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quarta-feira, 17 de julho de 2024

França: tudo os uniu e agora tudo os desune


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A ‘magia’ só será efectiva se houver um programa de desenvolvimento bem assente no terreno, que terá de ser bem negociado com os partidos e as instituições de natureza social.



Deu-se “magia” na segunda volta das Legislativas em França. O Presidente Macron, face à pesada derrota nas Eleições Europeias (9 Junho), dissolve de imediato a Assembleia Nacional e marca Legislativas para 30 de Junho e 7 de Julho (primeira e segunda volta). Face às sondagens que lhe eram, desde há muito adversas, Macron, tudo indica, trazia premeditadamente esta decisão para aquela noite.

Aliás, há quem identifique o Presidente Macron, como um homem que pensa e decide “só” e, raramente, partilha com os assessores as suas decisões difíceis. E esta não terá sido diferente. Nem com o primeiro-ministro Attal terá conversado. Limitou-se a convocar, simbolicamente, uma reunião no Palácio do Eliseu, um pouco antes de se conhecerem os resultados esperados, para dizer que ia anunciar a dissolução da Assembleia Nacional.

1. Na primeira volta das legislativas, os resultados chegam tão desoladores (duas grandes derrotas seguidas), dizendo-se que as sondagens apontavam, no mínimo, para uma vitória final relativa do partido (RN) de Marine Le Pen, e muitos para uma maioria absoluta.

Nesta situação de perda, muito rapidamente se gera um movimento em torno de tudo fazer para impedir a constituição de um governo RN, ou seja, bloquear a maioria absoluta como muitos previam ser ainda possível.

Utilizando as peculiaridades da lei eleitoral francesa da segunda volta, em que se pode desistir em favor de candidato melhor colocado, fizeram-se os arranjos contra o RN e a situação resultou praticamente em pleno. Esta permuta favoreceu todos os grupos políticos em desfavor do RN e o objectivo comum é atingido, ficando, assim, em termos de deputados, Marine Le Pen, em terceiro lugar, o grupo político de Macron, em segundo e a Nova Frente Popular (NFP-esquerdas), em primeiro. Até se escreveu que o primeiro-ministro Attal teve um bom desempenho na teia desta troca de permutas, pois foi muito extensivo, saindo assim prestigiado.

2. Uma matéria é o número de deputados, outra o número de votos que cada grupo político aufere. E havendo grandes desvios nesta correlação, sem dúvida, resta-nos uma profunda reflexão, sobretudo em termos de visão de futuro, sobre a questão como conjugar resultados e gestão de governação de forma a barrar o crescimento continuado da extrema-direita.

Cumprindo a lei, o objectivo foi alcançado, trabalhando na base do que unia os diversos grupos políticos: bloquear o acesso à formação de governo pelo RN.

Numa análise de como avançar ou mesmo se haverá condições de avançar pois foi esse certamente o motivo por que a Assembleia Nacional foi dissolvida, criar condições de governabilidade política do País, através da negociação de maiorias que sustentem o Governo, o que não havia anteriormente e a governação entrara em degradação, por enquanto a situação continua muito complexa e os motivos da dissolução ainda não se ultrapassaram.

Situação comparada – votos e deputados

3. A Nova Frente Popular obteve 182 deputados com 6 milhões 948 mil votos. O grupo do Presidente Macron 168 deputados com 6 milhões 574 mil votos e o RN (União Nacional) 143 deputados com dez milhões 121 mil votos (números redondos).

Por esta informação, vemos que o RN tem em relação à NFP mais 3 milhões e 100 mil votos e menos cerca de 39 deputados e em relação ao grupo do Presidente 3 milhões e 500 mil votos e menos 25 deputados. Diferenças muito acentuadas que nos fazem pensar, apesar de base legal.

No nosso país, tornar-se-ia chocante uma situação destas, pois estamos familiarizados com o sistema do voto directo e proporcional e ainda o queremos aperfeiçoar para que todos os votos sejam aproveitados em termos de deputados a eleger.

Tudo os uniu e agora tudo os desune

4. Macron está numa situação complexa para encontrar caminho para uma “terceira ronda”, ou seja, caminho sustentado para nomear um primeiro-ministro. Numa carta sua, divulgada a 10 de Julho, escreveu que “ninguém ganhou” estas eleições e então apelou para que se encontre uma maioria política na Assembleia Nacional para nessa base se designar o governo.

O caos domina. No interior da NFP, são muitos os que querem o cargo de primeiro-ministro, incluindo Mélenchon, uma personalidade rejeitada em geral para tal cargo, menos no seu partido a França Insubmissa (LFI), pois consideram-no muito quezilento e nada dialogante.

Nos partidos do centro, a confusão também não é menor, consoante se trata do centro-direita ou do centro-esquerda. Macron apelou à constituição de uma maioria na Assembleia Nacional, uma Frente Republicana para, de certa forma, excluir a LFI. E há quem aponte ainda um governo de natureza “técnica” como já aconteceu, em tempos idos, em países como a Itália. Tudo indica que a França não tem tradição para uma solução destas.

Mas talvez fosse a melhor saída temporária. É impossível um programa mínimo de governo a partir de pontos dos programas da NFP e do partido do Presidente. Pelo menos, partes dos dois grupos teriam de ser partilhados. E a distância é tamanha. Se até na NFP não se incluíram certas matérias como a energia nuclear, as relações externas, o equilíbrio das contas públicas, para que algo avançasse na segunda volta!

Se na reforma das reformas que afasta os dois grupos e Mélenchon desejaria acabar por decreto com esta reforma que deu tanto brado há cerca de um ano, o que não parece possível! Se a própria energia nuclear, neste momento, fulcral para a França, o défice orçamental, o problema do automóvel eléctrico, as minas de lítio, o mundo agrícola (os preços agrícolas/Ucrânia) e o ambiente, quase diremos não há saída, pois pouco de comum existe, para compor um programa mínimo de governo.

Só mesmo um governo “técnico” poderá abarcar uma série destas questões sem rejeição, tão essenciais na recuperação da economia francesa e equilíbrio das suas contas públicas.

Por exemplo, o desenvolvimento da energia nuclear em que cerca do 65% do povo francês está de acordo, tem de constar de um programa de governo, tanto mais que é motor da indústria e do emprego em França ou mesmo o automóvel eléctrico com impacto forte directo e indirecto na vida das pessoas e ainda as medidas sempre dolorosas para tirar uma França de um país em bancarrota.

Muita negociação está em curso ou deverá passar a estar. E se o que uniu os franceses foi o bloqueio de acesso ao poder do RN, algo tem de ser feito pelo próximo governo para que não se continue a gerar as condições para o seu crescimento. E esse trabalho só pode advir de um programa de desenvolvimento bem assente no terreno, pelo que terá de ser bem negociado com os partidos e as instituições de natureza social.

Há alguma esperança de que, no dia 18 deste mês, data da eleição da presidência da Assembleia, se tal se vier a realizar, isso revele indícios de que está em marcha um acordo de largo espectro que poderá ser conducente à solução do problema da coligação, na base de uma Frente Republicana. Se essa frente se concretizar, daqui sairá o governo que coabitará com Macron Presidente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Esta senhora é perigosa


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
12/07/2024
estatuadesal 


Esta senhora, Lucília Gago, é perigosa. É certo que se vai embora dentro de três meses, mas a cultura que deixa instalada é, em si mesma, um perigo.



Das duas, uma: ou Lucília Gago não entende a gravidade das coisas que diz ou deixa por dizer, das coisas que cala ou consente, e isso é altamente preocupante, ou, pelo contrário, entende-o muito bem mas não o considera grave, e isso é perigoso. Mas depois de seguir atentamente a sua entrevista à RTP não me restam dúvidas algumas de que a hipótese válida é a segunda. A senhora procuradora-geral da República (PGR) não apenas defende a sua dama, os seus métodos e os seus resultados, como ainda considera quaisquer críticas à actuação do organismo a que preside nada mais nada menos do que o resultado de “uma campanha orquestrada”. Segundo o seu raciocínio, vivemos num país onde todos podem ser livremente criticados, como é próprio de uma democracia, e onde o Ministério Público (MP), que ela supostamente dirige, pode instaurar por sua única iniciativa processos de averiguações criminais ao primeiro-ministro (PM), ao Presidente da República (PR) e a quem mais entender, mas o contrário — qualquer crítica ao MP ou à PGR — só pode ser resultado de uma campanha orquestrada e necessariamente de má-fé. Porque eles são infalíveis, “altamente competentes” e não devem explicações nem pedidos de desculpas a ninguém. Mesmo que escutem a troco de nada um ministro durante quatro anos, mesmo que façam cair um Governo anunciando que o PM está sob suspeita num inquérito e depois o Tribunal da Relação reduza essa suspeita a simples ridículo, ou que mantenham durante anos suspensa a vida de pessoas suspeitas de pretensos crimes gritados para a praça pública e depois deixadas a vegetar na secretária de um procurador.

Nada, ela e eles não têm nada de que se arrepender, nada que explicar, nada que reflectir. Nem a banalização das escutas telefónicas, que de meio excepcional para a descoberta da verdade degenerou no meio habitual ou único de investigação. Nem a “normalidade” da detenção prévia de pessoas para interrogatório junto de um juiz de instrução, podendo esperar presas entre três dias ou três semanas, em lugar do que seria normal, que era convocá-las para o interrogatório e depois, se o juiz assim o entendesse, ficarem então em prisão preventiva. Nem a sistemática violação do segredo de justiça como forma de pré-julgamento público favorável ao MP e tão fácil de evitar se houvesse vontade de o fazer. Nem sequer, ela que se diz avessa ao “espalhafato”, ter uma palavra de arrependimento perante as espalhafatosas operações de busca e apreensão de meios de prova junto de suspeitos, transformadas em operações militares mediáticas como se de combate ao terrorismo se tratasse. Nem ao menos os grosseiros erros na interpretação da lei processual, como no caso do parágrafo que fuzilou António Costa, em que dois telefonemas de dois intervenientes do processo que diziam ir falar com o PM é levado à conta de “notícia de um crime”, como exige a lei para abrir um processo de averiguações.

Ilustração Hugo Pinto

Diz a senhora que se não tivesse aberto um processo de averiguações a António Costa e se o não tivesse divulgado publicamente — sem mesmo saber se ele chegou, de facto, a ter o tal encontro com os outros intervenientes e de que constou ele — estaria a fazer uma “tentativa de encobrimento”. Mas encobrimento de quê, senhora Procuradora? Se fosse possível acreditar na ingenuidade de quem dirige o MP, seria de ficar estarrecido ouvir a PGR declarar que investigar criminalmente o PM em exercício “não requer nenhum cuidado acrescido”, porque “ninguém está acima da lei”. Portanto, ela pode escrever os disparates que lhe ocorrer nos comunicados da Procuradoria sem ter de se preocupar se isso derruba um Governo, porque a única coisa que lhe interessa e que deve interessar aos portugueses saber é que dois escutados no processo Influencer foram ouvidos a dizer que queriam falar com o PM. “Crime!”, concluiu ela, que, todavia, confessou não seguir de perto nem sequer os processos mais sensíveis e mediáticos do DCIAP, porque interferiria na sagrada autonomia dos magistrados do MP, além de que são muito “minuciosos”. A sério? Em que outro país do mundo é que esta rebaldaria se passará? Em que outro país do mundo é que um simples procurador do MP pode abrir investigações criminais ao PM e ao PR sem que o procurador-geral acompanhe passo a passo a investigação e esteja ciente, por exemplo, da necessidade de evitar a “coincidência” da divulgação de investigações com momentos políticos sensíveis?

Mas o pior da entrevista de Lucília Gago, para mim, foi a arrogância e o tom de ameaça que ela utilizou no lugar das explicações devidas. Arrogância quando, confrontada com a disparidade das acusações do MP face às decisões dos juízes, respondeu que “é muito difícil admitir um erro do MP, porque os magistrados do MP envolvidos são de grande competência”. Os juízes, portanto, é que são incompetentes. Pior foram as ameaças: João Galamba foi escutado quatro anos e, afinal, não foi acusado de nada e nem sequer ouvido? “As investigações prosseguem.” António Costa foi investigado, mas não constituído arguido, e a Relação arrasou os fundamentos da investigação sobre ele? “As investigações prosseguem e se o inquérito não foi ainda encerrado é porque algo a tal obsta.” Ou seja, que ninguém descanse em paz, o MP pode demorar anos, décadas, mas, tal como os agentes do FBI, nunca larga os seus Al Capones.

Esta senhora, Lucília Gago, é perigosa. Ela não apenas despreza as críticas à actuação do organismo que dirige, venham de onde vierem, como nem sequer aceita que, tendo os poderes que tem nas mãos, o MP não pode funcionar em roda livre, sendo hoje o único poder não escrutinado em Portugal, apesar de deter essa arma letal de poder privar da liberdade e da honra qualquer um, culpado ou inocente. É certo que ela se vai embora dentro de três meses, mas a cultura que deixa instalada é, em si mesma, um perigo.

2 Outra senhora que se transformou num perigo é a NATO. Os seus 75 anos, agora celebrados, não são um período homogéneo. Até ao desmantelamento da URSS e ao consequente fim do Pacto de Varsóvia, a NATO foi essencial para preservar a paz na Europa e no Ocidente, como organização de defesa face à ameaça soviética. Com um sábio jogo de contenção e firmeza, a NATO acabou por vencer em toda a linha a Guerra Fria. Porém, como algumas vezes acontece na história, os vencedores da Guerra Fria não souberam administrar a sua vitória. Assim aconteceu em Versalhes, em 1918, em que a humilhação alemã conduziu à ascensão de Hitler e à II Guerra Mundial. Ou no Iraque, em que a vaidade imbecil do Presidente George W. Bush quis “completar” a vitória exemplar do seu pai na I Guerra do Golfo, com isso conduzindo toda a região ao caos permanente. Com o fim da ameaça que justificara a sua fundação, a NATO não só optou por não se extinguir como também se lançou, sem justificação plausível, no expansionismo em direcção à Rússia — que muitos, como Henry Kissinger, logo avisaram que não poderia deixar Moscovo indiferente. Pela mesma razão, porque Kennedy não podia aceitar mísseis russos em Cuba em 1963, também Putin avisou que não poderia aceitar a Ucrânia na NATO, e eventualmente com mísseis nucleares da NATO na sua fronteira sul — isso constava, aliás, implicitamente do Acordo Minsk II, que Moscovo e Kiev tinham assinado, sob os auspícios de Paris e Berlim. Mas os Estados Unidos e a NATO responderam a Putin que qualquer país era soberano nas suas decisões e que a geopolítica não contava ali para nada. E deu-se a invasão — a qual podia ter terminado logo um mês depois, quando Moscovo e Kiev chegaram a um acordo de paz mediado por Israel e a Turquia, em Ancara, mas que Boris Johnson, primeiro, e Lloyd Austin, secretário da Defesa americano, depois, boicotaram, convencendo Zelensky a não assinar, prometendo-lhe em troca as armas necessárias para derrotar a Rússia. A chave para o fim da guerra da Ucrânia é Kiev renunciar à adesão à NATO, em contrapartida da retirada russa dos territórios ocupados. Mas a versão que nos vendem é que a única alternativa é prosseguir a guerra até à derrota total da Rússia ou Putin virá por aí fora até ao Terreiro do Paço. E por isso nesta celebração dos 75 anos da NATO, verdadeira cimeira de guerra, em cima da mesa está a adesão “irreversível” da Ucrânia à NATO, para que o facto consumado evite qualquer tentativa de pôr fim à guerra através de negociações de paz. E assim, num mundo em que o dinheiro necessário para combater as alterações climáticas foi desviado para fabricar armas para a Ucrânia, onde falta dinheiro para acorrer in loco às necessidades básicas dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, vemos o Presidente dos Estados Unidos saudar os membros da NATO, que já aumentaram ou vão aumentar as suas despesas militares. E o secretário-geral cessante, Jens Stoltenberg, condecorado com a Ordem Presidencial da Liberdade, mais uma vez apontar à próxima fronteira e ao próximo inimigo da chamada aliança defensiva do Atlântico Norte: a região da Ásia-Pacífico e a China. É todo um horizonte de esperança a perder de vista. Se ainda houver próximas gerações, não lhes invejo a sorte.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Em que caixa está a extrema‑direita?


Por
Carlos Matos Gomes, 
in Medium.com 
08/07/2024
estatuadesal 




Na cozinha da casa dos meus pais existiam umas caixas de lata com rótulos Arroz, Massa, Açúcar, Café… O que se encontrava no interior nunca correspondia ao rótulo. A lata que anunciava café de umas vezes tinha biscoitos, de outras nozes, a do açúcar podia ter massa ou farinha, havia uma que habitualmente servia de mealheiro e guardava moedas. Habituei-me a não confiar nos rótulos. Também passei mais de dois terços da minha vida a comer em refeitórios de instituições. Sou um consumidor de rancho geral, não espero maravilhas gastronómicas, mas procuro saber o que os cozinheiros lá colocam para evitar diarreias.



Com estas habilitações, fruto das circunstâncias, tendo a apreciar a “nobre arte da política” como um cozinhado de rancho geral elaborado com os produtos das latas que se encontram na dispensa. Hoje a política é um rancho geral produzido com uma receita de politicamente correto. As recentes eleições em Inglaterra e em França e as sondagens sobre as intenções de voto na Alemanha fornecem pistas para os clientes-consumidores que nós somos entenderem o que lhes estão a colocar no prato. O que devemos comer e o que devem rejeitar para não ficarmos doentes. Pelo menos isso: haja saúde!

Na Europa estão em hasta pública dois produtos políticos. O dos situacionistas e o dos anti situacionistas. As grandes máquinas promocionais, aquelas que nos convencem que uma bebida xaropada, escura como um esgoto, que desentope canos e desoxida moedas é a melhor bebida do mundo, impuseram o bom e o mau para a nossa saúde. As fontes produtoras de opinião etiquetaram os primeiros de moderados e os segundos de radicais. Mas a caixa com o rótulo moderados contem mesmo moderados? E a do rótulo: radicais, extremistas e outros que tais, conterá de facto ingredientes alternativos? A França é um bom tubo de ensaio para análise, mas os reagentes são os mesmos do Reino Unido e da Alemanha.

Qual é o produto político que os situacionistas propõem em França e cuja vitória saúdam como se os sans culottes tivessem tomado de novo a Bastilha (uma história muito adulterada)?

O situacionismo em França tem como ponto de partida o fim do mandato de Jacques Chirac e com ele o conceito gaulista de uma política autónoma da França e da Europa, de uma Europa com um núcleo formado pelo antigo império de Carlos Magno, a França, a Alemanha e o Norte de Itália (a lotaríngia). Chirac foi substituído por Sarkozy e este por Hollande e este por Macron. Este trio de PP ( petits presidents) corresponde em Portugal a Durão Barroso, Passos Coelho e Paulo Portas, em Espanha a Aznar e a Zapatero, em Inglaterra a Blair, Gordon Brown, Cameron, Theresa May, Boris Johnson.

Em termos de latas de cozinha temos uma prateleira de produtos que metidos em panela e deixando a cozer em lume brando produz uma papa que é o neoliberalismo. Uma ranchada que ilude a fome a curto prazo, mas mata a médio, porque lhe foram retirados, em nome do lucro, os elementos essenciais de vitaminas e proteínas.

Com que produtos se cozinha o “Ensemble” de Macron que ficou em segundo lugar nas eleições francesas e que tem sido celebrado pela caldeirada reunida sob o ressuscitado lema de “Nova Frente Popular”, que nem é nova, nem é uma frente, menos ainda é popular como a salvação da democracia tricolor da Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Uff! Titulou o progressista moderado Liberation. Mas uff a propósito de quê? Os franceses vão ressuscitar o sistema europeu Galileo de geolocalização para substituir o GPS americano? Vão impor uma administração europeia para o BCE, que faça do euro uma moeda de troca universal e ao serviço de uma política europeia?

E o que se encontra na caixa da Nova Frente Popular? O sereno desespero dos coletes amarelos que colocaram a França a ferro e fogo para depois permanecer tudo na mesma? Com a atual política da França (e da Europa) de crispação contra meio mundo: Rússia, China, Índia, África e até a América latina a quem vai a França da Nova Frente Popular vender produtos de luxo? Se a NFP mantiver a politica de Macron, dita moderada, de guerra aos BRICS, passará a submissa sem nunca ter sido insubmissa. Mélenchon e os seus aliados ficam com as malas, os perfume, os vinhos à porta dos clientes. Mas se quiser ser a França Insubmissa, os Estados Unidos tiram-lhe o tapete, passam-lhes uma rasteira, como fizeram no negócio dos submarinos para a Austrália (que vai entrar para a NATO, com a Nova Zelândia e com o apoio da França!) A NFP de Jean-Luc Mélenchon tem boas hipóteses de ficar isolada entre Putin, Xi Jiping e Trump. Deve ter sido essa possibilidade de quadratura do circulo, de comer o bolo e ficar com o bolo, que celebraram ontem! Dentro de dias saberemos novas dos extremistas moderados que salvaram a República!

Um dos maiores sucessos da propaganda política é ter conseguido “vender” o neoliberalismo como um produto saudável, moderado, equilibrado depois da sua apresentação pública como religião de salvação no golpe de Pinochet no Chile em 1973. O “Ensemble” de Macron é uma mixórdia neoliberal metida numa embalagem que tem sido impingida como sendo genuinamente democrata e que, como os meios de propaganda nos matraquearam ontem, contribuiu para a derrota do que os taxionomistas políticos classificaram como extrema-direita, que passou de Frente Nacional a União (Rassemblement) Nacional e da direção de Marine Le Pen para um seu meio genro (casado com uma sobrinha), Jordan Bardela.

Os produtos que compõem o “Ensemble” são conhecidos desde que a escola de economistas de Chicago patrocinada por Milton Friedman os utilizou para cozinhar a ditadura de Pinochet, no Chile: um deus — o mercado; um princípio - homem é o lobo do homem — sobrevivem os mais aptos, sucesso é estar acima dos outros. Um programa de vida: que cada ser humano viva e morra segundo as suas possibilidades. Obediência aos Trés Mandamentos de Margareth Thatcher: não há sociedade, há indivíduos; não há cidadãos, há consumidores, não há eleitos, há predadores de votos. Um sacrário: a Reserva Federal dos Estados Unidos.

O situacionismo assenta em duas bases, no neoliberalismo económico e social e no alinhamento estratégico pelos Estados Unidos.

As eleições no Reino Unido e em França revelam o beco sem saída do situacionismo e a alienação que os meios de comunicação conseguiram ao colocar as massas de futuros desempregados, de futuros SDF, os sem abrigo na sigla francesa e em homenagem aos franceses tão aparentemente felizes por manterem Macron no Eliseu, Mélenchon na animação popular e Marine Le Pen a esperar por ele para as próximas eleições presidenciais, onde lhe perguntará o que o distingue de Macron quanto ao euro, quanto à relação com o BCE, quanto à relação com os Estados Unidos, a Rússia, a China e a África, o que o distingue de Macron quanto à caótica política ambiental, quanto às fontes de abastecimento de energia, quanto à política aeroespacial da Europa, quanto às guerras com que os Estados Unidos cercaram a Europa desde os anos 80 do século passado — Irão, Iraque, Afeganistão, Jugoslávia, Síria, Palestina, Líbano, Líbia, produtoras das vagas de migrantes.

As eleições na Alemanha produzirão com elevada probabilidade o mesmo tipo de vitória dos situacionistas com mais ou menos sociais-democratas ou conservadores no grande bolo. O situacionismo europeu, o grande grupo dos democratas moderados, que inclui conservadores e sociais-democratas, constitui a religião oficial na Europa. O situacionismo teve a arte e os meios financeiros para vender o seu extremismo (são os defensores de que eles representam o Fim da História) como um produto de moderação e que todos os que lhes expõem os punhais que trazem escondido são extremistas. Extremistas são os outros.

O extremismo que se esconde na lata com o rótulo de moderados, juntos, unidos, conservadores, nas também democratas cristãos, trabalhistas e socialistas está no poder. É o poder e há largos anos! Em Inglaterra Boris Johnson não era mais nem menos moderado, ou extremista que Toni Blair! Ursula Von Der Leyen não é mais ou menos extremista ou, à francesa va-t-en guerre contra a Rússia e a China, que Macron desde que Putin o colocou na ponta da quilométrica mesa do Kremlin. A warmonger Kellie Kallas, a estoniana que vai entrar de representante da política externa da União Europeia é mais moderada ou extremista que Marine Le Pen? Em quê? E a madame Lagarde do BCE é uma moderada que ajuda pobres e remediados a pagar os juros exorbitantes aos bancos para terem um teto? E o trabalhista Keir Starmer recém-eleito Primeiro-Ministro do Reino Unido tem uma politica mais moderada para deportar migrantes para o Uganda ou os deixar afogar no Canal da Mancha dos seus moderados antecessores conservadores? E o que distingue as políticas migratórias do Reino Unido, dos Países Baixos, da Alemanha (que é a maior financiadora dos campos de concentração de migrantes na Turquia) das de Marine Le Pen, ou da Primeira-Ministra italiana?


Falecido em 2019, após uma vida bem gozada, Jacques Chirac foi o último gaulista no poder. Com a sua morte morreu qualquer laivo de desalinhamento da Europa e da França com a política de domínio económico, financeiro e militar por parte dos Estados Unidos.

Sendo assim, o que estão a celebrar os situacionistas europeus e os franceses em particular e, mais aberrante ainda, os que se afirmam gaulistas? O que defendem aqueles que o pensamento dominante classifica como extremistas e colocou numa lata com um autocolante: Perigo!

Se o perigo para a Europa é, em primeiro lugar, o do alastramento e subida de patamar das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente. Se, em segundo lugar o perigo é a da conjugação de inflação e depressão económica na Europa (a França dos moderados vitoriosos já está na categoria penalizadora de défice excessivo); e se, em terceiro lugar, o perigo para a Europa é o da irrelevância política e económica, transformada como está um mero apêndice dos Estados Unidos, foram os extremistas que trouxeram a Europa até aqui. E estão a celebrar a vitória. Celebram o quê?

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A transição energética a patinar e muito


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A transição energética, que tem por finalidade dar combate às alterações climáticas em curso, é acima de tudo “um negócio” e só, depois, procura responder a finalidades ambientais e humanas.



1. O consumo global de energia no planeta atingiu, em 2023, um novo máximo (619,6 exa-joules), superior em 2% ao ano anterior. A questão não está no crescimento, até poderá ser um excelente indicador, pois o Mundo precisa de mais energia para viver melhor e desenvolver-se, nomeadamente em zonas como África, América-Latina. O problema permanece na composição do consumo em que 81,5% continua a ser satisfeito por combustíveis fósseis, uma queda apenas de 0,4% em relação a 2022 (Fonte: Statistical Review of World Energy, 2024).

Tanto investimento, tanta propaganda, tantas COP (aliás, todos os anos há COP, certamente de muito interesse turístico) para tão poucos avanços no combate às alterações climáticas. Com elevada probabilidade, a receita de mudança não estará a ser a adequada. Se nessas COP ainda se discutisse o que falha! Mas são mais uma “feira de vaidades” e sobretudo sítio de encontros de negócios.

2. A transição energética devia ser um processo de transferência de recursos para a introdução de novas tecnologias, com vista a atingir metas apropriadas. Por isto, os custos tecnológicos situam-se mais no investimento e menos na operacionalização.

A transição energética actual consiste numa mudança de paradigma produtivo que transforma o processo de produção da energia na base de combustíveis fósseis para as de baixo carbono (nuclear e renováveis).

Mas a transição energética, que tem por finalidade dar combate às alterações climáticas em curso que todos os dias nos batem à porta, com múltiplos estragos materiais e muitas perdas de vidas humanas, é acima de tudo “um negócio” e só, depois, então, procura responder a finalidades ambientais e humanas.

Vamos a dois exemplos. Um americano e outro europeu: os veículos eléctricos.

3. Todos sabemos. A China é o país mais avançado nos domínios das tecnologias de produção de veículos eléctricos e de baterias, peça-chave deste tipo de veículo. Em 2023, o volume de vendas destes veículos a bateria (excluindo os mistos, plug-in) atingiu 10 milhões de unidades contra 7.5 milhões no ano anterior, sendo 60% distribuídos pela China, 25% UE e 10% EUA.

Acontece que as transações internacionais deste sector não resultam da dinâmica do mercado, mas são um assunto de teor essencialmente político. E as tarifas aduaneiras impostas recentemente pelos EUA e pela União Europeia às exportações de automóveis eléctricos oriundos da China, embora em percentagens diferentes por razões também diferentes, vêm provar o que se acaba de se dizer, até porque a penetração no mercado americano do veículo eléctrico chinês é tão diminuto que não as justificam.

4. Então que razões reais para tão exagerada subida das taxas aduaneiras de 25% para 100% no mercado americano?

Recuando um pouco no tempo, a governação Biden nas relações com a China, contra as expectativas de vários analistas, não trouxe nada de diferente de Trump. As relações continuaram/continuam muito tensas e o que prevalece são medidas de política pelo lado americano para preservar o domínio das tecnologias que serão determinantes nas próximas décadas. E esta área dos veículos, importante em termos de descarbonização da economia, poderá ser crucial nas próximas décadas. Os EUA têm consciência que perderam esta guerra, por várias razões, mas sobretudo estão a ver que não conseguem competir na superioridade tecnológica com a China.

As explicações justificativas são muito variadas, mas ilusórias. Houve uma averiguação sobre prática de dumping por parte da China. Não houve conclusões assertivas. Mas tudo serviu para justificar. Inclusive constituiu-se uma comissão bipartidária para análise de “roubo” pelos chineses de “propriedade industrial” dos EUA, esquecendo-se que um sector não pode desenvolver-se na base da cópia e que casos de cópia existem em todo o lado.

O que aconteceu foi uma planificação rigorosa com a finalidade de dominar esta indústria até porque a China domina o mercado mundial de matérias-primas, para esta produção, as conhecidas terras raras e, certamente, vai tentar defender esse quase monopólio, como qualquer outro país faria.

Esta potencial perda de superioridade tecnológica aterroriza os EUA há mais de 20 anos. Quando se aperceberam em perda nesta e outras áreas (fotovoltaicas, aerogeradores) começaram a recorrer a todos os meios para limitar os prejuízos. A introdução de taxas alfandegárias, contornando todas as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), desprestigia as instituições e quebra as regras de comércio, internacionalmente aceites, porque politiza descaradamente o problema do comércio. E é o que mais uma vez foi feito. Ainda não se conhece por onde a China retaliará, mas de certeza que o vai fazer. Anote-se que Musk (o grande senhor no Ocidente do carro eléctrico) é contra esta decisão de Biden.

5. O caso europeu é bem diferente. Em Bruxelas, também se anunciou, há um certo tempo, a análise da situação de dumping sem grandes conclusões, mas a Comissão Europeia contra a opinião de vários países-membros e empresas impõe o aumento de tarifas alfandegárias provisórias, embora mais brandas (15% a 30%), podendo atingir em certos casos 38%. Houve partidos como a CDU/CSU que fez campanha nas eleições europeias contra esta medida da Comissão, alegando que prejudicava países-membros e empresas europeias que mantêm investimentos na China e estão a negociar investimentos na Europa com ligação a capital chinês, como a Stellantis, quer na produção de baterias quer de veículos.

Esta indústria não está de boa saúde na União Europeia. Até o Tribunal de Contas Europeu “arrasou” a já célebre decisão de Bruxelas em querer acabar com carros a gasóleo e a gasolina até 2035, aconselhando a ponderação do equilíbrio entre prioridades ecológicas e política industrial e manifestando-se sobre o atraso da indústria de baterias na UE face aos seus concorrentes mundiais num mercado claramente dominado pela China.

Mas aqui a China não tardou a ripostar e aponta analisar a situação da importação de carne de porco e abates da União Europeia, alegando que a Europa através da PAC dá incentivos que distorcem a concorrência e, assim, tenciona aplicar a mesma conduta que a União Europeia lhe está a aplicar.

Mais uma vez, a União Europeia, apesar da discordância de alguns países-membros, age a reboque dos Estados Unidos. Temos aqui a funcionar, mais uma vez, a frase assassina de Jeffrey Sachs, célebre economista americano: “Fico muito triste por ver como a Europa é manipulada e dividida pelos EUA” (entrevista Público 16/06/2024), completando: “Estamos numa época de grandes potências. Há a China, a Índia, os Estados Unidos, a Rússia. Precisamos da Europa como uma verdadeira união, não como simples subordinada aos interesses hegemónicos dos EUA”.

Na verdade, foram montadas instituições internacionais para regular várias áreas críticas de interesses entre blocos, países e, depois, “inferiorizámo-las” não cumprindo as normas multilateralmente acordadas. Rebaixa-se a diplomacia a que deve ser reconhecida no Mundo uma função nobre, na resolução destes conflitos, com vista ao encontro de equilíbrios de interesses.

Há, de facto, tanto a rever para um Mundo mais equilibrado e de maior progresso. E para que a União Europeia se transforme numa potência de primeira, uma linha de conduta autónoma, não confundindo cooperação negociada com subordinação a interesses alheios.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.