A queda do regime fascista em 25 de Abril de 1974 desencadeou em todo país, no ano lectivo subsequente (74-75), um aumento substancial no número de alunos inscritos nos diferentes estabelecimentos de ensino. Um facto que também se verificaria na Madeira.
Na edição de 17 de Outubro de 74, o “DN” local noticiara que as aulas começariam na semana seguinte, com 3.314 alunos matriculados no Liceu e 2.970 na Escola Industrial e Comercial do Funchal. Porém, no dia 30 desse mês, o matutino funchalense publicaria um comunicado da Comissão de Gestão do Liceu, no qual “lamenta que, ao contrário do que foi anunciado, a abertura das aulas não poderá realizar-se na data que foi indicada”, apontando como razões: “a) a impossibilidade de ser cedido o edifício do Seminário Menor, apesar de todos os esforços realizados pela Junta Geral do Distrito no sentido do seu aluguer; b) a negativa do Colégio de Santa Teresinha ante o pedido de cedência de algumas salas de aula; c) após a elaboração dos horários ter-se verificado não serem suficientes as várias salas do edifício do Liceu, conforme estabeleciam as normas da Direcção-Geral da Administração Escolar” (faltavam salas para 6 turmas na parte da manhã e para 7 à tarde).
As diligências da Junta Geral junto da Diocese e do respectivo prelado tinham-se iniciado ainda durante a presidência do eng. Rui Vieira (seria substituído em Agosto pelo dr. António Loja) e decorriam do facto do edifício do Seminário se encontrar devoluto desde Maio e estar apetrechado com salas de aulas, laboratório, museu de história natural e dispor de terrenos para recreio e campos de jogos.
E é precisamente a 30 de Outubro, após uma reunião efectuada no Ginásio do Liceu, que os estudantes decidem dirigir-se para o Seminário Menor e proceder à sua ocupação.
Segundo o órgão da diocese, “Jornal da Madeira” (edição de 31 de Outubro), o bispo “havia já determinado que os vários organismos de leigos, as várias comissões diocesanas e os serviços da Câmara Eclesiástica iriam concentrar-se no edifício da Calçada da Encarnação, propriedade da Diocese”, adiantando que “a ocupação da propriedade privada compromete a livre acção da Igreja no Distrito do Funchal”. Uma argumentação que a própria peça jornalística se encarregaria de desfazer quando, aludindo às diligências da Junta Geral no sentido do aluguer do edifício, sublinha que a Diocese “recusou, tendo sugerido a hipótese de venda”. Ou seja, a Diocese e o seu titular, Francisco Santana, ao mesmo tempo que proclamavam necessitar do edifício, recusando-se a alugá-lo, estavam disponíveis a vendê-lo. Isto é, queriam fazer um negócio mais proveitoso!
“JM” – cujo director passara a ser, a partir de 29/10, o até então destacado colaborador do semanário “Voz da Madeira”, Alberto João Cardoso Gonçalves Jardim – que, reportando-se à ocupação, denunciava ter o bispo sido “feito prisioneiro, insultado e vítima de tentativa de agressão” – acusação que o insuspeito Luís Filipe Malheiro, à época estudante do Liceu e colaborador da secção desportiva do jornal, desmentiria categoricamente. O mesmo faria a Comissão de Alunos, afirmando: “o Bispo mentiu, o Jornal mentiu”. O prelado, por sua vez, através de Carta, acusaria: “Fui insultado durante 12 horas, martírio tipo chinês, para me cansarem e desfazerem a resistência”, negando simultaneamente que tivesse negociado “nada”, limitando-se a exigir o abandono do edifício ocupado, acabando por entregá-lo “ao cuidado das Forças Armadas”. E recorrendo ao estilo que o caracterizaria, F. Santana aludiria à “ameaça marxista”, escrevendo: “assaltaram e ocuparam, obedientes a dirigentes adultos de partidos comunistas de vário género (…) O acontecimento do Seminário da Encarnação veio somente confirmar à evidência o perigo gravíssimo em que o povo português está envolvido, estando a ser reaccionariamente obrigado a submeter-se ao totalitarismo marxista”.
No dia seguinte (1 de Novembro), o CTIM (Comando Territorial Independente da Madeira), através de comunicado, revelava ter sido obtido um “entendimento” entre as partes, nos termos do qual o edifício do Seminário seria entregue à Junta Geral para “instalações escolares”. Tentando inverter o rumo dos acontecimentos, e numa clara tentativa de revanche, nas missas rezadas no «dia-de-todos-os-santos», foi lida uma “Convocatória” apelando ao “cristão católico” para comparecer nesse dia, 1/11, pelas 16 horas, no Largo da Sé, “para mostrar o desacordo, junto das F. Armadas e exigir a entrega imediata à Diocese do Seminário”.
A «indignação», o desagravo dos “cristãos católicos” expressava-se nestes termos: “Querem tirar-nos o Seminário da Encarnação, alegando falsas razões. O nosso bispo foi obrigado a ceder (…) Precisamos do S. Menor!!!Não está desocupado como afirmaram” – nalgumas igrejas “os párocos informaram que se encontravam à disposição dos católicos madeirenses autocarros que os transportariam ao Funchal”, tendo o programador da Estação Rádio da Madeira interrompido a transmissão da missa da paróquia dos Álamos, pelo “reaccionarismo de que se revestia o comentário feito pelo pároco”.
Em reacção, os estudantes e movimentos e partidos políticos, como a UPM, a FPDM, o PS e o PCP, apelaram à vigilância “contra mais esta manobra reaccionária”.
O risco de confronto físico, como sublinharia a reportagem do “DN”, esteve eminente, entre «os “católicos madeirenses” e os contra-manifestantes, na sua maioria, também católicos».
Entretanto, o bispo apressar-se-ia a declinar responsabilidades na citada “convocatória”, tornando público um comunicado em que declarava: “não convoquei nem organizei qualquer movimento de católicos, que se realizou por iniciativa livre e consciente do grupo (que havia recebido de manhã no Paço Episcopal) como prova pública de apoio ao seu Bispo”, adiantando, contudo, de imediato: “apoio incondicionalmente a iniciativa, reconhecendo-lhes o direito de se reunirem e livremente exprimirem o sentir da Diocese, profundamente ferida com os recentes acontecimentos no Seminário da Encarnação e no «JM». De facto, foi violentada a consciência católica do Povo madeirense”. E, no final, o bispo não resistiu a lançar mais achas para a fogueira que vinha alimentando: “as tentativas de perturbação da ordem pública, verificadas junto à Sé, foram da exclusiva responsabilidade de provocadores, no intuito evidente de perturbar a participação do Povo, na celebração eucarística que decorria no templo, significando a unidade desta Diocese, à volta do seu Bispo. Assim, se veio juntar um novo agravo à consciência católica do Povo da Madeira”.
A 3/11, o director do “DN”, o jornalista, sociólogo e padre José Manuel Paquete de Oliveira, sob o título “Está criada uma grave situação”, não pouparia nas palavras, escrevendo: “Não está certo que, servindo-se da sentimentalidade religiosa do povo madeirense se coloque em pé de guerra irmãos de irmãos da mesma terra. Que se pretende: construir aqui uma Irlanda? Terçar armas e bandeiras para fazer «cruzadas» ou «guerras santas» da Idade Média?
“O espectáculo verificado é o índice mais significativo do sub-desenvolvimento religioso do nosso povo, fruto do sub-desenvolvimento mental e sócio-económico em que vive. Abusar deste «estado de espírito» para estigmatizar no «comunismo» o fantasma dum inimigo-papão é acto de um reaccionarismo inqualificável”.
E o antigo vice-reitor do Seminário Menor, acrescentaria: “Abusou-se dos sentimentos do povo simples e abusou-se do nome dos cristãos católicos de consciente lucidez de espírito que, em verdade, ali não estavam – as fotografias e os milhares de pessoas que viram a manifestação o comprovam – porque, mesmo não concordando na ocupação do Seminário, não poderiam concordar com aquela manifestação, semente de ódio e guerra”.
Registe-se ainda que, na ocasião, a própria Comissão Coordenadora do Funchal do PPD – onde o auto-intitulado «único importante» era então uma figura menor – declararia que “não enjeita o princípio do respeito pela propriedade privada que defende nas linhas programáticas do seu ideário, mas também não esquece o elevado conceito da função social da propriedade desde há longos anos aceite e prosseguido por todas as sociedades civilizadas”, rematando: ”E na conjuntura, entende o PPD que a Igreja, seu bispo e demais representantes têm uma bela oportunidade de exemplificação prática das suas doutrinas, na justa ponderação do «estado de quase necessidade legal» com que se debate o ensino na nossa ilha e da função social que, mais que todos, devem prosseguir no uso da propriedade privada e da liberdade democrática”.
Recorde-se, por outro lado, que, por exemplo, em Almada, em Novembro, alunos do liceu local tentaram, também, ocupar o Seminário da localidade, precisamente pelo mesmo motivo: a carência de instalações do respectivo Liceu.
Confrontado com o problema, o Ministério da Educação e Cultura entabulou contactos com o Patriarcado de Lisboa e com a direcção do Seminário, tendo sido assegurada a cedência gratuita de parte das instalações do referido edifício, de modo a permitir que nele funcionem aulas, em regime de desdobramento, para cerca de 500 alunos, competindo ao ministério custear as despesas de instalação, de conservação e de funcionamento – uma utilização que se prolongaria até ao final do referido ano escolar, cessando nessa data.
O contraste era por demais evidente. Na ocasião, aliás, o Patriarcado de Lisboa tornou público estar aberto ao diálogo para colaborar na resolução de problemas concretos das comunidades locais. Já o vinha fazendo em Santarém, onde parte do edifício do Seminário desde há quatro anos vinha sendo gratuitamente utilizado para “escolas primárias oficiais”.
Como é sabido, posteriormente, entre 1976 e 2004, no Seminário da Encarnação foi instalada a Escola Preparatória Bartolomeu Perestrelo, tendo em 2005 o imóvel sido devolvido à Diocese que não lhe deu qualquer uso, deixando-o ao completo e total abandono, à sua degradação durante quase vinte anos, sem encontrar uma solução que o colocasse ao serviço do bem comum. Provou-se que a alegada necessidade do espaço constituía uma tremenda e descarada falácia. Até que em 2024, a Diocese cumpriu com a vontade manifestada em 1974: fez o negócio desejado e vendeu-o! O valor não foi revelado e as obras prometidas para o Seminário, sito à Rua do Jasmineiro, a efectuar com o dinheiro da venda, não saíram do papel.
Escassos dias após o confronto pela utilização do Seminário, o bispo do Funchal envolve-se em novo conflito. A 6 de Novembro, “JM” divulga uma “Nota da Secretaria Episcopal” revelando que “desde ontem, dia 5/11, o Pe. José Martins Júnior deixou de ser pároco da Paróquia da Ribeira Seca, Arciprestado de Machico”.
Em causa, a acusação do envolvimento de Martins Júnior na actividade do Centro de Informação Popular de Machico, designadamente de “abusivamente ter ido a Paróquias confiadas a outros sacerdotes e utilizar locais e instalações sonoras para comícios e reuniões de carácter político”.
Inconformados com a intransigência do bispo, os paroquianos da Ribeira Seca declarar-se-iam “independentes da Diocese, não reconhecendo a autoridade do bispo, enquanto este não aceitasse a vontade popular”.
E, enquanto o bispo afirmava que “não há qualquer sanção disciplinar sobre o ex-pároco” e que “se trata apenas de movimento de um sacerdote duma para outra paróquia ou para outro serviço diocesano”, o gabinete de informação da diocese enaltecia que “foram recebidos inúmeros telefonemas de incondicional apoio ao Prelado da Diocese e, inclusivamente, da própria Ribeira Seca”.
Por sua vez, o CIP, em carta aberta, acusaria o bispo de “cobardia, desonestidade e inquisição”. Bispo que, tal como fizera com os estudantes do Liceu, não só recusar-se-ia a dialogar, como para acicatar ainda mais os ânimos, promoveria um abaixo-assinado em que instava o povo de Machico a manifestar-lhe “total confiança e incondicional apoio”.
À luz da Concordata, celebrada entre o Vaticano e o Estado Novo, a nomeação pela Santa Sé de um qualquer novo bispo implicava que, antecipadamente, o Núncio Apostólico em Portugal indagasse a opinião do governo português sobre os nomes dos prelados que estivessem na forja – Salazar considerava que “era importante ter uma palavra a dizer antes da nomeação dos bispos”. Um procedimento que Marcelo Caetano manteve, tanto mais que com o intensificar da contestação ao prosseguimento da guerra colonial no seio da própria Igreja Católica era, para o regime, fundamental evitar que, por essa via, pudesse ser aberta a menor brecha. Obtida a concordância do governo português de que “não há objecções de carácter político geral”, o Papa nomeava o prelado em questão.
Ora, é neste enquadramento político que se processou a nomeação do sucessor de D. João Saraiva. Francisco Santana foi nomeado a 18 de Março de 1974 e ordenado a 21 de Abril. Tinha sido desde 1960 Director Nacional do Apostolado do Mar (organização «Stella Maris»), ficando com a responsabilidade da assistência aos marítimos nos portos portugueses do Continente, Ilhas e Ultramar e ainda chefe dos capelães de bordo – não por acaso, entre os presentes na cerimónia da sua ordenação na Sé Patriarcal de Lisboa, sobressaía o almirante Henrique dos Santos Tenreiro, uma figura de proa dos ultras do regime, com quem mantinha uma relação de proximidade por via de estarem ligados ao mesmo sector, o mar.
Bispo que, ao chegar ao Funchal a 12 de Maio, tomaria duas atitudes de claro significado político: apoiou a orientação do “Jornal da Madeira” que tinha sido publicamente contestada por um grupo de 16 sacerdotes ( registe-se que no rescaldo da intentona de 28 de Setembro de 1974, na sede de um dos organizadores, o denominado Partido do Progresso, na lista da “imprensa contactável”, figurava o órgão da diocese e o «Voz da Madeira», o semanário dirigido e propriedade de Agostinho Cardoso que durante largos anos foi deputado e dirigente do partido único, União Nacional) e reconduziu o cónego Agostinho Gonçalves Gomes como vigário geral da diocese – fora deputado à Assembleia Nacional durante duas legislaturas.
Simultaneamente, na “Saudação” endereçada ao “Presbitério funchalense” visou o denominado “grupo de padres do Pombal”, apostado na renovação da Igreja à luz do Concílio Vaticano II:” alguns (padres) tudo fazem menos que evangelizar, a tudo se dedicam até à política sem terem a vocação de políticos, aos problemas económicos, sem nada perceberem de economia e até ao ensino confundindo que eram, como ministros da Palavra de Deus, destinados a «ensinar» a mensagem de Deus e não as ciências humanas”. ( a hostilidade para com o referido grupo assumiu proporções gigantescas ao ponto de AJJ delirantemente ter-lhes imputado a “coordenação das acções da esquerda na Madeira”, tendo as suas próprias vidas corrido sérios riscos com o rebentamento de uma bomba-relógio no dia 11 de Novembro de 1975, na casa onde viviam. Uma hostilidade que o sucessor de Santana recentemente repetiria num arrazoado publicado no “JM”, atribuindo a João da Cruz Nunes a responsabilidade pela ocupação do Seminário). Nessa saudação, Francisco Santana insistiria, por outro lado, na necessidade de a Igreja estar unida, para justificar a obediência silenciosa e cega à sua autoridade absoluta, calando as vozes discordantes, calando a denúncia das situações de opressão e injustiça dentro da Igreja e fora dela.
O envolvimento político que o bispo recusava aos sacerdotes que pugnavam por uma sociedade mais justa, assumi-lo-ia por inteiro. Desde logo, com a escolha do novo director do órgão da diocese e com o beneplácito à sua transformação num jornal ao serviço de um partido, o PPD/PSD. Mas também com o cariz das homílias e das notas pastorais que foi emitindo, marcadas por uma obsessão anti-marxista e anti-comunista primárias, onde inclusive até não faltaram referências a raiar o separatismo, ao ponto da insuspeitíssima Rádio Renascença lhe ter perguntado se pretendia ser uma espécie de Arcebispo MaKários. Com um tal comportamento não surpreende que muitos padres se sentissem confortáveis, em do alto do púlpito, fazer descarados apelos ao voto no “partido das setas viradas para o céu”. Como não surpreende que o seu afilhado político lhe teça os maiores encómios e agradecimentos públicos. A ele deve (m) a ascensão ao poder e a eternização à imagem do partido único de outrora.
*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.