de pobreza extrema na Madeira dizendo que o País e a Madeira, "estão bem longe da tristeza que é a falta de rendimento" (...) na Madeira não é preciso roubar para comer" (...) porque "há uma rede integrada de associações e entidades" que garantem refeições em lugares condignos. (Dnotícias, página 13, 21.10.2023)



Não existem aqui palavras transcritas fora do contexto. Seja em que contexto for, sublinho, o peso daquelas declarações vale pelas palavras ditas. E sendo assim, assumo que a Senhora Vice-Presidente da Câmara Municipal do Funchal não sabe nada sobre pobreza. Ao ler as suas declarações, lembrei-me de uma situação vivida, no Brasil, por um amigo meu, situação que, aliás, já aqui descrevi. Jantava na casa de um abastado. A páginas tantas, questionou-o sobre as favelas. A resposta veio célere: "Amigo, eu não sei nada de pobreza". O assunto ficou ali esclarecido.

Com aquelas declarações, a Drª Cristina Pedra clarificou o seu posicionamento: desde que haja uma rede que, digo eu, esconda a pobreza extrema ou não, desde que se disponibilizem uns apoios financeiros, desde que o associativismo possibilite umas salas, mesas, cadeiras e umas refeições, tudo com dignidade, o drama da pobreza fica resolvido ou atenuado e a consciência política tranquilizada. Ora, em circunstância alguma, devemos adoçar as asperezas da vida e a dignidade do ser humano. As questões sociais devem ser encaradas com a máxima frontalidade e de forma nua e crua. Muitas vezes leio assuntos que me preocupam, mas deixo-os passar. Falta-me a paciência. Desta vez, não. Irritou-me. Porque, enquanto cidadão e porque sou feliz, pergunto-me: por que raio muitos milhares não o são?

Não é de migalhas que os excluídos precisam. A esmagadora maioria precisa de um pensamento económico estruturado que torne mais igual o que é estruturalmente assimétrico e dependente; a esmagadora maioria dos pobres não precisa quem lhes venham dizer que "têm de tomar a cana em suas mãos e pescar", quando o pensamento político rouba-lhes as canas, as linhas, os anzóis e o próprio isco em benefício de alguns que conhecem bem os corporativismos, os subtis "monopólios", as "fortunas mal explicadas", os interesses partidários e, sobretudo, as teias e os labirintos dos vários poderes; a esmagadora maioria precisa de uma escola para a vida e não de uma escola que, sorrateiramente, promova a triagem fazendo-os desistir; a esmagadora maioria precisa de salários decentes que evitem a rua, a mão estendida à caridade (palavra que me irrita), a vergonha e o assistencialismo que cresce à vista desarmada; a esmagadora maioria precisa de uma cultura e mentalidade que a escola e a família não disponibilizam; a esmagadora maioria necessita de políticos que não olhem para a eleição seguinte, mas para a geração seguinte. Tanto que aqui me apetece  dizer! 

Ora, Senhora Vice-Presidente, não me leve a mal, mas tal como o outro, o brasileiro, repito, a Senhora não sabe nada de pobreza, não conhece o círculo vicioso da pobreza e as inúmeras iliteracias que por aí andam. Do pouco que sei e por aquilo que sou, digo-lhe que, em circunstância alguma, seria capaz de olhar para a pobreza circunscrita à necessidade de uma refeição. Porque a pobreza é muito mais do que isso. Resolvendo as outras, as estruturais, reduzem-se ou resolvem-se as das associações assistencialistas. E o que é grave é que a Senhora sabe, ora se sabe, que há seres humanos que trabalham e são pobres. Alguns extremamente pobres! Se pagam o tecto falta-lhes capacidade para cobrir outras e importantes carências de bens e serviços essenciais; se pagam a habitação, falta-lhes para a saúde, para a educação e para a cesta básica dos alimentos. Por aí fora!

A Drª Cristina Pedra sabe, ora se sabe, que, por algum motivo, nos últimos anos, 17 000 pessoas, a maioria jovens, saíram da Madeira, certamente porque, na Região, não viam futuro; sabe, que o tecido empresarial está maioritariamente esfarrapado; sabe que, segundos os últimos Censos, 36.485 residentes não terminaram a primeira fase (4º ano); 50,3% tinham escolaridade até ao 9º ano; 15 em cada 100 não tinham qualquer nível de escolaridade; 8,1% com 15 ou mais anos não possuíam nível de escolaridade completo e o analfabetismo continua superior à média nacional. Quase 50 anos depois de Abril! Certamente que também sabe da existência de políticos sem um pingo de decência e sem um mínimo de pudor, que saquearam e atiraram os que viviam com alguma dignidade para o grande buraco da pobreza escondida; sabe, ora se sabe, que 32% são pobres, o que equivale, aproximadamente, a 75.000 na Região da Madeira. Sabe, ora se sabe, que existem muitos milhares que vão vivendo. Não morrem de fome, isso não, sobrevivem, conjugando, diariamente, o verbo esticar. Porque, entre outras instituições, o Banco Alimentar (durante anos a fio negado pelo seu partido político como uma instituição desnecessária), a Cáritas, a Cruz Vermelha, as paróquias, a agricultura de subsistência e muitas pessoas de coração enorme, atenuam os dramas e disfarçam a situação. Foi a secretária dos Assuntos Sociais que, na mesma edição, falou da existência de 3 000 famílias que beneficiam de um apoio de € 80,00 mensais para ajuda às despesas mensais fixas. Portanto, como Vereadora na autarquia do Funchal, julgo que devia calçar as sapatilhas e meter-se pelos caminhos, becos, travessas e impasses do Funchal, entrar nas casas, falar com as pessoas e tomar consciência do cheiro da pobreza! Não é necessário ir para outros concelhos. Aqui mesmo, à sua beira, quase à saída do edifício central da Câmara.

Senhora Vice-Presidente, a Senhora sabe, ora se sabe, como se chegou a esta situação numa Região que tinha tudo para ser próspera e distintiva. Porque somos poucos. Sabe como foram desenhados os contornos do regabofe financeiro, a partir do qual impende, hoje, uma austeridade paralisante. Houve e há aqui, também, uma pirataria organizada e uma pilhagem que está a ser, silenciosamente, consumada. 

Ai se JUSTIÇA houvesse! Temos mais direitos que justiça social. 

Ressalvo, Senhora Vice-Presidente, o que aqui deixo não é contra si, é contra uma política que utiliza os pobres para a sua própria sobrevivência. E por incultura sentem-se agradecidos pelas migalhas.

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Carta escondida

 

Os partidos seguem, legitimamente, os formatos definidos pelas suas estruturas políticas internas. Aliás, é importante porque ajuda o comum dos eleitores a compreender os princípios e os valores que os diferenciam. Neste pressuposto, não podem é esconder do povo, decisões, repito, que com toda a legitimidade assumem. É o caso, público e notório, do acordo entre a coligação PSD/CDS e o PAN. Qualquer que seja o acordo ele deve ser totalmente transparente aos olhos dos eleitores.



O partido "Juntos pelo Povo", no essencial, no quadro da democracia representativa, não está apenas a exercer o seu direito de fiscalização da actividade governativa, mas também a chamar à atenção que nada, mas mesmo nada, pode ser concretizado numa lógica subterrânea do exercício da política. 

Certamente que um acordo de incidência parlamentar exigiu negociações de ajustamento entre as propostas eleitorais dos dois partidos, para a elaboração de um posterior programa de governo; certamente que o Senhor Representante da República delas teve conhecimento atempado e tê-las-á "aprovado". Portanto, nada mais correcto do que transmiti-las aos eleitores sem quaisquer rodeios. Trata-se de uma questão de princípio democrático. 

O lançamento de, julgo eu, dez ideias genéricas, não explica todos os contornos do acordo. Aliás, o próprio PSD, já há algum tempo, sublinhou, que uma grande parte das propostas do PAN já estariam contempladas no seu próprio programa. Este tipo de discurso pode, eventualmente, significar que tal acordo vale uma mão cheia de quase nada. Pessoalmente, não acredito. Porque se nada foi negociado e aprovado entre as estruturas partidárias, com traços distintivos, sublinho, então poderá deduzir-se que esse acordo é um logro e o PAN funciona mais no interesse pessoal do que propriamente no colectivo, através do pensamento que o caracteriza visando as "pessoas, os animais e a natureza".

Dito isto, nem seria necessário o esforço do JPP ameaçando a coligação com uma exigência pela via oficial (discutível!) pois, ao PSD/CDS caberia divulgar o texto, tenha ele os contornos que tiver! Presumo que o Senhor Representante da República o conheça em detalhe, pois só por aí se explica a sua concordância ao indicar o Dr. Miguel Albuquerque para a formação de um governo putativamente de maioria. Em nome da democracia, divulguem o texto com as assinaturas dos representantes partidários. O secretismo só conduz à desconfiança.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

A energia nuclear a unir pontas


Por
Economista

Como a energia nuclear é um tema determinante e vai bem para além da UE e OCDE, seria positivo que estas duas organizações estabelecessem pontes com países fora deste círculo, como a China, a Índia e a Arábia Saudita.



1. A energia nuclear atravessou um período negro, designadamente após o acidente de Fukushima no Japão em 2011. Apesar de, segundo a Organização Mundial da Saúde, não ter provocado mortes de origem nuclear, não foi essa a imagem que passou para o Mundo, antes induziu receios e desconfiança muito fortes na opinião pública, fazendo vários países como a Alemanha e o Japão formatar planos de saída do nuclear.

2. Presentemente, verificam-se sinais consistentes de recuperação e apoio ao desenvolvimento desta energia, originando programas de investimento para o seu relançamento, em vários países, incluindo o próprio Japão.

Se as intenções de investimento divulgadas, nos últimos três/dois anos, pela Arábia Saudita, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, China, Índia, Brasil, Japão, Canadá, Coreia do Sul, Polónia, EUA, França, etc., se concretizarem, de forma significativa, atingiremos, a prazo, um novo cenário geopolítico na energia nuclear, uma vez que até inícios do século XXI os países da OCDE concentravam cerca de 90% da produção.

Com estas intenções concretizadas, a OCDE perde posição significativa, com a Índia, ao lado da China, a deterem um peso substantivo, dadas as dimensões dos programas desenhados. Por exemplo, o programa da Índia a 15 anos aponta para uma multiplicação por 10 da produção instalada.

Novos parâmetros


3 Esta situação de apoio ao desenvolvimento da energia nuclear não está a surgir do nada. Novos vectores têm vindo a enriquecer esta indústria. Desde logo, os avanços na Ciência, oferecendo uma solidez de segurança às pessoas, reduzindo o sentimento de perigo, quer ao nível do funcionamento das centrais nucleares, quer no campo dos resíduos, quer no desmantelamento da unidade no fim de vida. Um afluxo de startups dinâmicas nos SMR (reactores de menor dimensão e bem mais flexíveis). Em certos países, tem sido posta em prática uma socialização competente da informação sobre os impactos positivos na economia e na sociedade. Finalmente, Entidades credíveis, como a Agência Internacional de Energia (AIE), têm promovido e posto em relevo, em fóruns diversos e na comunicação social, o papel crucial da energia nuclear no alcance das metas climáticas.

Sem a utilização da nuclear, tem várias vezes afirmado Fatih Birol, Director Executivo da AIE, as metas do acordo de Paris de 2015 sobre a neutralidade de carbono não serão atingidas até 2050.

A União Nuclear na UE


4. Esta dinâmica evolutiva e as discordâncias no seio da UE influenciaram a constituição, em Fevereiro, de uma União Nuclear Europeia, sob o impulso de França, que agrega, no presente, mais de metade dos países da União, a qual Portugal não integra. A União Nuclear é reconhecida/consentida (pelo menos informalmente) pela Comissão, uma vez que a Comissária Europeia da Energia tem participado em algumas das reuniões que se têm realizado por ocasião dos Conselhos Europeus de Energia. Na prática, existem “duas realidades” para a energia, dentro da União Europeia.

Na reunião de Maio, realizada em Paris, os 16 países reunidos apelaram à UE, na declaração final, para se empenhar na integração da Energia Nuclear na sua estratégia energética, apontando como objectivos: “assegurar a descarbonização, a segurança energética, a estabilidade da rede eléctrica, bem como promover melhores condições para o desenvolvimento e a implantação de novas capacidades nucleares na UE”. Também se avançou com uma estimativa que afirma que a UE pode aumentar a capacidade dos actuais 100 Gigawatts (GW) para 150 GW até 2050.

O Grupo antinuclear (renováveis) encontra-se em perda. Mas como dominou muito tempo a política energética da UE, através da Alemanha, essa perda rola lentamente, pois a sua influência continua muito forte no aparelho da União Europeia.

Os países pró-nucleares da OCDE


4. Novidade recente. Nos dias 28 e 29 de Setembro último, realizou-se uma reunião na sede da OCDE, em Paris. A Agência de Energia Nuclear (AEN/OCDE) e a Ministra da Transição Energética do governo de França, Agnès Pannier-Runacher, reuniram 20 ministros para trabalhar em torno de um “Roteiro para o Novo Nuclear”, tendo a ministra francesa na sua intervenção de abertura referido: “Esta é a primeira vez em 13 anos que os ministros da Energia se reúnem em formato OCDE para promover a energia nuclear”.

Também estiveram presentes cerca de 30 grandes empresas /grupos industriais de países da OCDE como a Westhinghouse (EUA), Mitshubishi (Japão), KHNP (Coreia do Sul), EDF (França)…

A OCDE tem 38 países membros. Bulgária, Canadá, Coreia do Sul, Eslováquia, Eslovênia, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Gana, Holanda, Hungria, Japão, Polônia, Reino Unido, República Checa, Roménia, Suécia, Turquia, Ucrânia foram os países participantes. A Itália esteve presente como observadora.

Os resultados principais do encontro dos 20 ministros e 30 empresários do sector da energia nuclear constam de um comunicado final distribuído à comunicação que destaca uma série de tópicos sobre os quais, diz-se, é preciso trabalhar em conjunto para superar os obstáculos existentes.

O principal obstáculo apontado nas discussões prende-se com o financiamento. E assim decidiram incentivar os bancos de desenvolvimento a explorar as oportunidades sobre a energia nuclear civil, referindo o comunicado final da reunião: “Encorajamos as instituições financeiras a classificar a energia nuclear, quando apropriado, com todas as outras fontes de energia de zero e baixa emissão nas taxonomias financeiras internacionais”.

Para além deste ponto fundamental, avança-se no comunicado com a necessidade de uma regulamentação comum no âmbito da OCDE para transporte, reciclagem ou gestão de resíduos. Além disso, a partilha dos esforços de I&D seria essencial para acelerar a implantação de SMR.

Esta reunião dos países pró-nucleares da OCDE acentuou a necessidade de trabalhar em conjunto para desenvolver a cadeia de abastecimento e as competências nucleares. Duas questões fundamentais, dado que, mesmo nos países nucleares, nenhum projeto nuclear foi realizado durante anos.

Trabalhos futuros


5. Os países signatários deste primeiro “Roteiro para o Novo Nuclear” apelam à AEN/OCDE “para coordenar com as partes interessadas nos nossos países para desenvolver e apoiar uma rede de líderes empresariais, funcionários governamentais, investigadores e especialistas”. O objetivo é desenvolver “soluções para ajudar os tomadores de decisão a maximizar todo o potencial da operação de reatores existentes, novos projetos de construção de reatores de potência e a implantação de SMR para geração de energia e aplicações industriais”.

Um relatório de progresso está a ser preparado pela AEN para uma segunda reunião a ter lugar em 2024, reconhecendo-se a urgência deste esforço para os trabalhos futuros.

Reconhece-se uma grande confluência de pontos comuns entre os países pró-nucleares da OCDE e a União Nuclear Europeia, o que não é de estranhar pois há muitos países comuns, os europeus.

6. Como a energia nuclear é um tema determinante e vai bem para além da UE e OCDE, seria positivo que estas duas organizações estabelecessem pontes com países fora deste círculo, como a China, a Índia, a Arábia Saudita, o Brasil, de peso mundial, para acordar e articular temas e programas de interesse mútuo. O Mundo beneficiaria muito com este unir de pontas, tanto mais na situação de grande instabilidade em que se encontra.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

Nota: vária desta informação (sobretudo as citações dos comunicados finais das reuniões) 

domingo, 15 de outubro de 2023

Animais

 

Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
13/10/2023

“Eles são animais e vamos tratá-los como tal”, esta declaração do ministro da Defesa de Israel, Yoav Galant, referindo-se aos palestinianos do Hamas (ou a todos os de Gaza?), ficará para a história, mas está errada. Os animais não fazem aquilo, só os homens são capazes de matar a sangue-frio inocentes por ódio irracional, por simples prazer ou em nome de Deus. Neste caso, em nome de Alá, o Misericordioso. Por temor, chamamos bestas aos animais que nos assustam, mas é a bestialidade humana que caminha connosco desde sempre e que faz da História da Humanidade um relatório incompreensível de atrocidades sem fim. Mas se elas são inexplicáveis à luz daquilo que nos imaginamos ser, a sua classificação moral é tão mais simples quanto maior é o horror. O ataque do Hamas de 7 de Outubro, visando essencialmente civis indefesos, é o horror, a bestialidade em estado puro. Cada um daqueles atacantes, no seu prazer assassino, não tem perdão nem justificação alguma. E sobre este ponto não há mais nada a dizer. O que não significa que isto possa ser o início ou o fim da conversa.



Esta história dura há 78 anos e é uma interminável saga de conflitos, guerras e massacres, que talvez um dia acabem por pegar fogo a todo o planeta. Dura desde a criação do Estado de Israel por deliberação da ONU, em 1948, e ocupando 77% do território da Palestina, onde quase todos eram palestinianos. Hoje, 74% são judeus e 21% palestinianos e o Estado de Israel, à revelia das Resoluções da ONU, ocupa 90% do território, incluindo Jerusalém Este, tem 250 mil colonos ilegalmente instalados na Cisjordânia e fez de Gaza, onde vivem mais de 2 milhões de palestinianos cercados por um muro, “a maior prisão a céu aberto do mundo”, nas palavras do ex-Presidente francês Sarkozy. Nenhum povo, nenhuma nação do mundo, excepto a mais desprezível, deixaria de se revoltar, e pelas armas também, contra aquilo que necessariamente veria como uma ocupação da sua terra. O “nosso” lado da narrativa pode chamar terrorista ao outro lado, como outrora a Autoridade Inglesa na Palestina chamava terroristas aos comandos judeus — dos quais um viria a ser primeiro-ministro de Israel. Sem dúvida que podemos chamar terroristas aos militantes do Hamas que atacaram um festival de música, matando, mutilando e raptando inocentes: vimos as imagens do ataque, vimos os corpos dos mortos e a proximidade da violência não permite outra linguagem. Mas o que chamaremos aos pilotos dos F-16 israelitas que, em retaliação (e antes até, por várias vezes) atacam edifícios de habitação em Gaza, sabendo que lá dentro estão civis, velhos, mulheres, crianças? A única diferença é que aqui as vítimas não estão num festival de música mas em suas casas, e, embora morram às dezenas de cada vez e sob cada bomba, não os vemos a morrer nem temos imagens da proximidade dessa violência. Mas não ignoramos que há um piloto treinado para a guerra que deliberadamente ataca alvos onde sabe que pode causar mais mortes civis. E há um Estado ocupante que se reserva o direito de cortar a água, a alimentação, a electricidade e a energia a mais de 2 milhões de civis cercados por um muro que ele ergueu, e manifestamente empenhado em fazê-los desaparecer todos dali, de uma vez por todas. E onde estão agora as vozes daqueles que tanto se indignaram, acusando a Rússia, de usar “a arma da fome”, quando esta, invocando, e com razão, o incumprimento do acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro, recusou a sua renovação?

Podemos sempre dizer que não há inocentes nesta longa e fatídica história. Será verdade no que diz respeito ao terror e às retaliações mútuas sucessivas, mas não o é no que diz respeito à História.

Só por má-fé é possível ignorar que há um lado que funciona à revelia do direito internacional e das Resoluções do Conselho da Segurança da ONU e que tudo tem feito e fará para evitar que jamais exista um Estado Palestiniano viável ao lado do Estado de Israel. E há outro lado que tem o direito de não se conformar com isso.

Israel tem direito à sua existência e à sua segurança, os seus cidadãos têm direito a uma vida normal na terra que escolheram. E o outro lado, os do outro lado, também. Há dias vi na televisão o presidente da Associação de Amizade Portugal-Israel, lastimando-se, compreensivelmente, que os seus familiares em Israel tivessem de estar a refugiar-se em bunkers para se protegerem dos rockets do Hamas. Gostaria de lhe ter perguntado se, apesar de tudo, preferia sabê-los ali, protegidos pelo Iron Dome israelita contra os pífios foguetes palestinianos, ou na Faixa de Gaza, ao alcance dos mísseis da Força Aérea e da artilharia de Israel.

E não vale a pena virem com o argumento da superioridade moral, política e constitucional do Estado de Israel comparativamente ao mundo árabe. Claro que todos nós — eu, pelo menos — me revejo incomparavelmente mais no que são os valores de Israel, sobretudo os seus valores fundadores, do que naquilo que são os valores das sociedades islâmicas. Mas não só esses valores têm regredido drasticamente em Israel sob a influência sinistra dos ortodoxos e a liderança política desse traste que é “Bibi”, ao ponto de hoje pouco distinguir o fanatismo religioso do poder israelita do dos islamistas, como foi Israel quem fomentou a emergência do Hamas, contra o laico e muito mais moderado OLP, segundo o velho princípio de dividir para reinar. E quanto à questão de fundo, mesmo sem discutir o fundamento moral do argumento, acho que a História já nos deu suficientes lições para não valer a pena insistir na tese da ressurreição do espírito das Cruzadas. Depois do Iraque e do Afeganistão, já era tempo de este clube de idiotas que governam o mundo aprenderem alguma coisa de útil sobre o passado.

Portanto, afinal de contas, não é assim tão complicado: olhar o mal nos olhos e não desviar o olhar; entender a raiz do mal, sem o desculpar; procurar a solução que sabemos justa; e aplicar a mesma lei a todos, amigos e inimigos. Houve 70 anos para fazer isto e nada foi feito. Agora, chegados a este ponto, é esperar que os animais à solta se transformem milagrosamente em seres humanos lúcidos.

2 Se o Orçamento é, por natureza, uma gestão de expectativas futuras, o meu receio é que este Orçamento seja optimista demais. Continuar com um superavit nas contas públicas, manter apoios sociais, arrancar a sério com o investimento público e cessar as cativações, baixando para alguns os impostos directos e apostando numa descida da inflação, parece-me demasiado bom num ano que se anuncia com duas guerras no horizonte e instabilidade garantida nos mercados de combustíveis. Para quem paga impostos, a grande notícia é, finalmente, a actualização dos escalões do IRS, pondo fim à sua indecente subida sub-reptícia todos os anos, e a descida das taxas, mas só para quem ganha até €2 mil por mês — os outros são ‘ricos’. É que, tal como explicou esta semana Pedro Nuno Santos, os portugueses deviam deixar de pedir a descida do IRS, pois que se só 58% deles é que o pagam e, destes, só 17% pagam a sério, descê-lo para todos significaria ter de cortar na despesa pública ou ter de deixar de viver dos poucos pagadores esforçados.

Como sempre, o Orçamento tem coisas boas e coisas más, cuja análise não cabe agora aqui. E, como sempre, a oposição, toda ela, é contra o Orçamento — todo ele. Certamente terá ocasião de justificar melhor e mais detalhadamente porquê. E seguramente irá um pouco mais fundo do que a apreciação do líder da oposição, ao classificar o Orçamento como “pipi e betinho”. Francamente, Luís Montenegro é candidato a quê — a ser o mais engraçadinho do Café Central de Espinho?

P.S. — Sérgio Furtado, jornalista da TVI, que eu não conheço pessoalmente, acaba de receber o prémio Mário Mesquita de Jornalismo, da Sociedade Portuguesa de Autores, de que confesso desconhecia a existência. Fraco reconhecimento para quem tem feito na Ucrânia um longo e reiterado trabalho de reportagem de guerra — autêntico e não encenado, como alguns fazem, nomeadamente os repórteres-vedeta da CNN Internacional. Corajoso, objectivo, imparcial e despido de sensacionalismo: um verdadeiro exemplo daquilo que o jornalismo deve ser, mesmo nas mais difíceis circunstâncias. E neste país em que, a começar pelo Presidente da República, a mais banal das personagens é alcandorada ao estatuto de herói, este homem que diz não querer “estar apenas de passagem” por um país em guerra, para melhor o compreender, é digno de todo o respeito e admiração. Que a sorte o acompanhe sempre!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Ao ponto que isto chegou!

 

Não gosto de repisar assuntos já escritos e escarrapachados na comunicação social nacional. Não faz o meu jeito sobretudo quando pode transparecer uma imagem de perseguição. Não me enquadrado aí. Porém, ainda no passado Domingo, no programa de Ricardo Araújo Pereira (SIC), o tema PAN, talvez se deva ler Mónica Freitas, voltou a ser demolidor quer para a própria, quer para a coligação PSD/CDS quer ainda, para a imagem da política regional. A parte transmitida, um fugaz excerto de um espaço titulado por "Masturbador Virtual", com tanto "pi" para que não fossem audíveis as palavras ditas pelos intervenientes, deixou-me um rasto de profunda tristeza. Ao ponto a que isto chegou!



Aquele espaço constitui um projecto da Associação Womaniza-te. Por curiosidade espreitei o sítio da Internet e li que a sua missão "é sensibilizar e formar as pessoas para a temática da igualdade de género e cidadania" e os seus valores "os da igualdade, equidade, diversidade, liberdade, respeito e cidadania". Eu diria que qualquer pessoa, em abstracto, assinaria por baixo tais declarações. Só que, quando os seus mentores passam à prática, pelo caminho deixam as evidências de uma total ausência de qualidade. Não há uma frase que não integre um palavrão. Pelo menos nos áudios transmitidos. O contexto é miserável e os temas execráveis. 

Há uma certa homofonia entre "Womaniza-te" e "Humaniza-te". Preferível seria que os responsáveis enveredassem pela segunda dimensão, partindo de temas sérios e sem a vulgaridade e a brejeirice das palavras ditas. Ricardo Araújo Pereira parodiou e reduziu à mais ínfima expressão Mónica Freitas e, concomitantemente, a bengalinha política que a coligação "Somos Madeira" encontrou para satisfazer o prolongamento de quatro anos de poder. 

Isto leva-me a dizer: somos Madeira, calma aí! A Madeira não pode nem deve confundir-se com actos grosseiros, reles e ordinários. Ora, quando alguns se aliam à porcaria só podem conduzir à leitura popular: "diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és". Por um voto, apenas, mergulham na lama da obscenidade e na sujeira que dá asco. A Senhora precisa de "Womanizar-se" e a política de "Humanizar-se". A política caiu no pântano, no charco imundo das acções vis e imorais. Doravante, como é que a Senhora Deputada, por exemplo, abordará temas do sector educativo? Impossível, depois do que escutei. Ou vai falar apenas, como disse o Dr. António Lobo Xavier, com muita ironia, no programa Princípio da Incerteza, "no cheque dentista para os gatos?". 

Tudo aquilo que já não era saudável no debate político, pode tornar-se exponencial. Já tínhamos um deputado apanhado na rede... agora são dois. Por razões distintas, claro. Uma por palavras, outro por actos. Faltam os pensamentos e as omissões para um quadro completo. Ficam para a Assembleia!

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 7 de outubro de 2023

25 de Novembro — O nanico tem razão na celebração


Por
Carlos Matos Gomes
Medium.com
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Mirrado e miúdo quando entrou para a Marinha e, depois, para a Infantaria, Francisco Franco iniciou a carreira militar com o apelido de “Fósforo nanico”. Era tímido, tinha a língua ligeiramente presa e passou anos a levar “caldos” dos colegas de academia militar. Não tinha propriamente o físico de futuro chefe, nem que fosse de turma. Mas “Paco”, seu outro apelido, tornou-se o mais jovem general europeu em 1926, passou a ser chamado de “El Caudillo” pelos seus camaradas de armas, designação até então reservada a guerreiros medievais, e comandou o período mais sombrio da história da Espanha moderna. A biografia é de Francisco Franco, mas podia adaptar-se com facilidade à de Carlos Moedas. Imaginem-no fardado e de bigodinho!




Franco, como Salazar, como Carmona, fazem parte de um tipo de políticos cinzentos, sombrios, que conseguem ofuscar e sobrepor-se a outros correligionários intelectualmente e profissionalmente muito mais competentes, brilhantes e carismáticos. Carlos Moedas é um exemplo contemporâneo desse tipo de “cinzentões” que surgem no topo das pirâmides de poder e levam as pessoas comuns a perguntar como é que um tipo como ele chegou ali.

Não foi por acaso. Eles, todos eles, trataram de colocar as pedras para percorrerem o seu caminho até porto seguro, no topo. Fizeram-no com vénias e sorrisos, como rafeiros, aceitando festas e palmadinhas, biscoitos. Mas sabendo sempre o que fazer. Por vezes estas personagens são associadas a estereótipos literários, caso de O homem sem qualidades, de Robert Musil, ou de Escuta Zé Ninguém, de Wilhelm Reich. É um perigoso erro de análise. A flexibilidade moral e indiferença pelos valores éticos transformam ‘um homem sem qualidades’ ou um zé ninguém em num ser reptiliano, serpenteante e invisível até lançarem o ataque. Estes nanicos conhecem a História. Numa época de aflição, de crise, será a eles que recorrerão os presidentes das grandes empresas, dos bancos, os dirigentes partidários, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os propagandistas. Eles, os nanicos, sabem que estes lhe darão o futuro e não lhes perguntarão pelo passado, nem pela consciência.

Moedas sabe porque deve anunciar a comemoração do 25 de Novembro de 1975, de que na atual geração ninguém (ou muitos poucos) sabe o que foi. Moedas sabe duas coisas: o seu mercado eleitoral é o dos neoliberais, dos adeptos do individualismo, do sucesso dos mais agressivos e sem escrúpulos, dos que acreditam na bondade e virtude da ditadura do mercado e que estão em transumância do PSD para a Iniciativa Liberal. Moedas quer ser o federador, o pequeno grande homem, o nanico dessa massa eleitora de direita. Depois, Moedas sabe o que foi a essência do 25 de Novembro de 1975. Basta ler um pouco do seu currículo.

Moedas é, antes de um tudo, um boy da grande banca de investimentos, um Goldman Sachs boy. Trabalhou em Londres na área de fusões e aquisições do Goldman Sachs, e no Deutsche Bank para montar o Eurohypo Investment Bank. No regresso a Portugal dirigiu a consultora imobiliária Aguirre Newman Cosmopolita, e criou a empresa de gestão de investimentos Crimson Investment Management. Sempre debaixo do guarda-chuva do Goldman Sachs, uma das principais empresas globais de banco de investimento e gestão de valores mobiliários. O único dos grandes bancos que sobreviveu à crise de 2008 e também aos enormes escândalos financeiros de desvio fraudulento de fundos e de corrupção política no sudoeste asiático.

Num artigo de Mafalda Anjos, na revista Visão de 4.8.2016, o Goldman Sachs materializa o que há de pior e mais imoral no capitalismo e na maior praça financeira do mundo. «A história do banco de investimento inclui ganância e jogos de poder, dinheiro a rodos, escândalos e escrúpulos q.b., arrependidos, denunciadores, cassetes secretas e até prostitutas contratadas para sacar negócios. A história do Goldman é feita com os mesmíssimos ingredientes da maior praça financeira do mundo e centro do capitalismo global: inteligência, trabalho e ambição, mas também imprudência e ganância, juntas num caldo de princípios éticos convenientemente deixados em “banho-maria”. Desde a sua fundação, em 1869, que a Goldman se tem visto envolto em escândalos financeiros de espécie vária, quase sempre no centro do furacão de bolhas especulativas e crashs estrondosos, e quase sempre com o mesmo desfecho: somar e seguir, maior e mais forte, depois de ajudar a evaporar milhões de euros dos bolsos dos investidores.»

É esta a escola de Carlos Moedas. A que pertencem outros portugueses ilustres: Durão Barroso, José Luís Arnaut e o falecido António Borges. “Goldmanites” é o epíteto pelo qual são conhecidos os altos quadros do Goldman Sachs, por vezes usado em tom de impropério, que ajudaram a fazer dele a mais desejada e vilipendiada instituição financeira do mundo.

Desde sempre que o Goldman Sachs se deita na cama com o poder político. Carlos Moedas não é o menino de coro que afirmou estar disposto a fazer tudo o que a Igreja Católica e o presidente da República (o patrono da sua carreira) lhe dissessem para fazer na preparação da Jornada Mundial da Juventude! Ele é um sabujo consciente e informado que está a fazer carreira política. Ele é um ativo da banca na política!

Ele sabe qual foi o objetivo principal do 25 de Novembro de 1975: desnacionalizar a banca! Abrir a banca, o coração do “sistema”, à iniciativa privada. A reprivatização da banca portuguesa teve como resultado a emergência de corsários bancários: BPN, BANIF, BPP, mas também o BPI, a espanholização da banca — isto é a colocação da banca portuguesa sob direção espanhola — e a eliminação dos bancos tradicionais, incluindo o Banco Português do Atlântico, o maior. Sobreviveu o BES até há pouco. O BES de Ricardo Salgado, que em desespero terá dito: Temos de pôr o Moedas a funcionar. Isto é, a fazer uns recados e a mover umas influências.

Ora, o Moedas está a funcionar, como sempre esteve, mas para ele. Vai celebrar o 25 de Novembro de 1975 e, sem qualquer pudor, referir os perigos da guerra civil, da substituição de uma ditadura por outra de sinal contrário. É um reportório mais do que estafado, mas o que interessa isso ao Moedas? Para ele a verdade é uma esponja! Ele é um faxina que está a funcionar com um balde e uma esfregona. Agora funciona por conta de Marcelo Rebelo de Sousa, que o tirou da manga como o seu jóker federador da direita, fiador dos grandes bancos, do clube Bildeberg, pau mandado do FMI e do Banco Central Europeu. Um homem acima de qualquer suspeita!

O 25 de Novembro de 2023 de Carlos Moedas é a celebração da vitória dos grandes banqueiros em 25 de Novembro de 1975. De fora ficará a memória dos tempos da troika, e também a memória de Ricardo Salgado, o que queria colocar o Moedas a funcionar antes de ser apunhalado. Talvez, no intervalo da sua doença, Ricardo Salgado repita a frase de Júlio César: Também tu, Brutus!

O Moedas, o nanico, está a funcionar, mas para ele próprio, servindo de tarameleiro de Marcelo Rebelo de Sousa, o verdadeiro pai da ideia de esvaziar as comemorações do 25 de Abril. Está montada mais uma farsa. Moedas é o truão da serviço. A comunicação social vai encarregar-se de soprar trombetas a anunciar o espetáculo!

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A desdolarização, um processo em movimento?


Por

Hoje, com a guerra da Ucrânia, a desdolarização passou a ser um tema presente na comunicação social internacional, com relevo na comunicação escrita e abordado nos mais diversos ângulos.



Há quem não se fique por medidas paliativas e lhe aponte um “míssil”: a criação de uma moeda alternativa ao dólar.

Mas, falar de desdolarização requer umas linhas prévias, breves, sobre o percurso do dólar (EUA) no ganho de tanta influência e pujança na economia Mundo.

O dólar como moeda que domina o Mundo é uma consequência da Segunda Guerra Mundial.

Até aí comandava a libra esterlina. Mas o estado de fragilidade, em que a economia britânica sai da Segunda Guerra, tornou impraticável a sua continuidade de liderança.

E o dólar, que, na Segunda Guerra, ainda mais se reforçara, inclusive pelos lucros das vendas de armamento e dos empréstimos financeiros aos seus parceiros e, depois, com o plano Marshall de apoio à reconstrução da economia europeia, acentua o estatuto de única moeda forte, substituindo, assim, naturalmente a libra nas suas funções, designadamente como moeda de reserva mundial e principal veículo de transação comercial e serviços.

Múltiplas são as consequências dessa situação na economia como um todo, sendo a principal, uma elevada dependência dos países dos EUA. Por exemplo, os bancos centrais mundiais passaram a acomodar nas suas reservas cambiais uma elevada percentagem em dólares que, segundo o FMI, em finais de 2022, era da ordem dos 60% e as trocas comerciais e de serviços tornam-se predominantes em dólares até agora.

Com a guerra da Ucrânia, as sanções económicas contra a Rússia geram um ambiente de desconfiança mesmo em países (economias emergentes) com poucas ou nenhumas ligações directas com a guerra.

O medo de represálias levou a uma corrida na diversificação das reservas cambiais dos bancos centrais de muitos países, no sentido de reduzir a dependência do dólar na constituição dos seus activos.

Como se liga esta situação das reservas cambiais com a intranquilidade gerada pelas sanções?

Não nos podemos esquecer que quem tem o domínio da moeda universal pode limitar/paralisar o funcionamento da economia de outro país através da aplicação de sanções económicas variadas.

Foi o que aconteceu com o congelamento de activos do Banco Central da Rússia. Quase 300 mil milhões de dólares russos foram congelados, em todo o Planeta, pelos países do mundo ocidental, para além da sua expulsão do sistema Swiftt, ou seja, do mecanismo, criado em Bruxelas em 1973, visando tornar fáceis e rápidas as operações entre as instituições financeiras do Mundo. Anote-se que a expulsão de um país deste sistema não prejudica apenas o país expulso, condiciona também os países com quem negoceia, pois deixam de poder operar entre si, em dólares.

Os países emergentes olhando para estes procedimentos dos EUA (que, aliás, já conheciam de outras situações) ficaram receosos e começaram a agir no sentido de transformar esta composição de activos, na medida em que esta elevada dependência constituía uma fonte de grande vulnerabilidade para as suas economias.

Nada lhes garante que não viessem a deparar-se com uma situação semelhante, caso viessem a passar por um problema de relacionamento difícil com o país do dólar.

Mas um outro problema ocorre nesta diversificação. Que moeda ou moedas escolher?

O euro, a libra, o iene, etc. Estas não, pois são moedas do campo do Ocidente, facilmente alinhadas com o dólar, ou seja, de risco idêntico.

Outras moedas como o real, a rupia, o rand e muitas outras não oferecem o mínimo de garantias devido à sua grande volatilidade (depreciação) e ainda nenhuma garantia de que, como represália, não pudessem ser expulsas do Swift.

A única “reserva de valor” segura era o ouro. E aqui se inicia uma certa corrida ao ouro.

E as estatísticas sobre transacções do ouro vêm confirmar movimentações significativas. Por exemplo, entre 24 fevereiro de 2022 (data da invasão da Ucrânia) e a aplicação das sanções, a China adquiriu cerca de 200 toneladas de ouro. O mesmo aconteceu com outros países.

Eis uma consequência das sanções económicas com efeitos na redução da fatia de incidência do dólar a nível mundial.

Mas outras movimentações, já antes em curso, aceleram-se através de acordos de transacções de bens em moeda própria (ou do país comprador ou do país vendedor ou nas duas).

Sobretudo nas energias e produtos agrícolas esta movimentação está a acelerar-se, mas também nos minérios, muitos deles estratégicos na transição energética como o níquel, cobre, terras raras, lítio, etc.

Antes, utilizava-se muito a designação de petrodólares. Hoje, desconhecendo qual a percentagem média de petróleo transaccionado em dólares, sabemos que muito do petróleo da Rússia é numa das moedas dos países intervenientes, mas não só. Hoje, há contratos até de longo prazo entre diversos países da OPEP e países compradores como a China, Índia e muitos outros em moedas como a rupia, renmindi, real. Deste modo, fatias de dimensão variável em diferentes mercados estão a sair da órbita do dólar.

E aqui interrogamo-nos, até onde isto irá?!

Não tenho resposta. Mas ligado a esta questão, a experiência empírica mostra que o dólar e a economia do Ocidente estão a ser afectados por um grupo muito representativo de países que assumiram uma posição de não alinhamento nas sanções económicas contra a Rússia. Um não alinhamento que não é de índole política, mas de interesses económicos, de negócios. Uma neutralidade estratégica.

Países como a Índia, a Indonésia, a Arábia Saudita e mesmo o Brasil, embora mantendo relações próximas com os países do Ocidente, não alinharam nas sanções porque procuram manter relações económicas equilibradas e alargadas.

No entanto, esta neutralidade apresenta, por vezes, limitações. Os EUA ameaçam certos contratos, fazendo mesmo abortar alguns. Entre outros, cite-se “a compra” pela Indonésia de aviões de combate Soukhoi-35 russos por troca de óleo de palma que foi anulado. E este desrespeito e pressão, escusado será dizer, mina a confiança.

A terminar, o míssil contra o dólar – uma outra moeda. Lula da Silva é um acérrimo defensor em palavras de uma moeda comum dos BRICS, uma moeda para substituir o dólar nas suas relações comerciais e financeiras.

A libra esterlina saiu de cena porque a economia britânica quase entrou em falência. Esta não é a situação da economia americana que embora enfrente problemas sérios, continua a dispor de “armas” económicas de defesa. O conjunto de países que falam de moeda alternativa têm economias tão diferenciadas e frágeis que não aconselham esse caminho a curto prazo. Primeiro têm de estabilizar e desenvolver as suas economias e relações comerciais. Precisam de amadurecer o caminho.

Conclusão. Nada está amadurecido: nem o dólar para “cair”, nem as condições para a criação de uma nova moeda alternativa. Nem creio que um país, como a China, que necessariamente deveria estar interessado no afundamento do dólar veja interesse na criação de uma moeda com pés de barro.

domingo, 1 de outubro de 2023

Afinal, o que diz Cavaco? Nada



Por
Miguel Sousa Tavares
in Expresso, 29/09/2023
estatuadesal


Eu sei que venho com algum atraso, mas era preciso corresponder ao repto de Durão Barroso: ler o livro antes de o comentar. E acontece que o livro é de tal forma aborrecido que duvido até que Durão Barroso, o seu apresentador, o tenha lido todo. Falo, obviamente, de “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar”, a última obra do grande estadista Cavaco Silva que tanto entusiasmou a nossa direita, na medida em que tanto irritou a nossa esquerda. Mas sosseguem, uns e outros: não há quaisquer motivos para uma ou outra coisa.

Sobre Cavaco Silva, o homem e o personagem, o seu perfil ético, cívico e político, remeto para o artigo que Luís Aguiar-Conraria aqui escreveu há 15 dias e que eu não me importaria de ter assinado. Apenas realçaria o episódio da venda das acções do BPN, não cotadas em Bolsa, com um lucro de 300%, por decisão do presidente do banco e seu amigo pessoal, Oliveira e Costa. Tudo poderia ter ficado no domínio de um negócio entre amigos com dinheiros de um banco privado não fosse o caso de terem sido negócios desses que levaram o BPN à falência e obrigaram os contribuintes a pagar a conta. Que Cavaco Silva não se tenha perturbado com a revelação do episódio é uma coisa; outra coisa é que se tenha vindo gabar dele, afirmando ter sido a sua competência como professor de Finanças que o tornou possível e que nem mesmo alguém que nascesse duas vezes seria tão sério como ele.

Sobre Cavaco Silva e a sua lenda de estadista e “fazedor” é tudo uma questão de opinião. A minha, e sempre dita desde então, é que ele foi o primeiro-ministro a quem o acaso pôs nas mãos uma oportunidade única para mudar Portugal e desperdiçou a oportunidade. Herdou um país com contas postas em ordem por Ernâni Lopes e que, contra as suas dúvidas, entrara na União Europeia pela mão de Mário Soares. Encontrou paz so­cial e institucional, uma enxurrada de dinheiros como nunca visto e maioria para governar. E começou por vender a agricultura a Bruxelas por 600 milhões de contos, em dinheiro da altura, com isso desmantelando o mundo rural e dando início ao processo de despovoamento do interior que, entre outras coisas, hoje está na origem da grave crise habitacional dos centros urbanos. Depois fez o mesmo com as pescas, com a construção naval, com as minas e com as indús­trias transformadoras, declarando que Portugal iria viver da prestação de serviços. 


Apostou tudo nas estradas, para, como disse ironicamente Ribeiro Telles, “os espanhóis trazerem mais depressa os produtos agrícolas deles para os nossos supermercados”, e, em contrapartida, começou o trágico processo de desmantelamento da ferrovia, liquidando uma empreitada que exigira 150 anos de esforço da nação. Engrossou o Estado para a eternidade e, das “reformas da década” que diz ter feito, uma — a da Saúde — já fora feita antes, com a criação do SNS, e outra — a do financiamento da Segurança Social — foi feita depois por Vieira da Silva, sendo que todas as outras, a começar pela da Justiça, permanecem por fazer até hoje. Mas criou a lenda e esse foi o seu grande feito.

Não admira que, ciclicamente, Cavaco se sinta tentado a escrever e acrescentar a sua biografia, não vão outros, como eu, deslustrá-la. É disso, mais uma vez, que, directa ou subliminarmente, trata este livro, dividido em três partes. Na parte do meio, ele, o ex-eurocéptico, canta loas à Europa, a cuja construção se amarra e descreve sem grande originalidade nem distanciamento: na Wikipédia há peças semelhantes mais interessantes. A terceira e última parte é composta por duas conferên­cias e sete artigos já publicados, entre os quais o “célebre” artigo sobre a Lei de Gresham, que ele estima um marco no pensamento político português, pois que o republica 19 anos depois “porque não parece ter perdido pertinência”. Os outros artigos, está bem de ver, são todos a bater no actual Governo e já por demais lidos e comentados. Resta, então, como original, a primeira parte do livro, que lhe dá título.

Para quem esperava de alguém que foi PM durante dez anos uma reflexão política profunda e meditada sobre o exercício do poder e a sua capacidade transformadora, as instruções de Cavaco são qualquer coisa de absolutamente indigente, variando entre o banal, o cómico e o ridículo.


Essa primeira parte é difícil de classificar, mas talvez se possa dizer que é uma espécie de manual de instruções para a Universidade de Verão dos jotinhas, em particular aqueles que aspiram a um dia virem a ser primeiros-ministros. Para quem esperava de alguém que foi PM durante dez anos uma reflexão política profunda e meditada sobre o exercício do poder e a sua capacidade transformadora, as instruções de Cavaco — a que ele chama “reflexões normativas” — são qualquer coisa de absolutamente indigente, variando entre o banal, o cómico e o ridículo. O que dizer da afirmação de que a escolha das pes­soas para o Governo “não pode ser feita na praça pública, para não prejudicar a aceitação dos convites”, ou que “o PM deve apresentar-se devidamente preparado sobre cada um dos pontos da agenda do Conselho de Ministros”? Mais cómicas são as afirmações de que “é mesmo muito provável que os ministeriáveis do partido estejam ansiosos que o telemóvel toque” ou que “as reuniões do Conselho de Ministros devem decorrer sem dispensa do formalismo necessário. Dentro da sala, os ministros devem tratar-se uns aos outros pelas respectivas designações oficiais e evitar informalidades excessivas e tratamentos por tu” (imaginem: “srª Ministra da Coesão Interterritorial, pode passar-me a água? Faça favor, sr. Ministro dos Transportes e Comunicações”). Mais a sério, é de reter a afirmação de que “o exercício de funções de chefe do Executivo é uma tarefa muito exigente”, quanto mais não seja porque é preciso manter sempre um olho vigilante no PR, pois que “a principal preocupação do PM no seu relacionamento com o PR deve ser a de evitar que o Presidente utilize os seus poderes para impedir o Governo de executar o seu programa e que tenha sucesso na sua acção”. Isto dito por quem exerceu ambas as funções é, enfim, uma reflexão carregada de sentido. Talvez mesmo a única. Porque o resto, se querem a minha opinião, não vale 17,75 euros e, sobretudo, o tempo perdido.

2 O que aconteceu na Madeira, isso, ultrapassa o ridículo para cair no domínio da total falta de decência. Um chefe de Governo que promete, jura, diz e volta a dizer que não governará se não lhe derem maioria absoluta e que logo, perante o insucesso, se enterra num pântano de malabarismos semânticos para tentar demonstrar que a palavra “não” dita por um político não significa o mesmo que a palavra “não” dita por uma pessoa de bem. E que, acto contínuo, começa a negociar um acordo para o sim com um partido que os madeirenses nem devem saber o que seja, com um programa de governo que mistura hotelaria com brócolos e subsídios ao turismo com subsídios à esterilização dos gatinhos. Um chefe do partido da oposição local que, tendo perdido 8 deputados em 19, longe de pensar em demitir-se, quer é saber se o chefe do Governo se demite, porque ele continua a ser “a alternativa”. É o dirigente nacional do principal partido da oposição que resolve ir cavalgar antecipadamente uma vitória regional que afinal o não foi, mas que canta vitória na mesma, sem se dar conta do ridículo a que se presta. Parecem garotos a brincar à política.


3 “Basicamente, sou uma puta. Obviamente, o que eu quero é ter bens materiais, sentir a minha vida boa.” Esta frase, escutada e gravada pela PJ há dois anos, pertence a um dos arguidos da Operação Tempestade Perfeita e foi dita em conversa com outro comparsa nos negócios montados no Ministério da Defesa, e não só, para roubar o Estado português. Trata-se de dois directores de serviços, um cargo superior da Administração Pública, falando com o à-vontade de quem não esconde o que faz, o que quer e a total ausência de escrúpulos com que ac­tuam. Provavelmente, os seus processos acabarão prescritos, arquivados por falta de provas, amnistiados pela visita papal, e, até lá, eles continuarão a receber o seu ordenado, embora suspensos de funções, com o processo disciplinar a aguardar pelo processo-crime — ou seja, de férias pagas e prolongadas. Nada que os incomode, presumo. Todavia, pergunto: esta puta não terá pais, mulher, filhos que encarar? Alguns amigos ou conhecidos que o julguem honesto, o homem que lhe serve o café de manhã?

Esta puta vai andar por aí como se nada fosse, à espera que a justiça funcione e os outros se esqueçam dele? Não se vai internar voluntariamente na prisão ou num convento? “Basicamente, é uma puta”? Não, o que ele é é um chulo. Puta, ao pé disto, é uma profissão honesta.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia