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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Como a desonra entrou no Altar


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06 Fevereiro 2023


Afinal, houve ou não houve imposição de requisitos pela Igreja, como afirma Carlos Moedas? Vaticano, Igreja Portuguesa, ou os dois? E qual o custo do cumprimento desses requisitos?



Ainda o altar não está erguido e figuras graúdas, civis e religiosas, deste país, já “nele” tropeçaram, algumas sem jeito, mas com tombos a deixar marca bem visível. A começar pelo Presidente da República (PR). Um tombo por culpa própria.

Há sempre os devotos, os que não têm dúvidas. Para os que não o são, a dúvida persiste. Marcelo Rebelo de Sousa conhecia e disfarçou o gasto previsto de cerca de 5,4 milhões de euros no altar-palco principal do Parque Tejo? A dúvida impregnou-se porque o Patriarcado de Lisboa começou por afirmar que o PR sabia os números, como a SIC bem noticiou.

Só no dia seguinte, numa conferência de imprensa (quinta-feira, dia 26/01), o bispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar, (comenta-se, muito pressionado!) veio desdizer o Patriarcado e dizer que o PR e ele próprio (presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude) não sabiam e, à boa maneira ambígua da Igreja, de semblante “comovido”, afirma: “o valor magoou-nos a todos”, certamente inspirando um dos muitos motes dos professores na manifestação da Avenida dois dias depois: “Para os altares há milhões, para nós só uns tostões”.

Desculpem-me, mas o altar-palco (não incluo o recinto) não é um investimento de futuro. É um gasto absurdo de pompa e ambição. Bem sei que vai acolher muitos jovens de tenra idade, os 1000 cardeais que vão estar em cima do palco, mais 300 concelebrantes, certamente a maioria tão jovem como muitos dos cardeais, e ainda os convidados (que não se sabe quantos serão), onde se presume que o mentor do novo altar-palco, Carlos Moedas, vá figurar em destaque.

Li algures que, em todos os tempos, sempre houve, em Portugal, figuras políticas que uma vez nos cargos gostam de muita pompa e circunstância, sentem-se senhores de um País muito rico! Os inscritos na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), pelo que se vai lendo, vão estar pouco em destaque no altar. Certamente, subirão depois para umas selfies com o PR. Senão, não é festa.

A Igreja

A Igreja, com a sua “velha e requintada sabedoria”, tentou “branquear” o escândalo dos milhões, mas não se saiu bem. O bispo auxiliar ao dizer que vai sentar à mesa as equipas ligadas ao projecto para reapreciação dos valores de custo da obra (sentou-os dia 2 de fevereiro, mas sem conclusões), foi pouco convincente e, sobretudo, não deixou de ir repetindo que a responsabilidade era/é da SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana.


Depois, há ainda quatro altares (?) cujos custos de construção são uma incógnita. O do Parque Eduardo VII aponta para um custo de 1,5/2 milhões de euros. Assim, só em altares-palco a JMJ deverá reunir gastos na ordem de uma dezena de milhões de euros. Neste quatro, pelo menos, não houve a desvergonha de se dizer que são investimentos de futuro.

Custa ouvir o experiente e conceituado técnico, Engenheiro Segadães Tavares, o responsável da construção da pala da Expo 98, da autoria de Siza Vieira, dizer na TSF que não acredita que “a obra esteja pronta a tempo da realização da Jornada Mundial da Juventude” e na CNN: “Porquê esta solução? Há soluções muito mais económicas que não obrigam a estas intervenções”. E ainda os valores de que se fala “são um escândalo”.

Mas afinal houve ou não houve imposição de requisitos pela Igreja, como afirma Carlos Moedas? Vaticano, Igreja Portuguesa, ou os dois? E qual o custo do cumprimento desses requisitos? Foram esses requisitos que fizeram mudar o projecto inicial bem mais económico, que tinha sido apresentado ao Governo no Verão passado, pelo actual que, tudo indica, poderá ser ainda revisto, por efeito da opinião pública discordante?

Carlos Moedas insiste, o altar Tejo tem “este modelo” para responder aos requisitos impostos pela Igreja. Afinal, em que ficamos? Quem dará o tombo maior?

Carlos Moedas

Já não estamos no tempo em que a defesa da honra se resolvia através de duelo. Aqui, alguém tem a honra manchada. O bispo Américo Aguiar e o presidente Carlos Moedas têm de defender, na praça pública, a sua honra. O melhor é voltarmos aos tempos antigos e baterem-se mesmo em duelo.

O local ideal existe. Começa assim a justificar por antecipação outras utilizações do recinto altar Tejo. Mas continua a grande incerteza: afinal quem mudou o desenho do projecto que fez duplicar o custo? Alguém quis uma pala a imitar a de Siza Vieira. Estarei equivocado? Admito, mas tamanha ostentação é ambição de rico fácil.

E a terminar as culpas, uma referência ao Governo e ao Presidente da Assembleia da República (AR). O Governo também não escapa, sobretudo por não ter dinamizado o processo e deixar as obras se arrastarem, o que em nada dignifica o País.

Finalmente, um elogio ao senhor presidente da AR, que se aprestou a visitar em tempo oportuno a sede da Fundação da JMJ e a dar o ombro a quem ficou mal ou muito mal na fotografia.

O custo da JMJ na globalidade

Os gastos com a Jornada Mundial da Juventude, numa estimativa por defeito, já andam pelos 160 milhões de euros. Mais uns pozinhos e arredonda para as duas centenas.

Destes milhões, cerca de 80 são dinheiros públicos e uma grossa maquia destinou-se a recuperar espaços de zonas degradadas nos concelhos de Lisboa e de Loures e à implantação de infra-estruturas. Se de Loures se ficou a saber que entre 9 e 10 milhões vão ser aplicados para que o Concelho obtenha uma frente Tejo infra-estruturada, permitindo o usufruto futuro da sua população, de Lisboa, em termos de números, resta-nos uma verdadeira nebulosa.

Poucos questionam o evento

Poucos serão os que põem em causa a realização deste evento, sendo ou não católicos, apostólicos, romanos. Mas há questões relevantes.

A Igreja tem neste evento uma parte significativa de publicitação e prática dos seus valores. Primeiro, os custos desta componente material deviam ser assumidos na íntegra pela Igreja. Qual a razão dos dinheiros públicos terem de cobrir esses custos?! Segundo, o tempo de arranque das obras. Como disse Segadães Tavares, quatro anos “a pensar” e menos de seis meses para executar a obra, onde até os desenhos finais não estão definidos. E, terceiro, por que razão só agora se fala do assunto?!


Portugal não saiu prestigiado neste processo. Arrancou tarde e mal. Em alguns jornais, nomeadamente do país vizinho, vi este problema ser tratado com alguma ironia. Só espero que o evento se realize e com sucesso.

Consultar Camões foi-me inspirado numa conversa com uma amiga sobre o altar-palco. Deixo, assim, uma citação do canto VIII, reflexões sobre o poder do dinheiro, de onde retiro a estância 99:

Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!

In, “Os Lusíadas”, de Luís de Camões

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