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terça-feira, 29 de novembro de 2022

Economias emergentes acusam UE do aumento de preço do gás natural


Por
João Abel de Freitas, Economista 
28 Novembro 2022
 

A anarquia de preços e quantidades nos mercados internacionais do gás natural decorre do desnorte europeu das sanções económicas contra a Rússia, muito mal concebidas porque contra os interesses dos países-membros, mas afetando de sobremaneira os países emergentes de menor poder de compra.



O ano de 2021 constitui um marco disruptivo na estruturação dos mercados de gás natural com um duplo efeito: elevado aumento da procura e uma vertiginosa subida de preços. Nesse ano, o preço do gás natural bate recordes na Europa, atingindo taxas imprevisíveis da ordem dos 1000% (atenção, acentuo 1000%!) face a 2020.

Em Agosto de 2021, a agência noticiosa Bloomberg anuncia “a era do gás natural barato acabou, dando lugar a um período de energia muito mais cara que deverá criar um efeito de cascata na economia global”. E tudo isto porquê? A Covid-19 provocou uma quebra do consumo energético, devido fundamentalmente à paralisação, ou quase, da economia em vários sectores, energético, industrial e serviços como a hotelaria, a restauração, os transportes…

Nos finais do primeiro semestre de 2021, a retoma económica gera um profundo caos. As cadeias de reabastecimento, com os seus vários estrangulamentos (dificuldades de produção, carência de meios de transporte, rarefacção de mão-de-obra…) não reúnem as condições devidas a uma resposta atempada, provocando escassez de bens nos mercados e atrasos de meses na satisfação das encomendas, tudo isto agravado por uma subida de preços que se estende a sectores como os bens alimentares e as componentes electrónicas (semicondutores), nomeadamente de origem asiática.

2. Este caos já de si complexo é apanhado no turbilhão da guerra da Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022), a que a União Europeia (UE), sem estratégia própria clara, decide responder com sanções económicas sobretudo de cariz político, ou seja, sem uma análise de medida dos impactos na sociedade, dando dimensão ainda maior à anarquia reinante em termos dos desequilíbrios procura/oferta e, por conseguinte, provocando a especulação de preços.

A UE deixa-se arrastar na onda das sanções veiculadas pelos EUA, quando a sua situação de dependência energética real nada tem de comum com a realidade americana. O mesmo tipo de sanções em duas realidades tão distintas (falha de recursos energéticos próprios na UE) dificilmente poderia ter os mesmos efeitos.

3. A Comissão Europeia para “sustentar” estas sanções inventa um simulacro de plano logo em Março, designado de RePowerEU, com umas frases “sugestivas” do género: “eliminar a nossa dependência de combustíveis fósseis da Rússia até 2027“; o “REPowerEU procurará diversificar o abastecimento de gás, acelerar a implantação de gases renováveis e substituir o gás no aquecimento e na geração de energia”.

Em termos práticos, este plano (pouco pacífico entre os países-membros) resumia-se no concreto ao corte de 2/3 das compras de gás russo até finais de 2022.

Até António Guterres se manifesta contra “a pressa de substituir petróleo e gás russos” por outros combustíveis fósseis, alegando que pode precipitar o aquecimento global (Lusa, 21 Março 2022). Pelo contrário, a porta-voz dos EUA, Jen Psaki, exorta a mais produção de gás de xisto para lançar nos mercados internacionais.

De forma simpática, o que se pode dizer é que a UE entrou num raciocínio pouco elaborado, esquecendo que neste contexto de escassez de oferta era fácil à Rússia encontrar países compradores alternativos. Por outro, o plano apresentado colocava a descoberto as intenções europeias, nem faltando a quantificação expressa no corte de compras de gás à Rússia. A uma “simplicidade” tão primária era de esperar que a Rússia respondesse. E fê-lo, nomeadamente, através da redução do fornecimento de gás via gasodutos.

Esta situação (mais que previsível) gerou pânico nos países europeus, nas empresas e na população em geral, sem produzir, contudo, os efeitos desejados na economia russa como admite o FMI: “mesmo com sanções, a economia da Rússia está melhor que o esperado” (imprensa internacional 26/07/2022).

O “Le Monde Diplomatique”, por sua vez, olha este plano apontando-lhe dois erros grosseiros: a redução de forma precipitada da dependência do gás e do petróleo da Rússia sem plano alternativo de fiabilidade e custo equivalente e, segundo erro, à luz dos interesses europeus o alinhamento da Alemanha e da Comissão Europeia pela bitola americana era muito prejudicial. Washington podia decretar o embargo que entendesse sem consequências de maior, enquanto para os países europeus, admite o FMI. “os efeitos nas principais economias europeias foram mais negativos que o esperado”.

A traição europeia às economias emergentes

4. Os países europeus avançam para as sanções, como se referiu, sem um plano pré-definido de substituição do gás e petróleo russos.

Perante a pressão social e das empresas, nomeadamente através das organizações patronais alemãs e temendo a reacção das populações que começa a levantar-se em quase toda a parte, os países europeus, acossados ainda pela proximidade do próximo inverno, desatam a comprar gás a todo o vapor e a qualquer preço, a outros fornecedores (EUA, Qatar e outros) para recompor os stocks.

Os países emergentes, devido a este apetite voraz dos países europeus, vêem-se envolvidos numa guerra de preços com a Europa e em posição difícil de obter energia nos seus mercados tradicionais e a preços convenientes. Neste contexto, têm de recorrer a energias fósseis mais poluentes, mas mais baratas, como o carvão, porque, admitamos, o inverno não é um fenómeno apenas europeu. As economias emergentes também precisam de energia para enfrentar o inverno.

E como afirma S. Kavonic, analista de energia do Crédit Suisse Group, “a Europa suga o gás de outros países, a qualquer preço”, para suprir a falha de gás russo.

Mesmo assim, as compras não bastaram e alguns países europeus com realce para a Alemanha tiveram que accionar as suas centrais a carvão, aumentando a emissão de gases com efeito de estufa (GEE). Por quanto tempo? – pergunta-se. E, deste modo, as economias emergentes tiveram de se confrontar com problemas de abastecimento em quantidade e aumento imparável de preços.

Quem não se recorda de barcos metaneiros, ancorados aqui e ali, à espera de ordens para se dirigirem para o comprador que oferecesse o melhor preço!.

Toda esta anarquia de preços e quantidades nos mercados internacionais do gás natural (GNL) decorre do desnorte europeu das sanções económicas contra a Rússia, muito mal concebidas porque contra os interesses dos países-membros, mas afectando de sobremaneira os países emergentes de menor poder de compra. Não incluo aqui a China e a Índia que negociaram condições bem favoráveis com a Rússia.

5. A finalizar este artigo de opinião uma nota telegráfica sobre o COP27. Uma paragem no tempo enquanto concretização de objectivos. Mesmo a criação do fundo para apoio aos países mais vulneráveis não passa de uma intenção.

O que realço como bem marcante e promissor na COP27 é a realização, pela primeira vez na história, de uma reunião sobre a energia nuclear num dos seus pavilhões. Alguma comunicação social deu a notícia desta reunião sob a designação de “uma discreta revolução nuclear na COP27”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

domingo, 27 de novembro de 2022

"A POBREZA NÃO PODE SER LUTA IDEOLÓGICA"



Não devia ser, mas é Senhor Padre Jardim Moreira (presidente da secção portuguesa da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAP). Li a entrevista concedida ao DNotícias, publicada na edição de hoje. Uma entrevista que tem muito que se lhe diga. Fixo-me, apenas, numa excelente pergunta do jornalista Victor Hugo: "Havendo já um plano regional, este estudo (sobre a pobreza) não chega tarde? A resposta: "(...) Para Bruxelas conceder os fundos comunitários, exigiu à Madeira - um timing, uma estratégia, para poder avalizar verbas dos fundos comunitários. A verdade é que não estava feito o diagnóstico. Para não perder os fundos comunitários o governo avançou com uma estratégia. Fiz-me entender?"



Senhor Padre, pela comunicação social, conheço a sua luta desde há muitos anos, perante a qual me curvo. Mas digo-lhe: obviamente que se fez entender. Para quem, em qualquer sector, navega à vista, não haver diagnóstico dá sempre jeito. Se não se sabe onde está, não é possível determinar onde se quer chegar e, daí, os passos que têm de ser dados para lá chegar. A lógica tem sido esta: venha o dinheiro porque somos gente que conhece bem os cantos à casa. Por isso, quando o quadro político é este, o Senhor Padre Jardim Moreira sabe que de pouco valem os "estudos aturados, profundos e cientificamente sustentáveis que dê a visão da problemática, para depois ajustar as propostas às políticas públicas (...)", disse.

A pobreza tem dado jeito, Senhor Padre. Sou eu, agora, que lhe pergunto: fiz-me entender?

Mais, Senhor Padre Jardim Moreira, não devia fazer qualquer sentido um estudo numa Região Autónoma, região dotada de órgãos de governo próprio, estudo que irá custar entre 100 e 150 000,00 euros. Com 46 anos de governo ininterrupto, as CAUSAS mais profundas da pobreza, onde deviam radicar todos os programas, tinham a obrigação de estar minuciosamente estudados e há muitos anos implementados, com rigor, determinação, eficiência e eficácia. Nas questões sociais e em todos os sectores da governação, digo eu. Às exigências de Bruxelas, o governo regional devia responder com os estudos que justificaram as "políticas públicas" e os resultados conseguidos. Só que não havia "diagnóstico", não é?


E não se iluda Senhor Padre Jardim Moreira, mesmo que o Senhor presidente do governo da Madeira tenha dito que "espera muito deste estudo", depois de conhecida a situação real e propostos os caminhos para uma situação ideal, por aqui será sempre feito aquilo que dá jeito em todas as circunstâncias, inclusive, no campo "ideológico". Há uma alta probabilidade de assim ser, porque repito, por muito que me custe a perversidade desta afirmação, "a pobreza tem dado jeito". Fiz-me entender, distinto Padre?
E para realizar o estudo serão necessários dezoito meses? Eu sei que se trata de uma "encomenda" a uma empresa com natureza privada, mas sempre lhe digo que há teses de doutoramento realizadas em menos tempo! Neste caso, a conjugação de todas as variáveis da pobreza, as causas a montante e a jusante estão identificadas e constam de estudos já realizados, isto para além de todos os dados proporcionados pelos Institutos de Estatística e das centenas de intervenções políticas na Assembleia Legislativa da Madeira. Basta consultar o Diário das Sessões.

Ainda recentemente (27.10.22) o Senhor Padre Jardim Moreira sublinhou: "Se as famílias forem pobres, os filhos vão sofrer as consequências". A pergunta a fazer ao senhor presidente do governo regional devia ser esta: "então o senhor não sabe, 46 anos depois de Abril, que "se as famílias forem pobres, os filhos vão sofrer as consequências"?

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

"Estudo sobre a pobreza avança este ano". Que pobreza política!

 

Trata-se de uma investigação, dizem, para "conhecer a fundo a realidade social da Região". Isto é espantoso! Dezoito meses para estudar o drama. Não é espantoso, pelo menos para mim é ininteligível, inexplicável e muito obscuro.



Desde o longínquo ano de 1976, há 46 anos, que a Região é, estatutariamente, Autónoma, com Estatuto próprio, Assembleia e governo próprios. Significa isto que ao longo de quase cinco décadas, existem secretarias regionais, direcções regionais e muitos, muitos mesmo, directores e chefes, directamente ligados aos assuntos sociais, e muitos outros, com responsabilidades indirectas, embora não menos importantes. 

Para além dos órgãos de governo próprio, juntam-se os das autarquias, as casas do povo, a própria Igreja Católica (e outras) com toda a sua rede de proximidade e de apoio claro e inequívoco junto dos mais vulneráveis, o Banco Alimentar, as diversas instituições que, discretamente, apoiam os das margens e, como se tudo isto não bastasse, ao longo de 46 anos, repito, foram sucessivamente produzidos e publicados indicadores estatísticos transversais. "(...) Em 2020, por exemplo, na Região Autónoma da Madeira, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social foi de 32,9% (...)". Mesmo assim, ao que parece, não é conhecida a "realidade social da Região".

Eu sei que houve um tempo que a Madeira foi "apresentada como Região rica (consequência de um PIB irreal) e que, por isso mesmo, fez com que tivesse perdido o estatuto que a colocava em Região Objectivo 1, passando para Objectivo 2 e, por isso mesmo, tenha perdido, nesse tempo, 500 milhões de Euros". Em 2010 escrevi sobre este assunto. Eu sei que houve um tempo durante o qual foi negada a necessidade de instalação do Banco Alimentar. Eu sei que houve um tempo em que foi negado um apoio regional aos mais vulneráveis. Eu sei, também, que tudo se faz para esconder a miséria e as desigualdades que chocam e que o discurso político, sistematicamente, pinta de cores garridas aquilo que é tendencialmente negro. Vive-se muito das aparências, de uma comunicação social que não escarafuncha e, pior, de túneis intencionalmente construídos na cabeça das pessoas. Eu sei que o receio existe (ia dizer medo) e daí que, para muitos, o aforismo faz sentido: "mais vale um "euro" na mão que dois a voar". Enfim... o silêncio.

Perante este quadro, concluo, das duas uma: ou é gritante a ausência de consistente e permanente estudo e planeamento ao conjunto do tecido social, ou os pobres têm dado jeito. É lógico que se pergunte, como e com que critérios têm sido atribuídos os subsídios e todos os apoios previstos nos sucessivos Orçamentos de Estado. Certamente, presumo, que há estudos e critérios! Ou será que não existem?

Leiam, por favor, antes de mais, tudo quanto escreveu o Dr. Alfredo Bruto da Costa (1938-2016), doutorado com uma tese no domínio da pobreza, tendo sido, ainda, coordenador do estudo: "Um Olhar Sobre a Pobreza". Tive a oportunidade de escutá-lo em diversas ocasiões, uma delas, em 2010, aqui na Madeira. Escrevi sobre o seu testemunho:

"(...) "a causa da pobreza não está nos pobres", está nas mudanças sociais que são de natureza política. "Tudo o que seja combate à pobreza mantendo o padrão da desigualdade" não tem sentido, pois apenas mantém tranquila uma parte da consciência. Mais, ainda, a solução não está na CARIDADE. É uma palavra que não gosto. Respeito e muita consideração nutro pelas mais diversas instituições que combatem a pobreza, de dia e de noite, respeito o notável trabalho das paróquias que matam a fome e esbatem casos muito sérios de carências várias, mas entendo também que não é pela via da caridade que os problemas se resolvem. É pela via política, com deliberações que "ofereçam o peixe, mas também a cana", em simultâneo, como salientou o Professor Alfredo Bruto da Costa. A "caridade" deve ser o fim da linha, o ataque às margens, para quem mergulhou tão fundo que experimenta dificuldades em se erguer. A caridade não resolve, a prazo, problema algum, apenas se destina a esbater os erros dos políticos. O governo tem de se convencer que a "armadilha da pobreza é a armadilha das desigualdades" e, portanto, na esteira do que disse o Professor, não se pode cair no círculo vicioso de que "os pobres são pobres porque são pobres", antes "os pobres são pobres porque os ricos são ricos".

Dezoito meses para estudar o drama social na Madeira. Inexplicável este empurrão para a frente dos problemas que são de ontem e que são de hoje.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

O iminente desastre energético da Europa


Por
14 Novembro 2022

A ausência de uma estratégia europeia para a energia, que é o problema de fundo, vai manter-se por muitos anos, devido a divergências profundas entre França e Alemanha que ninguém tenta desbloquear.



Este título é roubado a um artigo recente de Jean Pisani-Ferry, um conceituado Professor de Economia na Universidade Sciences Po de Paris e na Hertie School de Berlim, publicado no Project Syndicate. Pisani-Ferry, economista francês, com vários livros e artigos sobre política económica e política europeia, foi fundador do Instituto Bruegel e seu presidente até 2013, além de Director de programa e ideias da primeira campanha presidencial de Emmanuel Macron (2017).

1. Se bem li o artigo, Pisani-Ferry manifesta uma profunda desilusão perante a incapacidade dos líderes europeus em se entenderem em matéria de energia. Ainda na cimeira europeia de 20/21, em Outubro, longas “conversas” mas decisões significativas, zero. Anunciaram “intensificar” as compras conjuntas de gás – tema, aliás, há muito proposto por Espanha –, decisão essa incapacitante pelas múltiplas reservas que contém, o que se traduziu até agora numa não concretização.

Refere que as desinteligências políticas na União Europeia são uma constante, mas aquando do Covid-19, França e Alemanha entenderam-se em três meses e, dois meses mais, os Estados-membros tinham acordado o sistema de empréstimos comuns e não houve problemas de maior com a compra conjunta das vacinas e a sua distribuição de forma equitativa, na base da população.

Quase nove meses após a invasão da Ucrânia, o problema arrasta-se e França e Alemanha “encarnam essa incapacidade de concordar com um regime comum”. Ora, nesta crise, “as divergências não se limitam apenas a declarações públicas e respostas possíveis. Os dados revelam enormes diferenças económicas substanciais entre os países-membros da UE”, refere Pisani-Ferry. Por exemplo, a inflação anualizada a Setembro último era de 6,2% em França e de 24,1% na Estónia.


Por outro lado, a Alemanha avançou com um envelope de 200 mil milhões de euros de apoio a famílias e empresas, decisão que chocou os parceiros comunitários. Esta medida é vista como uma quebra de solidariedade, porque desmesurada face à capacidade financeira dos outros países membros. Pisani-Ferry acrescenta que os comentadores têm razão: “esta decisão emite um mau sinal num mau momento, porque evidencia a ausência de uma estratégia comum”. Este pacote permite que os níveis de subsídios variem de menos de 1% do PIB na Suécia e Estónia até 7% na Alemanha.

Mas, em muitos outros domínios da energia, França e Alemanha estão de costas viradas. Na fixação do preço do gás para a produção de electricidade, por exemplo, a França apoia o chamado “regime ibérico”, em que o governo estabelece um limiar para o preço. A Alemanha opõe-se alegando que tal procedimento tornaria o gás mais caro para os industriais e geraria vencedores e vencidos nos Estados-membros.

Para Pisani-Ferry “estas respostas tão díspares não devem ser criticadas por uma questão de princípio, mas porque manifestamente desadequadas perante um choque comum”. Há um mercado de gás europeu aproximadamente unificado e, neste contexto, as respostas deveriam ser comuns, até porque as decisões de um Estado afectam quase em simultâneo os outros e quanto maior for o Estado, pior, acrescento.

A não definição de medidas comuns para as políticas energéticas acarreta pesados encargos financeiros, mina a desconfiança entre os Estados-membros e o risco do embargo de gás russo causar divisões profundas dentro da União Europeia (UE) permanece muito grave, admite Pisani-Ferry.

Vai este artigo à raiz do problema energético na Europa?

2. O entendimento entre os Estados-membros a que apela o artigo seria muito positivo para minorar a situação presente de descalabro dominante na Europa, onde cada país tenta “atacar” a realidade consoante pode. Mas não resolveria o problema de raiz.

A ausência de uma estratégia europeia para a energia, que é o problema de fundo, não é focada no artigo. Uma ausência que vai continuar por muitos anos, devido a divergências profundas entre França e Alemanha que ninguém tenta desbloquear, apesar das alterações substanciais entretanto determinadas pela guerra.

E, por outro lado, os principais dirigentes de órgãos comunitários pouco ou nada estão empenhados nessa situação, pois como escrevia há dias o “El Mundo/Madrid”, Ursula von der Leyen, Charles Michel e Joseph Borrell dedicam-se mais “a competir em fazer anúncios e representar a Europa no exterior”. O “Courrier Internacional” comenta esta notícia como uma saborosa análise de guerra do ego europeu.

3. Voltando à raiz da temática em análise, a ausência de uma estratégia para a energia na UE.

A transição energética que está na ordem do dia – estamos em plena COP27 que pouco vai acrescentar, até porque a Europa entra muito fragilizada com o estigma de que está a fazer tudo ao contrário do que defendeu na anterior (activação das centrais a carvão, hipótese de exploração do gás de xisto na Europa e ainda investimentos em gás natural fora da Europa) – tem como paradigma a substituição a prazo das energias de origem fóssil, que ainda representam uma quota muito elevada do consumo no mundo de hoje (75%), por não fósseis de baixa emissão de gás de efeito de estufa (GEE). É preciso um prazo robusto para que os investimentos se realizem (30/40 anos), período em que vão coexistindo os dois tipos de energia.

E isto com uma tripla finalidade: responder ao aumento de consumo de energia que o desenvolvimento social requer, descarbonizar as economias para responder à crise climática e, muito importante, permitir que a UE ganhe autonomia face às energias fósseis, de que tem fracos recursos, e aos outros espaços político-económicos. Ganhar uma posição própria num domínio ícone de soberania é fundamental para a consolidação da Europa como potência mundial. E sem esta transformação não adquire essa capacidade.

Constrangimentos culturais e interesses de grupos económicos estão a bloquear este caminho e a atrasar, com prejuízo, a elaboração de um plano à altura. Eis a grande questão. E aqui residem as grandes divergências que impedem, na Europa, bases energéticas comuns.

A solução consiste em articular energia nuclear e energias renováveis.

A França concilia e a Alemanha não concilia, estando o movimento dos verdes cindido. Há os que aceitam cada vez mais a nuclear, nomeadamente face aos progressos tecnológicos que têm reduzido o risco, e a ala que continua na sua condenação. Muita incoerência nisto, até porque a renovável eólica está a enfrentar sérios problemas de viabilidade. As renováveis per si, porque de produção intermitente, nunca deixarão de contar ou com as energias fósseis ou com a nuclear.

A energia nuclear, com os avanços tecnológicos e com a diversificação em curso, terá no futuro um papel cada vez mais importante, até porque os reactores, sobretudo os SMR, poderão vir a ter um papel crucial na dessalinização da água.

Há assim que avançar numa linha de fundo, reunindo energia nuclear e renováveis num mix que cada Estado-membro saberá qual o melhor para si, ou mesmo não investir na nuclear e importar quando necessária energia de outros países membros. Este é o caminho que, no actual contexto tecnológico, poderá dotar a Europa de grande independência no sector energético.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O fute



Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
11/11/2022
estatuadesal


Eu tinha estado no Cairo há uns vinte e tal anos e guardara uma recordação de uma cidade imensa, fervilhante, caótica, imunda e, porém, fascinante. Sempre me atraíram os lugares onde os povos, a história, a geografia e as civilizações se cruzaram para formarem esses cross­roads onde diversos mundos tiveram de abrir passagem uns aos outros porque estavam ali, no lugar por onde uns e outros tinham de ir e vir: o Egipto, a Turquia, Marrocos. Há vinte e tal anos a paragem no Cairo antes de descer ao Alto Egipto tinha como consolação para o tamanho desgaste que isso implicava a inevitável visita às pirâmides, ao Museu do Cairo e às mesquitas mais importantes, sempre na expectativa do outro Egipto desafogado do deserto, do Nilo e dos oásis, com templos ao longo do deserto. Lembro-me de que era Maio e estavam 42 graus à sombra e que eu tirei o lenço que levava ao pescoço para limpar uma gota de suor que escorria do rosto de âmbar de Nefertiti. E que mais tarde ela retribuiria o meu gesto no Museu do Cairo com uma noite de luar entre as colunas da ilha de Philae, um longo olhar ao Nilo, ao pôr-do-sol, no cais de Luxor ou uma inesquecível limonada no terraço do Hotel Old Cataract, em Assuão. Mas tudo isso aconteceu antes. Agora, de regresso ao Cairo, dou-me conta de que não houve salvação possível. Esta é uma cidade impossível.



Hoje o Cairo são 20 milhões de habitantes: 10 milhões no centro e o resto nas periferias, das quais a mais importante é El Giza (Gizé), separada das pirâmides por uma extensa cerca de barras de ferro, para não as abocanhar. Tirando o centro em volta da Praça Tahrir, onde ficam os grandes hotéis e o velho Museu do Cairo (o novo tem visto a sua inauguração sucessivamente adia­da), quase todo o resto da cidade é um aglomerado caótico de casas e prédios clandestinos que cresceram à revelia de qualquer planeamento ou projecto arquitectónico: onde se autorizaram cinco andares, construíram-se sete; onde se autorizaram sete, construíram-se nove, e, como resultado, quase todos estão a desfazer-se aos bocados, mostrando interiores esventrados e paredes em vias de desabamento. E como o IMI só é devido após o licenciamento e a conclusão da obra, nenhum prédio está acabado, todos permanecem em tijolo sem reboco nem pintura ou telhado. Ao nível do piso térreo, como em todo o mundo árabe, a rua é integralmente preenchida pelo comércio de tudo e mais alguma coisa, com destaque para as inúmeras oficinas de pneus e jantes de automóveis. O que logo se percebe quando se mergulha no célebre trânsito do Cairo, que eu, pessoalmente, só consigo comparar ao de Bombaim ou Deli.

Tudo o que se diga sobre o trânsito do Cairo fica muito aquém da imaginação e da capacidade de descrição. Mas talvez se possa começar por enunciar as regras do jogo: mesmo nas avenidas mais largas, não há faixas de rodagem traçadas no piso, pelo que cada um inventa as suas; não há rotundas; não há semáforos; não há sinaleiros; não há lugares marcados para estacionamento; não há controles de velocidade, e, coisa extraordinária, não há passagens de peões, os quais atravessam as ruas e avenidas entre os carros e as motas, arriscando a vida a cada metro. Finalmente, todos — automobilistas, motociclistas e peões — estão ocupados ao telemóvel cada minuto do santo dia (cheguei a ver motociclistas com as duas mãos no volante e a cabeça inclinada para encaixar o telemóvel entre o ombro e a orelha, e todos, claro, sem capacete). Como resultado disto, uma densa nuvem castanho-avermelhada de mortal poluição paira permanentemente sobre a cidade e os seus infelizes milhões de sobreviventes. Talvez haja cidades que não têm solução, sobretudo quando à sobrepopulação se acrescenta a miséria e absoluta degradação das condições de vida e de habitação. E talvez o Cairo seja uma delas. E talvez também seja isso que levou o Presidente-general Abdel Fattah el-Sisi a congeminar uma solução radical. Grandiosa e, segundo os críticos, delirante e ruinosa: uma nova capital.

Sisi chegou ao poder por golpe militar em 2014, depondo o radicalismo islâmico do Presidente eleito Mohamed Morsi e, de caminho, sufocando também as aspirações democráticas da população, que, três anos antes e durante 18 heróicos dias, tinha levado a Primavera Árabe à Praça Tahrir e às ruas do Cairo. Em troca de uma repressão sem contemplações, ele prometeu progresso, desenvolvimento, modernidade. Começou por alargar o Canal do Suez, a segunda maior fonte de receitas do Egipto a seguir ao turismo. Nisso gastou oito biliões de dólares, mas as receitas esperadas foram metade do previsto. Então, congeminou outro plano, digno de um faraó dos tempos modernos: uma “New Cairo”, ou “Nova Capital Administrativa”, ou “5th Setlement”, até se fixar no nome definitivo e oficial: “Wedian”, o plural da palavra árabe wadi, que quer dizer um vale no deserto que retém água das raras chuvas.

Mas o primeiro problema da Wedian de Sisi é exactamente a água. Fica a 45 km a leste do Cairo e mais longe ainda do delta do Nilo, a única fonte de água mais próxima e já bastante explorada. Não obstante, a New Cairo terá um rio artificial, lagos e mais lagos, milhares de árvores, que estão a ser plantadas em pleno deserto, e um parque que terá o dobro do tamanho do Central Park, em Nova Iorque. Porque tudo está pensado para esmagar estatísticas: a superfície total de Wedian é de 714 km2, igual a Singapura e quatro vezes Washington, D.C.; terá 700 hospitais e clínicas e duas mil escolas, num país tão carenciado de uma e outra coisa; 1200 mesquitas e igrejas e um complexo militar, o Octógono, com quatro vezes o tamanho do Pentágono; o ­maior arranha-céus de África, e, cereja no topo do bolo, 40 mil camas de hotel, obviamente destinadas às moscas, pois não se alcança que turista queira visitar o Cairo para se instalar a 45 minutos do Nilo e da cidade antiga, num arranha-céus com vista para torres e deserto. Todo este imenso delírio, cujas obras se iniciaram em 2015 e estão agora oficialmente em fase de conclusão, está enxameado de urbanizações e bairros com nomes tão apelativos como Utopia, Belle Vie ou Palmar Hills, e por todos os lados pululam centros comerciais, malls e stands de todas as marcas de automóveis, pois aqui não há outro meio de transporte acessível e de futuro que não esse. Para lá, Sisi vai mudar também todo o poder executivo, legislativo e administrativo — segundo os críticos, para não ter de enfrentar novos embaraços como manifestações na Praça Tahrir. E, obviamente, também lá terá o seu imenso palácio, digno de um faraó, e cujas críticas rebateu com toda a naturalidade: “Qual é o mal de ter palácios? Eles são de todos os egípcios!”

O mal, está bem de ver, são os custos do delírio do general-Presidente. Na última década, o Egipto multiplicou por quatro a sua dívida externa e recebeu 20 biliões de dólares de ajudas do FMI, estando já a pedir novo auxílio. Mas o sonho de Sisi vai custar, em números oficiais, mais 60 biliões — a serem custeados pelos amigos do Golfo, pelos chineses e pela emissão de mais dívida em condições que vão onerar o futuro do país por décadas. Entretanto, com a construção da nova capital, não só o Governo abandona o Cairo à sua sorte — procedendo, por via administrativo-urbanística, à maior separação de classes da idade moderna — como não se percebe como irá conseguir povoar com sete milhões de pessoas a nova capital. De facto, num país onde o rendimento médio per capita é de 220 dólares por mês e a taxa de juro 12% ao ano, quem conseguirá ir viver numa cidade onde o apartamento mais barato custa 80 mil dólares e a renda de um T2 vai de 400 a dois mil dólares por mês?

O território do Egipto é formado por 95% de deserto e a sua única fonte de vida é o Nilo, que percorre 3500 km dentro do Egipto até à foz. Ao longo das suas margens e à vista dele, no Alto Egipto, os antigos faraós construíam, há milhares de anos e com trabalho escravo, templos que, desenterrados da areia, irão permanecer para a eternidade: deles ficou o nome dos que os mandaram fazer, não a história dos que viveram e morreram na miséria para que eles fossem feitos. E em 969 d.C. os otomanos fundaram, mais acima, a cidade que seria a sua capital: o Cairo.

Hoje, um general que também aspira à eternidade constrói uma nova capital na areia, um templo ao luxo, contrastando com a miséria do povo. E nos cartazes de rua sorri, esperando que o povo lhe agradeça. Enquanto, por estes dias, recebe nas praias de Sharm el-Sheikh os dirigentes do mundo inteiro na COP27, para, todos juntos, fingirem, mais uma vez, que se preocupam com o futuro dos povos que governam e a salvação do planeta.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Entre todas as tempestades


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
04/11/2022
estatuadesal


No próximo dia 20 começa no Catar o 22º Campeonato do Mundo de Futebol, envolvendo 32 selecções, entre as quais a nossa. Antes que as nossas varandas se cubram de bandeirinhas nacio­nais e as crianças se vistam de camisolas do Ronaldo, antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial. Não sei se a nossa Federação de Futebol fez parte das que votaram contra o Mundial no Catar, das que votaram em consciência a favor ou daquelas cujos dirigentes se deixaram comprar para votar a favor. Espero bem que não tenha sido a última hipótese, mas todas são possíveis, pois só através da corrupção do colégio eleitoral — em grande parte provada — foi possível atribuir o Mundial a um país que, por razões climáticas, é forçado a organizá-lo pela primeira vez no Outono do Hemisfério Norte, forçando a alteração dos calendários estabelecidos na Europa para as provas nacionais e internacionais. Um país cujos nacionais se estão nas tintas para o futebol e cuja selecção (classificada no ranking da FIFA em 102º lugar e com o recurso a 17 estrangeiros em 23 jogadores) jamais conseguiria, não sendo anfitriã, apurar-se para um Mundial.



Em 24 de Outubro, o dirigente vitalício do Catar, o emir Tamin bin Hamad Al Thani, explodiu de indignação com as “críticas feitas de invenções e duplos padrões” dirigidas ao seu país e “sem precedentes em relação a qualquer outro país organizador”. E com razão. Além da questão da corrupção na escolha do Catar, da questão do clima e das nulas credenciais do país em matéria futebolística, e apesar de toda a cobertura dada pela FIFA, o Catar tem sido alvo de um rol de críticas relativas à forma como conseguiu pôr de pé este Mundial e, designadamente, construir de raiz 10 estádios, que, a seguir ao evento, não servirão para nada, num país em que não há memória de um jogo de futebol alguma vez ter tido mais do que mil espectadores num estádio. Mas, em contrapartida, o Catar tem muito, muito dinheiro: tem, por exemplo, a maior reserva mundial de gás natural, agora tão precioso. E consta que o emir, ao contrário dos seus súbditos, gosta muito de futebol, tanto que, através da Qatar Sports Investments, além de patrocinar a Roma e o Bayern de Munique, é dono do PSG — onde, troçando das regras do fair-play da FIFA e UEFA, que só se aplicam a pobres, juntou um trio atacante composto por Mbappé, Neymar e Messi, que custam em salários, sem contar com direitos de imagem, mais de €250 milhões por ano. Mas para organizar este Mundial, que o extasiado presidente da FIFA, Gianni Infantino, afirma que será o melhor de sempre, o emir não olhou a despesas: foram €330 mil milhões de custos, o equivalente a toda a riqueza produzida em Portugal durante um ano inteiro. Só que Portugal tem 10 milhões e meio de habitantes e o Catar tem três milhões, dos quais só 320 mil são catarianos, gozando de todos os direitos de cidadania, como o de não pagar impostos. Todos os restantes são emigrantes asiáticos, dos quais 72% homens trabalhando na construção civil e 28% mulheres trabalhando como empregadas domésticas. Claro que foram estes homens que o regime empregou para construir os estádios e tudo o mais, trabalhando oito a 12 horas por dia, seis dias por semana, debaixo de temperaturas extremas e em condições iguais aos que nós contratamos para as estufas de Odemira ou os olivais e amendoais do Alqueva: entregues à protecção de um kafala, com o passaporte retido, amontoados como gado, sem quaisquer direitos sindicais ou sociais. 6500 deles morreram a construir os 10 estádios onde as vedetas e os seleccionadores pagos a peso de ouro e especializados na fuga aos impostos se vão exibir para o mundo inteiro, não se esquecendo de cantar os respectivos hinos a plenos pulmões para que o povo em casa ou nas bancadas pense que eles se batem pela pátria.

Antes que as televisões, os anunciantes e o Presidente Marcelo comecem a vomitar o insuportável discurso patrioteiro sempre associado aos feitos da selecção, convém pensar que não é nenhuma honra, antes uma vergonha, participar neste Mundial


Pois, o emir está zangado com tudo isto. O emir não percebe como é que as melhores empresas de consultadoria de imagem inglesas e europeias ou vedetas como Xavi Hernández ou o pateta do David Beckham, que só sabia marcar cantos e variar de penteados, não conseguiram mostrar ao mundo como o Catar — que até sedia uma televisão, a Al Jazeera, tantas vezes melhor do que as grandes marcas internacionais — não era aquilo que um relatório da ONU de há um par de anos classificava como “uma sociedade de castas de organização medieval”. É verdade que o próprio Governo do emir não ajudou muito quando começou a divulgar conselhos ao milhão de visitantes previstos para o Mundial de que deveriam “respeitar os costumes do país” e aos milhares de jornalistas que irão cobrir o evento avisos de que não poderão entrevistar pessoas na rua ou em suas casas, em especial os trabalhadores estrangeiros, ou entrar em edifícios públicos. Acontece que entre os costumes do país está a proibição da homossexualidade, que lá é crime, e o Governo fez saber que tolerará a sua entrada (como não?) mas não tolerará as suas manifestações. Quanto às mulheres, estão autorizadas a conduzir automóveis mas não se aconselha que saiam à rua sozinhas: Alá não gosta e, além disso, o Catar é suspeito de tolerar, sim, simpatizantes da Irmandade Islâmica e do Daesh.

Eis, a traços largos, o retrato do país que albergará o próximo Mundial de Futebol. Mas o futebol não tem culpa nenhuma disto. Algures, em estádios do antigamente, como o La Bombonera, em Buenos Aires, onde Diego Armando Maradona começou a elevar-se aos céus ao serviço do Boca Juniors, ainda hoje a multidão enche o estádio sem precisar de ir ao engano, porque aí ainda o futebol é genuíno. Feito de arte, geometria, dor e alegria. A toda a volta, onde estão os ídolos que as televisões e os jornais promovem e as massas idolatram, há toda uma teia de sanguessugas — na FIFA, na UEFA, nas federações nacionais, nos grandes clubes — que explora a “festa do povo” em seu benefício próprio e que de há muito perverteu tudo. O jogo agora chama-se dinheiro. E a cobiça é tanta que, depois de a UEFA ter inventado um outro Campeonato da Europa de Selecções a que chama Taça das Nações e que alterna com aquele a cada dois anos, é a vez de a FIFA querer também um Mundial de dois em dois anos e de os grandes clubes da Europa congeminarem outra Champion’s League só para eles e com lugar cativo para eles todos os anos. Tudo isto, claro, é feito à custa de uma overdose de jogos absurda e de uma exploração extrema do esforço dos jogadores. Mas os grandes jogadores aceitam porque também a eles só uma coisa verdadeiramente lhes interessa: o dinheiro. Já alguém viu um jogador de futebol, nas imensas viagens que faz ou nos intermináveis estágios em que tem de permanecer, ocupado a ler um livro ou um jornal que não seja desportivo? Já alguém o viu de visita a um museu, um monumento, umas ruínas históricas? Não, ocupam todos os tempos livres a jogar futebol na PlayStation, a postar imagens das férias no Instagram ou a debitar banalidades para os seguidores no Facebook.

E tudo isto, claro, alimenta-se do terceiro factor: o público. No dia em que não houver público nos estádios o futebol definhará até morrer, como se viu durante a covid. E é uma pena se o que nos leva ao estádio, seja tanto a beleza do jogo como a descarga de adrenalina e tudo o mais que precisamos de descarregar e que um jogo de futebol permite como poucas coisas mais, não seja também uma oportunidade para descarregar contra todo o universo sujo escondido por detrás do jogo.

Se os espectadores soubessem (se os jornalistas desportivos lhes contassem...) o luxo em que vivem e viajam os dirigentes dos clubes, das organizações de futebol, das federações, os agentes que chulam os clubes, os da UEFA e da FIFA, a riqueza que acumulam enquanto eles, espectadores, só gastam o seu dinheiro a manter o negócio milionário dos outros, talvez as coisas fossem diferentes.

Se a multidão que enche os estádios com o seu amor à camisola (o único que é genuí­no) tivesse o mesmo espírito crítico para com jogadores e dirigentes — em matéria de corrupção, de fiscalidade, de negociatas — que tem para com os políticos, talvez o futebol fosse menos indecente. Ou, ao menos, mais envergonhado. Não estou a ver as opiniões públicas a engolir um prémio das Nações Unidas para os direitos humanos atribuído ao Catar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O golpe de Estado continuado


Por
Boaventura Sousa Santos, 
in Público, 
31/10/2022
estatuadesal


A nova fase será, provavelmente, a contestação dos resultados; e depois, a utilização do crime organizado e do poder legislativo, para intimidar e criar instabilidade, com ameaça de impeachment. Neste domingo tornou-se evidente que está em curso um golpe de Estado no Brasil. É um golpe de tipo novo, cujo curso poderá não ser substancialmente afectado pelo resultado das eleições, ainda que a vitória de Lula da Silva certamente afectará o seu ritmo.





É um golpe que começou a ser posto em movimento em 2014 com a contestação dos resultados das eleições presidenciais ganhas pela presidente Dilma Rousseff; prosseguiu com o impeachment da presidente Rousseff em 2016; com a prisão ilegal do ex-presidente Lula da Silva em 2018 de modo a impedi-lo de concorrer às eleições que foram ganhas pelo presidente Bolsonaro, beneficiário principal do golpe de Estado na sua fase actual.

Com a eleição de Bolsonaro encerrou-se a primeira fase do golpe e iniciou-se uma segunda. Tal como Adolf Hitler em 1932, Bolsonaro tornou claro desde o primeiro momento que se servira da democracia exclusivamente para chegar ao poder e que, uma vez atingido este objetivo, exerceria o poder com o exclusivo objetivo de a destruir. Nesta segunda fase, o golpe assumiu a forma de esvaziamento lento da institucionalidade e da cultura política democráticas, cujos principais componentes foram os seguintes.

No domínio da institucionalidade: exploração de todas as debilidades do sistema político brasileiro, nomeadamente do poder legislativo, aprofundando a mercantilização da política, a compra e venda de votos dos representantes do povo no período entre eleições e a compra e venda de votos de eleitores durante os períodos eleitorais; a cumplicidade do sistema judiciário conservador incapaz de imaginar a igualdade dos cidadãos perante a lei e habituado a conviver tanto com o primado do direito como com o primado da ilegalidade, dependendo dos interesses em causa; a captura das forças armadas através da distribuição maciça de cargos ministeriais e administrativos.

No domínio da cultura política democrática: a apologia da ditadura e dos seus métodos repressivos, incluindo a tortura; utilização maciça das redes sociais para divulgar notícias falsas e promover a cultura do ódio e uma ideologia de bem-estar esvaziada de outro conteúdo que não o do mal-estar ou sofrimento infligido ao “outro” construído como inimigo; a capilarização no âmago do tecido social do imperialismo religioso conservador dos EUA (evangelismo neopentecostal) em vigor desde 1969 como preferencial política contra-insurgente.

Esta fase concluiu-se no final da primeira volta das eleições presidenciais em 2 de outubro passado. A partir daí, entrou numa fase nova assente no ataque frontal ao núcleo duro da democracia liberal, o processo eleitoral e as instituições encarregadas de garantir o seu decurso normal. Esta fase é qualitativamente nova em razão de dois factores.

Ver vídeo aqui.

Em primeiro lugar, tornou-se mais clara a internacionalização do ataque à democracia brasileira por via de organizações de extrema-direita globais originárias e financiadas pela plutocracia norte-americana. O Brasil transformou-se no laboratório da extrema-direita global; aí se testa a vitalidade do projecto fascista global em que o neoliberalismo joga um novo (último?) fôlego. O objetivo principal é a eleição de Donald Trump em 2024. Informações fidedignas dão-nos conta de que as empresas de desinformação e de manipulação eleitoral ligadas ao notório fascista Steve Bannon estiveram instaladas em dois andares de uma das ruas principais de São Paulo donde dirigiram as operações.


Nesta fase eleitoral, as duas estratégias principais foram as seguintes. A primeira foi a intimidação para impedir o “voto errado” e os benefícios a troco do “voto certo” oferecido pelo baixo empresariado e por políticos locais. A segunda, há muito utilizada pelas forças conservadoras nos EUA, sob o nome de voter suppression, foi a supressão do voto. Tratou-se de um conjunto de medidas excecionais, sempre sob o verniz da normalidade legal, destinadas a impedir os grupos sociais mais inclinados a votar no candidato oposto aos golpistas de exercer o seu direito de voto: bloqueios de estradas, excesso de zelo na fiscalização de veículos que transportam potenciais votantes, intimidação de modo a provocar a desistência, suspensão de transportes gratuitos decretados pela lei eleitoral para promover o exercício do direito de voto aos mais pobres.

E agora, Brasil? A democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. Para isso contribuiu o notável e destemido envolvimento dos democratas brasileiros que viram no seu voto a prova de uma vida minimamente digna, a afirmação da sua auto-estima civilizatória, o princípio activo da energia democrática para os tempos difíceis que se avizinham. Contribuiu também a firmeza das instituições da justiça eleitoral, no meio de pressões, de desautorizações e de intimidações de todo o tipo. Mas seria estultícia irresponsável pensar que o processo golpista terminou. Não terminou e vai entrar numa nova fase porque as condições e as forças nacionais e internacionais que o reclamam desde 2014 continuam vigentes e só se fortaleceram nestes anos mais recentes.

O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas, ora mais institucionais com a mobilização desviante do poder legislativo para criar uma situação de permanente ingovernabilidade, nomeadamente com a ameaça de impeachment do governo eleito e dos quadros superiores do sistema judicial.

Embora o objetivo de médio prazo dos golpistas seja impedir que o Presidente Lula da Silva termine o seu mandato, o processo do golpe continuará e só será verdadeiramente neutralizado quando os democratas brasileiros se derem conta de que a vulnerabilidade da democracia é em boa medida auto-infligida, pela arrogância em pretender ser a única condição para a legitimidade do poder em vez de assumir que a sua legitimidade estará sempre à beira do colapso numa sociedade socioeconómica, histórica, racial e sexualmente muito injusta.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A (nova) Democracia de audiências

Por
Miguel Alexandre Palma Costa

1. Muitos dizem que foi na afamada Atenas, há cerca de 2600 anos, na altura uma pequenina cidade mediterrânica, que se forjou uma maneira de governar completamente nova e inovadora. Nas aulas da disciplina de História ouvi (e aprendi) que um dos maiores legados que nos foi deixado pelos gregos (atenienses), foi a democracia (dēmokratia), um sistema (modelo) político que só no século XX se generalizou e que agora se encontra em perigo/crise, asfixiado, decadência ou declínio.




Parece que a democracia ateniense começou por ser edificada por Clístenes, quando foi instituída a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, que deste modo permitia a todos a participação nas decisões e cargos políticos da polis. Entretanto, há uma outra figura relevante na Atenas do século Vº a.C., um militar e político a quem é atribuída a consolidação da democracia grega – assegurando a igualdade entre os cidadãos – e a construção do célebre Parténon: Péricles (495-429 a.C.). Durante o período de vigência da dēmokratia grega, todos os cidadãos tinham direito a uma remuneração pelo exercício de cargos políticos e pela participação na Eclésia. A Eclésia era uma assembleia onde todos os cidadãos atenienses, maiores de 18 anos e com o serviço militar cumprido, podiam discutir os problemas e participar (e votar) nas decisões da sua cidade-estado (polis). Vigorava, então, uma democracia direta, pois os cidadãos participavam diretamente nas discussões e decisões políticas, em vez de votarem nos seus representantes, como acontece nos dias de hoje nas modernas e liberais democracias representativas.

A velha democracia ateniense baseava-se, assim, na participação direta de todos os cidadãos através da Eclésia, mas esta também tinha algumas limitações e/ou restrições: por exemplo, as mulheres, os metecos (estrangeiros residentes em Atenas) e os escravos não eram considerados cidadãos, e por isso não tinham assegurados os direitos políticos destes. Além disto, a liberdade de expressão era limitada e algumas críticas feitas aos governantes não eram toleradas, havendo casos em que existiram condenações ao ostracismo (exílio de 10 anos) ou à morte (por exemplo, o caso de Sócrates). Apesar destas insuficiências, o novo regime político foi inovador, vanguardista, sem paralelo no seu tempo e constitui uma das principais heranças da cultura e política europeia, melhor, ocidental.

Ora, esta é a versão corrente e romanceada da invenção da democracia – o “mito das origens” – que, no começo, pretendia significar um ‘autogoverno por e entre iguais’, os cidadãos livres (e orgulhosos) de Atenas que em assembleias mensais procuram resolver os problemas e desafios da sua comunidade, ao mesmo tempo que celebravam os seus deuses em grandes festas sazonais, num avançado estado de embriaguez, ostentado belas grinaldas de flores. Seguramente, a democracia, que subverteu a ordem até aí instituída, não surgiu de um dia para o outro e desta forma linear e pacífica. Ela nasceu da resistência à tirania, da coragem e vontade de alguns homens que viram punhais e xiphos (espadas hoplitas) a trespassar suas entranhas e gargantas. As prudentes fontes históricas dizem-nos que a democracia é filha também de um repositório de crimes, de uma verdade incómoda, de intenções e mãos pouco “límpidas” que empregaram alguns meios pouco (ou mesmo nada) democráticos, de assassinatos, em suma, de um rol de acontecimentos sinistros e extraordinários que a elevaram hoje ao estatuto de transcendente e universal.

2. Diz a Constituição da República Portuguesa (CRP), no artigo 2.º, que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular (…)” e que visa a “realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. No entanto, e infelizmente, o estado atual da nossa democracia seguiu um rumo bem diferente ao prescrito na redação da lei suprema (e intento do legislador), divergente da velha prática direta (participativa) da democracia de assembleia ateniense, assim como da sua “filha bastarda”, reflexo da ascensão da burguesia e do liberalismo, a democracia representativa na qual o povo só pode falar e só pode atuar através dos seus representantes. Em Portugal (e noutros países), vivemos hoje numa “nova” democracia de audiências, democracia onde a política se tornou num espetáculo mediático, uma forma de “entretenimento” onde as distintas (e emergentes) personalidades da política procuram beneficiar, melhor, capitalizar para si toda uma espécie de ganhos em termos de visibilidade, notoriedade, prestígio e de audiência (quase idêntica à das contemporâneas estrelas do mundo do desporto, música ou cinema). Se, por um lado, o cidadão comum (eleitor) está cada vez menos interessado (e dedicado) em seguir a atualidade política – através dos media tradicionais ou da leitura de artigos ou obras da especialidade –, por outro, novos géneros televisivos (debates, talk-shows, entrevistas não políticas, programas de humor ou de sátira política…) ajudam a captar audiências de espectadores pouco politizados, mas que se deixam ‘levemente’ persuadir pelos apelos (e argumentos) políticos de quem com eles colabora. Segundo a cientista política e Professora Conceição Pequito, vivemos agora numa “democracia de audiência, feita de comunicação social, sondagens e líderes, em que há uma espécie de sondocracia, de videocracia e de lidercracia”. Mais: os cidadãos deixaram de se rever e reconhecer nos atuais partidos políticos (cada vez mais desideologizados) – apesar de mais de duas dezenas estarem inscritos no Tribunal Constitucional –, pois estes funcionam de forma oligárquica e sonegaram a soberania popular, que lhes é delegada pelo voto e que deveriam efetivamente representar.

Numa sociedade (e conjuntura) em que os cidadãos estão bastante afastados dos partidos, em que o povo não se sente por eles representado, onde quase não há sociedade civil e pensamento crítico; onde as diferentes formas de participação política – que deveriam reforçar a democracia – são praticamente inexistentes; onde o referendo popular é recente e pouco recetivo por parte de quem governa; em suma, onde a “qualidade” da democracia só interessa a uma diminuída minoria, então todos percebemos que a via para o processo de celebrização da política (e personalização), que fez com que os nossos políticos se tornassem em celebridades, foi/era não só o caminho mais fácil, como inevitável. No espaço de pouco mais de 40 anos passamos, então, de uma democracia de partidos (que apresentavam e debatiam programas eleitorais, que agora ninguém já lê ou conhece) para uma democracia de audiências, na qual o meio televisivo é preponderante e faz do ato de governar um estilo de vida apetecível e também um produto de consumo que rivaliza com outros na esfera da comunicação e do marketing.

Recentemente, um jornalista bem conhecido da nossa praça regional disse que “o ridículo tem muita exposição e muita audiência”. De facto, os políticos percebem muito bem tudo isto, assim como sabem que se planeiam ter futuro nesta área precisam de ter admiráveis competências comunicativas (e um grande à-vontade), mesmo que aquilo que digam sejam mentiras ou superficialidades. O que interessa é o líder, dirigente, ministro ou secretário de estado (ou promissor deputado) ter palco na TV! Os partidos, as suas ideologias, os programas eleitorais, estatutos, declarações de princípios ou regulamentos já não servem para (quase) nada. António Costa, uma celebridade da política e televisiva, compreendeu na perfeição como tudo isto funciona e por isso, num domingo, para obter uma boa quota de audiências, anunciou ao país um novo “Acordo de médio prazo para a melhoria dos rendimentos, dos salários e da competitividade”, até 2026. Tudo “boas” notícias para os apáticos espectadores! Porém, com esta mensagem – e com uma maioria absoluta na Assembleia da República – esclareceu que sobre estas matérias não irá dialogar com os restantes partidos da oposição. Perante isto, certos analistas políticos do regime dirão: “é a (nova) democracia a funcionar!”.