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sábado, 16 de março de 2024

E agora, Sr. Presidente?


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
15/03/2024



(É por estas e por outras que tenho que trazer à ribalta muitos dos textos do Miguel Sousa Tavares. É dos poucos, com acesso à comunicação social de larga difusão, que tem a coragem de "chamar os bois pelos nomes", como neste texto em que escalpeliza brilhantemente o papel de Marcelo Rebelo de Sousa, no derrube do Governo de António Costa e na consequente ascensão meteórica da extrema-direita. Por isso mesmo, a ilustração acima - da nossa escolha, e não constante na publicação original -, é uma alegoria à sua junção às vazias acusações do MP contra o Primeiro-ministro cessante.
Estátua de Sal, 15/03/2024)

E agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.


Como era mais do que previsível, acordámos segunda-feira com um país ingovernável. Era previsível para qualquer um, mas especialmente para alguém como Marcelo Rebelo de Sousa, que passou uma vida inteira a acumular fama e proveito como imbatível leitor e construtor de cenários políticos, capaz de ler nos astros o que o comum dos mortais ainda não tinha descortinado na parede em frente. Deixemo-nos, pois, de meias-palavras: Marcelo não tem desculpa. Estamos como estamos porque ele assim o quis.

No “Público”, e na esteira de vários outros, Manuel Carvalho escreveu que “o prenúncio desta degradante democracia liberal estava à vista quando uma maioria se extinguiu à luz dos indícios de corrupção”, pelo que “Marcelo fez o que a sua consciência lhe ditava e que o grosso da opinião publicada lhe exigia”. Pois, o problema é que o grosso da opi­nião publicada tomou por indícios de corrupção o que não leu com atenção ou não percebeu, e, no mais, um Presidente deve guiar-se por aquilo que, em cada momento, quer a opinião pública, e não a opinião publicada. Até porque, em contrário, há quem diga mesmo que foi Marcelo quem sugeriu a Lucília Gago que introduzisse no comunicado da Procuradoria-Geral da República o tal parágrafo que ambos sabiam que levaria à imediata demissão de António Costa. Eu não acompanho essa teoria da conspiração ou do maquiavelismo, mas continuo a perguntar-me o que se terá passado na conversa entre o Presidente e a procuradora-geral que antecedeu a demissão do primeiro-ministro: terá Marcelo exigido saber, como lhe competia, o que havia de sólido nas suspeitas em relação a António Costa? E, em face disso — que era nada, como concluiu o juiz de instrução —, conformou-se com a execução pública do PM às mãos da PGR e com a sua demissão? Isto feito, e mal feito, com que legitimidade constitucional optou por recusar o nome indicado por António Costa para lhe suceder na chefia do Governo ou, em alternativa, pedir ao PS que indicasse um nome, como se faz em todas as democracias normais? Quem disse a Marcelo que em 2022 os portugueses tinham votado apenas em António Costa, e não também no PS, e que, se por qualquer razão ele não terminasse o seu mandato, preferiam eleições antecipadas e desembocar na situação que temos agora? A que deve ele obediência: às suas inclinações partidárias, às suas interpretações políticas ou às regras da Constituição da República? E, já agora, para que lhe serviu a opinião de um Conselho de Estado rigorosamente dividido a meio sobre o caminho a seguir? Apenas para o desprestígio acrescido de ver dois dos conselheiros, por si nomeados e ligados à AD, votarem pela convocação de eleições e depois aparecerem a fazer campanha eleitoral pela mesma AD...

Não, Marcelo não tem desculpa. Trata-se de alguém que passou anos a defender o valor da estabilidade e da previsibilidade dos mandatos levados até ao fim. Que, nos últimos dois anos, disse e repetiu que nada poderia pôr em causa o ritmo de execução do PRR — a última grande oportunidade de financiar o desenvolvimento do país com dinheiros europeus —, chegando a dizer a uma ministra que não lhe perdoaria um só dia de atraso. E, afinal, manda tudo ao charco em duas penadas e cavalgando uma insustentável ficção processual do Ministério Público relativamente ao PM — que, isso sim, devia preocupá-lo, e muito. Interrompe uma governação antes ainda do meio do seu termo, paralisa o país durante meses, lançando o alerta em Bruxelas, e dá-se ao luxo de deitar borda fora aquilo que qualquer país europeu hoje mais preza: uma maioria absoluta de um partido dentro do sistema democrático. Hoje podíamos ter à frente do Governo alguém como Mário Centeno, o nome que António Costa levou a Marcelo e que este recusou: alguém que nem sequer era filiado no PS, que conhecia o Governo e as finanças, que tinha provas dadas aqui, conhecimento e prestígio lá fora. O país não teria parado, o PRR e os principais dossiês não estariam paralisados e, sobretudo, aqueles que ainda se esforçam por acreditar num futuro para Portugal não experimentariam mais uma vez a decepção de ver a vida a andar para trás, a sua e a de Portugal, porque lá em cima se anda a brincar com coisas sérias para satisfação de protagonismos ou de impulsos infantis.


Mas não é apenas a instabilidade governativa que eu não perdoo a Marcelo. Mais ainda do que isso, o que não lhe perdoo é ter soltado a besta presa na cave, a besta da demagogia: o Chega. Por mais análises que me forneçam sobre as razões sociológicas e políticas do milhão e cem mil votos do Chega, algumas certamente pertinentes, há uma que desde logo o justifica: a compra de votos. O Chega comprou votos, comprou muitos votos, e comprou-os com uma campanha de demagogia despudorada e irresponsável. Contem-nos: nas forças policiais e respectivas famílias são 100 mil; nos reformados, a quem prometeu, pelo menos, uma pensão equivalente ao salário mínimo, mesmo para quem não contribuiu, serão uns 300 mil; nos professores, a quem prometeu tudo o que reclamam, dos 120 mil terão cativado uns 30 mil; nos agricultores outro tanto, e por aí fora, tudo junto somando metade do milhão e cem mil votos de André Ventura. Num país onde tantos se habituaram a exigir tudo do Estado e tão poucos se perguntam quem e como pagará, o discurso de Ventura está condenado ao sucesso, muito mais do que o racismo, a xenofobia, o autoritarismo e tudo o resto a que, por preguiça, gostam de o reduzir. O sucesso eleitoral de André Ventura chama-se demagogia à solta, e o pior de tudo é que, por competição e por sobrevivência, ele contagiou em larga medida todos os outros. Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.

Quando recusou a solução de estabilidade governativa que o país esperava e que ele próprio tinha apregoado durante tanto tempo, preferindo antes lançar o país numa aventura eleitoral desnecessária e de efeito previsível, Marcelo sabia ao que ia. Mas não se conteve, porque há muito que ele ia dando sinais de incontinência, aliás com ameaças explícitas. E não venham cá com o desgaste dos “casos e casinhos”, porque no mais grave deles — o caso Galamba, onde Marcelo entrou em choque frontal com o PM, exigindo publicamente a demissão do ministro — ainda estou para perceber qual é a responsabilidade de um ministro que demite um assessor que se recusou a entregar uns documentos exigidos por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e depois, sem mais qualquer intervenção da sua parte, vê o assessor invadir à força o gabinete, roubar o computador de serviço e levá-lo para casa, só o devolvendo a um agente do SIS e por intervenção de outro membro do Governo. Mas, ainda que a razão fosse os “casos e casinhos”, a renovação do Governo com a indigitação de outro PM, e exterior ao PS, esvaziava o argumento.

Não, a verdade é outra: o cargo deve ser profundamente aborrecido para quem gosta de viver a vida. O primeiro mandato presidencial acredito até que possa ser estimulante e apelativo: andar por aí a conhecer o país e as pessoas, dar beijos e abraços, ser recebido com a despreocupação de quem só pode prometer o bem e não fazer o mal, viajar lá fora e conhecer os grandes do mundo, escutar o hino com a herança de quase nove séculos às costas. Mas, isto passado, o segundo mandato é mais do mesmo e, sendo o tédio mau conselheiro, a tendência para a asneira torna-se inevitável. Mas nenhum resiste à tentação do segundo mandato, nem mesmo alguém como Mário Soares, que tinha tão mais vida do que aquela que cabia nas paredes de Belém. No primeiro mandato vimos o melhor de Marcelo, um contagian­te suspiro de alívio depois dos anos de chumbo da majestade cavaquista; no segundo, estamos a assistir ao seu pior, à facilidade com que os grandes princípios degeneram numa absoluta vacuidade. Prejudicial ao país. Mas, enquanto o tempo não passa e isto não tem fim, fica a pergunta a que só ele tem obrigação de responder: e agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Dia 15 de Março, sexta-feira, cinco dias depois do acto eleitoral, ainda nem sequer sabemos quem ganhou as eleições e se quem ganhou quer mesmo governar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 15 de março de 2024

As eleições europeias 2024 estão aí


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

Tememos, face ao que se passou nas recentes eleições nacionais, em que se falou de tudo menos dos problemas reais do País, que o mesmo venha a acontecer nas eleições para a UE.



A Europa em ciclo de empobrecimento

Em eleições passadas, os partidos portugueses, candidatos ao Parlamento Europeu, pouco de concreto nos informaram do seu pensamento sobre o que a União Europeia (UE) deve fazer como Instituição, no plano mundial e na relação com cada Estado-membro e, sobre o trabalho a desenvolver por cada partido no sentido de pressionar a UE a avançar no caminho que defende.

Não foram capazes de ultrapassar as meras tricas internas e nada nos elucidaram sobre os múltiplos problemas que a UE atravessava e menos ainda se iriam com a nova representação ir além de uma mera presença no Parlamento.

Tememos, face ao que se passou nas recentes eleições nacionais, em que se falou de tudo menos dos problemas reais do País, que o mesmo venha a acontecer nas eleições de Junho próximo para a União Europeia.

Centrar as discussões no cerne dos problemas da Europa é determinante para Portugal e restantes Estados-membros, pois a Europa está numa encruzilhada muito perigosa, uma das mais complexas porque tem passado, um início de ciclo de empobrecimento e de potencial desaparecimento de empresas e indústrias estruturantes da sua economia, como o automóvel.

A União Europeia atravessa uma crise de desespero profunda, em vários domínios e vários países, graças a decisões e políticas profundamente desajustadas ao longo dos tempos ou por ausência de políticas e medidas nos devidos momentos.

A União Europeia a perder o pé

1. O mundo agrícola

No mundo agrícola, a contestação é enorme. Os tractores nas ruas são a imagem perfeita, assistindo aos agricultores europeus múltiplas razões de raiva e protesto. A cedência que alguns governos têm feito vão no sentido de tentar baixar a chama e não de a apagar com a solução dos problemas.

O presidente Macron, ainda recentemente, prometeu acabar com a suspensão dos direitos aduaneiros sobre o frango ucraniano que a UE decidiu, logo após a invasão da Rússia. Uma exigência do mundo agrícola francês, decisão essa que, aliás, só enche os bolsos do grande exportador de Kiev, Yuriy Kosink e dos grandes importadores franceses, prejudicando os médios e pequenos agricultores e o consumidor em geral, pelo aumento de preços.

Analistas referem que a principal razão desta tomada de posição é política, estancar a progressão de Marine Le Pen no “roubo” do voto do agricultor francês.

Já na Polónia o problema maior para os agricultores tem sido os cereais a preços muito inferiores, tanto assim que bloquearam na fronteira a entrada de mais de dois mil e quinhentos camiões.

E se saltarmos para outros países, estes e outros problemas estão na origem da contestação global dos agricultores europeus aos seus governos e à União Europeia. Para vários analistas, isto traduz um cansaço das pessoas face aos efeitos da guerra da Ucrânia e, pior, uma rejeição generalizada à sua entrada futura na UE, pelo temor da maior produtividade da agricultura de Kiev.

E o problema de fundo é esse mesmo. As sucessivas reformas da PAC poucas melhorias têm trazido a acréscimos de rendimento dos agricultores europeus. Daí que a PAC mereça uma profunda refundação.

2. A desindustrialização

Num outro domínio, o da industrialização, a Europa atravessa uma fase muito crítica, com vários setores em afundamento, já em curso ou a curto/médio prazo, como o automóvel.

O símbolo desse afundamento, como bem refere o jornal britânico, “The Times”, é o de um navio cargueiro a aportar em Vlissingen, na Holanda, em 21 de fevereiro de 2024: “A chegada de sua carga deve marcar a abertura de um novo capítulo na supremacia industrial da China ou o início de uma guerra comercial”.

O cargueiro transportava “7.000 carros elétricos destinados aos mercados europeu e britânico”, diz o jornal. O navio pertence à BYD, a empresa chinesa que destronou a Tesla, ao se tornar o maior fabricante mundial de carros elétricos. A BYD ainda sofre de alguma falta de notoriedade na Europa, mas o grupo chinês tem vindo a trabalhar o mercado europeu, nos últimos meses, no sentido de o conquistar. E como está tecnologicamente à frente e o preço é imbatível, a remodelação da “paisagem europeia do automóvel” está à vista, reduzindo fortemente a sua produção.

De novo com o “The Times”, como competir com os fabricantes chineses e, em particular a BYD, que “encontraram a receita para produzir mais e a um custo mais baixo do que todos os [seus] concorrentes?” (…) “Os modelos de entrada [da BYD] são vendidos na China por pouco mais de £ 8.000, enquanto os britânicos têm de pagar cerca de 40.000 libras pelo Tesla mais barato”.

Não vai ser fácil segurar uma indústria que representa na Europa cerca de 7% da economia e emprega 13 milhões de pessoas, quando a própria Europa decretou o fim das vendas dos veículos a combustão para 2035, sem antes ter colocado no terreno uma política sustentada de mudança.

Não é com as denúncias de Bruxelas de subsídios ocultos pela China, em que tanto se empenhou a Comissão Europeia, em finais de 2023, que o automóvel europeu vai sair da crise em que está a mergulhar. Diferentes passos são necessários: acordos entre empresas europeias do automóvel e parcerias sólidas com países terceiros, sobretudo nos minerais críticos e baterias.

Ouçamos o que nos disse Carlos Tavares, gestor português, CEO da Stellantis, grupo criado entre a italiana Fiat e a francesa PSA, à Bloomberg Television, em Fevereiro último: “Estou perfeitamente ciente de que, no futuro, as empresas que não forem capazes de resistir à concorrência chinesa se colocarão em dificuldade” e já antes avisara: a indústria automóvel europeia caminha para um “banho de sangue”, se não reagir a tempo.

E aqui estamos de forma tardia e cada vez com menos meios para reagir, perante uma indústria essencial à Europa que, se falhar na sua reestruturação e entrar em recessão profunda, é um duro golpe na economia.

Mas a desindustrialização não pára aqui. Temos a química em que sobretudo a Alemanha não está bem. Os seus grandes grupos estão em franca perda e a deslocalizar para fora da Europa. E aqui o grande problema é o custo da energia que subiu proveniente das sanções aplicadas à Rússia, tendo os empresários alertado os políticos para o embate de certas tomadas de decisão que estavam no horizonte próximo por pressão dos EUA. Como avançaram, sem alternativas, é o afundamento.

A Europa foi a mais atingida. O alvo, a Rússia, até melhorou, pois, diversificou os mercados de exportação e indiretamente continua a exportar para a Europa, agora em melhores condições de preços. A sua economia, segundo o FMI, até cresce no mundo, acima da europeia (3% em 2023, 2.6% em 2024 e 1.1% em 2025).

São factos perturbadores a merecer um empenho de reflexão e o tempo até às eleições europeias de Junho parece-nos uma altura oportuna. A crise avança de forma lenta, mas persistente e precisa de ser estancada, sob pena de um afundamento a prazo da Europa.

P.S. 10 de Março. Com resultados parciais, a situação é bem complexa. AD ganha com margem estreita. Esquerda acusa uma profunda derrota, o que Marcelo sempre desejou, intervindo na campanha até ao fim nesse sentido. Finalmente, a extrema-direita instala-se no regime folgadamente. Instabilidade é o que nos espera.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 12 de março de 2024

Quase 50 anos de 25 de abril versus quase 50 deputados do Chega!


Por 
José Luis Santos, 
in Facebook, 
11/03/2024
estatuadesal


Os partidos democráticos e fundadores da democracia só podem combater o populismo de André Ventura e reverter o crescimento exponencial do seu partido se fizerem uma introspeção e deixarem de apontar o dedo a André Ventura, ao Chega e aos seus eleitores.




Não foi o 25 de Abril que falhou, quem falhou foi uma série de políticos que sobrepuseram os seus interesses pessoais aos interesses do país e não olharam a meios para atingir os fins.

Desde logo, o 25 de Abril deu-nos a liberdade e não a libertinagem e a própria liberdade tem limites porque, como se costuma dizer, a nossa liberdade termina onde começa a dos outros. E uma das principais conquistas de Abril foi a liberdade de pensamento e de expressão.

Essa liberdade, que nos foi concedida pelo 25 de Abril e que demorou imenso a conquistar com o sacrifício de muitos, alguns dos quais pagaram com a própria vida a sua defesa, no que aos direitos políticos diz respeito, teve como objetivo principal permitir aos responsáveis políticos defenderem livremente as suas ideias e as suas propostas, sem qualquer censura e/ou perseguição.

Nos primeiros anos pós 25 de Abril, assim sucedeu e tivemos políticos, independentemente das suas convicções, que foram verdadeiros estadistas, tais como, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro e Freitas do Amaral, e a ordem é arbitrária.

Esses políticos sempre agiram, de acordo com as suas convicções, em prol do bem comum, ou seja, em prol do bem-estar e da qualidade de vida da população.

No entanto, a partir de determinada altura, a política passou a ser apelativa para muitos que viram nela uma forma fácil de ganhar dinheiro, sem grande esforço e trabalho.

Assim, a política deixou de ser a nobre arte de governar o país e as autarquias e passou a ser a nobre arte de alguns se governarem. Daí o crescimento da corrupção e do nepotismo.

Na verdade, pessoas sem escrúpulos, sem vergonha, sem carácter, sem princípios e sem valores começaram a espalhar-se, qual gangrena, por vários órgãos do poder.

Por isso, o descrédito na política e na generalidade dos políticos passou a ser uma realidade para grande parte da população, que se afastou, por completo, o que levou a grandes índices de abstenção nos diversos actos eleitorais.

Todos sabemos que o descontentamento crescente da população propicia o caldo fértil para alguns navegarem a onda do populismo.

André Ventura, é um desses populistas, que fez parte do PSD por largos anos e que foi candidato desse partido em atos eleitorais, mas que fala como se nunca tivesse feito parte do sistema e diz aquilo que a generalidade da população quer ouvir. André Ventura promete tudo e mais alguma coisa, porque sabe que nunca será confrontado com a inexequibilidade das suas propostas. É possível prometer tudo a todos, mas não é possível cumprir essas promessas porque as receitas do Orçamento do Estado são limitadas.


André Ventura tem consciência disso mesmo, mas como sabe que o seu eleitorado só se aperceberia da inexequibilidade das suas propostas se um dia o Chega fosse Governo e tivesse que passar das palavras à ação, vai prometendo tudo e mais alguma coisa a todos e vai prometendo aumentar a despesa pública e, simultaneamente, diminuir as receitas públicas, visto que promete descer os impostos.

A generalidade do eleitorado do Chega não se apercebe da incongruência e da impossibilidade prática de aumentar substancialmente a despesa pública e, em simultâneo, descer significativamente os impostos.

Seria o mesmo que achar possível uma família gastar muito mais, ou seja, fazer muito mais despesas, mas diminuindo consideravelmente o seu rendimento. Se isso sucedesse, essa família, gastando muito mais com um muito menor rendimento, ficaria, obviamente, endividada.

Mas André Ventura, para além de prometer tudo a todos, também é aquele que defende uma coisa e o seu contrário. Por exemplo, numa primeira fase, defendeu o fim do SNS e da escola pública, mas, numa segunda fase, já se arvora no grande defensor do SNS e da escola pública.

Portanto, André Ventura tem um discurso que vai adaptando, sem qualquer pingo de vergonha, às circunstâncias e aos destinatários, em função do que estes querem ouvir, surfando a onda do descontentamento e do populismo.

É isto que tem de ser denunciado pelos partidos democráticos, nomeadamente, aqueles que estiveram na génese da democracia, e não o apontar o dedo ao eleitorado do Chega, porque, como afirmou, e muito bem, Pedro Nuno Santos, não há um milhão de portugueses xenófobos e racistas.

Na minha opinião, a generalidade dos eleitores do Chega são pessoas descontentes com as práticas inaceitáveis acima enunciadas, que são transversais a todos os partidos. Daí a necessidade de esses partidos fazerem uma introspeção para analisar o que está errado e corrigirem-no, em vez de optarem por apontar o dedo ao eleitorado do Chega, acusando-o de tudo e mais alguma coisa.Na verdade, essa atuação só irá fazer crescer, ainda mais, o descontentamento e, consequentemente, a base eleitoral do Chega. Como diz o provérbio: "Apanham-se mais moscas com mel do que com fel".

Os partidos democráticos, nomeadamente, aqueles que estiveram na génese da democracia não podem ter assuntos tabus e não podem deixar de abordar certas temáticas, por mais inconvenientes que elas possam ser. Por exemplo: defender o controlo da imigração, não é ser xenófobo. Conceder mais direitos aos nacionais do que aos imigrantes não é ser xenófobo. Não pactuar com a ideologia de género, não é ser homofóbico. Defender os interesses nacionais e não ser totalmente subserviente a Bruxelas não é ser extremista e radical. Defender uma Europa forte e unida e não subserviente aos interesses políticos, económicos e militares dos EUA, não é ser pró-russo e antieuropeísta.

Há um longo trabalho que deve ser feito para reconquistar os insatisfeitos, os indignados e os revoltados, em defesa da democracia e do sistema democrático, e isso faz-se no plano das ideias e não no plano dos ataques pessoais. Faz-se demonstrando que, a nível das propostas e da sua exequibilidade, André Ventura tem uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma; não se faz apelidando-o de fascista, xenófobo e racista.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Hoje, sim, devia ser "dia de reflexão"

 

Nos 50 anos de Abril, o Povo soberano, disse SIM aos extremismos de direita e àqueles que, com pezinhos de lã, defendem valores contrários ao desenvolvimento e bem-estar do Povo. Disse SIM à Procuradora Geral da República e ao Presidente da República. Disse SIM, fora de tempo, à mudança e à instabilidade governativa, quando os principais indicadores do país são favoráveis. Por aqui, continuou a dizer SIM a um partido publicamente em frangalhos e envolto em processo judicial. Nem um sinal de desagrado relativamente a muitos aspectos da governação. E, finalmente, disse SIM aos comentadores de serviço. Portanto, está na altura dos comentadores "darem as suas notas" a esse mesmo Povo e de pedirem ao Presidente da República que descalce a bota.

Não foi para isto que o 25 de Abril aconteceu.

quinta-feira, 7 de março de 2024

"Comentarão" - o novo depósito de resíduos!

 

Todos reconhecemos a influência dos meios de comunicação social no comportamento das pessoas. Acrescentam-se as redes sociais onde são despejados centenas de textos, uma grande parte sem rigor e fundamento. Até proliferam os perfis falsos. Se não existir uma segura apreciação do mundo que nos rodeia, cruzando a informação com a qual somos bombardeados, facilmente um sujeito sucumbe às meias-verdades e aos interesses que se escondem por detrás das palavras. Tudo depende da formação global e de cidadania de cada um, que está muito para além da mera qualificação académica.



Em tempo de eleições legislativas nacionais, o panorama, do meu ponto de vista, tem sido pavoroso. Não me refiro aos debates e visitas de campanha, mas aos comentários posteriores que são feitos, ao posicionamento das figuras que comentam e às sondagens que raramente acertam. Aquela designada por "tracking poll" (sondagem de acompanhamento) da TVI torna evidente o sentido que desejam dar à coisa.

 Fico com a ideia que, segundo as linhas de orientação das estações, há um manifesto desejo de levar este ou aquele candidato ao colo.

Assisto ao desfile de figuras que parece terem perdido a memória de quando estiveram em lugares de destaque na governação; vejo na passerelle televisiva, com total despudor, figuras que são membros do Conselho de Estado, comentadores residentes, de hora nobre, discursando ao lado de candidatos; jornalistas a se posicionarem, mesmo sem a necessidade de dizerem em quem vão votar, mas onde facilmente se percebe onde querem chegar e, até, apresentadores de programas, em discurso directo, como se fossem candidatos, a aconselhar com todas as letras o voto. Parece-me, até, que falou com teleponto, tal o pensamento que divulgou. Ainda esta manhã uma jovem repórter perguntava a um cidadão em quem iria votar! Acrescentou: não diga o partido, mas acha que tem de haver uma mudança? Enfim, perdeu-se a vergonha, o equilíbrio, o respeito e o bom-senso.

Preferível seria que, com rigor profissional, cumprissem as suas tarefas, porém, mantendo o distanciamento necessário. Alguns, pressuponho, não sendo filiados em um qualquer partido, manifestam-se como se fossem. São "mais papistas que o papa". São aguerridos e moldam a cabeça de um cidadão menos bem informado. Até já dão notas à prestação dos candidatos. Bastas vezes dou comigo a reflectir se assisti ao mesmo debate ou declarações que um dado comentador. 

Deixem isso para os eleitores. Eles é que são soberanos na decisão. Não devem jogar, intencionalmente, com a ignorância de muitos eleitores e com a ausência de formação política. Já bastam as redes sociais! Nem de propósito, há pouco, na Antena 1, escutei o noticiário satírico Portugalex. No final ouvi, cito de cor: não jogue o comentador em qualquer sítio. Deposite-o no "comentarão".

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 3 de março de 2024

E agora?


Durante muitos anos, muitos mesmo, escutei os maiores ataques à oposição política regional: saco de gatos, impreparados, ausência de quadros para governar, obscuros interesses pessoais e de grupo, um rol extensíssimo de dislates, ofensas até pessoais extravasando o campo do debate político, amesquinhamento de figuras públicas na sede do parlamento regional, subtis ou descaradas perseguições, enfim, assisti a um pouco de tudo. De um lado estavam os senhores e, do outro, a "ralé" como foi dito em discurso directo.



Entretanto, como tudo na vida, porque tudo tem o seu tempo, a "criatura está a voltar-se contra o criador". Primeiro, foi a perda de uma maioria absolutíssima; depois, a necessidade de um acordo de incidência parlamentar; mais tarde, uma coligação; nos últimos tempos, alegadas suspeitas e constituição de arguidos políticos e de empresários; uma coligação que não terá continuidade; um líder que veio dizer que foram, politicamente, "despedidos sem justa causa"; um outro que se demite mas, afinal, quer continuar; uma eleição interna envolta em conflitos, onde parece não haver cola para tantos cacos face às posições públicas assumidas por diversos actores. Ora bem, lá diz a sabedoria popular que se "zangam as comadres, descobrem-se as verdades". A sensação que tenho é que a procissão ainda não saiu do adro, porque todos os dias há interessantes novidades!

E agora(?) é a pergunta. De facto, vive-se um tempo político que corresponde a "engolir o sapo". Já é muito difícil esconder a realidade.

Ilustração: Google Imagens

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Escolha de sectores e tecnologias a apoiar


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

Será que estabelecer uma boa política de desenvolvimento económico fere o papel do sector privado? Ou, como avançam outros, é lançar “um anátema” sobre as empresas?



O caso do PRR português

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um programa financiado pela União Europeia, com a finalidade de apoiar a recuperação económica e social dos países-membros, em virtude das “dificuldades causadas pela Covid 19”, cujo período de execução vai até finais de 2026.

Cada país elaborou e negociou o seu programa com os serviços da União Europeia, na base das linhas gerais definidas no instrumento de política comunitária Next Generation EU.

1. Diria que o PRR e todos os outros Fundos merecem uma reflexão, não como um mero exercício intelectual, mas fundamentalmente pela ideia corrente na sociedade portuguesa, de que os fundos comunitários não têm respondido, até agora, ao lançamento de bases sólidas de transformação da economia, de que o País bem precisa, para criar riqueza a um nível bem diferente do que tem vindo a suceder.

Como em tudo na vida, não basta despejar dinheiro para resolver os problemas. Sem desígnios firmes e organização, não há mudanças concretas.

Em Fevereiro de 2023, reagindo a uma entrevista do ministro da economia, António Costa Silva, tido como o inspirador do PRR, escrevi aqui um artigo “como qualificar a matriz da economia portuguesa”.

Nesse escrito dizia: “Continuo a defender uma estratégia com uma linha condutora, que aponte desígnios claros e uma mecânica de relacionamento eficaz entre os diversos actores intervenientes no processo”, acrescentando, ainda, que essa estratégia requeria focos de incidência precisos e em número reduzido.

Uma característica em que o PRR, com as suas 53 agendas mobilizadoras, falhou rotundamente. Em demasia as áreas de aplicação escolhidas pelo governo português, pelo que muitas ficaram com orçamentos diminutos. Veja-se a vizinha Espanha. Contemplou no seu PRR, apenas 11 agendas mobilizadoras. Que diferença!

Um número reduzido de áreas de investimento e tecnologias


2. Pedro Nuno Santos no Congresso, no programa eleitoral e nos debates, quando o deixaram, enunciou as linhas fundamentais com que encara o futuro do País.

Na Economia, relevou duas linhas de força.

Linha número 1. A transformação do País tem de se apoiar na mudança da especialização da economia: “primeira e principal missão” afirmou. “Só com uma economia mais sofisticada, mais diversificada e complexa podemos produzir com maior valor acrescentado, pagar melhores salários e gerar receitas para gerar um Estado Social Avançado”.

Linha número 2. A transformação da estrutura da economia tem de assentar num número reduzido de sectores e tecnologias a apoiar.

Complementa estas linhas de força referindo que é preciso mudar muito, no conteúdo e na forma. Uma demarcação do que se tem feito em Portugal, consignando ao Estado um papel importante de liderança no desenvolvimento económico e não apenas o de tapar remendos, aparecendo aqui e ali, a resolver problemas sem uma lógica dinâmica de enquadramento.

As reacções não se fizeram esperar

3. Políticos e altos quadros da direita portuguesa têm produzido ataques políticos desajustados e numa linguagem pouco própria. Em alguns programas televisivos de opinião, conhecidos comentaristas tiveram o despudor de comparar esta posição “à planificação de estilo soviético”.

Será que ao Estado português está vedado estabelecer uma estratégia com objectivos “arrojados” de transformação da economia e, como os recursos são sempre escassos, de os poder canalizar para aquelas áreas que, a prazo, permitem transformar a matriz económica existente? Será que estabelecer uma boa política de desenvolvimento económico fere o papel do sector privado? Ou, como avançam outros, é lançar “um anátema” sobre as empresas?

Quem reage, assim, sem olhar para experiências bem-sucedidas (até em Portugal) está a mostrar desconhecimento, ou má intenção ou então vergonha por não assumir claramente a redução do papel do Estado ao simbólico.

Desconhecimento. Não sabem da existência de uma série de países que nada têm de socialismo, como a Coreia do Sul ou os chamados “Tigres asiáticos”, que se pautaram por este modelo, em diferentes períodos da sua história, tendo atingido grande desenvolvimento socioeconómico e dotado os seus cidadãos de maior riqueza.

Mas indo além. Desconhecem até as grandes orientações da UE quanto aos programas comunitários e outros específicos, onde se identificam áreas e tecnologias prioritárias. Demonstram que conhecem mal os documentos orientadores da União Europeia, onde alguns até ocuparam cargos importantes.

Ou são mal-intencionados porque, deste modo, pretendem criar desinformação, sobretudo em tempo eleitoral, tentando impingir que este processo de construção de um novo modelo para a economia equivale a limitar o acesso aos fundos por parte das empresas privadas.

Uma boa política precisa de ser bem desenhada. Tudo depende da forma como se elabora o modelo e dos métodos da sua implementação no terreno.

Os fracos efeitos da aplicação dos Fundos na transformação da economia em todos os seus parâmetros, baixas produtividades, deficiências na comercialização, pouca integração economia/ciência/investigação… são devidos à não existência de uma boa política que fomente uma relação dinâmica entre os investimentos, contra investimentos desgarrados sem algo a ligá-los.

Como montar a estratégia e a escolha

4. A elaboração de uma política de desenvolvimento terá de assentar em conhecimento, experiência, competências e objectivos claros. Não é tarefa fácil com relevo para a sua posterior implementação, muito exigente na articulação entre actores.

Por outro lado, exige uma nova filosofia de funcionamento do aparelho do Estado onde a competência prevaleça. Certamente, menos ministros e secretários de Estado e mais equipas de missão, determinadas e dinâmicas. Menos burocracia, maior poder de decisão, o que leva a novas formas de pensar a Administração Pública, o que, por sua vez, vai arrastar o próprio sector privado para formas mais audazes de planeamento e gestão.

Não é um processo que se monte com facilidade e certamente os erros serão inevitáveis.

Um processo destes, complexo, é interessante até porque associa uma estratégia com uma reforma da administração pública concebida de forma diferente. Um dos principais “bloqueios” teóricos, diz-se, é o Ministério das Finanças. Quanto a mim, tem de existir e com peso político, mas a funcionar em novos moldes (um papel regulador e facilitador).

Será que Pedro Nuno Santos reúne essa capacidade?

Avançou ideias inovadoras, embora me choque a sua visão teórica restrita na abordagem da energia.

A energia é, sem dúvida, uma das áreas determinantes, fundamentais, da mudança da matriz económica. Nenhuma referência à energia nuclear, contrariando até a recente decisão (6 de Fevereiro) da União Europeia que cria a Aliança Industrial Europeia de pequenos reactores nucleares (SMR), com efeitos previsíveis em aumentos de competitividade, cadeia de abastecimentos e mão-de-obra qualificada, é uma lacuna de peso.

Os grandes partidos portugueses esqueceram-se de matéria tão importante nos seus programas. Ainda não descolaram da fase anterior da UE, comandada pela Alemanha, que continua, embora em perda, a repudiar o papel da energia nuclear como um dos elementos-chave de uma política energética soberana, de que a União Europeia tanto necessita. Num programa que se quer de mudança de especialização económica urge corrigir esta lacuna, sob pena de se perder o passo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Absolvição


A frase que fica: "Existem tragédias e fatalidades. Ocorreu uma queda de uma árvore como ocorreu o 20 de Fevereiro". Palavras da advogada de defesa, Drª Kátia Vieira, a propósito do acórdão que absolveu a Drª Idalina Perestrelo e o Engº Francisco Andrade no caso da queda da árvore (carvalho) que, no decorrer da festa do Monte, ceifou a vida a treze pessoas naquele maldito 15 de Agosto de 2017.



Fico feliz pela decisão do Tribunal. Apenas lamento que tivessem sido necessários sete anos de sofrimento por parte dos responsáveis autárquicos para, finalmente, o Tribunal chegar a este Acórdão. Isto não coloca em causa um outro e óbvio sofrimento para as famílias das treze vítimas. Foi e continua a ser muito doloroso para todos. Da mesma forma que a comunidade madeirense continua curvada pela morte de dezenas de conterrâneos naquele outro fatídico 20 de Fevereiro. 

De facto, o acontecimento do Monte faz parte das tragédias, umas que podem ser evitadas ou atenuadas; outras, que acontecem sem uma responsabilidade directa do ser humano. Ali, pelo que acompanhei ao longo destes sete anos, não existiu incúria (vide as razões da absolvição, no Dnotícias de hoje, página 13). Da mesma forma que, em 2021, quase no mesmo local, outra árvore caiu desta feita sem consequências graves. 

Neste processo, lamento o extenso rol de leituras e comentários abusivos, alguns pretensamente técnicos, no sentido da condenação dos arguidos. O Tribunal não os considerou e ainda bem.

Um abraço à Drª Idalina Perestrelo e ao Engº Francisco Andrade, figuras com um passado de luta em defesa do ambiente e que não mereciam passar por estes sete anos de "massacre" psicológico.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Estar para o poder como a lapa para rocha

 

Tudo isto está muito confuso. O que leio e ouço dá-me a entender que há políticos que transmitem a ideia que nem a si próprios se respeitam. Um dos casos é o do presidente do governo regional da Madeira, em gestão, que apresentou a sua demissão, por duas vezes, e que hoje volta a posicionar-se como candidato a presidente do governo, seja qual for a decisão do Senhor Presidente da República, em tempo constitucionalmente próprio.



Não ligo sequer ao facto de ser arguido. Essa é apenas uma etapa processual que permite a sua defesa. Não foi julgado nem condenado e, por isso, é legítima a sua candidatura à liderança do seu partido e, por essa via, continuar a governar mesmo sem eleições. Trata-se de um problema de decisão interna. 

De qualquer forma, não estando em causa a legitimidade, tal facto não deixa de enquadrar uma extensa interrogação de base ética. O que estará por detrás daquele comportamento? 

Dirá o visado que leva trinta anos de exercício da política, durante os quais não corrompeu nem foi corrompido. Até conclusão do processo e trânsito em julgado, admito a sua total inocência. O "julgamento" popular pode ser um, a voz do Tribunal pode ser outra. Até aí tudo certo. O verdadeiro julgamento virá depois. O que já não me parece menos claro é, no plano político, a manifestação de uma postura que deixa passar uma tendencial ideia de estar agarrado ao poder. Há políticos que estão para o poder como a lapa para a rocha. Porquê, questiono! Quando o exercício da política constitui um serviço público à comunidade? 

E isto faz-me trazer à colação o que, durante anos, escutei: a tal lengalenga que os quadros políticos e técnicos estavam apenas de um lado, capturados ou não pelas circunstâncias advindas de um poder "duracel". Afinal, o que se deduz é o vazio, uma espécie de orfandade, pela ausência de figuras que assumam uma alternativa interna. É, no mínimo, esquisito. Se a esta primeira conclusão chego é, desde logo, pelas posições públicas de gradas figuras partidárias que têm vindo a publicar o que pensam. Registei: "Fingir que nada mudou e criar bolhas de ilusão só farão com que o embate com a realidade seja mais doloroso (...)" - Augusta Aguiar, ex-secretária regional dos Assuntos Sociais, edição de hoje do Dnotícias, pág. 26.

Está tudo em polvorosa e, como se isto não bastasse, vá lá também saber-se o porquê, o presidente do segundo partido da coligação já declarou que está de saída. Outro que pegue no frágil leme.

Aliás, a percepção que tenho deste quadro corresponde a uma inevitabilidade de um qualquer poder que se arraste anos a fio pelos corredores. Neste caso são 48 anos consecutivos. Inevitável, porque as pessoas acomodam-se, disfrutam dos lugares atribuídos como se se tratasse de um emprego para a vida, directa ou indirectamente fazem parte do jogo, criam cumplicidades, respeitam a "voz do dono", fazem por ignorar as leviandades políticas, vivem ou sobrevivem nas águas pantanosas, apenas mantendo a lealdade expressa na bandeirinha eleitoral, mas sempre atentas às peças que deambulam no tabuleiro. Parece-me óbvio, com receio do futuro próximo. 

A vida e vivência democráticas não são isto. Liberdade? Qual liberdade!


Vou mais longe: a Câmara Municipal do Funchal carece, também, de legitimidade política. No plano exclusivamente formal, diz a Lei que assume a presidência o número dois da lista então candidata. Por aí, nada a dizer do ponto de vista da legalidade e da legitimidade formal. Mas, uma vez mais, a questão parece-me ser outra. É de natureza política.

A lista candidata foi liderada por uma figura que, entretanto, renunciou ao mandato. Foi ele e não qualquer outro que "arrastou" o eleitorado para a vitória. Qualquer um dos outros, de per si, se se tivesse candidatado à presidência, muitas dificuldades teria para vencer o acto eleitoral. Porque, não está em causa a credibilidade técnica, mas sim o facto de, politicamente, serem ilustres desconhecidos.  Daí que a passagem de testemunho careça de legitimidade política.

Pergunto-me, se estivesse em tal situação, de lugar secundário, convidado pelo líder da lista, o que faria? Não tenho a mínima dúvida que, no plano político, seria solidário com o convite que me tinha sido dirigido e, sugeriria uma renúncia em bloco. Não bastam as palavras de solidariedade, pois mais que as palavras valem as acções.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O mundo agrícola europeu em convulsão


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.



A França tem sido o epicentro da revolta dos agricultores na União Europeia. Mas outros países europeus, em dias ou semanas diferentes ou por vezes coincidindo, não deixaram de mostrar o seu profundo descontentamento nas ruas com tractores, bloqueando estradas e ocupando espaços predefinidos em cidades como Bruxelas.

O mundo agrícola convive mal com a perda, ao longo dos anos, do seu estatuto social e de quebra de rendimentos continuados. Em muitas outras profissões, esta situação é também uma constante, sendo difícil encontrar as razões desta tendência. Será que mudanças de paradigma nas sociedades explicarão tudo isto?!

Por outro lado, problemas específicos nos diversos países ajudaram a acelerar este descontentamento global. Foi o fuelóleo na Alemanha, os cereais ucranianos na Polónia e Roménia, a água, os cortes e os atrasos burocráticos na entrega de subsídios em Portugal.

A grande questão é Bruxelas

Como gritava uma jovem no meio de uma coluna de tractores que tentava encaminhar-se para os edifícios do Parlamento Europeu “temos de atacar o coração do sistema”.

Sim, o “coração do sistema” é a Política Agrícola Comum, definida em Bruxelas em contínua deriva pelo menos desde 2010, criando confusão com regulamentação excessiva a toda a linha e grandes dificuldades aos agricultores europeus, com rendimentos cada vez mais reduzidos, baixa de preços ocorrida pela concorrência desleal de produtos importados que não cumprem as regras da União, em qualidade e ambiente, mas entram no espaço comunitário, na base de acordos ou de favor (isenções tarifárias desde a primavera de 2022 dos produtos agrícolas ucranianos).

Regulamentação excessiva

A regulamentação excessiva é uma praga da União Europeia em todos os domínios. Quando não se tem nada para fazer, ou seja, onde falta uma política sólida de desenvolvimento, produz-se regulamentação sobre regulamentação. É assim em tudo, na energia, nas tecnologias, na inteligência artificial (IA)… em tudo.

A propósito da IA, há dias li no L’Express (11/12/2023) uma blague humorística pouco abonatória da União Europeia, que circula há algum tempo.

IA: L’ Europe entre enfin dans la course. “Nos EUA, eles têm a GAFA. Na China, a BATX. Nós temos o GDPR”.

Dando nome às siglas. Os Estados Unidos têm campeões de tecnologia (Google, Apple, Facebook e Amazon). A China também (Baidu, Alibaba, Tarant e Xiaomi). A Europa, para seu consolo, tem a Regulamentação de Dados. Aliás, a UE é um espanto. Avançou com um regulamento sobre IA, quando não tem uma empresa de IA “digna” desse nome, pelo menos em termos de comparação com a China e EUA. Surrealista!

Muitos peritos atribuem a esse grau excessivo de regulamentação falhas estratégicas nas políticas europeias e acentuam a inoperância/incapacidade da União Europeia na conjugação de ideias de fundo entre os países e entre empresas de diferentes países para ganhos de dimensão no mercado mundial.

Retornando ao mundo agrícola

O mundo rural aparenta, embora com um pico neste ou naquele país, uma certa acalmia, decorrente das decisões tomadas, umas pela Comissão Europeia e outras a nível de cada país. Mas umas e outras são de curto prazo e várias até de caracter transitório.

Duas medidas de curto prazo foram tomadas por Bruxelas, respondendo a exigências importantes dos agricultores europeus:

⦁ A “derrogação parcial” da obrigatoriedade do pousio imposta, a nível europeu, em condições rejeitadas pelos agricultores.
⦁ As medidas de salvaguarda para as importações ucranianas e a suspensão das negociações do acordo UE-Mercosul, aliviando assim a concorrência desleal.

Ursula von der Leyen também veio prometer a redução da carga administrativa da PAC, sem, no entanto, especificar em que consiste. Certamente, ainda estará a pensar na regulamentação necessária!
A nível de países, foram tomadas medidas específicas como a suspensão do imposto sobre o gasóleo não rodoviário, a concessão de alguns subsídios temporários, etc. Mas Bruxelas ficou em péssima situação e dirigentes de países como a França contribuíram em muito para tal.

A comunicação social europeia escreveu que Macron “curvou” Bruxelas, o que não deixa de ser um pouco verdadeiro, pelo menos em duas frentes: no que toca ao acordo em discussão com o Mercosul e na política ecológica ao fazer passar a mensagem aos agricultores de que o inimigo é a ecologia, ao falar da necessidade de adaptação da política europeia sobre “alterações climáticas”.

Os problemas de fundo permanecem

Esta crise assumiu características mais alargadas. Era normal, aqui e ali, uma crise ou outra, a nível sectorial ou regional, no leite, ovos, cereais, vinho, carne, etc.

Esta vem globalizada. Todos os sectores apanhados pelo aumento dos preços dos factores de produção e respectivos impactos nos custos dos produtos, a relação entre os produtores agrícolas e distribuidores a deteriorar-se, de forma que a produção designadamente as unidades familiares e as de menor dimensão entraram mesmo em perda real de rendimentos.

Tudo em crise, menos um pequeno número, ou seja, as grandes explorações agrícolas, as grandes transformadoras de produtos agrícolas e as grandes cadeias de distribuição que levam uma grossa maquia dos subsídios do orçamento comunitário da PAC que corresponde a cerca de 1/3 do da União Europeia.

As questões de fundo permanecem, assim, e outras novas foram espoletadas ou agudizaram-se como o conflito entre o mundo agrícola e os ambientalistas através de slogans por vezes rudes. Na Alemanha lia-se: “pelo bem da pátria, vamos expulsar os ambientalistas do país”. Estas palavras constavam de cartazes apostos em tractores nas manifestações de Janeiro. Considerar os ambientalistas, a bête-noir dos agricultores, assume um carácter ainda muito acintoso, uma vez que os Verdes fazem parte da coligação governamental. Portanto, a questão de fundo permanece.

O que queremos da agricultura europeia? Esta é a pergunta chave

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.

Este é, com toda a razão, o cavalo de batalha dos agricultores. É a própria União a negar-se a si própria ao promover a concorrência desleal consigo própria, a alimentar as grandes cadeias de distribuição e as transformadoras, afundando assim o mundo rural.

Mudanças profundas se impõem a vários níveis, uma nova filosofia para a PAC, para que se lance uma agricultura competitiva, sustentável e dinâmica, com elevado impacto no PIB, nas exportações e redução das importações para que o mundo rural se tranquilize e possa se agigantar, sustentado em bases sólidas de trabalho. Só, deste modo, se poderá caminhar para uma pacificação sustentada e para a soberania alimentar.

Muitos passos e muita negociação séria são precisos para se chegar ao fundo das questões e, a partir daí, erguer a estratégia. Menos burocracia, menos regulamentação e muito mais planeamento estratégico.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

"Lavagem cerebral"


Um grande Amigo, um dia, nos longos diálogos noite fora, abordando a esquerda e a direita política, disse-me: sabe, a esquerda política, aquela que defende princípios e valores democráticos, é muito idealista, sonhadora e vê o mundo e as pessoas impolutas, transparentes, raramente vê a trapaça do jogo e até, por isso mesmo, muitas vezes deixa-se encantar, resvalando de tolerância em tolerância; ao contrário da direita política que tem uma história milenar, que a tornou muito paciente, serena, matreira, encantadora e sedutora. Paciente porque sabe como desenhar o labirinto para chegar ao poder e como, onde e quando deixar bem disfarçados os alçapões. 



Ainda ontem, o humorista Ricardo Araújo Pereira salientava o facto de atribuírem 12/13 minutos a cada candidato nos debates que estão a ocorrer, acrescentando que, logo de seguida, o espectador fica confrontado com intermináveis minutos de comentadores e jornalistas. Acrescento: que até atribuem notas à prestação daqueles que poderão vir a representar o Povo na Assembleia da República. Não deixa de ser curiosa esta ambiguidade de tratamento entre quem define estratégias políticas e os outros! Engana-se quem pensa que isto não tem um significado mais profundo e, subtilmente, escondido, onde dominam, também, os interesses empresariais.

No meio disto, há Conselheiros de Estado que são comentadores, analistas que aparecem em duas cadeiras separadas por escassos minutos: ora na situação de apaniguados de uma determinada força política e, logo mais, como analistas da "coisa" que está em causa. Jornalistas, também, de tez severa para com os convidados, dando a entender com as suas intervenções (não perguntas) o lado em que se situam.

É evidente que o exercício da Democracia exige que todos tenham direito à palavra. É nos diversos posicionamentos que elaboramos ou nos estribamos numa opinião compaginada com a nossa própria história. O que já não me parece razoável e defensável é a tendência para que não se deixe ao Povo a capacidade de, livremente, ouvir e escolher os caminhos que entendem ser os melhores. Neste quadro, parece-me óbvia a orientação para, prioritariamente, colocar cidadãos escolhidos a dedo, que entram casa adentro, para, serena, pacientemente e sem contraditório, venderem o seu peixe de acordo com os seus posicionamentos políticos. 

É claro que todos nós transportamos heranças conceptuais desde a família que habitámos, ao que lemos, à cultura que nos enformou, ao leque e interesses de grupo, inclusive, até a própria ausência de informação adequada. Somos um pouco de tudo isso. O que eu rejeito é que tentem, com descarada intenção, "comer as papas na cabeça", algumas vezes trapaceando, outras, confundindo no sentido de imporem o seu pensamento. Já há alguns anos que é assim. E está cada vez pior. Pacientemente, repito, vão tecendo a teia pouco se ralando que entre as sondagens e os resultados eleitorais a diferença os coloca seriamente em causa. Mas continuam o seu percurso de encantadores de serpentes. Felizes ficam quando acabam por levar a água ao seu moinho.

Ora bem, no respeito por uns e outros, pelos políticos e pelos comentadores, bom seria que, sobretudo as estações de televisão, optassem pelo distanciamento, deixando ao Povo a capacidade de escutar e decidir. 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A casa dos inúteis

 

A história do programa "Big Brother" tem, segundo li, cerca de vinte e quatro anos de emissão. Mais de 70 países, em todos os continentes, reproduzem o "reality show". Nunca me predispus a assistir a um episódio. Para mim é reles demais. Mas, esta semana, antes das notícias das 20 horas, espreitei uns quinze minutos, se tanto. De resto, inevitavelmente, todos os dias por lá passo, mas o controlo remoto livra-me daquele, para mim, desprezível espectáculo. Uma série de indivíduos numa casa-prisão de luxo, dizem que se trata da "mais vigiada do país", cuja função é alimentar-se, dizerem disparates, mor das vezes demonstrarem uma manifesta ignorância, incompatibilizarem-se, realizarem umas tarefas infantis e a tudo aquilo os mentores designam por "jogo". Talvez seja o jogo da inutilidade e da estupidificação em horário nobre.



Mas, certamente, proporciona dinheiro aos promotores e algum a quem se presta a viver situações de embrutecimento. Quem vencer o "jogo da inutilidade" leva € 100 000,00 para casa. No meio daquilo, uns apresentadores e comentadores aumentam o volume do nada, ajudam a bestialização dos "convidados famosos" e do povo que assiste, com um palavreado que, espremido, vale zero. A ideia que fica é a de que quanto pior melhor para as audiências. Quanto mais gritos, acusações, lágrimas e lençóis que esbatem outras cenas, melhor. Uma grande parte do povo gosta e alimenta o espectáculo através das votações. 

Ao longo da visualização lembrei-me da frase tantas vezes dita por Artur Albarran: "o drama, o horror, a tragédia". Ora, tudo aquilo é, para mim, cómico, patético, desgraçado, bizarro e medonho. Não tem ponta por onde se lhe pegue, ou melhor, talvez sirva para estudo das causas que se escondem a montante e se aquilatar do grau de cognição e da sanidade dos intervenientes.

Li esta manhã que um sujeito que por lá passou, a propósito da desistência de um concorrente, terá dito: "O melhor jogador de sempre acaba de desistir, porque Portugal não tem maturidade para enfrentar um jogador que dorme a pensar no que vai fazer no dia seguinte (…)". Está tudo dito. 

Umberto Eco (1983) sobre "A transparência perdida" escreveu sobre a paleotelevisão e a neotelevisão, esta onde sobressaem a desregulação e a ausência de bom senso, tomando conta da televisão e influenciando o mapeamento dos formatos da oferta televisiva. Mas, a par do que se vê, entre a tristeza de um big brother e de outros programas das televisões generalistas, questiono-me sobre as substanciais diferenças. Sinto que se está a nivelar por baixo.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Por favor, não nos tratem por desmiolados


Deixo para depois as questões relacionadas com as investigações em curso. Se valer a pena, claro! Rejeito as opiniões a partir de uma mancheia de "achismos" que por aí andam. Entendo que o tempo ditará a complexidade das responsabilidades de cada um, directa ou indirectamente envolvidos. Poderá levar anos, sabe-se que, infelizmente, é assim, e, por isso, todo o tipo de especulações, como se fôssemos investigadores e profundos conhecedores do processo e até juízes, do meu ponto de vista deve assentar num redobrado cuidado na prudência das leituras.



Uma coisa foi a sistemática denúncia em sede de Assembleia Legislativa e autarquias, às quais se juntou a "vox populi" que, durante tantas dezenas de anos, alimentou a desconfiança na condução dos processos políticos; outra é, perante a realidade que se vive, tecer comentários específicos, julgando, antecipadamente, sem a correspondente prova, condenação e o trânsito em julgado. Não vou por aí. Prefiro que a Justiça faça o seu caminho, conjugado com o que (e bem) escreveu Miguel Sousa Tavares na edição de hoje do Expresso:

"Quando a Justiça não apenas consente mas ainda se conforta em ver os julgamentos que lhe cabe fazer serem feitos previamente na praça pública, ela e nós estamos a caminho do desastre".


Adiante. Não sou, porém, alheio às questões de natureza política. Com a devida atenção escutei o anúncio de demissões, acompanhei o essencial das audições junto do Senhor Representante da República, a "estranha" posição do parceiro de coligação (CDS), as "anfíbias" posições do PAN, a insossa postura assumida pelo Senhor Presidente da República em dois ou três momentos, a total secundarização dos deputados na Assembleia Legislativa, o pensamento de variadíssimos comentadores políticos, o que disseram os representantes dos vários partidos políticos e, ainda, a palavra de vários Professores de Direito Constitucional. Conjugando tudo o que escutei com as declarações proferidas no final da comissão regional do PSD, é-me sensível um total paradoxo entre os factos (formal e ético) e a posição da maioria, uma vez que, para ela, bastará apresentar um nome para líder, a formação de um "novo" governo, provavelmente com o mesmo programa e, assim, "tudo como dantes, no quartel de Abrantes".

Enquanto cidadão não me revejo nisto. O que, ainda ontem, escutei da boca dos Constitucionalistas leva-me a dizer que, todos os dias, alguns tentam pôr em causa a Constituição da República, juntando ilusórias peças no sentido da sua própria sobrevivência política. A confusão instalou-se e todos os dias são atiradas novas achas para a fogueira. Ora bem, não é o Orçamento Regional que está em causa, mas a LEGITIMIDADE para governar. E essa legitimidade, face às gravosas circunstâncias políticas, só pode advir de um novo acto eleitoral. Porque a luta do actual governo, ferido que se encontra no plano político, está para a sua continuidade, como a boia está para um náufrago.

Que haja bom senso, desprendimento político, respeito pela Constituição e pela leitura política que o Povo faz em cada momento, que não existem insubstituíveis, que a Democracia deve ser respeitada nos planos formal e prático e que a humildade de qualquer servidor da "coisa pública" deve estar acima dos interesses pessoais ou de grupo. De resto, o exercício da política não é um emprego, mas um serviço público à comunidade. Ah, já agora, que o Senhor Presidente da República diga, abertamente, o que pensa e como pensa solucionar este problema político.

O resto, as questões da Justiça, que fiquem para depois.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Desinformação e Desigualdade, palavras-chave no Fórum Davos 2024


Por
João Abel de Freitas, 
Economista


Com as novas tecnologias de informação e agora com a Inteligência Artificial, a velocidade de circulação da desinformação quase não encontra limitações tecnológicas. Uma questão-chave para o ano em curso, rico na ida às urnas.



No Fórum de Davos deste ano, que se realizou na Suíça de 16 a 19 de Janeiro, circularam dois relatórios perfeitamente distintos em tudo.

1. O relatório anual do Fórum Económico Mundial de Davos – The global risks report 2024 19th Edition, Insight Report – distribuído um pouco antes, a 10 de Janeiro, debruça-se sobre os riscos potenciais que poderão afectar as sociedades globalmente, distinguindo entre o curto (dois anos) e o médio/longo prazo (dez anos), onde a Desinformação aparece como risco de primeira linha.

Este relatório foi elaborado na base de um painel de 1400 personalidades (peritos, cientistas, representantes da sociedade civil, dirigentes políticos e empresariais) a quem foram colocadas uma série de questões sobre os riscos globais, para os próximos anos, arrumadas segundo cinco áreas: economia, ambiente, geopolítica, sociedade, tecnologia.

2. O relatório da OXFAM – Le rapport Multinationales et Inegalités 2024 – distribuído no Fórum de Davos, versa a Desigualdade, em duplo sentido, a economia e a pegada de carbono.

A OXFAM é uma ONG, sem fins lucrativos, que confedera múltiplas organizações a nível de vários países e se articula em parceria com muitas entidades. Nasceu em 1942, no Reino Unido, na sequência de uma grande crise alimentar, com a finalidade de encontrar soluções para os problemas da desigualdade, injustiça e pobreza. Para isso, utiliza campanhas, programas de desenvolvimento e acções de emergência em situações concretas.

Neste relatório, surgem duas conclusões globais, com uma actualidade gritante e profundo significado:

⦁ As cinco pessoas mais ricas do mundo viram a sua riqueza duplicar desde 2020, enquanto mais de metade da população mundial, cerca de cinco mil milhões de habitantes, em idêntico período, viram a sua riqueza decrescer;

⦁ A pegada de carbono das pessoas mais ricas é duas a três vezes maior do que se pensava.

A Desinformação

3. O relatório do Fórum Económico Mundial evidencia, pela primeira vez, a ameaça crucial do papel da desinformação.

Numa noção simples, a desinformação consiste no uso de um conjunto de técnicas e práticas de comunicação e de informação de massas, com o propósito de influenciar de forma determinante a opinião pública, utilizando dados falsos, escondendo ou falsificando factos. Um processo de manipulação do pensamento e acção das pessoas, tendo em vista fins concretos como o enviesamento de resultados eleitorais.

Com as novas tecnologias de informação e agora ainda com a Inteligência Artificial (IA), a velocidade de circulação da desinformação quase não encontra limitações tecnológicas. Uma questão-chave para o ano em curso, rico na ida às urnas, em muitas partes do Mundo, quer a nível local, nacional ou por blocos de países como serão as eleições de Junho da União Europeia.

Portugal, em 2024, não escapa a nenhum deste tipo de eleições. Marca presença em eleições regionais – Açores (e a Madeira?), nacionais – Legislativas e Europeias. Só escapam mesmo as Presidenciais.

Mas muitos são os países (76 ao todo neste momento, mais a União Europeia) em que os eleitores serão chamados a se pronunciar. Países dos maiores em população, como o Bangladesh, Índia, Indonésia, México, Paquistão, Reino Unido, Rússia vão a votos e quase no final do ano os EUA. Se todas as eleições têm o seu peso, as dos EUA terão uma importância relevante, pois podem trazer ajustes profundos na configuração da geopolítica mundial.

O Fórum Económico de Davos prestou grande atenção a esta situação, aliás, na base do relatório antes referido que aponta a desinformação como um dos maiores riscos para a humanidade: “o uso generalizado da desinformação e as ferramentas para disseminá-la podem minar a legitimidade dos governos eleitos”.

O Fórum de Davos não se cingiu apenas a esta temática da desinformação, até porque o tema central foi o de “reconstruir a confiança” num Mundo marcado por conflitos, guerras e crises bem diversas.

Difícil em situação tão complexa, restituir confiança aos povos e até me permito ter sérias dúvidas de que muitos dos presentes estariam seriamente apostados nisso, pois em todos estes encontros, muitas presenças se devem a um jogo e a um aproveitamento de “negócios” de todo o género, nomeadamente políticos.

A crise mundial é de facto profunda, complexa e perigosa e, em certos domínios, como o ambiente, segundo vários cientistas o referem, os riscos podem estar a aproximar-se de “um ponto de não retorno”. Neste sentido, até acredito numa aproximação muito global ao reconhecimento do problema em teoria.

Já quanto às medidas de ataque nada de comum. Aqui, entram os interesses económicos, os negócios e a apropriação da riqueza. Basta olhar para o campo da energia, onde os desentendimentos são o dia a dia. Jogadas com os preços, nada na realização das metas de descarbonização nem mesmo para aqueles que as juram defender (veja-se a reactivação das centrais a carvão na Alemanha).

É o caos e não um esforço de conjugação para, de facto, reduzir os riscos climáticos, hoje no topo dos riscos globais, com as situações climáticas extremas a sucederem-se, as secas rigorosas, os incêndios, a perda da biodiversidade.

A Desigualdade

4. O relatório da OXFAM apresenta no resumo inicial um quadro com a quantificação das desigualdades, bem mais expressivas na economia e no social que no ambiente.

Não uso os indicadores na sua globalidade. Seleccionei aqueles que, embora em número reduzido, me parecem dar uma visão bem clara das desigualdades que caracterizam o Mundo de hoje.

Fixemos estes dados:

⦁ Se cada uma das cinco pessoas mais ricas do Planeta gastasse um milhão de dólares por dia, precisaria de 476 anos para esgotar a sua fortuna;

⦁ À escala planetária, os homens possuem 105 mil milhares de milhões de dólares a mais que as mulheres, ou seja, uma diferença equivalente a quatro vezes a economia dos EUA;

⦁ 1% dos mais ricos do Planeta possuem 43% de todos os activos financeiros mundiais;

⦁ 1% dos mais ricos do Planeta emitem tanto carbono como os 2/3 mais pobres da Humanidade.

Estes quatro indicadores não podem deixar-nos insensíveis perante a vida.

A terminar

5. Assinale-se a tese defendida no discurso em Davos do ultraliberal Javier Milei, presidente da Argentina. “A justiça social não é justa, nem contribui para o bem-estar geral”, acompanhada de um acrescento: “a redistribuição não é o caminho para resolver as desigualdades”.

Se a estas afirmações/teses de Milei se juntar a carta de 250 multimilionários, também defensores do capitalismo como Milei que, mais uma vez se dirigiram aos líderes mundiais, reclamando que querem pagar mais impostos a fim de combater as desigualdades, a cacofonia em Davos fica perfeita.

Os liberais portugueses têm de se decidir se fazem campanha eleitoral na linha de Milei ou na linha dos 260 ultra-ricos que defendem o aumento de impostos para si próprios, na linha da OXFAM que defende uma maior taxação das grandes fortunas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Uma "líder autocrática" que usa o BCE como "trampolim": funcionários do banco central falam mal (e muito mal) de Lagarde


Por
CNN/TVI notícias




Christine Lagarde assumiu a presidência do Banco Central Europeu em novembro de 2019 mas ainda não convenceu os funcionários do banco central, a avaliar pelos resultados de um inquérito aos trabalhadores do BCE. De acordo com o POLITICO, que diz ter tido acesso aos resultados do inquérito, a maioria (50,6%) dos inquiridos classificou os primeiros quatro anos do mandato de Lagarde como "mau" ou "muito mau".

O inquérito, que contou com a participação de 1.159 dos cerca de 4.500 funcionários do BCE, revela uma insatisfação generalizada com a gestão da ex-presidente do Fundo Monetário Internacional, acusando-a de se envolver demasiado nas questões políticas, descurando as preocupações económicas, nomeadamente a subida galopante da inflação, e de utilizar o BCE como "trampolim" para regressar à política.

“Mario Draghi estava lá para o BCE enquanto o BCE parece estar lá para Christine Lagarde”, comparou um funcionário do banco central, citado pelo POLITICO, que assinala o desfasamento entre Lagarde e o seu antecessor, o ex-primeiro-ministro italiano. De acordo com a mesma fonte, na altura em que dirigia o banco central, apenas menos um em cada dez inquiridos classificou Mario Draghi como "muito mau" ou "mau", em contraste com 55% dos inquiridos que classificaram o seu desempenho como "muito bom" ou "excelente".


Entre as respostas dos inquiridos, o POLITICO salienta um dado que considera “preocupante”: o facto de mais de metade dos funcionários admitirem que o BCE poderá não ser capaz de assegurar o regresso à estabilidade dos preços. Um dos funcionários inquiridos acusa o banco central de se “concentrar em temas que ultrapassam as suas competências, num período em que a inflação atingiu o nível mais elevado da história da União Europeia". Outros salientam o facto de o BCE ter tomado partido no conflito armado entre Israel e o Hamas ou denunciam as viagens "excessivas" de Lagarde para fins não relacionados com as atividades do banco central.

Ainda em comparação com o seu antecessor, o POLITICO assinala o facto de Lagarde ter tido uma classificação muito pior do que Mario Draghi em relação às questões internas, com quase três quartos dos inquiridos a manifestarem descontentamento com as condições de trabalho e salariais, nomeadamente o facto de os aumentos salariais não acompanharem a subida da inflação.

“Christine Lagarde é geralmente apontada como uma líder autocrática que não atua necessariamente de acordo com os valores que proclama”, refere-se num relatório do IPSO, o maior regulador independente da imprensa no Reino Unido. De acordo com o POLITICO, o relatório sublinha a insatisfação dos trabalhadores com a aparente dualidade de critérios de Christine Lagarde, apontando como exemplo o facto de encorajar os funcionários a falarem, mas depois repreender os mesmos se partilharem abertamente as suas preocupações.


O POLITICO assinala ainda um outro dado “surpreendente” relacionado com o facto de nem os funcionários do sexo masculino nem os do sexo masculino estarem satisfeitos com os esforços de Lagarde em matéria de diversidade, com ambos os sexos a preferirem as políticas do seu antecessor, que introduziu pela primeira vez quotas de género no banco central. Embora a maioria tenha concordado com os objetivos quando Draghi levantou a questão, a implementação dos mesmos critérios por Lagarde é descrita como “contraditória e discriminatória”. "As questões de género dividiram seriamente o pessoal", observou um dos inquiridos.

Confrontada com estes resultados, uma porta-voz do BCE disse ao POLITICO que as respostas não correspondem à verdade e lembra que a conjuntura atual exigiu outras responsabilidades à presidente do banco central. “A presidente e o conselho de administração estão totalmente focados no seu mandato e implementaram políticas para responder a eventos sem precedentes nos últimos anos, como a pandemia e os conflitos em curso.”

Apesar do descontentamento geral, os resultados mostram que Lagarde conta com o apoio dos funcionários em alguns domínios em específico, como o facto de incluir a proteção ambiental no mandato do BCE.

Ilustração: Google Imagens