Nascido no Funchal em Janeiro de 1932, o madeirense Padre Agostinho Jardim Gonçalves foi indiscutivelmente uma das figuras mais marcantes da Igreja portuguesa, designadamente ao longo do século XX e do início deste.
Ordenado sacerdote em 1956, o pe. Jardim Gonçalves foi colocado como coadjuctor na paróquia da Vila de Machico, o que lhe permitiu um contacto directo com uma comunidade, simultaneamente rural e piscatória, profundamente marcada pelo feudal regime de colonia e pela dureza da faina marítima. Uma realidade sócio-económica assente na miséria e na exploração que determinaria a opção de toda uma vida: colocar-se ao serviço dos mais pobres e oprimidos na luta pela construção de um mundo mais justo e mais solidário.
No ano seguinte (1957) seria encarregue pelo então bispo da diocese, D. António Pereira Ribeiro de proceder à expansão da Acção Católica no meio rural, tendo, em 1959, como assistente da JACF, sido o principal dinamizador de um Encontro de Estudos dos diferentes movimentos da A. C. na Madeira que serviu para elaborar o retrato da realidade das condições de vida que enfrentavam as respectivas populações.
Seria na sequência da realização em Lourdes, em Maio de 1960, do Congresso do Movimento Internacional da Juventude Católica Rural (MIJCR), cujo tema de fundo foi “A Fome no Mundo nos seus múltiplos aspectos”, que o sacerdote madeirense haveria de ser convidado a abraçar um novo desafio: o de ser assistente nacional da Juventude Operária Católica Feminina (JOCF).
Mas antes ainda da partida para Lisboa, Jardim Gonçalves deixaria uma outra marca do seu dinamismo e criatividade, desta feita no jornal da diocese. Convidado pelo novo bispo, D. David de Sousa, para dirigir a redacção do “Jornal da Madeira” imprimir-lhe-á uma dinâmica reconhecida por todos, em particular pelo seu sucessor, o pe. José Manuel Paquete de Oliveira. Uma marca que, aliás, começara por deixar aquando da sua passagem pelo Seminário Maior do Funchal ao ser responsável, conjuntamente com o colega Arnaldo Rufino da Silva, pela introdução no mesmo de outras artes, designadamente do teatro e do ballet, para além da música.
Pouco tempo depois da sua chegada a Lisboa, o Pe. Jardim Gonçalves passaria a desempenhar as funções de assistente nacional da LOC e da LOCF (os organismos operários adultos da A. Católica). Funções que exerceria nos anos 60 e 70 com indiscutível brilho e qualidade e que acabariam por serem reconhecidas internacionalmente. Primeiramente, no período de 1967 a 1970, como assistente europeu eleito do Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos (MMTC), a que se seguiu a sua nomeação pela Santa Sé como primeiro assistente-geral do referido Movimento (MMTC), entre 1968 e 1974. Tarefas que acumularia com as que detinha a nível nacional.
A importância que essa actividade representou na sua vida, levaria Jardim Gonçalves, em Novembro de 2011, numa entrevista concedida à Agência Eclesia, por ocasião da comemoração dos 75 anos da LOC-MTC, a assumir: “Foi através da JAC e da JOC que descobri o mundo e fiquei a saber que a sociedade não era bem aquilo que nos diziam ser como expressão de comunhão e solidariedade”.
Destaque que atribuiria, por outro lado, ao Concílio Vaticano II, iniciado em 12 de Outubro de 1962, no pontificado de João XXIII e continuado e concluído pelo seu sucessor, Paulo VI. Em Dezembro de 2005, no jantar que há anos junta mensalmente em Lisboa os madeirenses radicados na capital, Jardim Gonçalves confessaria: “Descobrimos que havia outra hipótese de viver a religião sem o politicamente correcto da altura”, lamentando, porém: Nunca se quis ir mais além, pisar o risco e tirar as conclusões todas. Deixamo-nos ficar pelo meio caminho”. Uma leitura que significativamente é partilhada pelo actual Papa Francisco ao considerar que as reformas do Concílio ainda não foram totalmente assimiladas. Curiosamente, o seu próprio antecessor, Bento XVI afirmou que existe um Concílio virtual, que ficou famoso nos media, e o Concílio real que ainda precisa de ser aplicado.
Seria, de resto, no decorrer do Concílio Vaticano II que foi criado em Portugal, o Centro de Cultura Operária (CCO), para cujo desenvolvimento e afirmação foi determinante o apoio internacional, quer ao nível económico quer de solidariedade.
Num texto publicado no livro “A Igreja no Mundo Operário – Contributos para a História da LOC e da LOCF -1936-1974”, o Pe. Jardim Gonçalves destacaria importância das “relações internacionais” ao nível europeu na actividade da LOC, sublinhando: “O sindicalismo livre, o associativismo plural, os novos direitos sociais, tudo isso se convertia numa miragem para onde a LOC se virou, admirativa do que se ia desenvolvendo nesses países”. Jardim Gonçalves acrescentava que essas relações permitiram também “dar a conhecer no exterior a injustiça e os malefícios do regime totalitário vigente em Portugal e revelar a existência no nosso país de militantes operários cristãos, reunidos na LOC e que se debatiam pela defesa dos trabalhadores, contrastando com a cumplicidade da respectiva Igreja hierárquica”. E, não menos importante, adiantava ainda, gerar “plataformas de solidariedade e colaboração que vieram a ter particular expressão na acção da LOC/LOCF face ao fenómeno da emigração portuguesa clandestina, do crescente número de refractários à guerra colonial e na criação e apoio do Centro de Cultura Operária, criado em 1963, em Lisboa”.
Jardim Gonçalves envolver-se-ia em outras iniciativas de natureza cívica, quer durante a ditadura do Estado Novo, quer no período democrático.
Foi, por exemplo, um dos 48 cidadãos que constituíram a Comissão Nacional de Socorro dos Presos Políticos (CNSPP), criada a 31 de Dezembro de 1969. Uma Comissão suprapartidária, composta por muitos cidadãos independentes, de partidos políticos e por outros ligados às diferentes organizações que compunham a oposição ao regime – integravam-na 9 padres católicos e um protestante. No grupo dos católicos, contavam-se ainda, entre outros, Frei Bento Domingues e os então sacerdotes José Felicidade Alves e Luís Moita.
E, no pós-25 de Abril, fez parte da redacção do vespertino lisboeta “República”, tendo sido um dos dois jornalistas que se colocaram ao lado dos trabalhadores gráficos durante o contencioso conhecido como “Caso República”.
Anos volvidos, em 1988, fundaria, com, entre outros, o dominicano Luís de França e o pastor José Manuel Leite da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal, a OIKOS – Cooperação e Desenvolvimento, uma organização não governamental que se envolveria em acções de solidariedade com as populações das antigas colónias portuguesas, de modo particular em Moçambique.
Muito embora se tenha, entretanto, transformado num sacerdote com projecção e prestígio internacionais e simultaneamente num cidadão do mundo, o Pe. Jardim Gonçalves manteria sempre a sua ligação à Diocese do Funchal de que era oriundo, e à sua terra natal, a Madeira.
Não admira, por isso, que, em 1972, na sequência da nomeação para a diocese de Coimbra do então bispo do Funchal, D. João Saraiva, Jardim Gonçalves tenha sido um dos 34 subscritores de um documento de sete páginas que reflectia sobre a “Missão Actual da Igreja” e o “Estado e Necessidades da Diocese” e que seria entregue em 23 de Agosto de 1972 ao Núncio Apostólico em Portugal, D. Giuseppe Maria Sensi.
O grupo de signatários, 23 sacerdotes e 11 leigos (os presidentes diocesanos de todos os organismos operários e rurais da Acção Católica e ainda do Centro de Cultura Operária e dos Cursos de Cristandade) que se identificavam em plenitude com o espírito da Doutrina do Concílio Vaticano II, alimentava o desejo, a esperança que a Diocese do Funchal recebesse um prelado que encarnasse sem reservas esse espírito e que pudesse introduzir uma lufada de ar fresco numa Igreja que permanecia em geral muito fechada sobre si própria, muito pouco atenta e desperta para os sinais dos tempos e em que o conservadorismo era claramente predominante.
O documento, onde sobressaiam os nomes do designado grupo dos “Padres do Pombal” (João da Cruz Nunes, Arnaldo Rufino da Silva, Gabriel Lino Cabral e Francisco Sidónio Figueira), mas também outros como Paquete de Oliveira, Martins Júnior, Mário Tavares Figueira e José Maria Araújo, seria recebido a contra-gosto. Giuseppe Sensi mostrar-se-ia particularmente incomodado com a presença do Pe. Jardim Gonçalves, questionando-o, repetidamente: “Que fazes aqui?”, tendo chegado a dar sinais de não querer receber o texto. Acabaria por ceder, quando os sacerdotes presentes – Jardim Gonçalves e Sidónio Figueira – o informaram de que o mesmo seria divulgado.
Como é sabido, os desejos e esperanças formulados nesse documento seriam completamente defraudados. Jardim Gonçalves haveria, de resto, numa das últimas conversas que com ele mantive, de reconhecer que aquela carta acabou por provocar um efeito contrário ao que, o grupo a que pertencia, pretendia.
Essa atenção à Madeira, aos problemas das suas gentes, fica igualmente patente com a circunstância de a 15 de Julho de 1974 ter sido eleito para uma “Comissão Ad Hoc” encarregue da gestão da Casa da Madeira em Lisboa até à realização de novas eleições, conjuntamente com outros conterrâneos como, por exemplo, os engs. Melim Mendes e David Caldeira (então oficial da Armada) e o jornalista Avelino Rodrigues (antigo sacerdote).
Quando escassas semanas depois do 25 de Abril, Jardim Gonçalves se deslocou à Madeira para visitar os seus familiares e contactar com os seus amigos, foi entrevistado pelo centenário “Diário de Notícias”. À entrevista publicada no domingo 26 de Maio, o recém-chegado Bispo da Diocese, Francisco Santana, responderia, ipsis verbis, embora sem o citar, na homília dessa noite, proferida na Sé Catedral.
Nessa entrevista, Jardim Gonçalves referiu-se, sem papas na língua, ao passado anterior ao 25 de Abril, a um “pesadelo de décadas”, sublinhando haver “aspectos candentes da vida nacional que aguardam uma resposta que não pode tardar, desde a guerra colonial à repartição equitativa e justa das riquezas do país”. Simultaneamente analisou o comportamento da Igreja, face ao regime, de um modo particularmente crítico: “a maioria dos membros da Igreja habituou-se a viver à sombra dum regime político que consideravam salvaguarda duma civilização e duma cultura que abusivamente se etiquetavam de cristãos. A aliança e a confusão entre a Igreja e o poder político estabelecido eram notórias e deram lugar a situações dramáticas de que a Igreja saiu sempre enfraquecida. Perdendo a coragem de denunciar as injustiças e a opressão que o povo sofria, com medo de cair no desagrado da força política ou dos potentados que a mantinham, a Igreja perdeu, pouco a pouco, entre nós, a necessária credibilidade para ser, numa hora como esta, um factor decisivo e dinâmico na reconstrução do País”. E, em jeito de antevisão, aduziu: “A Igreja, no seu conjunto, não se reabilitará perante o povo português, se não tiver a coragem de, sem oportunismo, se penitenciar de erros passados, se despojar dos sinais e expressões que a identificam ainda com as sombras políticas do regime deposto e de se afirmar convicta e resolutamente do lado dos mais pobres e oprimidos”. E à pergunta – “Encontrar-se-á a Igreja na Madeira apta a acompanhar o extraordinário movimento democrático que se constata em todo o Portugal?” – Jardim Gonçalves voltaria a ser contundente, acabando por denunciar posturas e práticas assumidas pelo novo prelado diocesano: “Não é com autoritarismos balofos, nem com atitudes repassadas de um conservadorismo aberrante, nem – muito menos – com gestos ambíguos de quem, à última hora, quer desajeitadamente lavar-se de culpas antigas, que se construirá ou renovará uma Igreja autêntica. Se não se confiar nos leigos e padres que demonstraram até agora uma vontade clara de lutar pela justiça e pela verdade, a Igreja na Madeira não será, dentro em breve, mais do que uma recordação mortiça do passado, sem qualquer interesse ou impacto numa sociedade que terá de ser estruturalmente revolucionada para que o povo aí encontre o seu lugar e a sua força. É duro dizê-lo, mas é muito mais duro sentir que isso mesmo pode acontecer …”.
A resposta do bispo – porque a homília que proferiu teve efectivamente esse propósito – seria reproduzida nos dois jornais diários locais, nas suas edições de 27 de Maio, ambas com destaque nas respectivas primeiras páginas.
No órgão da diocese, o “Jornal da Madeira”, o título era de resposta directa à frase com que o “DN” havia titulado a entrevista do pe. Jardim: “A Igreja não tem pressas nem medo e sabe bem que não está em jogo a sua sobrevivência nem está perante o seu fracasso total”, enquanto o “DN” preferiu destacar: “A Igreja não perdeu a coragem de denunciar as injustiças e não tem receio de cair em desagrado de qualquer força política”.
O prelado realçaria ainda: “Venho com as mãos limpas, porque nunca me aproveitei deste ou daquele regime, e não espero usufruir da situação de favor ou de privilégio qualquer que seja o futuro do país”.
Francisco Santana acabaria por proclamar uma coisa e hipocritamente procederia exactamente ao contrário, envolvendo-se na política partidária e, mais grave ainda, colocando a própria Igreja, enquanto instituição, ao serviço de um partido e de um governo.
Volvidas duas semanas (9 de Junho), Jardim Gonçalves divulgaria, também no “DN”, uma “Carta Aberta ao Senhor Bispo do Funchal”, na qual procurou clarificar a sua visão sobre a Igreja, contrapondo-a à expressa pelo antigo assistente da organização “Stella Maris”.
Defendendo uma Igreja que, “no seu interior, aprenda a cultivar e exercite os valores integrantes duma verdadeira democracia”, o sacerdote madeirense interpelaria o prelado, nestes termos: “Terá sido sinal de coragem o silêncio cúmplice da Igreja sobre situações de injustiça não só de facto, mas também de direito, desde a miséria, opressão e marginalidade em que vivem massas de trabalhadores à perseguição e tortura infringidas aos opositores ao regime de Salazar e Marcelo Caetano?
“Terá sido sinal de coragem a pretensa ignorância da guerra colonial com as suas consequências e desmandos que se estenderam a massacres reconhecidos internacionalmente e contrários aos mais elementares direitos da pessoa humana e de populações inocentes ou comprometidas numa luta de libertação?
Terá sido sinal de coragem esta forma fácil e morna como bispos e padres lançaram bençãos e água benta sobre pendões e instrumentos de guerra, destinados a serem material de morte e até de genocídio?
Terá sido sinal de coragem a negação de solidariedade -a que tinham direito- a certos sacerdotes e até bispos que -esses sim- tiveram a coragem de denunciar injustiças e proclamar a verdade?”.
Questões que adicionaria para caracterizar “a história da Igreja na Madeira”, a saber:
– “A que Igreja pertenciam e pertencem os notáveis da vida económica, social, cultural e política do arquipélago?
– “A que Igreja pertenciam e pertencem os que tudo podem e mandam na cidade, em vilas e aldeias?
– “A que Igreja pertenciam e pertencem os que ontem obrigavam o povo a aceitar a SUA «verdade» e que agora se desculpam e se afirmam democratas da melhor cepa?
– “A que Igreja pertenciam e pertencem os que mantiveram o povo numa alienação religiosa cujos frutos estão à vista?”.
A concluir, o antigo chefe de redacção do “JM”, escreveu: “Compreender para exortar à penitência, de acordo. Seria esta a sua missão. Mas nunca defender, sem dados e sem análise, aquilo que não tem defesa possível”.
Jardim Gonçalves, justificaria a divulgação pública da “Carta” sublinhando que o fez “com plena consciência de que cumpria um dever, porque servia a Verdade”. Recorde-se, ainda, que Francisco Santana chegou a lamentar, na citada homília, que a aludida entrevista tivesse sido publicada. Certamente, com saudades dos tempos da censura!…
Ao prestigiado sacerdote madeirense, o “DN” local voltaria a conceder merecido destaque, na edição do dia de Natal desse ano de 1974, com a publicação de um seu artigo, com o título “Este Natal para este homem português”. Nele, Jardim Gonçalves faz a apologia da “libertação total”, “duma sociedade sem escravos”: “Se de libertar se trata, então as opções apontadas são claras. Trata-se de libertar oprimidos e explorados, o que, na linguagem do nosso tempo, e no contexto sócio-político do nosso país, significa mudar radicalmente as estruturas da sociedade, cujos mecanismos provaram estar ao serviço duma opressão planificada e dum esmagamento organizado”. Nesse texto, desmontaria ainda a ideia “dum Cristo neutro”, escrevendo: “Nada mais anacrónico do sinal libertador que foi e é o Natal que essa ideia feita, tão ao gosto de certa Igreja «reconciliadora», segundo a qual «Cristo veio e é para todos», ricos ou pobres. Se a afirmação é objectivamente verdadeira, a intenção política que ela esconde e as atitudes práticas que ela desencadeia contradizem a riqueza do seu conteúdo. Cristo veio para libertar todos os homens, mas essa libertação passa necessariamente pela luta que os oprimidos têm de travar para gozarem do Sol tonificador da liberdade e pela renúncia sincera, por parte dos ricos, a bens que os alienam e que os tornam em domesticadores cínicos dos pobres e dos fracos”.
Entretanto, se, porventura, pudessem subsistir dúvidas sobre o reconhecimento e respeitabilidade internacional que o Pe. Jardim Gonçalves granjeara pelo seu relevante papel na evangelização do mundo do trabalho, as mesmas foram totalmente desfeitas, quando em finais de Agosto de 1974 foi conhecida a sua nomeação, a título pessoal, pelo Papa Paulo VI para «perito» do Sínodo dos Bispos em matéria de evangelização (com mais 14 outros padres de diversas nacionalidades, representando os países do mundo inteiro) que, entre 27 de Setembro e 26 de Outubro de 74, decorreu no Vaticano. Uma escolha que foi recebida com regozijo, por padres e leigos, na diocese de Lisboa, enquanto o episcopado português se manteve em silêncio.
Por essa altura, o semanário “Expresso” (edição de 28/9/74), sob o título “Perito português no Sínodo dos Bispos” publicaria um artigo (transcrito pelo “DN” local a 9 de Outubro), em que, no final, lia-se: “O seu nome tem sido várias vezes apontado pelos cristãos que o conhecem como um bom candidato ao episcopado, mas a opinião de muitos é que não seria ou não será aceite, nem pela Conferência dos Bispos (nem pelo governo português, pelo menos até ao 25 de Abril …)”. Sintomaticamente, a completar a notícia, o diário madeirense adiantava: “poderíamos acrescentar que a oposição ao Pe. Jardim também teve eco na Madeira…”. Paquete de Oliveira, à época director daquele matutino, dispunha de um conhecimento privilegiado para poder dar nota dessa “oposição”. Que no caso da Madeira não terminaria com o 25 de Abril. Nem no seio da hierarquia da Igreja, nem da parte do poder político implantado na sequência das eleições para a Assembleia Regional, ocorridas em 27 de Junho de 1976.A comprová-lo basta referir que, enquanto o “DN”, fez questão de relevar a sua participação nesse Sínodo, transcrevendo em Novembro uma entrevista que a propósito concedera ao vespertino lisboeta “República” (edição de 1/11/74), o órgão da diocese ignorou quase por completo essa presença. Francisco Santana jamais esqueceria que tivesse colocado a nu a Igreja que o prelado diocesano representava: a herdeira da cumplicidade com o Estado Novo, prolongada agora com o novo poder regional.
Em Dezembro de 74, o semanário dirigido por Francisco Pinto Balsemão voltaria a apontar o seu nome para uma das dioceses em vias de criação, concretamente a de Setúbal, escrevendo: “Até há muito poucos dias parecia quase certa (e a revista «Reflexo» de 28/11 p.p. chegou a apontar nesse sentido) a ida do pe. Jardim Gonçalves para Setúbal, do pe. João Alves para auxiliar do Patriarcado de Lisboa e do Arcebispo de Mitilene, Júlio Rebimba, para Santarém”. O texto, porém, acrescentava: “Os últimos «rumores» que chegam até nós, parecem desmentir todo este xadrez, que trazia, ainda assim, alguma esperança aos sectores dos cristãos de maior abertura, nomeadamente a designação do pe. Jardim. Os novos bispos, já escolhidos neste momento pelo Núncio Apostólico seriam figuras bem mais conservadoras do que os previstos, provavelmente de «estilo» idêntico ao dos três últimos padres que a Nunciatura elevou ao Episcopado no nosso País e que as comunidades cristãs dificilmente elegeriam, se fossem chamadas a indicar os seus Pastores”.
A concluir, aquele semanário anotava: “A confirmar-se esta hipótese, teremos uma vez mais adiado o 25 de Abril na Igreja portuguesa, o número de padres a abandonar o «ministério» sacerdotal poderá registar um rápido aumento e os cristãos militantes irão, certamente, exigir de novo à Santa Sé, um velho e persistente desejo: a substituição do Núncio Apostólico em Portugal” – Giuseppe Sensi que era acusado de, “com a sua atitude comprometida com o sistema” de ter dificultado “duramente a acção dos cristãos em Portugal”, só seria substituído em Maio de 1976.
Jardim Gonçalves, por sua vez, tal como no passado, continuou a ter, após o 25 de Abril, uma intervenção activa na sociedade portuguesa, não se coibindo nunca de expressar a sua opinião, o seu pensamento sobre quaisquer assuntos, quer inerentes à vida da Igreja, quer fora dela. Fez, por exemplo, parte do CERP – Cristãos Em Reflexão Permanente -, um grupo de cerca de vinte pessoas de quadrantes ideológicos diferentes, representativas mas não representantes de vários meios religiosos – leigos e padres, acção católica e grupos-base , militantes e professores, mundo rural e universidade, etc., que, no período compreendido entre o 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, elaborou e divulgou um conjunto de importantes documentos, a maior parte dos quais reunidos em dois livros editados pela Ulmeiro.
A frontalidade que o caracterizava ditaria não só a não ascensão ao episcopado, mas também a que tivesse sido ostracizado pela hierarquia da própria Igreja em Portugal. Uma marginalização que seria interrompida no decorrer do múnus episcopal de D. José Policarpo que, após a designação como Cardeal Patriarca de Lisboa, em 1998, o nomearia director do Departamento de Comunicação e Cultura do Patriarcado e seu porta-voz, tendo dirigido ainda o Centro Cultural de São Vicente, uma instituição criada pelo cardeal patriarca com o objectivo de realizar iniciativas na área cultural e que estava aberta a parcerias com outras entidades.
Optaria por não escrever as suas riquíssimas memórias porque ao fazê-lo tinha plena consciência de que não poderia deixar de ser crítico de pessoas e instituições e, muito embora fragilizado fisicamente pelos problemas de saúde que o afectaram nos últimos quatro anos da sua vida, manteve até ao fim a lucidez e o espírito crítico que sempre o caracterizaram: prova disso mesmo, a última mensagem que enviou à “família e amigos”, no passado dia 18 de Dezembro, pondo em causa o consumismo em que se transformou a Festa do Nascimento do Menino Jesus.
* por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
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