Morreu como desejava. Igual à vida que levou. Morreu de pé como as árvores como comumente dizemos. Uma vida agarrada nas mãos com o pensamento em constante ebulição. No fim, feita a história, a sua história ao jeito do seu pensar e querer, abandonou o corpo e entrou na imensidão cósmica da existência, como defendeu o teólogo Teilhard de Chardin.
Parece coisa pouco. Mas não! É muito num tempo onde quem não abdica de si para se colocar aos pés e mãos dos dominadores parece que não sobrevive e que não tem futuro.
Permitam-me destacar a seguinte coincidência e curiosidade. Em 2020, a 6 de junho, há precisamente 5 anos, sucumbiu ao mundo da morte o Padre Mário Tavares Figueira, o seu indefetível amigo e apoiante, o homem mais humano e humanizante que encontrei em toda a minha vida.
Agora com a diferença de 6 dias e 5 anos, 12 de junho de 2025, o corpo do Padre Martins Júnior, desceu também a esse mesmo mundo inferior que é a morte.
Os dias 6 e 12
Vou fazer uma coisa muito querida ao Padre Martins e que ele frequentemente fazia, relacionando números e datas, com as suas respetivas coincidências e significados.
Dizem os ensinamentos que «O número 6 é frequentemente associado a caraterísticas como amor incondicional, compaixão e responsabilidade. Ele simboliza o lar, a família e a comunidade, enfatizando a importância das relações interpessoais saudáveis e do bem-estar coletivo. Além disso, o número 6 representa a harmonia, a fidelidade e a solidariedade, sendo um símbolo de apoio e nutrição para os outros» ou ainda, «destino, estabilidade, confiança e prestabilidade».
Serve este significado para ambas as figuras que aqui homenageamos combalidos pela tristeza humana, mas com o nosso ser interior em júbilo por termos sido bafejados pela sorte de termos feito parte da amizade e da história destas duas figuras, tão únicas e distintas bem longe do rebanho de tantos iguais.
O significado do nº 12, dia da partida do Padre Martins, adianta seis vezes mais em tudo que há na força das energias do amor, que geralmente influencia os que possuem o dom de amar tudo e todos.
12 meses tem o ano. Jesus teve 12 Apóstolos e Apóstolas. Os ponteiros do relógio passam duas vezes por dia sobre o nº 12. E o dia 12 de junho de 1514, foi o dia da criação da nossa Diocese do Funchal (quem quiser tirar ilações, pois que as tire, porque dá para fazer pensar a coincidência da morte do Padre Martins acontecer precisamente neste dia 12 de junho de 2025).
Enfim, o 6 e o 12, das meias dúzias e das dúzias, fazem parte permanentemente do nosso quotidiano. São a vida de todos nós todos os dias, foram a vida intensa e completa da vida do Padre Martins Júnior.
Perdoem-me esta incursão pelos números, mas serviu-me para aceitar e serenar o meu interior de mais esta perda que veio de chofre como se fosse um murro duro no estâmago.
Esta hora não é, não pode ser, para celebrar a morte. Mas a vida que derramou pela beira pelo Padre Martins Júnior, nos seus vários contornos: religioso como padre e pároco, político, cultural e intervenção social.
Vou destacar três vertentes que me inspiram e pelas quais mais nutro admiração: a liberdade, a cultura e o desalinhamento. Só para destoar de tantos que colocam a obediência e o apagamento de si mesmos à frente destes valores.
A liberdade
A palavra «transubstanciação», que aparece no romance «O Canto do Melro», é o nome dado na Eucaristia ao momento da consagração do Pão e do Vinho em cada Eucaristia que celebramos todos. Esta definição contida no livro definiu toda a ação e obra da investigadora Raquel Varela, acerca do Padre Martins Júnior. Na página 248, resposta dada pelo Ricardo, o amigo admirador da obra do padre Martins Júnior e que é também o narrador do romance, diz: «Aprendi aqui na Ribeira Seca. A transubstanciação das pessoas em pessoas, o reencontro com a própria humanidade, as pessoas a transubstanciarem-se em pessoas. Poderem ser finalmente o que eram, “o rio desaguou, porra!”».
Este é o epicentro da sua vida e da sua história. Este é o olho do furacão chamado Padre Martins Júnior e toda a história da comunidade paroquial da Ribeira Seca.
Nada disto seria possível sem um espírito livre, uma veneração quase «fanática» pela liberdade, a sua e dos outros.
O grande estadista inglês Winston Churchill dizia: «Todas as grandes coisas são simples. E muitas podem ser expressas em uma só palavra: liberdade; justiça; honra; dever; piedade; esperança». Estes valores cantam-se poeticamente e vivem-se convictamente, mesmo que por eles se derrame sangue, suor e lágrimas.
Cito um pensador: «Nem todos podem tirar um curso superior. Mas todos podem ter respeito, alta escala de valores e as qualidades de espírito que são a verdadeira riqueza de qualquer pessoa» disse o autor Alfred Montapert.
O Padre Martins Júnior bem expressou com vida e pela palavra poética esta realidade, com «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».
Mas também a sua dimensão profética fez jus ao pensador aqui citado, quando se viu e sentiu a sua profunda incursão profética e sabedoria nas suas riquíssimas homilias que podem ser testemunhadas pelos milhares de pessoas que as saborearam, mas hoje esfaimam-se delas pela falta que fazem e pelo vazio que deixaram.
Um espírito de ideias e pensamento próprio. Uma opção clara pela humanização, a libertação e pelo despertar das mentes que encontrou subjugadas ao espírito do tempo e à conceção completamente descabida de uma coisa chamada «vontade de Deus» para justificar injustiças, opressões e pobrezas miseráveis. Não deu tréguas à «tirania das ficções sociais» como denunciou o nosso querido poeta Fernando Pessoa, em «O Barqueiro Anarquista».A liberdade foi a sua luz. A liberdade foi a sua primeira causa, como ele sublinhou em 2023 quando deixou a paroquialidade da Ribeira Seca: «Deus respeita a liberdade das pessoas. Depois cada qual tem de aguentar as consequências».
A luta pela liberdade centrou-a na sua comunidade concreta, Ribeira Seca, mas extravasou para o Concelho de Machico, para a Madeira inteira, para o país inteiro, e no dizer da sua biógrafa e amiga Raquel Varela, para o mundo.
A ninguém passou despercebido. Para o bem, que foram muitos a reterem e a saborearem o seu valor. E para poucos, que não o souberam entender e se ficaram no casulo do comodismo de não pensar e ver mais além da curta mediocridade da vida cercada em dogmas, «ficções sociais», no pensamento único e nos condicionamentos das pretensas facilidades que os silêncios estratégicos e o comodismo conferem.
O âmbito cultura
O Padre Martins Júnior era um homem culto. Não era apenas um literato, embevecido pela literalice vaidosa que dá prémios e rende muita fortuna monetária. Era um sábio com uma memória prodigiosa, que citava pensamentos e poemas inteiros de cor com as suas respetivas referências autorais e fontes. Não precisou de gravar nomes na lista do telefone, bastavam-lhe os números apenas que os descobria com a mestria de relacionar datas, acontecimentos e eventos para descobrir os seus respetivos donos.
A música foi umas das suas paixões, que não guardou para si, mas que a transmitiu ao povo, compondo e musicando a poesia do povo, para que o povo dedilhasse e cantasse o seu saber, o seu querer e o seu poder. Não há em Portugal, melhor exemplo, de figura que tenha feito mais e melhor pelo Evangelho inculturado, feito carne de povo na expressão mais rica que é o viver em comunidade experienciado no terreno como dinamismo democrático e sentido evangélico.
Morre o Padre Martins para este mundo nos tempos em que nada se pensa, em que o desrespeito pelo bem comum é motivo de orgulho, a natureza explorada até à saciedade é ato nobre e é «atrasado mental» que não o fizer ou defender a criação. E recrudesce como silvado a indiferença, a descriminação, a aceção de pessoas, o desrespeito pelo trabalho digno e todas as formas de violência que nos torna doentes e desumanos.
O Padre Martins é uma memória, um apelo e um grito contra toda esta desumanidade, esta alienação e todas as injustiças que ainda escurecem os nossos espíritos.
É um lamento que as suas capacidades tão criativas e tão entregues aos outros, não tenham sido reconhecidas e aproveitadas por quem devia reconhecer o seu altíssimo valor. Antes prevaleceu a intriga, a calúnia, maledicência e todas as guerras inúteis que se assistiu na história dos últimos 50 anos da Comunidade Ribeira Seca.
O desalinhamento
Tal como os pagãos dos tempos antigos que, por medo, lançavam os seus primogénitos para o fogo aos pés da estátua de Baal, também nós acreditamos que nos devemos sacrificar para ser agradável ao deus minúsculo. Incapazes de compreender a grandeza, a beleza e o amor infinito de Deus, adoramos assim um ídolo criado apenas por cada um (ou pelas tais «ficções sociais» de Fernando Pessoa) para alienar e não para libertar. Assim sendo, uma vida espiritual adulta e vivificante consiste em resistir e em recusar realizar qualquer prática religiosa cujo fundamento único seja o medo de um deus «deste circo ambulante», refiro-me ao poema da pag. 104 de «Poemas Iguais aos Dias Desiguais».
Morreu de pé e até na hora da morte mostrou mais uma vez que não se encaixava dentro da normalidade como foi sempre a sua vida. Sublinha-se mais esta coerência, o seu inconformismo e a sua postura de resistência face às convenções políticas, sociais e religiosas.
Na vida de qualquer padre, mais tarde ou mais cedo, se verá confrontado entre dois caminhos, um que diz «Caminho da instituição madre igreja» e o outro «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Terá que fazer a escolha. Muitos seguem o primeiro, porque é mais fácil, pode dar mais prestígio e ajuda a fazer carreira nas hierarquias, mas perde o caminho da existência e da autonomia. Perde o pensamento próprio, perde a vida própria, numa palavra perde a liberdade, porque deixa de ser o que é para ser o que os outros pretendam que seja. O Deus verdadeiro não quer isto, «vomita» claramente esta tragédia.
O padre Martins, mesmo com condições intelectuais mais que sobejas para seguir o primeiro caminho, recusou-o pensada e deliberadamente. Esteve sempre no caminho que diz: «caminho do povo, onde estão os teus ossos e a tua carne». Como ele várias vezes me confidenciou «a carne, os ossos e o sangue do padre é o povo».
Como é normal daqui vieram os beneficiados, os apoiantes e os admiradores, que foram muitos, milhares de pessoas, várias gerações. Mas também vieram os detratores com o vocabulário de «comunista», «vermelho», «desalinhado», «excomungado» e «suspenso» («ad divinis»)… Como se fosse possível um Deus, sendo Pai/Mãe, alguma vez suspendesse ou dispensasse um filho... Digam-me onde está esse deus para eu dizer-lhe que sou ateu olhos nos olhos.
Só aqui se compreende como é possível manter-se inquebrável durante tantos anos e só pode ser motivo de admiração tal fidelidade às causas, às ideias e ao povo. Os cravos que ostentamos são o símbolo cimeiro daquilo que aqui proferimos e o sinal de que o Padre Martins Júnior, parafraseando a frase que tanto gostava e tantas vezes pronunciou em tantos funerais que realizou dos seus amados paroquianos da Ribeira Seca: «Morrer é só não ser visto, é fazer a curva da estrada».
Conclusão
Termino com o que ele escreveu no seu último post de 18 de março de 2025, no seu riquíssimo e bem escrito «Senso y Consenso», pela ocasião dos «40 anos de libertação». Escreveu, «Faz hoje 40 anos! Foi uma madrugada de abril em março quase primaveril. A Páscoa antecipada» e continuou, «A religião, tantas vezes usada e abusada pelos oligarcas, foi nessa altura um esteio libertador, tendo em conta o êxodo dos hebreus escravizados após 40 anos pelo faraó do Egipto. E no Novo Testamento, a palavra do senador Gamaliel no Sinédrio, cujos juízes se preparavam para mandar matar os apóstolos. Disse Gamaliel:
“Não vale a pena, porque se a mensagem desses homens não vem de Deus, ela vai consumir-se por si mesma. Mas se vem de Deus, não há poder que a destrua”». E continuou, «O povo da Ribeira Seca venceu, porque teve resistência, autodomínio e vigilância sem termo».
Agora continuemos e sigamos o seu exemplo. A sua memória inspira-nos e frutificará das profundezas deste mundo ainda tão falho de humanidade.
Daqui e para aí onde estiver no lugar da plenitude vai o meu sentido obrigado padre Martins Júnior pelo seu exemplo, a sua amizade, por tudo o que me ensinou e por tudo o que me inspirou a ver mais longe para lá das medíocres circunstâncias voláteis do pulsar inconstante daqueles que se limitam a fazer da vida uma redoma, servida por pacotes de fé e de ideias baseadas em «ficções sociais», que alimentam a vã glória de mandar e de dominar.
Não somos uma terra de «abençoados indígenas», como considerou, quiçá desencantado, o nosso gigante poeta Herberto Hélder. Somos uma terra de paz com gente dentro, sedenta do melhor para si e para os outros. Esse sonho e direito não pode ser gorado por nada nem por ninguém, como ensinou com a sua entrega o Padre Martins Júnior.
A vida neste mundo do Padre José Martins Júnior valeu a pena. Muitos têm afirmado de muitas e variadas formas estes dias, precisamente, esse «valeu a pena». Por isso, parafraseando o pensador e filósofo Emanuel Kant que diz, «Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena». Obrigado e até um dia no festim da eternidade.
22 de junho de 2025
José Luís Rodrigues
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