Vivemos tempos conturbados de difícil e racional explicação, quando a vida, para todos, independentemente do local onde ela acontece, devia acrescer o sinal mais da felicidade. Do Norte ao Sul, do interior ao litoral. O poder a qualquer preço, em todos os patamares da vivência colectiva, a ganância, os lucros sem freio que sufocam os demais, os subterfúgios e os indetectáveis jogos de bastidores que passam longe dos olhares comuns, a extensa rede de influências arquitectadas pelos novos colonos, a perda da independência da comunicação social, muito quieta e dócil, por isso mesmo, suavemente promotora de uma notável inteligência na condução do interesse dos grupos dominantes, a gritaria em cima dos múltiplos palcos onde vendem ilusões, eu sei lá o que por aí anda, de alto a baixo, de leste a oeste... tal como uma droga que só atenua os efeitos à custa de doses mais elevadas.
Ora, quando uma sociedade chega a tal estado de dependência e medo, de despersonalização, de incultura no sentido mais vasto do termo, incapaz de cruzar a informação e ter opinião sustentada, quando perde o sentido crítico, baixa os ombros e curva a cerviz demonstrando, através do voto, incapacidade para colocar em sentido os vários poderes, sejam eles quais forem, parece-me óbvio que tudo se transforma num pântano onde, paulatinamente, vão despontando e se reproduzindo pintores secundários, os seguidores sem história e memória. Como se isso não bastasse, a enxurrada do tempo acabou também por levar muitos homens e mulheres, outrora figuras genuínas na luta de importantíssimas causas, à conversão ao eucaliptal, ao mundo dos silêncios que secam o pensamento e trazem no seu bojo o tal conformismo. Capitularam e tornaram-se funcionários rendidos à liturgia do "Menino da Lágrima".
Um distinto Amigo, já falecido, um dia, numa daquelas noites onde as palavras escorriam ao sabor dos pensamentos, disse-me com um tom de humor corrosivo que o caracterizava: "se o Al Capone regressasse, a primeira pergunta que faria talvez fosse esta: como conseguem fazer tanto sangue sem um único tiro?" E, mais adiante, complementou: o problema não está nos túneis das importantes obras concretizadas, mas nos túneis que fizeram na cabeça das pessoas". Adormeceram-nas, injectando elevadas doses de verdade única que pulverizaram o pensamento livre e assertivo.
Ora, distante dos horrores da guerra, entre outras, desse vergonhoso genocídio que um dia será severamente punido, presumo, apenas por mera imagem, eu diria que, por aqui, construíram, intencionalmente, muitas "faixas de Gaza". Não há tiros, mas silêncios comprados; não há destruição do património, mas há um claro aniquilamento da liberdade de cada um. Estão na "faixa" porque nunca o poder foi tão verticalizado e "docemente" autoritário. Diariamente, oleiam a máquina e apertam os parafusos que o tempo desgastou! E a máquina, embora velha, continua a triturar. Tempos houve que, apesar de condicionamentos vários, os partidos políticos de projecto conseguiam apresentar figuras de reconhecida idoneidade política e respeitabilidade social, pessoas livres sem réstia dessa tenebrosa palavra: medo. Hoje, escasseiam. Há partidos políticos que definham, vários foram arredados na Assembleia enquanto espaço de debate e proposta; a quase totalidade das freguesias é dominada por uma única fonte de pensamento; os municípios, idem; as casas do povo e o associativismo em geral capturado; a escola, enquanto espaço de aprendizagem para a vida democrática, científica e profissional, a escola que devia respeitar sonhos e talentos, está enredada na burocracia que prende e esmaga, numa asfixiante e cinzenta hierarquia sem rasgo que sobrevive de expedientes e da subtil perseguição; a galinha dos ovos de ouro está em dramática convulsão apesar dos títulos de destino de excelência... dizem que conquistados. Tudo isto, enfim, entrou naquilo que designo por uma normal anormalidade. Tudo se aceita, tudo é tolerado e tudo se verga à "torre de marfim".
De facto, não é aceitável que o regime democrático assim funcione. Há razões substantivas, de raiz histórica, que explicam o percurso de cinquenta anos de paciente apresamento da consciência colectiva. E o perverso objectivo, pacientemente, foi conseguido. Resta saber, como sair desta sofisticadíssima e condicionadora engrenagem que não se compagina nem com a liberdade, nem com o crescimento, nem com o desenvolvimento sustentável, tampouco com a Democracia. Uma sociedade aprisionada é uma sociedade morta.
Ilustração: Google Imagens
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