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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Um discurso insultuoso e vergonhoso


Por
Henrique Sampaio

Alegadamente para assinalar o Dia Mundial dos Pobres, a Cáritas Diocesana do Funchal e o Secretariado Diocesano da Pastoral Social convidaram a deputada Paula Margarido a proferir uma conferência intitulada “Construir riqueza Combater a pobreza”.



Nas declarações prestadas à comunicação social, a par (a) lamentar considerou “importante desconstruir as estatísticas” no que concerne à realidade regional da pobreza. Vai daí, concluiu, do alto da sua suposta sapiência, que a pobreza existente na Região é “uma consequência do álcool e das drogas”! A páginas tantas disse mesmo: “Qual é a miséria que há aqui? Está bem! Temos pobres nas ruas, mendigos, sem dúvida alguma. Mas é miséria de cabeça”!!!

Ou seja, se pudéssemos levar a sério o discurso da deputada eleita nas listas do partido laranja cá do burgo, o problema da pobreza na Madeira seria, porventura, resolúvel com o internamento dessas pessoas nas Casas de Saúde São João de Deus e Câmara Pestana.

Acontece que um tal discurso é, não só, manifestamente intolerável, mas, principalmente insultuoso para todos aqueles que não usufruem de condições de vida dignas, quer por não disporem de rendimentos (salários ou pensões) suficientes para fazer face às despesas básicas em matéria de alimentação ou saúde, por exemplo, quer por não terem acesso a uma habitação condigna.

A antiga presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados chegou inclusive a afirmar que as dificuldades por que passam sectores da classe média se ficam a dever a “excessivo consumo”. Às tantas, decorrente, também, de “miséria de cabeça”.

Ao ouvir a novel par (a) lamentar lembrei-me de declarações proferidas, algures neste século, já na fase decrépita do “jardinismo”, por um titular da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais que teve a lata de, igualmente em resposta a indicadores de pobreza na Madeira, apontar para uns insignificantes 5%.

Isto é, a desvalorização, aqui e agora, da intolerável realidade em que se encontram milhares e milhares de madeirenses e porto-santenses foi sempre uma marca dos governos regionais do PSD. Na ânsia de fazer passar a Madeira como uma espécie de paraíso na terra, os sucessivos governos regionais nunca prestaram a atenção devida a essa realidade, não a assumindo e, por conseguinte, não se empenhando minimamente em reverte-la.

Agora, porém, com tais declarações, foram ainda mais longe: culpabilizando os pobres pela sua condição e procedendo à sua estigmatização.

Devo, contudo, confessar que, ao fim e ao cabo, não fiquei surpreendido. Não há muito tempo, a mesma personagem, ocupando funções em comissões diocesanas para protecção de menores e adultos vulneráveis, também desvalorizou o abuso sexual no seio da Igreja Católica, em particular na diocese do Funchal, como se pudéssemos ignorar os vergonhosos casos envolvendo os padres Frederico Cunha e Anastácio Alves.

Enfim, é caso para dizer que, pelos vistos, a senhora convive mal com a realidade. Às tantas, padece também, quiçá, de um problema “de cabeça”.

*Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia

UE muito fragilizada frente a Trump 2.0


Por

A Europa há muito não é uma zona prioritária para os EUA e para Trump nunca foi. Essa é a Ásia. E ainda a Nato. Trump sempre achou que a Europa paga pouco. Mais um problema a acrescentar.



Deficiências estruturais da União Europeia

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, vieram ao de cima os desencontros de fundo na União Europeia. A UE, por demasiada influência/imposição da Alemanha, assentou, desde o tempo de Schroeder e Merkel, o seu modelo de desenvolvimento socio – económico, na energia barata de origem fóssil, comprada à Rússia (gás, petróleo e mesmo carvão e produtos derivados), ou seja, criou os alicerces de uma dependência sem defesas alternativas.

A invasão da Ucrânia trouxe uma desorientação/desvario à Europa. Avançou-se para sanções económicas à Rússia, sem medir as consequências na economia e sociedade europeias, designadamente porque as sanções avançadas ponham em causa, sem alternativas válidas, os modelos energéticos e de desenvolvimento construídos. Ainda houve quem hesitasse, Macron, Scholz…

No entanto, a pressão dos EUA foi tamanha que Ursula von der Leyen se adianta no alinhamento imitativo das sanções, arrastando, nessa onda, os países, que “se esqueciam” de algo determinante: a Europa não tinha recursos energéticos próprios equivalentes aos EUA, pelo que a sua situação nos mercados internacionais de aquisição complicar-se-ia com aquele tipo de sanções, como, aliás, aconteceu e continua a acontecer, chegando-se ao ponto da UE ter de continuar a adquirir energia de origem russa (por esquemas “maquiavélicos”), a preços 2 e 3 vezes superiores.

Os governos europeus alinharam, de modo insensato, contra os interesses dos seus países e da União Europeia nas sanções americanas, com a consequente perda de competitividade comparativa (aumentos de preços) face às restantes zonas económicas. Com isto, não pretendo afastar possíveis sanções, mas nunca sem antes de qualquer pensamento autónomo e adequado à realidade europeia.

E as crises começaram a suceder-se em catadupa.

Hoje, temos uma Europa penalizada, bem mais fragilizada do que era ou parecia, em profunda desindustrialização com vários sectores (eletromecânica e química) em crise aguda, encerramentos ou deslocalização de empresas e os dois principais países, Alemanha e França, em situação económica e política críticas, decorrente sobretudo de duas questões essenciais : inexistência de uma estratégia global e de estratégias sectoriais, definidas e sustentadas nas reais potencialidades da União Europeia de que se releva a energia, quase diria, a base de tudo.

Faltam, assim, instrumentos básicos de progresso, estratégias ajustadas às características da União Europeia e à evolução da Ciência e vontade política para fazer a UE avançar em bases sólidas. A União Europeia anda à deriva. Trabalhos técnicos não faltam, os mais conhecidos de Enrico Letta e Mario Draghi. Efeitos zero. Outros virão, com o mesmo destino. Como pode, por exemplo, a UE pensar numa posição adequada na Inteligência Artificial (IA), sem dúvida uma área de futuro e com futuro, sem equacionar a energia, sabendo-se que as actividades de IA são altamente consumidoras de electricidade e, no contexto da correcção das alterações climáticas, necessariamente de energia de baixo carbono?!

Não é por acaso que os grandes potentados tecnológicos, Microsoft, Google, Amazon… viraram-se para a energia nuclear para assegurar, a médio prazo, o seu “domínio” nas áreas da IA (centros de dados e plataformas) fortemente consumidoras de electricidade. Estão a incentivar o fabrico de SMR – pequenos reactores modulares, com produção esperada, a partir de 2030.

A União Europeia, pelo que acaba de se referir, encontra-se em desvantagem, fragilizada e, neste momento, ou sendo mais rigoroso, a partir de Janeiro, vai ter que enfrentar uma outra política económica de teor protecionista, radicalmente diferente, que choca frontalmente com a UE, a de Trump 2.0, para que não está preparada.

Guerra comercial: as tarifas às Importações

A implantação de tarifas, segundo Trump, a palavra mais bonita que existe, “fora do amor e da religião” permite recuperar o tecido económico americano, torná-lo competitivo. Assim, vai instituir tarifas sobre todas as importações entre 10 a 20% e 60% para a China.

As tarifas aduaneiras para a Europa serão devastadoras: não é só a queda das exportações de máquinas, veículos e produtos químicos (68% em 2023) e de queijos e vinhos outra machada, agora nos produtos agrícolas, mas ainda os milhões de desempregados que vai arrastar. Nem todos os países estão expostos de igual modo. Alemanha, Holanda, Bélgica, Irlanda serão dos mais expostos nos produtos industriais e França nos de origem agrícola. E perguntar-se-á, haverá mercados alternativos para absorver estes produtos europeus? Difícil resposta, mas no curto prazo, não. A Europa não se preparou. Quedas de produção e desemprego vão mesmo bater à porta da Europa, no imediato.

Para Trump, a Europa não é mais uma “terra” amiga, mas um cliente como outro qualquer. Há que ser realista. A Europa há muito não é uma zona prioritária para os EUA e para Trump nunca foi. Essa é a Ásia. Encontrar soluções para barrar os caminhos da China na tecnologia e os seus avanços na região e no Mundo é o foco de Trump e também o era de Biden, mas com diferenças.

Políticas de Trump 2.0

Para além da Economia, as Políticas de Trump também são dissonantes da Europa. Desde logo, o clima em que certamente como céptico das alterações climáticas vai continuar a aumentar a exploração das energias fósseis, abandonar o acordo de Paris de 2015 e desmantelar a Agência de Protecção Ambiental dos EUA e, aqui, von der Leyen já lhe lançou namoro, ao dizer numa conferência de imprensa recente em Budapeste que a União Europeia pode substituir o fornecimento de gás que ainda compra à Rússia por gás dos EUA que já é o maior fornecedor. Pensa von der Leyen, com estas palavrinhas mansas, dissuadir Trump das tarifas e de uma política económica anti-Europa?!

Por outro lado, Trump 2.0 vai mesmo cortar ou reduzir apoios à Ucrânia e lançar negociações. Insinua a comunicação social europeia que há conversações com Putin nesse sentido. Será que já estão a concertar as condições?! E ainda a Nato. Trump sempre achou que a Europa paga pouco. Mais um problema a acrescentar.

O Mundo está numa viragem geopolítica, com a Europa em perda. O espírito de parcerias amigas (EUA/UE) a esvair-se e tudo a caminhar numa linha de desestabilização, em que o apoio aos partidos e movimentos da extrema-direita na Europa vai ser privilegiado, sobretudo quando as suas posições sejam próximas das de Trump, imigração e identidade nacional.

Não é por acaso que o ex-comissário europeu Thierry Breton, saneado pela presidente da Comissão, depois de reconduzido por Macron, dizia há dias numa entrevista que Orban passará a ser um interlocutor bem colocado na União face aos EUA.

A vida complica-se para a União Europeia que, face a um Trump 2.0 forte, encontra-se em estado, diria, tendencialmente letal. Pesada burocracia, grande imobilismo na decisão, no meio de guerras comercial e tecnológica EUA-China, sem estratégia própria, dificilmente conseguirá ser o que nunca foi – ela própria – ou seja, sair da dependência política dos EUA, agora agravada porque da situação de indiferença (Biden) entra num ambiente de hostilidade variável (Trump 2.0).

O futuro da União Europeia é de tempos difíceis. Vários cenários são possíveis no Horizonte, nomeadamente, se o Trumpismo se estender pelo Mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

A contextualização da Palavra


Domingo 16 de Novembro. Igreja da Paróquia de São José, no Funchal. Ali assisti a um importante momento de contextualização da Palavra. 

Na esteira da Encíclica "Laudato Si" - os cuidados que a todos compete com com a "casa comum" - após as leituras e o Evangelho daquele Domingo, o Padre José Luís Rodrigues deu a palavra ao Engenheiro Doutor João Baptista.

A igreja estava repleta de fiéis e ali falou, num irrepreensível silêncio, sobre as grandes preocupações com o ambiente. Seguiu a linha de pensamento do Papa: "A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudar o seu estilo de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o provocam ou agravam". Daí os desastres que a Madeira tem sofrido, as aluviões, os incêndios, a ausência de planeamento consistente e suas consequências, narrando, por aí, todas as causas que estão a fragilizar estas ilhas atlânticas.

Foi uma lição e um chamamento para a realidade que todos sentimos. O ritual da Missa foi, claramente, enriquecido, pela introdução, repito, da contextualização da Palavra na vida real. 

Parabéns Padre José Luís e ao Engenheiro João Baptista. Que excelente momento de reflexão!

Ilustração: Arquivo próprio.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

PADRE JOSÉ MARTINS JÚNIOR - Festa de aniversário e lançamento do livro "O Canto do Melro"


Ontem, assisti ao lançamento do livro "O Canto do Melro", escrito pela Historiadora e Professora Universitária Raquel Varela e editado pela Bertrand Editora. A figura central: Padre José Martins Júnior. Foi um fim de tarde absolutamente memorável. Pela música, pela poesia e pelas notáveis intervenções que escutei. Fiquei, acreditem, de coração cheio, pelo meu distinto Amigo e pela festa do povo ao seu corajoso líder.

Hoje, deixo aqui o canto de "parabéns", as tunas de bandolins, a poesia e as intervenções que escutei. Uma só palavra: FANTÁSTICO!

Convido-vos a seguir.

Ilustração: Arquivo próprio

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

"A Igreja perdeu o inferno, o céu vai pelo mesmo caminho" - JLR


Nunca simpatizei com as atitudes de subserviência, porque sempre destrincei o respeito, mesmo o que se prende com a hierarquia, com a atitude de submissão, por bajulação, medo, calculismo e, pior ainda, por demissão relativamente ao mister que desempenhamos. Aquela atitude que configura "o não vale a pena", os braços caídos, a incapacidade de dar voz aos que não a têm, mexe comigo, porque mexe com o meu entendimento do que é a liberdade de pensamento. Não tenho qualquer afinidade pela rotina, pelo marasmo e pelo deixa andar. Serve-se de corpo inteiro, com as convicções que nos alimentam, com os princípios e os valores que nos animam, jamais através dos múltiplos e estratégicos silêncios que conduzem à ausência do poder da reflexão. 



Há momentos que o silêncio se impõe, porque ele próprio pode ser decisivo, em outros, é o Grito de Munch que abana, desconstrói e ajuda a recentrar ou juntar as peças do caos.

Sobre o que aqui me traz, diz-se que "o silêncio ajuda a ouvir a palavra de Deus", mas quando o contexto em que se vive é, deliberadamente ou por omissão, ofensiva da Palavra, daquela Mensagem que emana de Cristo, só há um caminho a seguir, a da reflexão libertadora em alta voz.

É claro que o poder político adora a humilhação da Igreja, trazendo-a pela trela. E a Igreja, ao invés de o colocar em sentido, amocha, faz-lhe vénia, autocensura-se ou assobia para o lado. É, por isso, que do púlpito, muitas vezes vejo braços a se abrirem ao jeito de quem assume: "em verdade vos digo que não acredito no que digo". O que significa negar-se, passando ao lado da desumanidade e dos direitos do Homem. Porque não existe nem interessa debater ou alertar para uma outra dimensão no quadro de um projecto colectivo que aglutine o conjunto do corpo social.

Perguntar-me-ão, mas onde quero chegar com estas palavras? A resposta é simples: aos padres e aos leigos que, batendo no peito, gerem o silêncio cúmplice que ajuda a afundar os princípios e os valores pelos quais Cristo se bateu. Felizmente, não é o caso do Padre José Luís Rodrigues. Eu li a sua "Carta Aberta aos padres e leigos da Diocese do Funchal" . Não é a primeira nem será, certamente, neste contexto e em outros que o meu Amigo Padre levantará a sua voz, contundente, assertiva, provocadora ou melhor, despertadora de almas adormecidas no seio "da casta dos privilegiados".

Eis as suas palavras, qual grito que vem das entranhas ao serviço da sua missão: que saltem os "(...) metidos por aí na betonagem do social da religião e da região (porque) tornamo-nos massa da mesma massa e encaixamo-nos na engrenagem das dependências do poder político e religioso dominantes. Não esclarecemos ninguém, não dizemos não quando a dignidade humana também se faz com a proclamação do dizer não diante do que não serve a justiça e o bem comum. E diante das coisas deitamo-nos à preguiça do pensamento para deixar a obediência cega comandar os nossos passos. (...) Este cancro é um veneno que alimenta o clericalismo. A assunção das diferenças são combatidas e levam ao isolamento, ao descarte e à falta de fraternidade. E são poucos os que resistem a este estatuto. Não devemos aceitar esta lógica. Porque se pregamos que as qualidades do ver, do ouvir e do falar, são dons maravilhosos concedidos por Deus, na realidade, a larga maior se demite de os usar com alegria e entusiasmo corajoso. (...) Que cristãos e que sacerdotes tem Jesus diante de Si neste tempo histórico que vivemos? – Se lhes falta coragem e a ousia, que Reino pode ser vivido e anunciado... A meu ver andamos fora do essencial. E se almejando ser um corpo como se prega, deve implicar sermos todos iguais nas circunstâncias, sem deixar de valorizar a personalidade própria, assumindo sem medo a liberdade de pensar pela sua própria cabeça. (...)"

Pois é, Padre. Vivemos um tempo difícil, de grandes assimetrias, de corrupção, de múltiplas pobrezas, de suicídio, de jovens à nora e de continuadas iliteracias. Um tempo onde olhamos em redor e vemos tanta canga e baile pesado com os narizes quase colados ao joelho. Não basta a tese do "Cristo comunicador perfeito", mas a consequência de uma ruptura com esta vidinha acomodada, porque silenciada, onde as homilias não agregam, antes são geradoras de pena e desalento.

Parabéns meu querido Amigo Padre José Luís Rodrigues. São pessoas como o Senhor que ainda nos fazem acreditar que é possível um mundo melhor nesta nossa curta passagem pela vida. Lembro-me ter escrito que "A Igreja perdeu o inferno e que o céu vai pelo mesmo caminho". A hierarquia certamente que percebeu a sua mensagem, porém, preferiu refugiar-se nos penosos labirintos de um Paço sem pensamento!

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Porque hoje é Sábado... tudo está a funcionar!


Triste sina a dos insulanos da Madeira. Quando escutei as declarações do Senhor Representante da República sobre uma eventual crise política, em função de uma "moção de censura" apresentada por um partido, passou por mim aquele notável poema de Vinicius de Moraes, "O Dia da Criação".


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
(...)
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
(...) porque hoje é Sábado, amanhã é Domingo!


A variante política do Senhor Representante da República traz um pouco os sons e o canto de Vinicius:

"(...) Continuamos a ter barcos no porto, aviões a aterrar, os hotéis a funcionar, os percursos pedestres a funcionar, a economia e os nossos restaurantes a funcionar, está tudo a funcionar (...)".

Talvez seja a minha consciência social que não esteja a funcionar e, talvez, "não há como o tempo para passar". O problema é que não passa, ilustre Representante da República (que mal que isto me soa no quadro da Autonomia). A pobreza está a tornar-se paisagem, os processos, alegadamente criminais, estão aí aos olhos de todos, muitos empresários andam aflitos, milhares de jovens não estudam nem trabalham, a escola virou armazém, 84% dos professores desejam aposentar-se e poucos desejam lá entrar, o sistema de saúde soçobra, a economia paralela cresce, o biscate substituiu a vontade de trabalhar com deveres e com direitos, as dependências, químicas e outras, estão de vento em popa, matando lenta mas seguramente jovens e menos jovens, os suicídios tomaram proporções alarmantes, a violência, não apenas no seio das famílias, galopa sem freio, as assimetrias culturais são arrepiantes, o turismo, pelo que se lê, tem muito que se lhe diga, porém, tudo está "funcionando regularmente", embora sejam evidentes as tonalidades sombrias e trágicas da vida política insulana.

Com todo o respeito que nutro pela figura do Senhor Juiz Conselheiro, politicamente, é-me difícil aceitar a sua tarefa Constitucional. A quem me pergunta se estou bem, normalmente, com o pouco humor que tenho, respondo: funciono! Mas isso sou eu. Só que, o drama é este, para o colectivo "o tempo está a passar" o que obriga a que ninguém assobie para o lado, não confunda o bem-estar de uns com o da generalidade da população, tampouco com declarações que "fogem a essa dura realidade". O tempo exige distanciamento, coragem, inteligência, frontalidade, capacidade de decisão e nunca a aplicação de uma espécie de penso rápido nas feridas que são, notoriamente, profundas e dolorosas. O apelo à "serenidade" apenas traz no seu bojo a continuidade da dor. Mas, enfim, mesmo que a "moção de censura" me passe ao lado, como enaltece Vinicius...

Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
E há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado (...)

Hoje, Segunda, serenamente, vou escutar o "Dia da Criação". Como sublimação ou mecanismo de defesa, bálsamo e sensação de alívio. 

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Brasil e BRICS+


Por

O Brasil e a Índia são muito reticentes sobre a composição futura dos BRICS e não alinham numa “aliança anti-Ocidente”, privilegiando a qualidade à quantidade.



A Presidência do Brasil

1. O Brasil assume a Presidência dos BRICS+, por um ano, a partir de 1 de Janeiro de 2025. O desempenho da Presidência é um direito atribuído a cada um dos países-membros, segundo normas estabelecidas no seio do grupo para o exercício dessa função, pelo período de um ano e de forma rotativa. O Brasil, para cumprir as regras, deveria ter assumido a Presidência dos BRICS em 2024, mas como, em simultâneo, detinha a Presidência do G20, solicitou adiamento de um ano e, em seu lugar, avançou a Rússia. Aliás, o Brasil já exercera essa função, em 2019, com Bolsonaro no poder.

Lula da Silva, que não esteve presente, fisicamente, na 16ª Cimeira dos BRICS, realizada em Kazan/Rússia entre 22 e 24 de Outubro 2024 (alegadamente por motivos de saúde), na sua intervenção por videoconferência, dirigida à sessão plenária de líderes, aproveitou para lançar o lema da Presidência do Brasil para 2025: “Fortalecimento da cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável”. Um lema que é um “mundo”…

Aproveita ainda a ocasião para avançar temas muito “caros” ao Brasil, a abordar durante a Presidência, entre eles, a reforma da governança global e o desenvolvimento sustentável, fazendo aqui uma ligação com o G20 onde colocou grande enfoque nestas temáticas, bem como a desdolarização das economias, nomeadamente entre os países BRICS, (na opinião do Brasil, a avançar com demasiada lentidão) e a luta por um mundo multipolar.

O grande trabalho do Brasil na Presidência dos BRICS vai concentrar-se, em termos de tempo, sobretudo no primeiro semestre, uma vez que recebe no segundo a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30). Lula da Silva está muito empenhado nesta realização das Nações Unidas, uma vez que o meio ambiente constitui uma grande aposta sua, neste 3º mandato de Presidente do Brasil.

No entanto, no segundo semestre, haverá espaço e tempo, penso eu, para a organização da Cimeira dos BRICS (a 17ª) que costuma simbolizar o fecho nobre de cada Presidência. Aliás, o último ponto da declaração conjunta da Cimeira de Kazan é bem claro a este respeito: Estendemos total apoio ao Brasil em sua presidência do BRICS em 2025 e na realização da XVII Cúpula do BRICS no Brasil (tradução brasileira).

A 16ª Cimeira Kazan/Rússia – curto Balanço

2. Esta 16ª Cimeira foi a primeira, pós o alargamento, que conta agora 9/10 países membros (os cinco BRICS, mais Egipto, Irão, Etiópia, Emiratos Árabes Unidos (9) e Arábia Saudita, que ainda não completou a adesão). Em 2024, a Rússia presidiu aos BRICS e, entre outras iniciativas, organizou a 16ª Cimeira, cuja preparação é muito trabalhosa, nomeadamente a declaração final, pelos afinamentos específicos que exige.

A declaração de Kazan contém 134 pontos, organizados segundo três itens, onde a palavra COOPERAÇÃO é bem marcante: aprofundamento da cooperação para a estabilidade e segurança global e regional; promoção da cooperação económica e financeira para um desenvolvimento global justo; fortalecimento do intercâmbio entre pessoas para o desenvolvimento social e económico. Esta declaração, por sua vez, é encimada pelo Fortalecimento do MULTILATERALISMO para o desenvolvimento e a segurança globais justos.

A Cimeira contou com a presença de líderes ou representantes de 36 países, entre eles, a Turquia, país da Nato, que solicitou adesão aos BRICS. O foco daquela incidiu sobre o prosseguimento na procura de um sistema alternativo de Pagamento Internacional que a vingar levará a prazo ao enfraquecimento do poder dos países do Ocidente na economia mundial e, designadamente do dólar, como arma política, frequentemente usada.

Aliás, o grupo dos BRICS tem uma história interessante neste século XXI. Nasceu e continua a desenvolver-se em contraponto ao Ocidente por este não reconhecer, nem respeitar o peso do grupo na economia Mundo, impossibilitando-lhe a participação, em termos adequados, em Instituições como o Banco Mundial, FMI, Conselho de Segurança da ONU.

O que une países tão díspares entre si sob múltiplos campos é, na realidade, “a desconsideração” com que o Ocidente os trata. Os BRICS entendem que incorporam o (res)sentimento do Sul Global e, nesse sentido, batem-se contra esta discriminação, procurando construir alternativas em bases de funcionamento diferentes.

Guterres participou e bem na Cimeira dos BRICS+

A viagem de Guterres a Kazan mereceu a reprovação da Ucrânia por nessa Cimeira participar Putin e a Rússia deter a Presidência. Mas, os BRICS são muito mais que Putin, embora esta Cimeira, não se nega, tenha tido um significado especial para Putin. Recebeu em território russo vários chefes de estado e primeiros-ministros, o que nos EUA e União Europeia fez mossa e com muitos deles teve reuniões bilaterais.

Os BRICS assumem, sem dúvida, uma dimensão demográfica, económica, social e política no Mundo, que a ONU não pode esquecer, nem secundarizar. Aliás, estes países sentem-se demasiado ostracizados pelo Ocidente e a ONU, no seu sentido dos equilíbrios, fez bem em fazer-se representar e agir em conformidade.

António Guterres cumpriu a sua função, tanto que, ao dirigir-se à Cimeira dos BRICS, fez o apelo acertado ao fim imediato da guerra na Ucrânia, dizendo: “precisamos de paz na Ucrânia, uma paz justa em conformidade com a Carta das Nações Unidas, o direito internacional e as resoluções da Assembleia Geral”.

Sobre a guerra também Xi Jinping referiu: “a China e o Brasil apresentaram um plano de paz para a Ucrânia e procuraram um apoio internacional mais alargado. A Ucrânia rejeitou”.

Critérios de adesão aos BRICS

A adesão aos BRICS foi um ponto-chave desta Cimeira, como já o tinha sido na anterior. Havia várias candidaturas. A adesão depende de quem desempenha a Presidência endereçar convite a países que manifestaram interesse: 13 países, entre eles a Turquia, a Indonésia e o Vietname foram convidados, não para uma adesão plena, mas na qualidade de Estados Parceiros, uma nova formalização que não dá entrada plena nos BRICS.

O alargamento é uma matéria sensível e o grupo ainda não conseguiu especificar os requisitos de aceitação. Há discordâncias e receios. Uma área onde se avança com pinças. O Brasil e a Índia são muito reticentes sobre a composição futura dos BRICS. Sabemos que o Brasil vetou o convite de parceria à Venezuela e Nicarágua. Índia e Brasil não alinham numa “aliança anti-Ocidente” e privilegiam a qualidade à quantidade. Certamente irá continuar a predominar o critério do entendimento comum na adesão.

Surgiu, neste contexto, a modalidade de país-parceiro, um conceito ainda ambíguo, que poderá trazer algum conforto a muitos países candidatos, pois podem participar e ser ouvidos. Entendem os líderes dos BRICS que a parceria com os países em desenvolvimento levará a um aprofundamento da cooperação internacional. A unidade entre os BRICS e os parceiros é uma tarefa árdua e a fazer-se sem pressas. Uma modalidade a requerer uma tessitura muito cuidadosa.

Nota final. Quando este artigo for divulgado, estaremos certamente no apuramento ou rescaldo dos resultados das eleições americanas. Para John Bolton, ex-conselheiro da Segurança Nacional na Casa Branca, “Putin e Xi Jinping olham para Trump como um idiota útil”. Aqui deixo a pergunta. E se este idiota útil ganha as eleições? Até os BRICS serão ‘abalados’.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Memórias de Abril (2): A ocupação do seminário e o bispo da Diocese


A queda do regime fascista em 25 de Abril de 1974 desencadeou em todo país, no ano lectivo subsequente (74-75), um aumento substancial no número de alunos inscritos nos diferentes estabelecimentos de ensino. Um facto que também se verificaria na Madeira.



Na edição de 17 de Outubro de 74, o “DN” local noticiara que as aulas começariam na semana seguinte, com 3.314 alunos matriculados no Liceu e 2.970 na Escola Industrial e Comercial do Funchal. Porém, no dia 30 desse mês, o matutino funchalense publicaria um comunicado da Comissão de Gestão do Liceu, no qual “lamenta que, ao contrário do que foi anunciado, a abertura das aulas não poderá realizar-se na data que foi indicada”, apontando como razões: “a) a impossibilidade de ser cedido o edifício do Seminário Menor, apesar de todos os esforços realizados pela Junta Geral do Distrito no sentido do seu aluguer; b) a negativa do Colégio de Santa Teresinha ante o pedido de cedência de algumas salas de aula; c) após a elaboração dos horários ter-se verificado não serem suficientes as várias salas do edifício do Liceu, conforme estabeleciam as normas da Direcção-Geral da Administração Escolar” (faltavam salas para 6 turmas na parte da manhã e para 7 à tarde).

As diligências da Junta Geral junto da Diocese e do respectivo prelado tinham-se iniciado ainda durante a presidência do eng. Rui Vieira (seria substituído em Agosto pelo dr. António Loja) e decorriam do facto do edifício do Seminário se encontrar devoluto desde Maio e estar apetrechado com salas de aulas, laboratório, museu de história natural e dispor de terrenos para recreio e campos de jogos.

E é precisamente a 30 de Outubro, após uma reunião efectuada no Ginásio do Liceu, que os estudantes decidem dirigir-se para o Seminário Menor e proceder à sua ocupação.

Segundo o órgão da diocese, “Jornal da Madeira” (edição de 31 de Outubro), o bispo “havia já determinado que os vários organismos de leigos, as várias comissões diocesanas e os serviços da Câmara Eclesiástica iriam concentrar-se no edifício da Calçada da Encarnação, propriedade da Diocese”, adiantando que “a ocupação da propriedade privada compromete a livre acção da Igreja no Distrito do Funchal”. Uma argumentação que a própria peça jornalística se encarregaria de desfazer quando, aludindo às diligências da Junta Geral no sentido do aluguer do edifício, sublinha que a Diocese “recusou, tendo sugerido a hipótese de venda”. Ou seja, a Diocese e o seu titular, Francisco Santana, ao mesmo tempo que proclamavam necessitar do edifício, recusando-se a alugá-lo, estavam disponíveis a vendê-lo. Isto é, queriam fazer um negócio mais proveitoso!

“JM” – cujo director passara a ser, a partir de 29/10, o até então destacado colaborador do semanário “Voz da Madeira”, Alberto João Cardoso Gonçalves Jardim – que, reportando-se à ocupação, denunciava ter o bispo sido “feito prisioneiro, insultado e vítima de tentativa de agressão” – acusação que o insuspeito Luís Filipe Malheiro, à época estudante do Liceu e colaborador da secção desportiva do jornal, desmentiria categoricamente. O mesmo faria a Comissão de Alunos, afirmando: “o Bispo mentiu, o Jornal mentiu”. O prelado, por sua vez, através de Carta, acusaria: “Fui insultado durante 12 horas, martírio tipo chinês, para me cansarem e desfazerem a resistência”, negando simultaneamente que tivesse negociado “nada”, limitando-se a exigir o abandono do edifício ocupado, acabando por entregá-lo “ao cuidado das Forças Armadas”. E recorrendo ao estilo que o caracterizaria, F. Santana aludiria à “ameaça marxista”, escrevendo: “assaltaram e ocuparam, obedientes a dirigentes adultos de partidos comunistas de vário género (…) O acontecimento do Seminário da Encarnação veio somente confirmar à evidência o perigo gravíssimo em que o povo português está envolvido, estando a ser reaccionariamente obrigado a submeter-se ao totalitarismo marxista”.

No dia seguinte (1 de Novembro), o CTIM (Comando Territorial Independente da Madeira), através de comunicado, revelava ter sido obtido um “entendimento” entre as partes, nos termos do qual o edifício do Seminário seria entregue à Junta Geral para “instalações escolares”. Tentando inverter o rumo dos acontecimentos, e numa clara tentativa de revanche, nas missas rezadas no «dia-de-todos-os-santos», foi lida uma “Convocatória” apelando ao “cristão católico” para comparecer nesse dia, 1/11, pelas 16 horas, no Largo da Sé, “para mostrar o desacordo, junto das F. Armadas e exigir a entrega imediata à Diocese do Seminário”.

A «indignação», o desagravo dos “cristãos católicos” expressava-se nestes termos: “Querem tirar-nos o Seminário da Encarnação, alegando falsas razões. O nosso bispo foi obrigado a ceder (…) Precisamos do S. Menor!!!Não está desocupado como afirmaram” – nalgumas igrejas “os párocos informaram que se encontravam à disposição dos católicos madeirenses autocarros que os transportariam ao Funchal”, tendo o programador da Estação Rádio da Madeira interrompido a transmissão da missa da paróquia dos Álamos, pelo “reaccionarismo de que se revestia o comentário feito pelo pároco”.

Em reacção, os estudantes e movimentos e partidos políticos, como a UPM, a FPDM, o PS e o PCP, apelaram à vigilância “contra mais esta manobra reaccionária”.

O risco de confronto físico, como sublinharia a reportagem do “DN”, esteve eminente, entre «os “católicos madeirenses” e os contra-manifestantes, na sua maioria, também católicos».

Entretanto, o bispo apressar-se-ia a declinar responsabilidades na citada “convocatória”, tornando público um comunicado em que declarava: “não convoquei nem organizei qualquer movimento de católicos, que se realizou por iniciativa livre e consciente do grupo (que havia recebido de manhã no Paço Episcopal) como prova pública de apoio ao seu Bispo”, adiantando, contudo, de imediato: “apoio incondicionalmente a iniciativa, reconhecendo-lhes o direito de se reunirem e livremente exprimirem o sentir da Diocese, profundamente ferida com os recentes acontecimentos no Seminário da Encarnação e no «JM». De facto, foi violentada a consciência católica do Povo madeirense”. E, no final, o bispo não resistiu a lançar mais achas para a fogueira que vinha alimentando: “as tentativas de perturbação da ordem pública, verificadas junto à Sé, foram da exclusiva responsabilidade de provocadores, no intuito evidente de perturbar a participação do Povo, na celebração eucarística que decorria no templo, significando a unidade desta Diocese, à volta do seu Bispo. Assim, se veio juntar um novo agravo à consciência católica do Povo da Madeira”.

A 3/11, o director do “DN”, o jornalista, sociólogo e padre José Manuel Paquete de Oliveira, sob o título “Está criada uma grave situação”, não pouparia nas palavras, escrevendo: “Não está certo que, servindo-se da sentimentalidade religiosa do povo madeirense se coloque em pé de guerra irmãos de irmãos da mesma terra. Que se pretende: construir aqui uma Irlanda? Terçar armas e bandeiras para fazer «cruzadas» ou «guerras santas» da Idade Média?

“O espectáculo verificado é o índice mais significativo do sub-desenvolvimento religioso do nosso povo, fruto do sub-desenvolvimento mental e sócio-económico em que vive. Abusar deste «estado de espírito» para estigmatizar no «comunismo» o fantasma dum inimigo-papão é acto de um reaccionarismo inqualificável”.

E o antigo vice-reitor do Seminário Menor, acrescentaria: “Abusou-se dos sentimentos do povo simples e abusou-se do nome dos cristãos católicos de consciente lucidez de espírito que, em verdade, ali não estavam – as fotografias e os milhares de pessoas que viram a manifestação o comprovam – porque, mesmo não concordando na ocupação do Seminário, não poderiam concordar com aquela manifestação, semente de ódio e guerra”.

Registe-se ainda que, na ocasião, a própria Comissão Coordenadora do Funchal do PPD – onde o auto-intitulado «único importante» era então uma figura menor – declararia que “não enjeita o princípio do respeito pela propriedade privada que defende nas linhas programáticas do seu ideário, mas também não esquece o elevado conceito da função social da propriedade desde há longos anos aceite e prosseguido por todas as sociedades civilizadas”, rematando: ”E na conjuntura, entende o PPD que a Igreja, seu bispo e demais representantes têm uma bela oportunidade de exemplificação prática das suas doutrinas, na justa ponderação do «estado de quase necessidade legal» com que se debate o ensino na nossa ilha e da função social que, mais que todos, devem prosseguir no uso da propriedade privada e da liberdade democrática”.

Recorde-se, por outro lado, que, por exemplo, em Almada, em Novembro, alunos do liceu local tentaram, também, ocupar o Seminário da localidade, precisamente pelo mesmo motivo: a carência de instalações do respectivo Liceu.

Confrontado com o problema, o Ministério da Educação e Cultura entabulou contactos com o Patriarcado de Lisboa e com a direcção do Seminário, tendo sido assegurada a cedência gratuita de parte das instalações do referido edifício, de modo a permitir que nele funcionem aulas, em regime de desdobramento, para cerca de 500 alunos, competindo ao ministério custear as despesas de instalação, de conservação e de funcionamento – uma utilização que se prolongaria até ao final do referido ano escolar, cessando nessa data.

O contraste era por demais evidente. Na ocasião, aliás, o Patriarcado de Lisboa tornou público estar aberto ao diálogo para colaborar na resolução de problemas concretos das comunidades locais. Já o vinha fazendo em Santarém, onde parte do edifício do Seminário desde há quatro anos vinha sendo gratuitamente utilizado para “escolas primárias oficiais”.

Como é sabido, posteriormente, entre 1976 e 2004, no Seminário da Encarnação foi instalada a Escola Preparatória Bartolomeu Perestrelo, tendo em 2005 o imóvel sido devolvido à Diocese que não lhe deu qualquer uso, deixando-o ao completo e total abandono, à sua degradação durante quase vinte anos, sem encontrar uma solução que o colocasse ao serviço do bem comum. Provou-se que a alegada necessidade do espaço constituía uma tremenda e descarada falácia. Até que em 2024, a Diocese cumpriu com a vontade manifestada em 1974: fez o negócio desejado e vendeu-o! O valor não foi revelado e as obras prometidas para o Seminário, sito à Rua do Jasmineiro, a efectuar com o dinheiro da venda, não saíram do papel.

Escassos dias após o confronto pela utilização do Seminário, o bispo do Funchal envolve-se em novo conflito. A 6 de Novembro, “JM” divulga uma “Nota da Secretaria Episcopal” revelando que “desde ontem, dia 5/11, o Pe. José Martins Júnior deixou de ser pároco da Paróquia da Ribeira Seca, Arciprestado de Machico”.

Em causa, a acusação do envolvimento de Martins Júnior na actividade do Centro de Informação Popular de Machico, designadamente de “abusivamente ter ido a Paróquias confiadas a outros sacerdotes e utilizar locais e instalações sonoras para comícios e reuniões de carácter político”.

Inconformados com a intransigência do bispo, os paroquianos da Ribeira Seca declarar-se-iam “independentes da Diocese, não reconhecendo a autoridade do bispo, enquanto este não aceitasse a vontade popular”.

E, enquanto o bispo afirmava que “não há qualquer sanção disciplinar sobre o ex-pároco” e que “se trata apenas de movimento de um sacerdote duma para outra paróquia ou para outro serviço diocesano”, o gabinete de informação da diocese enaltecia que “foram recebidos inúmeros telefonemas de incondicional apoio ao Prelado da Diocese e, inclusivamente, da própria Ribeira Seca”.

Por sua vez, o CIP, em carta aberta, acusaria o bispo de “cobardia, desonestidade e inquisição”. Bispo que, tal como fizera com os estudantes do Liceu, não só recusar-se-ia a dialogar, como para acicatar ainda mais os ânimos, promoveria um abaixo-assinado em que instava o povo de Machico a manifestar-lhe “total confiança e incondicional apoio”.

À luz da Concordata, celebrada entre o Vaticano e o Estado Novo, a nomeação pela Santa Sé de um qualquer novo bispo implicava que, antecipadamente, o Núncio Apostólico em Portugal indagasse a opinião do governo português sobre os nomes dos prelados que estivessem na forja – Salazar considerava que “era importante ter uma palavra a dizer antes da nomeação dos bispos”. Um procedimento que Marcelo Caetano manteve, tanto mais que com o intensificar da contestação ao prosseguimento da guerra colonial no seio da própria Igreja Católica era, para o regime, fundamental evitar que, por essa via, pudesse ser aberta a menor brecha. Obtida a concordância do governo português de que “não há objecções de carácter político geral”, o Papa nomeava o prelado em questão.

Ora, é neste enquadramento político que se processou a nomeação do sucessor de D. João Saraiva. Francisco Santana foi nomeado a 18 de Março de 1974 e ordenado a 21 de Abril. Tinha sido desde 1960 Director Nacional do Apostolado do Mar (organização «Stella Maris»), ficando com a responsabilidade da assistência aos marítimos nos portos portugueses do Continente, Ilhas e Ultramar e ainda chefe dos capelães de bordo – não por acaso, entre os presentes na cerimónia da sua ordenação na Sé Patriarcal de Lisboa, sobressaía o almirante Henrique dos Santos Tenreiro, uma figura de proa dos ultras do regime, com quem mantinha uma relação de proximidade por via de estarem ligados ao mesmo sector, o mar.

Bispo que, ao chegar ao Funchal a 12 de Maio, tomaria duas atitudes de claro significado político: apoiou a orientação do “Jornal da Madeira” que tinha sido publicamente contestada por um grupo de 16 sacerdotes ( registe-se que no rescaldo da intentona de 28 de Setembro de 1974, na sede de um dos organizadores, o denominado Partido do Progresso, na lista da “imprensa contactável”, figurava o órgão da diocese e o «Voz da Madeira», o semanário dirigido e propriedade de Agostinho Cardoso que durante largos anos foi deputado e dirigente do partido único, União Nacional) e reconduziu o cónego Agostinho Gonçalves Gomes como vigário geral da diocese – fora deputado à Assembleia Nacional durante duas legislaturas.

Simultaneamente, na “Saudação” endereçada ao “Presbitério funchalense” visou o denominado “grupo de padres do Pombal”, apostado na renovação da Igreja à luz do Concílio Vaticano II:” alguns (padres) tudo fazem menos que evangelizar, a tudo se dedicam até à política sem terem a vocação de políticos, aos problemas económicos, sem nada perceberem de economia e até ao ensino confundindo que eram, como ministros da Palavra de Deus, destinados a «ensinar» a mensagem de Deus e não as ciências humanas”. ( a hostilidade para com o referido grupo assumiu proporções gigantescas ao ponto de AJJ delirantemente ter-lhes imputado a “coordenação das acções da esquerda na Madeira”, tendo as suas próprias vidas corrido sérios riscos com o rebentamento de uma bomba-relógio no dia 11 de Novembro de 1975, na casa onde viviam. Uma hostilidade que o sucessor de Santana recentemente repetiria num arrazoado publicado no “JM”, atribuindo a João da Cruz Nunes a responsabilidade pela ocupação do Seminário). Nessa saudação, Francisco Santana insistiria, por outro lado, na necessidade de a Igreja estar unida, para justificar a obediência silenciosa e cega à sua autoridade absoluta, calando as vozes discordantes, calando a denúncia das situações de opressão e injustiça dentro da Igreja e fora dela.

O envolvimento político que o bispo recusava aos sacerdotes que pugnavam por uma sociedade mais justa, assumi-lo-ia por inteiro. Desde logo, com a escolha do novo director do órgão da diocese e com o beneplácito à sua transformação num jornal ao serviço de um partido, o PPD/PSD. Mas também com o cariz das homílias e das notas pastorais que foi emitindo, marcadas por uma obsessão anti-marxista e anti-comunista primárias, onde inclusive até não faltaram referências a raiar o separatismo, ao ponto da insuspeitíssima Rádio Renascença lhe ter perguntado se pretendia ser uma espécie de Arcebispo MaKários. Com um tal comportamento não surpreende que muitos padres se sentissem confortáveis, em do alto do púlpito, fazer descarados apelos ao voto no “partido das setas viradas para o céu”. Como não surpreende que o seu afilhado político lhe teça os maiores encómios e agradecimentos públicos. A ele deve (m) a ascensão ao poder e a eternização à imagem do partido único de outrora.

*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.