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sexta-feira, 26 de abril de 2024

25 de Abril - três notas



1. Miguel Sousa Tavares considerou que o Senhor Presidente da República está "fora de controlo" e com "incontinência verbal", tornando-se um "problema" para o país. Concordo. Nos últimos tempos assistimos a situações que não são fáceis de aceitar, quando se trata da principal referência do País: as declarações sobre o seu filho Nuno, sobre a Procuradora Geral da República, sobre o Primeiro-Ministro, sobre o ex-Primeiro-Ministro e, entre outras, sobre um acerto de contas com as ex-colónias portuguesas. Junta-se a isto aquele injustificável parágrafo do comunicado do MP que fez cair o governo e a complexa instabilidade daí gerada. Situações que criaram um generalizado desagrado quer entre os cidadãos quer do ponto de vista político. Um país a braços com tantos problemas por resolver e com o debate político tendencialmente extremado, ao Senhor presidente da República pede-se recato, bom senso e um extremo cuidado com o que diz.

2. O 25 de Abril não tem dono. Nem aos militares que o realizaram. Pertence ao Povo e a sua comemoração é do povo para o povo. Ora bem, que raio de mania esta que sempre que alguma coisa acontece, elementos do governo ou das autarquias têm de subir ao palco para falar ao Povo ali presente? É na "festa" da cebola, do pero, do limão, da castanha, da banana, da uva ou da lapa, eu sei lá... Não há encontro que um qualquer suba ao palco para ali "botar faladura". No espectáculo comemorativo do 25 de Abril, desta feita o Povo não gostou e, por isso, apupou! Escutei com desagrado a assobiadela, mas não deixo de admitir que foi a resposta a uma nova investida política, ainda por cima em um momento onde não deveria existir uma certa "apropriação" de uma data que não é de alguns... é de todos! Parem com essa obsessão, porque o Povo já começou a dizer que não aprecia.



3. Na passagem dos 50 anos de Abril de 1974, a Região deve um pedido de desculpas ao Padre José Martins Júnior. A Região e a Diocese, melhor dizendo. Durante, salvo erro, 42 anos, ele esteve suspenso "ad divinis" através de um maquiavélico processo perpetrado através dessa "santíssima" união da Igreja (Bispos Santana, Teodoro e Carrilho) e os sucessivos governos. Não foi julgado em Tribunal Eclesiástico por qualquer acto atentatório dos seus deveres, tampouco, julgado e condenado por qualquer "crime" cometido. De onde se conclui a perversidade política de uns e de outros. Repito o que há cinco anos aqui deixei: "(...) Eles conhecem todo o enredo montado, os interesses políticos que estiveram em jogo, as manobras de bastidores no sentido de abafar uma voz verdadeira e dissonante, perigosa para os desígnios do poder absoluto. Inventaram, conflituaram e espezinharam um Homem que utilizou a Palavra no sentido da construção de uma sociedade de justiça social em todos os quadrantes. Não pregou a fé e a caridade, mas as causas e os valores para uma vida feliz com direitos e deveres (...)". Como ele bem disse "(...) Ninguém pode servir a dois Senhores. Ou se serve a Cristo ou se serve o Poder (...)".

Neste 25 de Abril teria sido o momento de assumirem um "mea culpa". Andaram quarenta anos a triturá-lo, a mantê-lo em lume brando, mesmo sem qualquer PIDE, contra a vontade do povo da Ribeira Seca, perseguindo um Homem culto, de uma enorme sensibilidade e humanidade. Tomara que muitos líderes seguissem o seu exemplo, o exemplo de um Homem cujo "pecado" foi o de se ter colocado ao lado do Povo, seguindo o ideário do 25 de Abril.

Já que o poder político nunca o fará, Bispos Teodoro e Carrilho peçam perdão!

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Presidente da Comissão Europeia em mar revolto


Por 
João Abel de Freitas, 
Economista

Von der Leyen está metida num processo de contornos claramente duvidosos, de contratação pela UE de um seu correligionário de partido, o eurodeputado Markus Pieper, a quem atribuiu um alto cargo bem remunerado.



Entre 6 e 9 de Junho, vão ser eleitos os 720 deputados do Parlamento Europeu. A presidente da Comissão europeia, Ursula von der Leyen, manifestou vontade, junto do seu grupo parlamentar europeu –PPE –, de continuar a liderar a Comissão por mais cinco anos.

Até aqui, tudo legítimo. Porém, face a acontecimentos vários e de natureza diversa será que reúne condições para o cargo?

Notas retidas da comunicação social para um melhor juízo

1. Ursula von der Leyen deveria esforçar-se por apresentar um núcleo de ideias fortes de credibilização dessa vontade e uma análise crítica sobre os domínios que correram bem e menos bem no seu primeiro mandato. Muitos foram os que correram menos bem na política, gestão e estratégia, devido ao seu apego sectário aos interesses económicos e políticos do seu país de origem, a Alemanha, com relevo para a energia e à sua manifesta dependência acrítica dos EUA, designadamente, a aceitação sistemática de sanções económicas desadequadas aos interesses europeus, mas benéficas aos EUA.

Von der Leyen apresentou-se na Roménia, em Março último, na reunião do PPE, onde a sua candidatura foi apresentada e aclamada, com um discurso vazio e, quando uma ou outra ideia surgia era de colagem à direita radical (grupo Meloni) como o tema da imigração, onde até o PSD português se demarcou dessa posição.

2. Acontece que, nos últimos tempos e, sobretudo, nos últimos meses, a vida de Von der Leyen, na Comissão, não anda a correr-lhe de feição.

Para além do “Pfizergate”, suspeitas de corrupção e conflito de interesses em torno da compra de vacinas, aquando da Covid-19, situação em investigação na Procuradoria Europeia, surge o “Piepergate” a ensombrar ainda mais a sua imagem. É motivo para referir o velho ditado: “uma desgraça nunca vem só”!

A presidente Von der Leyen está metida num novo processo de contornos claramente duvidosos (há quem denomine “escândalo”), de contratação pela UE de um seu correligionário de partido (CDU alemã), o eurodeputado Markus Pieper, a quem atribuiu um alto cargo bem remunerado – o de representante da Comissão Europeia para as Pequenas e Médias Empresas (PME). O processo, conhecido na comunicação social como “caso Piepergate”, tem sido comentado em vários jornais, incluindo o “Expresso” (10 abril 2024).

Markus Pieper foi o escolhido, apesar de haver outras duas candidaturas, com melhor avaliação para o cargo, nas três comissões de selecção, sendo uma de consultores externos. A diferença de pontuação não era assim tão somenos, mas da ordem de 30%, segundo revela “La Matinale Européenne”.

Markus Pieper não era um eurodeputado qualquer, mas o secretário da delegação da CDU alemã no PE, um político de peso com influência no seio da democracia-cristã alemã e no próprio PPE.

3. As entorses de processo são de elevada monta e pouco se compreende a cooperação extrema de Ursula von der Leyen, a não ser lendo os jornais. E, aqui, podemos evoluir para uma “teoria de compra” de elevado cargo político bem remunerado.

Enquadramento mínimo do processo

4. A criação do cargo foi anunciada por Von der Leyen, no seu discurso institucional da União, em Setembro de 2023. Poucos dias depois, é aberto concurso, fixando-se o dia 25 de Outubro como data limite para a entrega de candidaturas.

Apresentam-se: Markus Pieper, eurodeputado da CDU alemã, Martina Dlabajorá, eurodeputada europeia liberal da República Checa e Anna Stellinger, directora geral adjunta da Confederação das empresas suecas, encarregada dos assuntos internacionais e europeus.

Depois do crivo nas comissões de selecção, as três candidaturas são convidadas para uma outra entrevista com Von der Leyen, o comissário Thierry Breton, responsável pelas PME e Johannes Hahn (comissário da Administração), equipa escolhida pela presidente da Comissão.

Na base da entrevista, Breton recomenda Martina Dlabajova para o exercício do cargo. Alguns dias mais tarde, na reunião do colégio de comissários de 31 de Janeiro de 2024, estando Breton ausente em missão, nos EUA, Von der Leyen avança com a nomeação de Markus Pieper para representante da Comissão Europeia nas PME.

Refira-se, segundo escreve “La Matinale Européenne”, o que está em causa é uma troca de apoio ao segundo mandato de Von der Leyen. Thierry Breton foi apanhado de surpresa na volta dos EUA.

Uma parte do Colégio de Comissários, quando tomou conhecimento deste processo sui generis, decidiu contestar abertamente a decisão de Ursula von der Leyen, através de carta (27Março 2024) a exigir uma reanálise da situação. Entretanto, a candidata checa também apresenta recurso.

Todos estes procedimentos, uma vez conhecidos, aliados a outros comportamentos políticos recentes de Von der Leyen nomeadamente as posições de exagero de defesa de tudo quanto vem de Israel colocam Von der Leyen em situação muito crítica. E, assim, é de se interrogar como pode Von der Leyen continuar na corrida a um segundo mandato?

Será mesmo que o PPE, face a todos estes imbróglios, arrisca continuar a apoiar Ursula von der Leyen, correndo o risco de uma derrota no futuro Parlamento Europeu quando foi eleita para o anterior mandato pela margem de 12 votos apenas?

O que farão agora os partidos portugueses, PSD e CDS? Não está em causa a origem partidária de Ursula von der Leyen, pois sendo o PPE o grupo esperado como o mais votado tem esse direito de proposta.

Finalmente, a 16 de Abril último, o eurodeputado alemão demite-se no dia exacto em que ia assumir o cargo, porque é desautorizado no PE por uma votação maioritariamente contra a sua nomeação (382-144). Que enxovalho político para Von der Leyen!

Neste processo de nomeação e de ‘desnomeação’, as acusações mútuas também ocuparam grandes espaços na comunicação europeia, nomeadamente na francesa, dada a denúncia do comissário francês, responsável pelas PME.

Os deuses devem estar loucos

5. Quando a situação política europeia está a rumar fortemente para a direita radical, situações como esta são uma via verde. Os laivos de corrupção e influência são fortes e a solução só pode ser o afastamento da candidatura de Von der Leyen. Vários nomes correm nos meandros dos jornais.

Que haja bom senso para credibilizar a próxima Comissão Europeia, tanto mais que vêm aí tempos difíceis! Não é imaginável ver, lado a lado, nos comandos do Mundo Ocidental, Von der Leyen, depois de imagem tão degradada, e Trump. Mas tudo pode acontecer. A acontecer tudo isto, não passa de uma “comédia”, deprimente e triste. Um retrocesso. Como diz o filme: “Os deuses devem estar loucos”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

GUERRA COLONIAL. A HUMILHAÇÃO IMPOSTA PELA DITADURA - MEMÓRIAS DE UM TEMPO


Estava eu na Guiné-Bissau. Um mês depois de ter casado recebi a guia-de-marcha. Em 1972 o mundo parecia desabar sobre os meus sonhos de vida. Imaginam, certamente, o que alimenta e atormenta o pensamento, a todo o momento, a possibilidade de um não regresso. E milhares lá ficaram. No avião militar sentei-me ao lado de um Tenente-Capelão. Inicialmente, desconhecia a sua patente e missão. Falámos sobre a cretina estupidez daquela guerra sem sentido, depois, sobre um Deus que é amor e a função dele, Capelão, face à contradição entre a guerra e o amor aos outros. Recordo-me, na descida para o aeroporto de Bissalanca, com os meus olhos a verter algumas lágrimas de uma saudade que ainda ali começara, ele ter tirado do bolso do camuflado um estilhaço de obus que tinha a configuração de uma Cruz. Com alguma imaginação, ele via ali a personificação de Cristo. Disse-me, apontando para o estilhaço: “vês, não tenhas medo, porque Deus também aqui está”. Mais tarde vim encontrá-lo em S. Luzia. Aos Domingos celebrava a Missa das 19 horas, onde o General Spínola, pontualmente, entrava, em passo vigoroso, capela adentro.



Fui colocado em Guileje, a nove quilómetros da fronteira com a Guiné-Conakry. Dizíamos que, face à extensa floresta, era a coroa na cabeça de um padre! Por ali passava o famoso “corredor de Guileje” que alimentava, através da fronteira sul, as tropas de Nino Vieira, mais tarde presidente da República da Guiné. Comandei um pelotão açoriano, todo ele de Rabo-de-Peixe. Gente pobre, fantástica e amiga. Ainda hoje desconfio que eles percebiam o meu medo e, por isso, protegiam-me. Na nossa relação havia uma cumplicidade em que falávamos não falando! Sobretudo no mato ou nos ataques ao aquartelamento, onde a ameaça e o receio estavam sempre presentes.

Aquele lugar era tão inóspito e isolado que ao fim de dez/onze meses as companhias tinham de rodar. Talvez como compensação, seguimos a picada de Guileje até o porto de Gadamael (“o percurso da morte”) e de LDG para Bissau, depois Nhacra, a cerca de 30 km. Foi aí que, passadas umas semanas, fui designado para trabalhar no Quartel-General, no Comando Geral das Milícias. Era liderado pelo então Major Carlos Fabião. Eu tinha a responsabilidade de controlo administrativo de todos os pelotões de milícia da Guiné. Mas, mais importante que esta tarefa foi o facto de ter conhecido e trabalhado, durante alguns meses, com o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, responsável pela Acção Psicológica no teatro operacional. Na prática, com humor, uma vez disse-me: o nosso Alferes controla os pelotões de milícia e eu distribuo os rádios pré-sintonizados. Eram rádios em que os nativos só podiam escutar a estação oficial e, naturalmente, toda a nossa propaganda.

Com Otelo fiz muitos serviços na escala do Quartel-General: ele como oficial de dia e eu como subalterno. Estávamos em 1973, “vésperas” do 25 de Abril. Só mais tarde percebi o total secretismo da operação que ele gizou no quadro da Revolução de Abril. Nessas noites de serviço, propícias a conversas mais distendidas, nunca me falou do nosso país, do atraso estrutural, da guerra colonial e da necessidade de uma mudança política. O silêncio era uma regra de ouro. Uma só vez, quando a páginas tantas de uma conversa referi a expressão “faz-se isto e faz-se aquilo”, subtilmente, saltou-lhe a aliteração: “pois, os fascistas”. Confesso que, no contexto da nossa conversa, não percebi o que, de facto, queria dizer.

Mas era sensível que ali, na Guiné, a guerra estava perdida. Em 1973, logo no início do ano, assassinaram Amílcar Cabral e, em Setembro, o PAIGC declarou, unilateralmente, a independência. Entretanto, cercaram e tomaram Guilege, onde tinha estado, após uma violenta saída das tropas portuguesas. Aliás, toda a zona sul era intensamente flagelada e a norte era desesperante a concentração das tropas do PAIGC. Sinais evidentes, entre muitos outros, do eminente colapso militar. O livro de António Spínola, “Portugal e o Futuro”, ele com um passado alinhado com frentes políticas extremamente conservadoras (para ser brando nas palavras) acabou por consubstanciar a preocupação de uma guerra perdida.

No dia 25 de Abril, entrei no QG pelas oito da manhã. Estávamos de prevenção. Foi aí que tomei conhecimento do que se tinha passado em Lisboa. Não demorou muitas horas e o madeirense General Bettencourt Rodrigues, empossado como Governador-Geral da Guiné, após a saída do General António Spínola, viajava para Lisboa por não concordar com a Revolução em curso.

Regresso ao princípio: tive medo e tive sorte. Lembro-me sempre da Cruz do Capelão. Quando me confronto com treze anos de guerra, onde 90% da população jovem foi mobilizada para um conflito que fez cerca de 10 000 mortos em combate e acidentes, aproximadamente 20 000 inválidos, cento e trinta mil a sofrer de stress pós-traumático e, ainda, 100 000 vítimas entre civis das colónias, a pergunta que coloco é tão simples quanto esta: para quê? Um país subdesenvolvido, paupérrimo e analfabeto, “orgulhosamente só”, dava-se ao luxo de gastar 33% do Orçamento do Estado e, a preços de 2018, 21,7 mil milhões de euros no esforço de guerra. A maldade, a frieza e o desprezo pela vida daquela dupla, de péssima memória, António Oliveira Salazar/Marcelo Caetano, foi tal que mais de 3 000 militares permanecem enterrados algures em Angola, Moçambique e Guiné. Recordo que durante os primeiros seis anos da guerra colonial, o Estado só pagava o regresso de militares vivos. Quem desejasse a trasladação, teria de pagar 12 mil escudos. Vergonha é a única palavra que me ocorre.

Ora bem, ao invés da Escola transmitir conhecimentos que não interessam nada para vida, os professores deviam fazer descobrir o nosso passado recente para que Abril se cumpra, com o conhecimento desse tempo de obscurantismo, indigno e desumano, a fim de gerar a capacidade necessária para enfrentar o futuro político, económico, financeiro, social e cultural.

domingo, 21 de abril de 2024

A ruína moral do Ocidente


Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso, 
19/04/2024
A Estátua de Sal 





Certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”?



1 de Abril — parece mentira mas não é —, Israel consumou um feito jamais visto, que me recorde, na história diplomático-militar dos tempos modernos: atacou uma instalação diplomática de um outro país na capital de um país terceiro, matando oito funcionários dessa instalação através de um míssil disparado de um avião da sua Força Aérea. Morreram nesse ataque ao Consulado-Geral do Irão em Damasco, na Síria, um comandante do Quds, a guarda revolucionária iraniana, e sete outros agentes da organização, e o edifício ficou destruído. Normalmente ou quase sempre, tais acções de execução de agentes inimigos no estrangeiro são levadas a cabo pelo Kídon, uma secção da Mossad, que as executa após receber luz verde do próprio primeiro-ministro israelita. Mas são feitas de forma tão discreta quanto possível, através de execuções a tiro, por meio de carros armadilhados ou por envenenamento, com cuidado para evitar vítimas civis — a maior parte das vezes com sucesso, mas outras vezes fracassando e até tomando inocentes por alvo. Mas agora tudo foi feito de forma espectacular e ostensiva e nem sequer visando um alvo particularmente importante. Tratou-se, para lá de qualquer dúvida legítima, de um acto de guerra e de um acto de pirataria internacional sem precedentes. Todavia, chamado a condenar o ataque de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o bloco ocidental opôs-se a qualquer condenação. Imaginem o que aconteceria se Putin tivesse disparado um míssil contra o Consulado da Ucrânia em Varsóvia...

A 14 de Abril, o Irão ripostou, que era aquilo que Israel obviamente esperava e desejava da sua acção em Damasco — e daí tê-la feito de forma tão ostensiva. Nada fazendo, o regime iraniano via ameaçada a sua fraca popularidade interna e desautorizada externamente a sua aura de único país islâmico que mantém um conflito insolúvel com Israel. Mas também não podia arriscar nada que desenca­deasse uma resposta em grande escala de Telavive e que trouxesse os americanos de volta, sem rodeios, para o apoio total a Israel. Sabendo que Washington já tinha enviado um porta-aviões para a zona, diversos caças e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o Irão fez uma coisa insólita: avisou previamente os Estados Unidos do ataque, mas garantindo que ele apenas visaria instalações militares e seria mais simbólico e para salvar a face do que verdadeiramente ameaçador. Fez o mesmo aviso aos países árabes sunitas vizinhos de Israel e, depois, com as televisões do mundo inteiro a seguirem em directo, despachou uns 400 drones que demoraram seis horas a tentar chegar ao destino, umas dezenas de mísseis de cruzeiro e alguns mísseis balísticos. Como resultado, escavou um buraco numa base área do Neguev e feriu uma jovem beduína numa zona sem sirenes nem protecção antiaérea, cuja casa as autoridades israelitas aproveitaram para mandar destruir. Após o que Teerão declarou a operação terminada, com êxito.

Foi um festim para Israel e os seus “aliados”. Imediatamente, Damasco ficou esquecido, e o que passou a vigorar em todos os noticiários e declarações, como acto primeiro do casus belli, foi o “ataque em grande escala do Irão a Israel”. Há dezenas de anos que Israel usa esta estratégia política em relação aos palestinianos: promove uma nova ocupação de terras, destruição de casas ou repressão sangrenta num posto de controlo e depois, perante uma tímida resposta, invoca um direito de legítima defesa perante um ataque de que terá sido alvo. Fez agora o mesmo com o Irão, que, não sabendo como reagir, optou perla opção mais estúpida. Depois, o Iron Dome proporcionou um show televisivo em directo, um ensaio práctico muito mais útil do que os realizados frente aos pobres rockets do Hamas e um pretexto para Biden pedir ao Congresso mais dinheiro para Israel, visto que o dinheiro dos contribuintes (e eleitores) americanos estava a ser bem empregue. Em terceiro lugar, permitiu a Israel experimentar a doce sensação de gozar da solidariedade amedrontada de países como a Jordânia, a Arábia Saudita ou os Emiratos, num regresso ao espírito dos Acordos de Abraão, estilhaçados pelo sanguinário ataque do Hamas em 7 de Outubro de 2023 e o subsequente genocídio palestiniano em Gaza. E, finalmente, se dúvidas porventura ainda houvesse em alguns ingénuos espíritos, permitiu a Israel convocar, além do esperado e indefectível apoio militar e político dos Estados Unidos, o apoio igualmente empenhado dos outros suspeitos do costume: França, Inglaterra, Alemanha, eternos campeões dos direitos humanos, grandes vendedores de armas a Israel, inescapáveis cúmplices morais do genocídio de Gaza.

No momento em que as opiniões públicas nestes países começavam a mobilizar-se para exigir dos seus Governos o fim da venda de armas a Israel, o ataque do Irão veio mesmo a calhar para abafar o assunto, fazer esquecer o massacre em Gaza ou outros temas inconvenientes, como o assassínio de sete civis estrangeiros da carrinha da organização humanitária World Kitchen. Como que por magia, Israel passou de agressor a agredido, de carrasco a vítima. E aqueles, os grandes defensores dos direitos humanos, que em seis meses não conseguiram encontrar razões suficientes para forçar Israel a parar com o morticínio de palestinianos, nem sequer para a sua condenação, agora, sim, estão revoltados com o ataque dos inofensivos drones dos aiatolas e a ofensa aos israelitas. Eles que, em seis meses, não conseguiram encontrar quaisquer razões para castigar Israel ou os seus governantes com sanções que prejudicariam os seus comuns negócios, agora, sim, vão estudar sanções ao Irão. (Mas não se admirem se, por debaixo da mesa, os mesmos, os mesmíssimos que vão aprovar as sanções, venham a montar um sistema para as contornar e até para poderem vender armas aos aiatolas, porque tudo isto é demasiado complicado para a nossa vã inteligência). E, juram eles, tentam segurar a mão de Israel, na sua justa e terrível represália (perdão, legítima defesa) sobre o Irão. Mas, no limite e além do palavreado hipócrita, deixarão que Israel faça o que quiser, como sempre. Porque confiam que a Rússia não intervirá, e assim o “louco bom”, Netanyahu, pode ser deixado à solta, porque o “louco mau”, Putin, tem a Ucrânia com que se ocupar: mesmo a calhar. E se, mesmo assim, aquilo explodir numa guerra regional e a Europa ficar sem petróleo, como em 73, paciência, dos fracos não reza a história. E teremos sempre o amigo americano para nos ajudar, como fez com o gás, substituindo-se aos russos, depois de fazer explodir os Nordstream e duplicar o preço que os europeus pagam pelo gás.

A 14 de Abril, Israel e os seus aliados não apenas detectaram no ar e destruíram 99% dos engenhos de morte enviados do Irão — também detectaram previamente e destruíram 99% das opiniões ou notícias capazes de contrariarem a versão única de mais uma vitória dos bons sobre os maus, da derrota de um ataque não provocado à “única democracia do Médio Oriente”. Uma democracia que, em seis meses, liquidou, nas suas casas, nas ruas, nas escolas, nas mesquitas e nos hospitais, 35 mil civis, dos quais 16 mil crianças, e em cujo governo há um ministro que propôs resolver o problema dos 2,3 milhões de palestinianos encerrados em Gaza com uma bomba termonuclear e outro que, mais simplesmente, jurou que “os palestinianos não existem”. Se não tivéssemos visto as imagens de quarteirões inteiros em Gaza destruídos com bombas de uma tonelada fornecidas a Israel pelos defensores dos direitos humanos, dos hospitais transformados em campos de batalha, das crianças com olhares esgazeados de fome, ainda poderíamos acreditar, talvez, que isto seria uma guerra da liberdade contra o terrorismo. Se não conhecêssemos a história, poderíamos acreditar que eram os justos a triunfar sobre os usurpadores da “Terra Santa”. E certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”? Qual é, afinal, o critério moral que nos distingue dos outros? Perguntem às crianças de Gaza, perguntem à rosa de Hiroxima.

Eu fiz jornalismo durante mais de 40 anos. E em todas essas décadas, seguindo a política nacional e internacional, tive muitas vezes de me conter para não confundir a hipocrisia com a própria natureza da política. Mas sempre acreditei que, no fim, seria a independência e a liberdade do jornalismo a prevenir e a evitar que isso acontecesse.

Porém, e como já o escrevi a propósito da guerra na Ucrânia, e agora o volto a escrever a propósito da guerra de Israel em Gaza, nunca tinha visto o jornalismo tão submisso à narrativa oficial, tão disposto a abdicar do contraditório e tão avesso a fazer as perguntas ocultas, as perguntas essenciais.

Isso, mais ainda do que esta miserável geração de líderes políticos, é o que mais me faz descrer no triunfo das democracias, enquanto resultado de regimes escolhidos por povos informados e livres. Oxalá eu possa estar enganado!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Dr. Rui Nepomuceno

 

Partiu da vida terrena o meu Amigo Dr. Rui Nepomuceno. Por ele sempre nutri uma enorme consideração e estima. Hoje, lamento que as circunstâncias das nossas vidas não tivessem proporcionado uma convivência mais assídua. Muito teria eu aprendido com o homem culto, o advogado de excelência e o historiador que deixa obra para os vindouros. Lamento, repito. Só damos conta disso tarde demais. Infelizmente.



De tempos em tempos cruzávamo-nos e lá ficávamos a conversar. Para mim era uma delícia colocar na nossa breve mesa de diálogo as preocupações sociais, o que estávamos a (des)construir, as preocupantes assimetrias, as margens que não auguravam um futuro promissor e lá nos despedíamos até um próximo reencontro.

Um dia, a propósito de um julgamento sobre matéria educativa, dei conta que o meu advogado não se encontrava presente. Quase entrei em pânico. Circunstancialmente, passava pelo corredor do Tribunal, o Dr. Rui Nepomuceno. Abeirei-me e pedi ajuda. Não me recordo dos pormenores de há quase trinta anos. Sei que ele pediu ao Juiz um compasso de espera, inteirou-se do problema em causa, leu o processo quase transversalmente e assumiu a minha defesa.

Agradeci-lhe através de carta essa sua atitude. Passados uns dias, respondeu-me. Guardo essa preciosa carta como uma memória e uma referência do Homem bom que ele sempre foi. Aquela desprendida atitude, sem qualquer tipo de exigência, marcou-me profundamente, pelo que hoje, na sua partida, curvo-me perante a sua grandeza de Homem, esse sim, "que se tem afirmado pela firmeza, altruísmo e sinceridade da sua prática como Homem e como político". 

Um grande abraço de solidariedade à sua Mulher Drª Aida Nepomuceno (e restante família), distinta Colega com quem tive o prazer de trabalhar na antiga Escola dos Ilhéus. 

Obrigado, Dr. Rui Nepomuceno e até sempre.

sábado, 13 de abril de 2024

Será a Agenda Verde Europeia uma das principais causas do declínio económico e social da UE?


Por
João Abel de Freitas 
Economista

A situação está adormecida por algumas cedências e recuos dos Governos nos vários países e alguns subsídios, mas pronta a reaparecer a qualquer momento.



1. A Agenda Verde foi “imposta” aos Estados-membros pela Comissão Europeia, em Julho de 2021. Doze textos, com milhares de páginas e, uma ambição desmedida: “liderar a transição ecológica e energética”, a nível mundial e, transformar-se no primeiro Continente, livre de emissões de CO2 até 2050.

A experiência da vida ensina-nos a duvidar. E começo por não se acreditar que tenha havido muitas pessoas (incluindo altos responsáveis) a ler e a pensar sobre estes milhares de páginas!

Ficou o registo, no entanto, de que quase metade dos 26 comissários europeus tinham muitas incertezas sobre a eficácia da Agenda, onde tanta ambição era um fim com sabor a propaganda, onde as metas de descarbonização enunciadas dificilmente poderiam ser atingíveis (indústrias pesadas, transportes pesados, marítimos e aéreos) e onde muitos pressupostos económicos e tecnológicos não estavam reunidos para dar sustentabilidade à sua realização, designadamente na área da energia, elemento primordial de qualquer Agenda Verde, digna desse nome.

Duvido ainda de programas de muitas páginas. Normalmente, este tipo de trabalhos esconde o pouco domínio que os próprios construtores têm do assunto, um conjunto de ideias confusas que não sabem como as explicar nem como prosseguir. Por isso, rodeiam-se de floreados palavrosos.

2. O IFRI – Institut français des relations internationales, uma instituição de referência em questões internacionais, no panorama francês e internacional, criado em 1979, levanta, desenvolve e aponta grandes riscos quanto à implementação da Agenda Verde da Comissão Europeia.

Desde logo, nas ambições desmedidas e irrealizáveis assentes em pressupostos demasiado frágeis, como se referiu. E mais, afirma que na Agenda não foram consideradas as consequências económicas, sociais e financeiras, nem se os países-membros eram detentores de instrumentos adequados de todo o tipo para a realizar.

Aliás, o descontentamento recente dos agricultores, que atravessou toda a Europa, é uma prova do que se acaba de referir, pois a enorme contestação do mundo agrícola virou-se para o Green Deal (Agenda Verde europeia) como a principal causa dos seus problemas. A situação está adormecida por algumas cedências e recuos dos Governos nos vários países e alguns subsídios, mas pronta a reaparecer a qualquer momento.

Esta análise crítica da Agenda Verde europeia consta de um relatório com menos de 40 páginas, um relatório alarmante, de Janeiro de 2024, sob a designação How Can the Green Deal Adapt to a Brutal World.

Aliás, o relatório do IFRI não só coloca questões pertinentes sobre a fundamentação inicial da Agenda Verde, quanto acentua que, com ela, se multiplicaram “os constrangimentos às empresas e populações” e, hoje, ainda se encontra em maior degradação, pois não internaliza as profundas alterações que ocorreram ao longo dos últimos três anos no ambiente geopolítico, comercial e financeiro.

As mudanças no ambiente geopolítico e comercial, como a guerra entre os países europeus e a Ucrânia, a crescente oposição entre o Ocidente e o Sul global, a deterioração da situação económica e financeira mundial, a nova geografia da energia, a inflação, o enfraquecimento das cadeias de valor, tornam a Agenda Verde ainda mais surreal e vulnerável.

Estas mudanças – refere o relatório – “exigem uma reavaliação estratégica e ajustamentos significativos do Pacto Verde” e continua: [a situação é preocupante: “embora o passado da UE nos diga que foi feita prova de coesão face a crises, esta tendência actual poderá ser perturbadora”. A UE corre o risco de ser submersa por várias crises em simultâneo. Ela terá gastado mais de 600 mil milhões de euros em importações de energia em vez de os alocar à transição energética. Os governos terão gastado outro tanto na atenuação das crises energéticas. Estes são números alarmantes.

Mas a Comissão Europeia continua a insistir no seu prosseguimento, aprofundando muitos anti-corpos internos contra a Agenda, apesar das contestações crescentes como se referiu dos Agricultores, mas que se estendem a toda a sociedade, aos industriais, opinião pública e Governos.

No meio de toda esta confusão, a Comissão Europeia apressou-se pela voz de Von der Leyen a propor uma nova meta de baixa de emissões de CO2 para 2040, quando os apelos vão no sentido de uma pausa de reflexão em várias áreas. Mais um passo contranatura!

União Europeia a descarbonizar por péssimas razões

3. A União Europeia está mesmo a descarbonizar, de forma altamente perigosa.

O perigo reside – acentua o IFRI – porque a descarbonização é decorrente não de políticas eficazes (advindas do Pacto Verde), mas do facto da UE descarbonizar através do encerramento das suas indústrias com utilização intensiva em energia (como as indústrias químicas), das baixas taxas de crescimento, do aumento da dependência das importações, do enfraquecimento e falência de instituições e dos mercados fragmentados.

Os preços da energia são um factor determinante que retira competitividade à economia europeia face a outros espaços económico-políticos como os EUA, China, Índia. A Europa entrou em perda lenta no contexto mundial.

E se a União Europeia mudasse de agulhas

4. A União Europeia precisa urgentemente de mudar de agulhas. Poderia aproveitar o período até às eleições de Junho para colocar meia dúzia de ideias fortes em discussão, entre elas, sem dúvida, a do Pacto Verde que poderia servir de pivot na ligação com outros domínios internos onde a economia, a ciência e a tecnologia devem sobressair, tendo as pessoas e as empresas no centro.

Por outro lado, a União Europeia tem de conquistar peso político próprio no ambiente geopolítico internacional. Para isso, precisa de uma estratégia sua e não de uma política importada. Se olharmos para o ambiente complexo das duas guerras, Ucrânia e Hamas-Israel, temos de admitir que a União não teve e continua a não ter acção própria. Desempenha um papel titubeante, a reboque dos EUA.

Estou convicto de que estou a falar sobre o impossível.

As eleições para o PE vão se transformar numa ladainha, em todos os países e não só em Portugal, sobre questiúnculas nacionais. O que é muito perverso. Os verdadeiros problemas passam ao lado.

O campo eleitoral fica, assim, aberto às direitas radicais

5. Indo por este caminho, não sendo a campanha das eleições europeias o espaço de debate dos problemas europeus, as populações sentem-se naturalmente mais distantes e cada vez percebem menos as coisas simples do que é ser Estado-Membro.

De uma forma geral, as pessoas apenas sabem que há fundos financeiros e muitas vezes desconhecem as implicações decorrentes desses fundos. Muitos políticos também se comportam como se não soubessem, o que até, em muitos casos, é verdade.

Um equacionamento de fundo das questões, que o IFRI bem levanta no seu relatório, poderia começar por um debate sério agora nas eleições europeias. Sem conhecimento dos problemas não há mudança a não ser no sentido para uma situação pior ou do caos. E quanto menos conhecimento e informação houver, maior é o caminho que se abre às direitas radicais.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

É mais do que um embuste. É enganar os portugueses


Por
João Vieira Pereira© Expresso

"O Expresso errou. Pior, publicou uma notícia falsa. Pelo facto pedimos desculpa aos nossos leitores. A publicação desta notícia seguiu as regras e procedimentos que exigimos antes da publicação de uma notícia. Não contávamos era com o facto do primeiro-ministro ter, no Parlamento, ludibriado os portugueses


O Expresso publicou em manchete na sua última edição o seguinte título: “Montenegro duplica descida de IRS até ao verão”. A notícia começou a ser desenvolvida a partir das declarações do primeiro-ministro proferidas na abertura da discussão do programa do Governo. Luis Montenegro disse aos portugueses que ia fazer de imediato uma redução de IRS que teria um impacto de 1500 milhões de euros. Com base nesta afirmação, o Expresso fez perguntas ao gabinete do Ministro das Finanças e contactou várias fontes. Ninguém desmentiu o que tinha sido dito no Parlamento, ninguém corrigiu a informação.

Mais: o Expresso esteve atento a cada palavra do primeiro-ministro no debate. Primeiro disse isto: “Aprovaremos na próxima semana uma proposta de lei que altera o artigo 68º do Código do IRS, introduzindo uma descida das taxas sobre os rendimentos até ao oitavo escalão, que vai perfazer uma diminuição global de cerca de 1500 milhões de euros nos impostos do trabalho dos portugueses face ao ano passado, especialmente sentida na classe média”.

Mas, na dúvida, pelo menos um deputado questionou o primeiro-ministro sobre o montante da redução. Confessando a sua “desilusão” com o programa de Governo, em particular sobre a dimensão da descida do IRS, Rui Rocha (líder da Iniciativa Liberal), afirmou que “o alívio do IRS em nenhum caso representa um alívio superior a 10 euros. Fica sempre abaixo desse valor”. Na resposta, Luis Montenegro, contrariou-o: “Na próxima semana vamos materializar a baixa de IRS para 2024. Vamos fazer com que o esforço fiscal dos portugueses sobre os rendimentos do trabalho seja desagravado em 1500 milhões de euros o que vai perfazer que aquele exemplo que deu não é realista. Vamos estar cinco, seis, sete [vezes], consoante os escalões, muito acima”, garantiu o primeiro-ministro.

Afinal o Expresso errou. Pior. O Expresso publicou uma notícia falsa. Pelo facto pedimos desculpa aos nossos leitores. A publicação desta notícia seguiu as regras e procedimentos que exigimos antes da publicação de uma notícia. Não contávamos era com o facto do primeiro ministro ter, no Parlamento, ludibriado os portugueses.

A redução de IRS que Luis Montenegro anunciou com pompa e circunstância, a redução de impostos que andou na campanha eleitoral a defender, é afinal falsa. São apenas pequenos ajustes sobre a redução já anunciada por António Costa no Orçamento para este ano. Os 1500 milhões de euros são apenas €170 milhões, porque 1330 milhões de euros foram já implementados pelo anterior governo.

Luís Montenegro apresentou uma redução de impostos que não passa de um embuste.


A verdadeira redução de imposto é contrária à ideia que o primeiro ministro vendeu no Parlamento. É contrária à ideia do que andou durante toda a campanha eleitoral a anunciar. Só tenho uma palavra para descrever tudo isto. Fraude.

Contudo, no final do dia, quem errou foi o Expresso. Por ter sido ingénuo a acreditar nas palavras do primeiro-ministro de Portugal. Mais uma vez, peço desculpa aos nossos leitores. Não voltará a acontecer."

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A Justiça está sem controlo


Separação de poderes, obviamente que sim. Porém, no quadro de um regime verdadeiramente democrático, nenhum poder pode ficar em roda livre. Não pode ser "coisa" de alguns, mas uma preocupação de toda a sociedade. O sentimento que tenho é que o poder judicial está em autogestão. Ninguém o controla. É entre os seus pares, grosso modo, que as regras se definem. O poder legislativo tende a não se imiscuir na esfera judicial (a tal história de "à política o que é da política, e à justiça o que é da justiça), porém o que se constata, em vários casos, é a tendência para a Justiça imiscuir-se na esfera política. Não que alguém esteja acima da Lei, mas pela oportunidade e o modo como as situações acontecem. Têm sido tantos os casos mediáticos. Suspeita-se, cria-se o alarme (entre outros, veja-se o caso Dr. Rui Rio), prende-se para investigar, depois ilibam-se, derrubam-se governos legítimos, ignora-se o segredo de justiça e, sem provas concludentes, colocam-se pessoas na lama e com a sua vida, não apenas a política, em suspenso. Apenas porque se "suspeita"! Lamento.



Li um desabafo entre muitos outros exemplos: Augusto Santos Silva, ex-presidente da Assembleia da República, escreveu esta semana que "o Parlamento foi dissolvido, realizaram-se eleições e nada as autoridades competentes se dignaram esclarecer sobre a iniciativa que esteve na origem de todos esses desenvolvimentos". Daí ter assumido uma séria crítica à Procuradoria-Geral da República (PGR), pela ausência de substantivas informações sobre o processo no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) "que visa o ex-primeiro-ministro, António Costa, cinco meses depois da divulgação do comunicado de imprensa que levou ao pedido de demissão do então chefe do Governo e desencadeou a crise política que culminou com a queda do Executivo socialista e a eleição de um novo elenco governativo".

Na sua página de facebook o socialista assinalou que, "o próprio visado nunca foi ouvido. Há quem possa achar que isto é o decurso normal da Justiça, no seu tempo próprio. Para mim, é uma violação grosseira de princípios básicos do Estado de direito, incluindo o desrespeito pela separação de poderes, o desprezo pelo direito dos cidadãos à informação essencial para as suas escolhas cívicas e uma ofensa aos direitos fundamentais de qualquer pessoa, seja qual for a sua condição privada ou pública". Concordo.

Ao contrário do que é normal quando publicamente aparece, quase sempre com um ar distante e enfadado, a Senhora Procuradora-Geral da República, na tomada de posse do novo governo, sempre que a câmara televisiva por ela passava, o ar grave deu lugar ao riso, presumo que não era de satisfação, no mínimo de boa disposição. Esquisito, ou será impressão minha?

segunda-feira, 1 de abril de 2024

O ataque brutal ao PS durante oito anos


Por
Alfredo Barroso,
in Facebook, 
31/03/2024





Este é o sexteto de direita que venceu as eleições legislativas, depois de Marcelo PR ter derrubado o Governo de maioria absoluta do PS. É essa gente que tem a estrita obrigação de autosustentar-se, criando, se necessário, uma aliança do tipo «caranguejola» ou mesmo «dona elvira». Mas ao menos tenham vergonha e não se ponham a "pedir batatinhas" ao PS, lá porque acolheu como deputados o Francisco Assis e o Sérgio Sousa Pinto...


Políticos de direita e extrema-direita, e o jornalismo ‘de reverência’, atacaram brutalmente o PS, o Primeiro-ministro António Costa e os seus governos durante oito anos, mas desejam um PS ‘manso’ para ajudar a aguentar este Governo do PPD-PSD mas, o atual PS, deve ter a coragem de responder ‘com a mesma moeda’ a esta direita agora no poder, não para se ‘vingar’, mas para sobreviver a um dos piores ataques à democracia desde há 50 anos.

Políticos e jornalistas sem escrúpulos, que “in illo tempore” atacaram com a mesma brutalidade MÁRIO SOARES, aproveitam-no agora, que está morto, para invocar a sua tolerância e generosidade democráticas em proveito deste Governo dito ‘falsamente’ da AD (e que ameaça ser tão mau como o de Pedro Santana Lopes). Querem, assim, exautorar, depreciar, desprestigiar a(s) esquerda(s), caso o PS não se sinta atraído pelos ‘cantos de sereia’ desta Imprensa oportunista e sem escrúpulos que, junto com um Presidente da República irresponsável, instável e “dissolvente”, andaram com a direita e as duas extremas-direitas (a do CHEGA e a da IL) ao colo, mas agora querem ver-se livres duma delas (a do CHEGA), que lhes “saiu pela culatra”, apelando à boa-vontade e ao “sentido de Estado” que nunca tiveram enquanto o PS esteve no poder.

Este PS continua a ter no seu seio uma “ala liberal” que nada tem a ver com o socialismo democrático, e é a favor da reconstituição do ‘bloco central’. Sei bem, por experiência própria (fui o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do IX Governo constitucional, de 1983 a 1985), o que significou, para o PS, a coligação de Governo com o PPD-PSD, partido que - já com Cavaco Silva na chefia e em ‘aliança’ com o PR Ramalho Eanes - decidiu desfazer a coligação com o PS e derrubar o Governo a meio do seu mandato. Desde então, eu (que até fui defensor da coligação com o PPD-PSD, então liderado por Mota Pinto) jurei a mim próprio que jamais defenderia outra aliança com o partido que já foi de Cavaco, de Durão Barroso e de Passos Coelho, e que agora é de um dos acólitos de Passos Coelho no tempo da brutal política de ‘austeridade’ e ‘empobrecimento’ deliberado (sim, mesmo deliberado!) de Portugal e dos Portugueses.

O que o PS tem de fazer é aquilo que Pedro Nuno Santos prometeu e ainda não cumpriu: oposição. Uma oposição clara - e sem hesitações ditas ‘patrióticas’ mas de facto ‘hipócritas’, ‘cínicas’ e ‘oportunistas’. Em democracia, é o que se espera e reclama duma oposição democrática (pelo menos enquanto Portugal não estiver em estado de 'pré-guerra' com a Rússia, como querem o imbecil Presidente da França e o idiota chefe do Governo da Polónia). Espero que não sejam esquecidos os insultos que alguns ‘barões’ do PPD-PSD agora membros do Governo – sobretudo o incrível novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel – dirigiram ao PM António Costa, aos seus Governos e, aliás, ao próprio Pedro Nuno Santos.

Nenhum militante, adepto ou mero eleitor do PS compreenderá que seja este partido o sustento do Governo de Montenegro. E convirá recordar que foi, sobretudo, o CHEGA que nasceu duma 'costela' do PPD-PSD e que esvaziou o CDS-PP. Por isso, é com a ajuda do CHEGA de André Ventura que este PPD-PSD de Montenegro terá de se haver para se manter no poder.

Essa de que terá sido o PS a ‘dar corda’ ao CHEGA, já pertence ao ‘anedotário político nacional’. Foi a direita que gerou a extrema-direita, e não o PS. Que isso fique bem claro!

Campo d’Ourique, 
31 de Março de 2024

sábado, 30 de março de 2024

Acarinhá-los? Não: enfrentá-los e derrotá-los


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
29/03/2024
estatuadesal

Não, eu não tenho a menor vontade de acarinhar os votantes do Chega, sejam eles quantos forem. Quem deve ser acarinhado são os outros.



Despachado como pára-quedista para chefiar a lista da AD no Algarve, o vice-presidente do PSD, Miguel Pinto Luz, teve uma derrota tão previsível quanto humilhante, atrás do PS e do Chega. Talvez a pensar já na desforra a curto prazo, não perdeu tempo a namorar os eleitores do Chega, afirmando que eles têm de ser “acarinhados”. Mas, verdade seja dita, o instinto de compreensão e tolerância para com o milhão e cem mil eleitores do partido de André Ventura contagiou todos ou quase todos os que foram chamados a enfrentá-lo nas eleições de 10 de Março, começando logo por Pedro Nuno Santos. Era preciso, explicaram-nos, entender as razões da sua “revolta”, do seu justo desencanto com a política e o estado do país, de igual forma que a mesma compreensão, e até rendição, era necessária para com a revolta do braço armado do Chega — os polícias de camisas negras, a cantar o hino como patriotas de excepção e a ameaçar um motim público, todavia juntando à solidariedade óbvia de Ventura também a do Bloco de Esquerda ou de comentadores como Daniel Oliveira. Até parece que não perceberam o que têm pela frente: não se trata só de combater ideias “racistas e xenófobas”, como repetem preguiçosamente (e, como se viu, sem sucesso), mas de tentar deter uma onda galopante de demagogia desenfreada e populismo de taberna que tornará o país ingovernável e, por arrasto, a democracia indefesa.

Quando oiço os dirigentes políticos da democracia falarem do Chega, percebo até que ponto é restrita a liberdade de pensamento de quem faz da política a sua profissão e da necessidade de ganhar votos a sua sobrevivência. De quem, como Pinto Luz, precisa de namorar todos os eleitores, incluindo aqueles que os desprezam. Eles não podem dizer, nem sequer murmurando, aquilo que salta à vista, que é o inimigo a enfrentar: não André Ventura, que lançou a semente à terra e a rega e aduba inteligentemente, mas sim os que o seguem como a um Messias. Quem já viu desfilar na TV brasileira os inúmeros canais das Igrejas Evangélicas (que já têm também representantes na bancada parlamentar do Chega) não ignora as semelhanças: o problema não são os “sacerdotes” e “bispos” daquelas confrarias de bandidos da fé, mas sim o “rebanho” de descamisados sem causa, de alienados à mercê de aldrabões de feira.


O problema, meus caros senhores, não é André Ventura, o único verdadeiro dirigente da confraria: o problema é mesmo o povo, o povo do Chega.

Divido esse povo em duas categorias: os mal informados e os mal formados. Os mal formados são os tais racistas por doença mental, xenófobos por nacionalismo pacóvio e saudosistas do Estado Novo por conforto pessoal — são a minoria, os “intelectuais” do partido. Os mal informados, a grande maioria, são uma amálgama entre aqueles que, ignorando tudo sobre o estado do mundo, que confundem com as “verdades” que lhes debita o algoritmo das redes sociais a eles destinado, acham que Portugal só não é um país triunfante entre todos porque “eles”, os que nos governam, são corruptos e inimigos do povo; e, por outro lado, aqueles que sempre existiram e que representam o Portugal no seu pior: os maledicentes profissionais de café, os intriguistas, os invejosos, os frustrados, os falhados, os que nunca reconhecem o mérito alheio nem aceitam o mérito como critério na sua actividade — a grande coligação dos medíocres. Esses confundem democracia com prosperidade e preferem sempre o seu bem-estar pessoal à liberdade colectiva e individual. Esses — não todos, mas a maior parte — precisam que apareça alguém a dizer-lhes que o seu mal-estar nunca é culpa própria, mas “deles”, e que lhes explique que a frase de Kennedy deve ser lida ao contrário: “Pergunta o que o teu país pode fazer por ti.” Porque não se informam, ignoram tudo sobre a conjuntura internacional e pensam que só por mau governo e má vontade é que Portugal não é um oásis de prosperidade. Porque não pagam impostos nem se preocupam com a despesa ou a dívida do Estado, acreditam nos milagres económicos, tão evidentes e tão simples, que Ventura lhes propõe como alternativa. Porque não são livres, não se importam de viver na dependência e, porque não são sérios na sua forma de estar, não gostam de ver os imigrantes estrangeiros na “sua” terra, mesmo a fazer os trabalhos que eles não querem fazer e que o tal “sistema” que tanto odeiam os subsidia para não terem de fazer — ao contrário do que os seus pais e avós fizeram outrora, sem desfalecimento, durante a “prosperidade” do salazarismo, naquelas comunidades de emigrantes cujos descendentes agora, vá-se lá saber porquê, também deliram com o Chega, porque estão “revoltados”.

Revoltados? Revolta é uma coisa séria, isto não o é. Sim, há sobejas razões de revolta: uma globalização que ajudou os miseráveis mas desprotegeu os simplesmente fracos ou pobres; um capitalismo que desregulou o mercado, capitulando perante os grandes interesses e corporações; uma cultura woke levada ao extremo da idiotice que agride e afasta multidões de gente simples; uma geração de líderes sem rasgo nem coragem, com medo de dizer as verdades e de fazer opções claras — aliás, muito aterrorizados por um populismo que não sabem ou não querem enfrentar em campo aberto. Mas essa revolta, para ser séria, não pode alimentar-se da ignorância, da demagogia e do triunfo da mediocridade.


Não, eu não tenho a menor vontade de acarinhar os votantes do Chega, sejam eles quantos forem. Quem deve ser acarinhado são os outros: os que votam na democracia, os que acreditam na liberdade como primeiro valor da vida colectiva, os que não querem depender nem esperar por milagres ou embustes prometidos mas abrir caminho por si, pelo seu esforço, o seu trabalho, a sua criatividade, a sua contribuição para a sociedade. Os 80% que não votaram no Chega. Esses é que têm de ser acarinhados, apoiados, empurrados para cima, para que não fiquem apea­dos por falta de oportunidades, enquanto se gastam atenções e recursos com os inúteis sentados nos cafés a dizer mal do “sistema”, só porque desta vez descobriram as virtudes do sufrágio universal e lá se dignaram levantar o cu da cadeira e ir votar na alternativa do Dr. Ventura.

Não é um combate fácil, mas, sobretudo, tem de ser travado e tem de ser ganho — não dando tréguas na luta das ideias, no desmascaramento das mentiras e na exposição do embuste. E governando bem, governando a pensar no país e não no partido, privilegiando não quem mais exige mas quem mais retribui, não quem mais grita e tem mais palco mas quem mais produz, mais inova e mais arrisca. Acordando no que é essen­cial em cada momento e discordando no que é diferente, mas, acima de tudo, não tendo medo de contrapor sempre a verdade e os factos contra a demagogia e o facilitismo de dizer ao povo o que o povo quer ouvir e não o que o povo precisa de ouvir.

Cito e subscrevo aquilo que Francisco Mendes da Silva escreveu no “Público” há 15 dias: “O tal povo ‘esquecido’ que vota em Ventura é muito mais ouvido do que se pensa. Determina muito mais do que se julga as prioridades mediáticas do país.” Isto é um facto, e a imprensa também tem muitas responsabilidades no assunto. Esta nossa doentia tendência para dar sempre mais voz e mais importância a quem mais berra ou desfila pelas ruas a cantar o hino tem como contrapartida o esquecimento de todos os outros. E os outros são os 80% que não votaram no Chega ou os 50% que pagam IRS. Só num país desnorteado é que a prioridade são aqueles e não estes. Olhemos para cima e para a frente, não para trás ou para baixo. Deixem que o diga com todas as letras: aquela senhora que eu vi na televisão a dizer que ela, a filha e a neta desta vez tinham decidido ir votar e todas tinham votado no Chega, para “ver se as coisas melhoram”, não me inspira compreensão alguma — apenas desprezo. Vai fazer 50 anos que a senhora só podia votar em eleições de fantochada e aposto que não estava melhor na vida.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 28 de março de 2024

As direitas e as esquerdas


Por
João Abel de Freitas
Economista

A Europa não tem sido hábil no encontro com os seus cidadãos. Numas eleições em clima de guerra e de corrida armamentista, menos esperança resta ainda aos europeus, desejosos de uma saída de paz e bem-estar.



Portugal e União Europeia

As eleições de 10 de Março trazem um novo figurino à Assembleia da República, com uma esmagadora maioria de deputados em São Bento da direita e direitas radicais e populistas.

As eleições europeias de Junho próximo são de alto risco para a União Europeia (UE). Os estudos de opinião dão as direitas radicais e populistas na liderança em vários países, o que aponta para o seu reforço no Parlamento Europeu (PE). Assim, a distribuição dos 720 eurodeputados deverá sofrer alterações significativas e os temas a debater mudarão de foco.

A imigração, a transição energética e o modelo agrícola passarão a constar com frequência na ordem do dia, no sentido, porém, de serem introduzidas alterações profundas de rumo. O PE, a Comissão e o Conselho vão sofrer ajustamentos, em virtude dos resultados das eleições e de mudanças políticas que ocorrerão ao longo do novo ciclo europeu, em países como a França, Alemanha e outros.

Há a assinalar uma diferença significativa entre o PE e o Parlamento português. Os partidos das direitas radicais e populistas no PE estão organizados em dois grupos distintos: ID (Identidade e democracia) que agrega fundamentalmente deputados dos partidos de Marine Le Pen, Matteo Salvini (vice-presidente do governo italiano), AfD alemã e agora os eurodeputados que o Chega eleger e ECR (Conservadores e reformistas europeus) deputados dos partidos de Georgia Meloni (primeira-ministra do governo de Itália), PiS da Polónia, Vox de Espanha e, eventualmente, a entrada do Fidesz de Orban da Hungria.

A grande questão ao nível do PE reside na perda ou não da segunda posição do grupo dos socialistas e democratas (S&D), sabendo-se, porém, pelos estudos de opinião que irá baixar o número de representantes do PPE e S&D, os grupos políticos dominantes até à data, prevendo-se que a ID e ECR, em conjunto, ultrapassem o grupo S&D e, segundo alguns estudos, o próprio PPE.

A queda da esquerda portuguesa no PE parece ser uma realidade. Alguns dos partidos com representação hoje poderão deixar de a ter ou reduzir o número de deputados.

Consequências das eleições portuguesas

As esquerdas e centro-esquerda portuguesas tiveram uma derrota gigante, no seu conjunto. A direita tradicional, com primeiro-ministro já indigitado, também não a teve menos, mas goza de condições para fazer governo e até poder cumprir a legislatura, apesar das minúsculas décimas que a separam do PS. O PS, com o resultado destas eleições, com este Parlamento, nunca poderia pensar em governo, a não ser que se quisesse trucidar, levando atrás o País. Assumiu desde logo ser Oposição e bem. Daí não se entenderem certas cabeças pensantes!

Admito que, apesar dum ambiente de incerteza, o Governo da AD, que o Presidente tudo fez para lá pôr e agora segurar, poderá durar até ao final do seu mandato.

E o Chega pode ter aqui o papel fundamental. Os Açores já serviram de ensaio.

Diz Bolieiro que não negociou nada com ninguém. Citando José Pacheco Pereira (Público, 16 de março 2024): [É como o “não é não” de Montenegro ao Chega que começa hoje a ter formas, digamos assim, “flexíveis”, como dizer-se “Bem, na Assembleia da República falamos (negociamos é menos “novilíngua” orwelliana) com todos os deputados”, o que, como é óbvio, não é para a AD falar com o Bloco, mas com o Chega. Aliás, foi também este o pretexto para negociar o apoio do Chega nos Açores que, como os cínicos previam, esperou pelas eleições nacionais para se saber que tinha havido “conversas”].

Avançando um pouco. AD e Chega têm todo o interesse em se sustentarem um ao outro. Um para montar as estruturas de ocupação do aparelho de Estado, distribuir benesses (com o mealheiro cheio) por diversas camadas sociais e assim conquistar apoio crescente na sociedade para ir governando o mais longe possível. O Chega, atendendo aos resultados eleitorais a que chegou no país, necessita de os consolidar no terreno e, pelo menos, uma legislatura calma, sem eleições, é necessária.

Um e outro precisam de criar raízes, para consolidar a sua influência. A IL nem será para aqui chamada. Nem a AD nem o Chega precisam da IL para nada. Os interesses estão centrados nos dois. Se forem inteligentes, como os interesses comuns são enormes, nenhum precisa de esticar a corda. Uns pequenos arrufos aqui e ali para “abrilhantar” o palco. E, se isso resultar, uma segunda legislatura, eventualmente em novos moldes, poderá então ser uma hipótese de governação.

Pedro Nuno Santos vai ter vida bem difícil na oposição. Vai ser apertado a três níveis, no PS para cedências à direita e pelas diferentes esquerdas e direitas. O seu grande problema consistirá em como atrair sobretudo as camadas mais jovens, uma vez que as eleições demonstraram que o PS não anda nada atractivo para a gente jovem.

A nível internacional, a situação também não está de feição. A tendência, de há anos a esta parte, é de fragmentação dos partidos tradicionais, correspondendo a uma evolução política da própria sociedade com a clivagem cada maior entre as camadas jovens a alinhar com os novos partidos, enquanto os estratos mais velhos, embora em fuga parcial, continuam a ser o seu sustentáculo.

Dificilmente, os partidos tradicionais recuperarão o fulgor que já tiveram. Países como a França, Alemanha, Itália … estão em linha neste ponto. Os partidos socialistas em franco ocaso, os partidos comunistas há muito que marcam posição simbólica ou desapareceram e a própria direita clássica em perda continuada ou a fragmentar-se.

A Península Ibérica tem escapado um pouco a este figurino, mas chegam os indícios de que a mudança bate à porta.

Tendências futuras

Por todo o mundo, as direitas radicais estão em crescendo e a agir com alguma articulação, o que só lhes dá força. Na Europa, nas próximas eleições, onde poderão surgir surpresas inesperadas em alguns países, ficaremos com uma foto dessa realidade.

Se Trump vencer, em Novembro, abre-se uma via rápida a nível global. O Mundo está a atravessar contornos geopolíticos complexos, onde se torna difícil vislumbrar apoios para caminhos de alternativa.

Perante estas antecipações pouco animadoras [quando temos uma União Europeia inoperante, sem estratégia e dividida, acerca de temas tão básicos como a Energia, o Mundo Agrícola, a Transição Energética e grandes desafios em indústrias várias como o automóvel e a química] surge um futuro cheio de nuvens densas e negras.

A Europa não tem sido hábil no encontro com os seus cidadãos, porque pouco tem a oferecer-lhes. Numas eleições em clima de guerra e de corrida armamentista, menos esperança resta ainda aos cidadãos europeus, desejosos de uma saída de paz e bem-estar.

Muitos são os problemas que estão a enfrentar e começa a haver consciência de que a Europa entrou numa rampa descendente que, a prazo, lhes retirará qualidade de vida e poder aquisitivo. Imagine-se a prazo uma UE sem indústria automóvel, sem indústria química, em perda na IA, em tecnologias de ponta… com as contas em descontrolo.

Este ambiente assusta os cidadãos europeus, tanto mais porque não sentem uma liderança política firme, conducente a uma mudança de caminho de mudança. Portugal e a UE numa encruzilhada deveras desgastante.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 19 de março de 2024

A sofreguidão pelo dinheiro

 

Desconhecia esta "interpretação" sobre a fidelidade canina. O homem olhou-me e perguntou: sabe a razão pela qual o cão é o melhor amigo do homem? Tentei arengar uma resposta e ele atalhou não me dando margem para outras conclusões: "porque não sabe contar dinheiro".



Interessante argumento, contextualizado na conversa que desenvolvíamos. Apenas acrescentei: tomara, amigo, que, nesse aspecto, todos nós tivéssemos um sentimento de alguma "irracionalidade-racional". Há uma geração, os designados "millennials", que valorizam mais a vida social e o bem-estar no emprego. São poucos, presumo eu. A mancha maior, por múltiplas razões, até de subsistência, corre no faro do dinheiro. E a outros já não lhes bastam as receitas proporcionais a uma vida com dignidade, desalmadamente, correm na busca dos milhões, sempre que possível conquistados de uma forma aparentemente fácil. Até ao dia que a investigação lhes bate à porta.

Hoje, tomámos conhecimento de mais um alegado caso que envolve financiamentos europeus. A notícia dá-nos conta de uma putativa fraude de 40 milhões. Um comentador falava que este montante talvez peque por defeito, podendo, eventualmente, cifrar-se na ordem dos 100 milhões. É sua excelência o vil metal, o dinheiro do mal, que povoa e tolda a cabeça de muitos, na lógica que o crime compensa. Como me dizia um Amigo de longa data: para quê, quando, apenas, temos um estômago!

Gente que aparece nos écrans, em debates, tantas vezes apregoando uma falsa moral, aureolados de senhores sem mancha, mas lá vem o dia que uma ponta deixada solta faz esboroar a imagem imaculada que tentam passar. A montra é uma coisa; o armazém é o da mentira, onde jogam sem um mínimo de pudor. Até há sítios na internet que explicam "como conseguir dinheiro fácil". 

A propósito, deixo aqui um texto que publiquei há oito anos. 


DESABAFOS... A SOFREGUIDÃO PELO DINHEIRO

Tem já alguns anos, andava eu em visita a um país, não me recordo qual, metendo o corpo e todos os meus interesses e sentidos em tudo o que de mais importante havia para ver, saltando da zona histórica para os museus, catedrais, cantos e recantos citadinos, daqui para o pulsar do povo nas zonas mais concorridas e, no regresso, já em uma autoestrada, o amigo que me acompanhava disparou: "para ser feliz não é preciso ter muito dinheiro". Fomos até casa, ao longo de largos quilómetros, os dois casais conversando sobre o dinheiro e a felicidade. De facto, não é condição fundamental. Depois do que tínhamos visto, intensamente vivido e interiorizado, durante aquela jornada, sempre diferente todos os dias, de mochila às costas com um farnel de duas sandes, uns líquidos e fruta, máquina fotográfica e de vídeo, almoçando em um banco de jardim, aquele desabafo do meu Amigo fez todo o sentido. São tantas as vezes que a ele regresso.



Isto a propósito de quê? Ah, do dinheiro e da louca correria para ser rico, muito rico, muitos sem tempo de vida para o gastar. Na véspera tínhamos falado dessa obsessão, pela banca, bolsas, offshore, investidores, lavagem de dinheiro, droga, armas, multinacionais, fuga aos impostos, negócios destinados a esmagar todos os outros, "desvios" e engenharias financeiras, Justiça, enfim, de toda essa engrenagem que, parecendo que não, estrangula a vida que deveria ser construída com um formato de sensatez. Nem por um momento sentimos inveja por quem o tem aos molhos, tampouco falámos de pessoas em concreto. Tudo de forma abstracta, na essência do que é ou deveria ser a vida, que é tão curta, face aos direitos, os fundamentais, os da saúde, educação, trabalho e protecção social.

O dinheiro, obviamente que é necessário, rigorosamente nada se faz sem ele, mas, convenhamos, há limites. A sofreguidão de uns compagina-se com a infelicidade da maioria. A desmedida ambição que sustenta o crescimento rápido acaba, genericamente, com danos colaterais. Dirão, uns: "é a vida"; digo eu: é a selva. Ainda ontem vivi, em discurso directo, uma situação que considero de emprego escravo, mal remunerado e que impede o acesso da maioria a essa felicidade sem muito dinheiro. Sublinho a palavra muito. O dinheiro está, cada vez mais, concentrado em alguns. Não é preciso dar exemplos de países de mão-de-obra baratíssima, de total exploração do ser humano, quando ao nosso lado os temos. É a história daquela jovem que encontrei em uma determinada empresa, muito conhecida. Talvez porque sou habitual cliente, essa proximidade conduziu-a a desabar, já não sei a que propósito: "tenho quase um ano de trabalho, mas sei que vou embora. Aqui ninguém para ao final de x contratos. Já comecei a procurar emprego. Até para ir à casa de banho é preciso pedir ao encarregado. Temos hora de entrada, mas de saída nem por isso. Um salário mínimo e para ter mais algum é preciso vender, é preciso superar os objectivos. Mas como superar se as pessoas não têm dinheiro para comprar?" Pois, respondi-lhe, a exploração de milhares permite o desafogo desmedido de outros. Questiono, agora, para quê esta sofreguidão, precariedade e à custa de baixos salários?

As empresas, obviamente, não são instituições de solidariedade social. Existem para gerar emprego e possibilitar lucros. O problema não é esse. É sobretudo de equilíbrio, de rigor no trabalho, mas também de respeito por todos os que colaboram no êxito. O problema é como se cresce e se cria riqueza, se pela luta honesta diária, se pela desonestidade geradora de infelicidade. Regressando ao início, quando não é preciso MUITO dinheiro para ser feliz, repito, nesta curtíssima passagem pela vida.

Ilustração: Google Imagens

sábado, 16 de março de 2024

E agora, Sr. Presidente?


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
15/03/2024



(É por estas e por outras que tenho que trazer à ribalta muitos dos textos do Miguel Sousa Tavares. É dos poucos, com acesso à comunicação social de larga difusão, que tem a coragem de "chamar os bois pelos nomes", como neste texto em que escalpeliza brilhantemente o papel de Marcelo Rebelo de Sousa, no derrube do Governo de António Costa e na consequente ascensão meteórica da extrema-direita. Por isso mesmo, a ilustração acima - da nossa escolha, e não constante na publicação original -, é uma alegoria à sua junção às vazias acusações do MP contra o Primeiro-ministro cessante.
Estátua de Sal, 15/03/2024)

E agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.


Como era mais do que previsível, acordámos segunda-feira com um país ingovernável. Era previsível para qualquer um, mas especialmente para alguém como Marcelo Rebelo de Sousa, que passou uma vida inteira a acumular fama e proveito como imbatível leitor e construtor de cenários políticos, capaz de ler nos astros o que o comum dos mortais ainda não tinha descortinado na parede em frente. Deixemo-nos, pois, de meias-palavras: Marcelo não tem desculpa. Estamos como estamos porque ele assim o quis.

No “Público”, e na esteira de vários outros, Manuel Carvalho escreveu que “o prenúncio desta degradante democracia liberal estava à vista quando uma maioria se extinguiu à luz dos indícios de corrupção”, pelo que “Marcelo fez o que a sua consciência lhe ditava e que o grosso da opinião publicada lhe exigia”. Pois, o problema é que o grosso da opi­nião publicada tomou por indícios de corrupção o que não leu com atenção ou não percebeu, e, no mais, um Presidente deve guiar-se por aquilo que, em cada momento, quer a opinião pública, e não a opinião publicada. Até porque, em contrário, há quem diga mesmo que foi Marcelo quem sugeriu a Lucília Gago que introduzisse no comunicado da Procuradoria-Geral da República o tal parágrafo que ambos sabiam que levaria à imediata demissão de António Costa. Eu não acompanho essa teoria da conspiração ou do maquiavelismo, mas continuo a perguntar-me o que se terá passado na conversa entre o Presidente e a procuradora-geral que antecedeu a demissão do primeiro-ministro: terá Marcelo exigido saber, como lhe competia, o que havia de sólido nas suspeitas em relação a António Costa? E, em face disso — que era nada, como concluiu o juiz de instrução —, conformou-se com a execução pública do PM às mãos da PGR e com a sua demissão? Isto feito, e mal feito, com que legitimidade constitucional optou por recusar o nome indicado por António Costa para lhe suceder na chefia do Governo ou, em alternativa, pedir ao PS que indicasse um nome, como se faz em todas as democracias normais? Quem disse a Marcelo que em 2022 os portugueses tinham votado apenas em António Costa, e não também no PS, e que, se por qualquer razão ele não terminasse o seu mandato, preferiam eleições antecipadas e desembocar na situação que temos agora? A que deve ele obediência: às suas inclinações partidárias, às suas interpretações políticas ou às regras da Constituição da República? E, já agora, para que lhe serviu a opinião de um Conselho de Estado rigorosamente dividido a meio sobre o caminho a seguir? Apenas para o desprestígio acrescido de ver dois dos conselheiros, por si nomeados e ligados à AD, votarem pela convocação de eleições e depois aparecerem a fazer campanha eleitoral pela mesma AD...

Não, Marcelo não tem desculpa. Trata-se de alguém que passou anos a defender o valor da estabilidade e da previsibilidade dos mandatos levados até ao fim. Que, nos últimos dois anos, disse e repetiu que nada poderia pôr em causa o ritmo de execução do PRR — a última grande oportunidade de financiar o desenvolvimento do país com dinheiros europeus —, chegando a dizer a uma ministra que não lhe perdoaria um só dia de atraso. E, afinal, manda tudo ao charco em duas penadas e cavalgando uma insustentável ficção processual do Ministério Público relativamente ao PM — que, isso sim, devia preocupá-lo, e muito. Interrompe uma governação antes ainda do meio do seu termo, paralisa o país durante meses, lançando o alerta em Bruxelas, e dá-se ao luxo de deitar borda fora aquilo que qualquer país europeu hoje mais preza: uma maioria absoluta de um partido dentro do sistema democrático. Hoje podíamos ter à frente do Governo alguém como Mário Centeno, o nome que António Costa levou a Marcelo e que este recusou: alguém que nem sequer era filiado no PS, que conhecia o Governo e as finanças, que tinha provas dadas aqui, conhecimento e prestígio lá fora. O país não teria parado, o PRR e os principais dossiês não estariam paralisados e, sobretudo, aqueles que ainda se esforçam por acreditar num futuro para Portugal não experimentariam mais uma vez a decepção de ver a vida a andar para trás, a sua e a de Portugal, porque lá em cima se anda a brincar com coisas sérias para satisfação de protagonismos ou de impulsos infantis.


Mas não é apenas a instabilidade governativa que eu não perdoo a Marcelo. Mais ainda do que isso, o que não lhe perdoo é ter soltado a besta presa na cave, a besta da demagogia: o Chega. Por mais análises que me forneçam sobre as razões sociológicas e políticas do milhão e cem mil votos do Chega, algumas certamente pertinentes, há uma que desde logo o justifica: a compra de votos. O Chega comprou votos, comprou muitos votos, e comprou-os com uma campanha de demagogia despudorada e irresponsável. Contem-nos: nas forças policiais e respectivas famílias são 100 mil; nos reformados, a quem prometeu, pelo menos, uma pensão equivalente ao salário mínimo, mesmo para quem não contribuiu, serão uns 300 mil; nos professores, a quem prometeu tudo o que reclamam, dos 120 mil terão cativado uns 30 mil; nos agricultores outro tanto, e por aí fora, tudo junto somando metade do milhão e cem mil votos de André Ventura. Num país onde tantos se habituaram a exigir tudo do Estado e tão poucos se perguntam quem e como pagará, o discurso de Ventura está condenado ao sucesso, muito mais do que o racismo, a xenofobia, o autoritarismo e tudo o resto a que, por preguiça, gostam de o reduzir. O sucesso eleitoral de André Ventura chama-se demagogia à solta, e o pior de tudo é que, por competição e por sobrevivência, ele contagiou em larga medida todos os outros. Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.

Quando recusou a solução de estabilidade governativa que o país esperava e que ele próprio tinha apregoado durante tanto tempo, preferindo antes lançar o país numa aventura eleitoral desnecessária e de efeito previsível, Marcelo sabia ao que ia. Mas não se conteve, porque há muito que ele ia dando sinais de incontinência, aliás com ameaças explícitas. E não venham cá com o desgaste dos “casos e casinhos”, porque no mais grave deles — o caso Galamba, onde Marcelo entrou em choque frontal com o PM, exigindo publicamente a demissão do ministro — ainda estou para perceber qual é a responsabilidade de um ministro que demite um assessor que se recusou a entregar uns documentos exigidos por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e depois, sem mais qualquer intervenção da sua parte, vê o assessor invadir à força o gabinete, roubar o computador de serviço e levá-lo para casa, só o devolvendo a um agente do SIS e por intervenção de outro membro do Governo. Mas, ainda que a razão fosse os “casos e casinhos”, a renovação do Governo com a indigitação de outro PM, e exterior ao PS, esvaziava o argumento.

Não, a verdade é outra: o cargo deve ser profundamente aborrecido para quem gosta de viver a vida. O primeiro mandato presidencial acredito até que possa ser estimulante e apelativo: andar por aí a conhecer o país e as pessoas, dar beijos e abraços, ser recebido com a despreocupação de quem só pode prometer o bem e não fazer o mal, viajar lá fora e conhecer os grandes do mundo, escutar o hino com a herança de quase nove séculos às costas. Mas, isto passado, o segundo mandato é mais do mesmo e, sendo o tédio mau conselheiro, a tendência para a asneira torna-se inevitável. Mas nenhum resiste à tentação do segundo mandato, nem mesmo alguém como Mário Soares, que tinha tão mais vida do que aquela que cabia nas paredes de Belém. No primeiro mandato vimos o melhor de Marcelo, um contagian­te suspiro de alívio depois dos anos de chumbo da majestade cavaquista; no segundo, estamos a assistir ao seu pior, à facilidade com que os grandes princípios degeneram numa absoluta vacuidade. Prejudicial ao país. Mas, enquanto o tempo não passa e isto não tem fim, fica a pergunta a que só ele tem obrigação de responder: e agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Dia 15 de Março, sexta-feira, cinco dias depois do acto eleitoral, ainda nem sequer sabemos quem ganhou as eleições e se quem ganhou quer mesmo governar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia