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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Política carroceira


Escutei e mudei de canal. Falava um advogado/deputado com uma lengalenga tão repetitiva e gasta que não dava para continuar. No dia seguinte, oiço um deputado na Assembleia Legislativa e zás, "aldrabão", "mentiroso", enfim, a continuidade de um tipo de discurso cansativo e arrepiante. Mudei de estação. Não se trata apenas da forma discursiva, mas sobretudo do conteúdo. Eu diria que se criou uma mentalidade no Parlamento que fez escola. Passa de uns para os outros, como se falar alto e grosso e dissertar através de palavras grosseiras e, vezes sem conta, ofensivas, para alguns é sinal de pujança política. Quanto enganados estão! O discurso subtil, acutilante e argumentativo, até fazendo apelo à finura do humor corrosivo, tem outra elegância e resultados que não a baixeza da vergasta lesiva da dignidade dos outros e da pessoa que profere os dislates.


A Assembleia Legislativa precisa de uma tomada de consciência, de que o povo não gosta e está farto de um registo que teve o seu tempo, infelizmente. Oiço, a cada passo, desabafos descredibilizadores, certamente, também, os próprios que por lá têm assento. Curiosamente, não é só no hemiciclo. A recente treta em redor do "Mercadinho de Natal", sobretudo a forma como um governante se posicionou, diz bem de uma lógica de poder de "quero, posso e mando" absolutamente desadequado. Seja lá entre quem for, tenham as cores partidárias que tiverem, o exercício da política carece de diálogo sereno e jamais de posturas de tom totalitário, ao jeito de quem estando a perder, porque é dono da bola, resolve acabar com o jogo.
É tempo de acabar com este tipo de política nauseabunda, geradora de repulsa, feita de ataques internos e daqui para fora, até porque estão a dar sinais às novas gerações que esse é o caminho. Pobre daquele que assim actua. Ser vigoroso na defesa dos seus pontos de vista é uma coisa, debitar a ofensa, a má-criação, uma altivez sem sentido que não repetem nos corredores e na vida social, só demonstra a fragilidade de quem foi eleito para dar exemplos de dignidade. E fico por aqui.
Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Marcelo e a reescrita da História


Por estatuadesal
Carlos Esperança, 
26/11/2019

Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, por força do voto popular, mais presidente do que republicano, está ansioso por voltar ao lugar de onde partiu, ao seio da direita portuguesa, sejam quais forem os caminhos a percorrer ou a Vichyssoise a servir à mesa dos sem-abrigo da política e dos esquecidos da História.


A propósito do 25 de novembro, Marcelo procurou aliciar Ramalho Eanes, o PR que o antecedeu no cargo disputado ao seu presumível preferido, Gen. Soares Carneiro, para evocar a data que o próprio Eanes considerou dividir os portugueses, e que é uma velha tentativa do CDS, ora em pré-defunção, para a confiscar em seu proveito.
A tentativa de diminuir o 25 de Abril é uma velha aspiração da direita mais reacionária, como se Vasco Lourenço, Otelo e Vítor Alves não tivessem assumido a liderança de um movimento que se comprometeu a Descolonizar, Democratizar e Desenvolver o País.
Ignoram que Salgueiro Maia esteve no Carmo; que Gertrudes da Silva foi de Viseu e se lhe juntarem os camaradas de Aveiro e da Figueira da Foz, que neutralizaram a Pide em Peniche, e marcharam sobre Lisboa; que Delgado Fonseca foi de Lamego para o Porto; que José Fontão e os seus 4 capitães prenderam Silvino Silvério Marques e Pedro Serrano, no Governo Militar de Lisboa, e realizaram as tarefas distribuídas; que Teófilo Bento tomou a RTP e a colocou ao serviço do MFA; que Costa Martins tomou sozinho o aeroporto de Lisboa e encerrou o espaço aéreo nacional; que Monteiro Valente fechou a fronteira de Vilar Formoso; que Garcia dos Santos foi o responsável das Transmissões no 25 De Abril e em igual dia de novembro; que houve o Conselho da Revolução; que o Grupo dos 9 que esteve no 25 de Abril e no 25 de novembro, tendo no terreno Ramalho Eanes com Jaime Neves, sob o comando de Costa Gomes por intermédio do Governo Militar de Lisboa.
Perdoem-me os heroicos capitães de Abril que ora omito, e os 5 mil militares que foram os pais da democracia que nos legaram, como prometeram, e a que os deputados, saídos das eleições, se cencarregaram de lhe estabelecer os contornos.
Marcelo quer regressar ao sítio de onde partiu, ao ambiente do regime que lhe moldou a origem, à elite conservadora que não tolerou o ruído da Revolução e o medo que sentiu.
Entre o 28 de maio familiar e o 25 de Abril exógeno, quer ressuscitar o 25 de novembro, sem ouvir os militares que ainda estão vivos e o protagonizaram.
Depois de designar como irmão a Jair Bolsonaro e de outorgar o mais elevado grau da Ordem da Liberdade a Cavaco Silva, quer agora subverter a História e confiscar para os seus a data que os autores consideram um detalhe no papel heroico que assumiram no 25 de Abril.
Viva o 25 de Abril! Sempre!

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Partiu o grande José Mário Branco



Por
Francisco Louçã,
in Expresso,
19/11/2019

Tudo o que se vai lembrar e dizer será certo. Que, no exílio em Paris, foi um animador de festas populares em que semeava a luta contra a ditadura, que os seus discos contrabandeados chegavam como uma alegria e uma inspiração.
Que tocou com o José Afonso e que o acompanhou com a fidelidade da grandeza.
Que voltou cheio de energia, que o GAC era uma força da natureza e que inspirou a alma daquela revolução.
Que houve tristeza nos anos oitenta, pesados, e que o “FMI” foi logo a enunciação dessa exasperação, quando a “consolidação” e a dívida externa e a ordem novembrista eram o mantra do regime.
Que procurou novos caminhos, que andou pelo “Combate” e se juntou às campanhas que o PSR reinventou, depois ajudou a fazer o Bloco, sempre a exigir mais e a dizer o que pensava, nunca lhe bastou a modorra dos tempos e as trincheiras em que se espera e raramente alcança.
Que cantou à capela no Coliseu ou com um coro que transbordava no palco.
Que foi um músico enorme, que foi um poeta notável, que procurou também as palavras de outros que podiam levantar a emoção mais verdadeira, que não teve medo de barreiras, que nunca abandonou as suas causas, que procurou os amigos, que cumpriu a vontade de fazer um extraordinário espetáculo e disco com Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, dois músicos que estimava como dos maiores, que foi cúmplice de Camané na sua busca do fado, que com a Manuela de Freitas fez teatro e cinema e canções e tantos anos, que foi inquieto e que houve tristeza quando não tinha palavras novas para a sua indignação, que sentia tudo o que se mexia na sociedade e procurava os sinais da inquietude e revolta. Tudo o que se disser será certo.
Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?
Faltará sempre o que não se consegue dizer. Que detestou a podridão e que amou a vida. Que não tolerava cinismo e má fé. Que apontava a dedo o charlatão. Que tinha mais dúvidas do que reconhecia, quem não tem?, e que gostava de “épater le bourgeois”. Que tinha a arte de querer tudo e não ficar com nada. Que foi genial.
Tudo se dirá, menos que a morte é tramada. Sobram os discos, a música, as letras, as entrevistas, mas não ficam as conversas, nem a intransigência, só a memória ainda resta para olhar para trás e respeitar o que desaparece com o fim. E é tão pouco, só a lembrança, falta a vida vivida, não é, Zé Mário?
Onde estará amanhã a lágrima daquelas almas censuradas, a voz que se levanta, o olhar intenso, as palavras que ferem? Tão pouco e foi tanto, que porra. Quem é que agora nos vai dizer, “sou o José Mário Branco, 77 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”?

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Indignação


Já me prenunciei sobre este assunto, mas regresso com indignação a partir do que tem sido publicado. E com uma pergunta tão simples quanto esta: serão necessários tantos para governar estas duas ilhas da Região da Madeira? Mais uma: justifica-se esta dança de cadeiras e de banquinhos? Qualquer pessoa minimamente atenta, mesmo os que, por convicção, fazem parte da família social-democrata, certamente que olha para isto com estupefacção. Os beneficiados, obviamente que não, tal como os que se encontram na fila. Mas há aqui, do ponto de vista institucional, um claro "Estado" dentro do Estado. Repito, serão necessárias tantas figuras para governar 250.000 pessoas? E o CDS/PP, que sempre esteve na oposição e criticou, não fica incomodado com esta claríssima ida ao pote? E que justificação é dada às mudanças de titulares de serviços? Mudam, porquê? Por incompetência, por inadaptação política ao lugar? Para não se dar conta de uma  hipotética incompetência? É que, caros senhores(as), maioria absoluta é uma coisa, poder absoluto é outra, e o dinheiro sempre foi um recurso escasso para além de sair do bolso dos contribuintes.


O drama disto, que potencia a minha indignação, é olhar para uma foto, por aí a circular, de representantes do maior partido da oposição em amena cavaqueira, durante um almoço, com uma figura de um grande grupo económico face à qual, diziam, em surdina, ser necessário colocar na linha. Eu nada tenho contra os grandes grupos, desde que prevaleça a honestidade, desde que paguem os seus impostos, desde que remunerem bem e atempadamente os seus colaboradores. Felicito-os pelo sentido de risco, por gerarem postos de trabalho e por serem motores da economia. Porém, devem ocupar o seu lugar. No exercício da política exige-se que os políticos não fiquem subordinados aos particulares interesses dos empresários e lóbis que prejudicam o desenvolvimento. E isso acontece. Não vejo quem pretenda ser poder a demarcar-se, repito, fazendo minhas as palavras de outros, colocando-os na linha. Neste caso, é óbvio que não existem almoços grátis! Exactamente como não são grátis quando elementos do governo almoçam com a "farinha de primeira" cá do burgo!

Ao longo dos 45 anos após o 25 de Abril nunca assisti a tanto descaramento como agora. Ao contrário de uma imagem de contenção, de rigor, de correcção de todos os processos que levaram a Região a um brutal e insustentável endividamento superior a seis mil milhões, a loucura continua como se não existisse amanhã. Multiplicam-se os lugares generosamente pagos; há gente que quase é chefe de si próprio; não é possível o reforço de verbas para os cuidados de saúde, mas existe dinheiro para "obras"; a Educação sobrevive em um mar de enganos; a pobreza, evidente ou escondida, fez disparar as associações que mitigam essa floresta de constrangimentos (81.000 estão em risco de pobreza), enfim, é sensível uma política de gastos que, em muitos casos, não tem nada de investimento portador de futuro, porque não diversifica a economia com criatividade e inovação, apenas assenta em uma continuada luta reivindicativa por mais e mais dinheiro. 

Junta-se, na decorrência disto, muitas vezes, o debate inútil de assuntos menores, daquilo que se pode considerar como "casos do dia". Na própria Assembleia!
Falta maturidade política, sentido de responsabilidade, mentalidade de estadista, respeito pelos contribuintes, independência, transparência nos actos políticos e planeamento, muito planeamento adequado às possibilidades do país e da região. Tarde ou cedo, por necessidade, toda a estrutura político-administrativa será revista e drasticamente reduzida àquilo que é manifestamente essencial ao funcionamento da Autonomia. Até como exemplo para o país. Não me restam dúvidas sobre estas questões, porque se assim não acontecer as ruas da cidade serão invadidas pelo descontentamento popular. Exemplos não faltam por esse mundo fora e sabemos que o madeirense, apesar de, historicamente, suportar, curvado, o "baile pesado", de quando em vez, desperta para a realidade e leva tudo à sua frente. Tal como as aluviões! Lembrem-se que a grande "obra" é no ser humano e essa está por fazer.
Ilustração: Google Imagens.

domingo, 17 de novembro de 2019

Até que a voz me doa!...


DNotícias
17 NOV 2019

A discussão do programa de governo “soube a pouco”. A solução governativa encontrada não apresentou nada de novo à população.


Há quem encare o poder como uma arma para satisfazer o seu ego, sua vaidade e se comporte como um aristocrata de falsa superioridade. Esquecem-se que até as monarquias estão em decadência e necessitam reinventar-se para sobreviverem.
A discussão do programa de governo “soube a pouco”. A solução governativa encontrada não apresentou nada de novo à população. “Mais do mesmo” foi a expressão que mais se ouviu por entre a população entre outras expressões mais fortes do vernáculo popular na classificação da postura de alguns deputados.
A lufada de ar fresco que se esperava com a entrada de novos protagonistas na gestão dos bens públicos rapidamente mofou. O discurso de Rui Barreto de 4 de novembro passado de que a economia madeirense está a “crescer há 73 meses consecutivos” lembrou de imediato as declarações de Pedro Calado de 26 de junho deste ano de que a “Madeira está a crescer há 70 meses consecutivos”. Até os discursos foram repassados? Caso para perguntar: o acordo governativo impede os novos protagonistas de pensarem pela sua própria cabeça?
Será que são estes os “novos quadros” que Miguel Albuquerque pretende recrutar para renovar o PSD-Madeira no rumo certo?
Todos os analistas económicos mundiais são unânimes a preverem uma nova crise económica mundial. Na Europa, o Brexit, a prolongada instabilidade política em Espanha e o surgimento de algumas manifestações populares em vários países europeus deveriam estar a merecer a mais cuidada atenção por parte dos nossos governantes.

Na continuidade das linhas orientadores do PSD-Madeira não faltam neste Governo Adjuntos, Assessores e Técnicos Especialistas. Como seria bom que todas estas nomeações visassem o estudo dos vários dossiers importantes para o nosso futuro.

Infelizmente estas nomeações parecem ser apenas uma mudança de cadeiras sem qualquer preocupação pela competência e mérito para o lugar que vão exercer. E sendo assim pergunto: vão continuar a fazer como fizeram até agora? Vão continuar simplesmente a reagir aos “azares”?
Veremos se ainda precisarão de encomendar estudos e análises a gabinetes externos para decidir o nosso futuro. Esquecem-se que governar não é seguir umas instruções informáticas de um qualquer programa de gestão. É ter visão. É fazer apostas. É gerir pessoas. Sabem o que é gerir pessoas? É gerir seres humanos!
Bem sei que há gente nomeada porque é especialista em “engonhar” e é preciso fazê-lo com style. Mas não tenham dúvidas – pagaremos todas as ineficiências!
Todos os estudiosos, empresários e pensadores na nossa terra falam na necessidade de mudança de paradigma para podermos vencer no futuro. O que é preciso dizer ou fazer para acordarem?
É por demais evidente que não podemos continuar a ser surpreendidos por “azares” como o da falência da Thomas Cook. Seremos surpreendidos também com as consequências do Brexit? Quais as suas consequências nas nossas vendas de Vinho Madeira para o Reino Unido? E no turismo britânico? E quais as consequências da desvalorização da Libra na nossa economia?
E já agora, que preocupações estamos a ter com os nossos emigrantes na sequência do Brexit? Ou será que os nossos emigrantes só servem para votarem ou permitirem a justificação de umas viagens?
Vão continuar a conduzir os destinos da nossa terra a olhar para o retrovisor? O carro vai bater de frente.
Mas, caro leitor, não vale a pena sofrer por antecipação. A solução é ter coragem para enfrentar o que tem de ser enfrentado. As nossas “reservas de ouro” já lá foram todas na passada crise. Se a coisa ficar bem triste, a solução é bater à porta da Segurança Social. Se houver dinheiro, é claro!
A Madeira é um paraíso na terra... Mas, hoje em dia, nem o amor tem piada ser vivido numa cabana na praia.

Telhados de vidro





FACTO

"Mais um caso de como um apego desmedido ao poder pode lançar um país no caos político, económico e social (...)" - Dr. Sérgio Marques, Deputado do PSD na Assembleia da República, sobre Evo Morales ex-presidente da Bolívia. Fonte: edição de hoje do DIÁRIO.




COMENTÁRIO

Obviamente que são âmbitos diferentes de análise, por isso mesmo, fico pela causa: "apego desmedido ao poder". A caminho de 47 anos de poder ininterrupto na Região Autónoma da Madeira, também questiono, "por que razão são tão frequentes estes casos"? O Dr. Sérgio Marques, que foi Deputado no Parlamento Europeu, é Deputado na Assembleia da República, foi Deputado na Assembleia Legislativa da Madeira e governante, obviamente que, melhor do que eu, conhece as profundas razões dos "telhados de vidro". Sabe que se compram votos de múltiplas maneiras, que tempo houve que alguns mortos "votaram" e que a Administração Pública multiplica-se como cogumelos para satisfação do clientelismo partidário e que, por aí, a liberdade de pensamento e de opção é subtilmente condicionada. Pelas suas múltiplas vivências políticas, o Dr. Sérgio Marques conhece o bas-fond da política europeia, nacional e regional, pelo que, em nosso redor, o "apego desmedido ao poder" tem muito que se lhe diga.
De resto, o que se está a passar em todos os continentes, de Santiago do Chile a Hong-Kong passando pelo velho Continente, retrata a necessidade de uma nova ordem internacional (que começa à escala local), porque sendo as problemáticas tantas e complexas merecem profundas análises às razões mais substantivas. Em uma pergunta estou completamente de acordo com o Senhor Deputado: por que "razão são cada vez mais raros os casos como o de Mandela". É isso que importa analisar.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Miséria de Estado, este que prende a mulher que abandonámos


Isabel Moreira, 
in Expresso Diário, 
14/11/2019

Li o que não queria ter lido sobre a imigrante ilegal deixada à sua sorte nas ruas de Lisboa, anónima, grávida, sim, a mulher que terá cometido o crime que evidentemente nos perturba até às lágrimas. Li dessa mulher sobre a qual só sabemos do seu abandono o que não esperava ler, porque o me salta à consciência é o nosso abandono, é a pergunta coletiva ou as perguntas umas atrás das outras, velozes, cortantes, como ?, porquê?, não estava sinalizada?, como terá sido concebida aquela criança?, em que condições?, o que a levava a esconder a gravidez?, por que razão não tinha um único apoio familiar?, onde estava o Estado social?, onde estava eu?, onde estávamos nós?



Depois é decretada a prisão preventiva e leio estarrecida gente esclarecida e defender que não sendo possível aplicar outro tipo de medidas era a única medida possível ou a defenderem que foi o melhor para “ela”.
Não consigo admitir que uma prisão ilegal seja defensável como ato piedoso, como ato caridoso, uma espécie de previdência para a mulher que não terá alternativa à prisão. Não consigo, não posso nem quero admitir uma barbaridade tamanha.

A prisão preventiva tem pressupostos claros e não basta que haja indícios da prática de um crime grave. Seria necessário demonstrar, neste caso, porque é sempre no caso concreto e nunca em abstrato, que a liberdade desta mulher causaria abalo social ou poria em causa a ordem pública, o que não é manifestamente o caso. Seria necessário demonstrar perigo de continuação da atividade criminosa por parte de quem, no caso, obviamente já não oferece qualquer perigo, porque não há outra gravidez a criança está hospitalizada.

Mais agonizante é explicar que a prisão preventiva é a pior medida que pode ser aplicada a quem ainda não foi julgado, pelo que não, não se aplica para dar conforto a quem não tem casa. O Juiz não substitui o Estado social dando cama a uma sem-abrigo via decretação de prisão preventiva. Estamos a falar de uma mulher com direito à liberdade ou a outra medida de coação como qualquer arguida ou arguido e, se carece de tratamento hospitalar ou de abrigo, há hospitais e há casas abrigo.
Pergunto-me se quem defende a prisão preventiva com base na condição de sem-abrigo da arguida está disposto a defender a prisão de todos os sem-abrigo na condição de arguidos como forma de lhes dar um teto. Francamente, é repugnante.
Se os pressupostos da prisão preventiva não estão preenchidos – e não estão – a prisão é ilegal e miséria, miséria de Estado, este que prende uma mulher que abandonámos.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Afinal, o que é que os distingue?


A situação política do CDS/PP Madeira, se já de si era menos confortável por alguma crispação interna, com a integração no governo da região tornou-se complexa. Eu diria muito complexa. Se, no plano da estrutura, com bom senso e diálogo, penso eu, por experiência, mor das vezes é possível o entendimento, já no plano do governo a coisa fica mais nebulosa. Desde logo porque não é fácil gerir tudo quanto foi dito contra a governação do PSD e esquecer tantas ofensas pessoais ao longo dos anos, algumas muito graves, e agora ser obrigado a voar muito rente ao solo, dizendo sim ao que outrora era motivo de sérias acusações políticas; depois, se os actos de governo não decorrerem bem, pode acentuar-se a impaciência interna com as consequências que sempre estão associadas. As migalhas distribuídas e a integração de umas quantas propostas no programa e no orçamento, servirão, apenas, para manter serena a coligação sob a égide de um PSD, também ele em clara quebra de popularidade. Aliás, desde  a tomada de posse que é este o sentimento que emana para o cidadão. 

Até o Presidente do PSD já coloca o polegar como símbolo do CDS!

O CDS/PP Madeira, parece-me, que não percebeu a cilada e caiu. O PSD, com a experiência e a paciência de quarenta anos, permitam-me a expressão, a experiência de "virar frangos", nesta fase de deslumbramento, controla-o com mestria. No governo admitiu dois à mercê de nove e, no parlamento, deixou-o amarrado através do presente envenenado da presidência. Como se isto não bastasse, o PSD nas recentes jornadas do seu grupo parlamentar, chamou-os para o seu espaço de debate político, comprometendo-o. Politicamente, tratou-se de uma situação só explicável à luz de interesses escondidos na manga. Não tem outra explicação, deduzo.

O PSD, matreiramente, está a fazer o embrulho, anda a envolver o parceiro de coligação em celofane e já tem um laço pronto do tamanho da Região. A voz da discordância apagou-se, o discurso da alternativa de poder emudeceu, a mudez nos temas políticos mais gravosos da Região constituirá, certamente, um facto, portanto, o CDS/PP ou ficará diluído na corrente social-democrata ou qualquer afirmação distintiva, segundo os princípios da democracia-cristã, gerará um insanável conflito no seio do partido e da coligação. 

Do meu ponto de vista seria absolutamente aceitável, porque democrático no quadro político da direita, um acordo de incidência parlamentar como tem vindo a acontecer com os governos do Dr. António Costa: primeiro, com um acordo de princípio, agora, através de negociações sectoriais. Nestas circunstâncias, na Madeira, o PSD deveria estar a governar só, com um governo minoritário, o que libertaria o CDS para uma continuada e saudável oposição. Isto obrigaria o governo PSD a ter de negociar todas as suas propostas em sede de parlamento. Seria bom para a Madeira e, no caso em apreço, para o próprio CDS/PP. A opção foi outra, os dias passam-se, e cada vez é mais sensível que os "dinossauros" tomarão conta do espaço político. E se as autárquicas decorrerem mal, presumo, adeus CDS/PP e, talvez, adeus coligação. As culpas por eventuais resultados negativos dificilmente serão divididas. E isso é bem possível que aconteça, a avaliar pela maturidade da população que já denunciou que sabe ler o jogo e sabe quem deseja na Assembleia Municipal, na Câmara, nas Juntas e nas Assembleias de Freguesia. 
Ora, este joguinho político, desenvolvido debaixo dos olhos dos eleitores, é insustentável. Enquanto o PSD, creio, mais cedo que tarde, perderá o poder por esgotamento, o CDS, convicto estou, com esta sua estratégia tendencialmente suicida, pode apagar-se por muitos anos. Se a queda já era evidente nos planos nacional e regional, doravante, porque integra o governo, corre o risco de ser levado na corrente do descontentamento eleitoral. Nestas circunstâncias, parece-me óbvio, crescerão de tom as vozes internas e a travessia do deserto será penosa. A ver vamos. Para já, há um provérbio português que anuncia: "Raposa matreira não fará besteira".
Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Espanha. Conheça os 10 pontos do pré-acordo entre PSOE e Unidos Podemos


In Expresso Diário, 
12/11/2019

Se o PSOE tivesse reforçado a sua força eleitoral podendo dispensar o apoio da esquerda para formar Governo, as opções políticas de Sanchez seriam as que decorrem dos dez pontos do acordo agora conseguido? A resposta é, sem qualquer dúvida, negativa.


De facto, não há nada melhor do que colocar os socialistas em minoria, mas com hipóteses de governar, para que eles adoptem políticas mais justas e distributivas, como se viu cá com a Geringonça, e como se está, apenas agora, a ver em Espanha. O que agora foi acordado já o poderia ter sido antes, mas Sanchez quis sujeitar o país a mais umas eleições perseguindo a quimera de dispensar o apoio do Podemos. Não havia necessidade.
Enfim, os partidos socialistas europeus só conseguem seguir políticas de esquerda contrariados, e quando a realidade faz imperar o pragmatismo sobre a casmurrice. Até porque a União Europeia não gosta muito destes "casamentos", e está continuamente a mandar "avisos à navegação", para que os governos socialistas não se esqueçam de que o mantra da austeridade ainda vigora, e que a TINA, (there is no alternative), continua de boa saúde.
Acresce que a ascensão da extrema-direita, que a teimosia de Sanchez realizando eleições veio a potenciar, também deu uma ajuda para a realização deste acordo.
Nada como ver o fogo a aproximar-se para que se recorra a tudo quanto é extintor. Esperemos que não seja tarde demais e que as chamas não sejam já incontroláveis vindo, mais tarde ou mais cedo, a queimar as liberdades e a democracia em Espanha.

domingo, 10 de novembro de 2019

Mística?


Dnotícias
10 NOV 2019

Será saudosismo? Não se lobriga, pertence ao passado enterrado pela Renovação. Como? Sem experiências, vivências e traquejo, numa parva exaltação de encantamento aos que usufruem do que vem de trás até esgotar? Com tiques exacerbados de Povo Superior em “bullying” insolente, pleno de um chico-espertismo que mata quem traz votos e acarinha inúteis? Sem justiça nem lealdade e com vitórias plenas de desrespeito pelo próximo?

As internas foram um sonho para salvar um partido cristalizado sobre os mesmos, acabou no uso de uma palavra como engodo, entendida por muitos como mudança de práxis, desígnios e paradigmas mas acabou num calçar de pantufas, ainda quentes, para mais do mesmo, senão pior. As internas foram um flagelo, 2015 foi quimera e 2019 incrementa o erro na utopia da coligação. Todos são gozados pela sua condescendência responsável, até Jardim. A composição do governo, assente na plateia dos comícios e no regresso de flops, traduz-se num GR sem lua-de-mel porque rodou e não mudou, cresceu com inúteis por tachismo e conveniências. O sistema mantém os dóceis, agora desambientados dos seus conhecimentos, vão produzir sucesso? A quantidade descomunal, entre as equipas do passado e agora, não provam incompetência? A sociedade civil só serve para fazer número porque só há espaço para as clientelas? Quase todos sabem que isto não vai bem mas toleram enquanto dá para si, reflictam sobre o egoísmo que mata o colectivo e como estão vendidos. Tudo é uma imensa ficção, onde andam os melhores para governar?
Estamos na era do “Pato Bravo Superior”, onde a emancipação Autonómica se ajoelhou ao poder económico e financeiro, os seus políticos passaram de bípedes a rastejantes. Se no PSD está contado, no CDS contado está ao fim do mês e no PS contam que de Lisboa venha a cartilha mastigada. Mística? Se Albuquerque trouxe o PSD à pré-história política, o PS sem estrutura vive da saturação do eleitor, anda no “paleiolítico” inferior, nómadas, a caçar na sorte do destino sem saber como se organiza um partido político. Os egos não deixam e só reconhecem o mais feroz com contactos no continente. O PS que não se pacifica, organiza ou obtém uma vitória em circunstâncias perfeitas, saberia governar ou imitava a Renovação? Mística? Cafôfo, líder do PS, vai valer menos do que o independente quando tem a responsabilidade de honrar o voto útil que lhe foi concedido pela anulação da esquerda mais dura, se não o fizer, tem esses votos perdidos a par dos desavindos do PSD que nunca votariam PS. A luta Zen atraiçoa o desejo secreto por trás do politicamente correcto do eleitorado que quer sangue.

A raposa de Lisboa, mais esperta do que verbaliza, sabe que vem aí um comissário a fio de espada para o desafio de uma crise económica no horizonte, a par dos desafios da crise climática e oferece de forma “virtuosa” ligação directa à UE. Dispensa mais 4 anos de culpas quando conhece perfeitamente a pobreza galopante, o Turismo a pique, a incapacidade de pagar dívida e de pedir emprestado para o seu serviço, um CINM sempre em risco, meses de crescimento, estatisticamente distribuído por todos mas canalizando a riqueza regional para meia dúzia. Laivos de actividade económica suportada pelo movimento dos regressados luso-venezuelanos que, ao perceberem que somos 250.000, sem poder de compra e que isto não rende como na Venezuela, partirão. Se a renovação, habituada a mentir e a gerar clivagens, os tratar como faz aos antigos do seu partido, não terão a resignação silenciosa e medrosa.

A experiência que o CDS vai adquirir com o “esquema” governativo não reverterá em seu favor, deixou de ser alternativa. Em vez de esperar e capitalizar com a queda do PSD, o CDS foi atraiçoado pela ambição pessoal de alguns que levarão o partido, entre cambalhotas e piruetas, para o mesmo destino do PSD. Quando o CDS sentir mais o ferry, “pedras”, obras, Ajustes Directos, índices de construção, contratos blindados, monopólios, Saúde, estúpidos em lugares de decisão, etc, mesmo com vontade férrea de governar bem e brilhar, perceberá que está maniatado pela teia dos monstros que a Madeira Nova criou e que mantém o Governo refém dos esquemas.
Estamos na era da mentira, do expediente tornado governação, da materialização do convencimento, todos usados para tapar a falta de resultados com as infindáveis camadas de assessores de imprensa e jornalistas “vendidos” como “Firewall” de contra-informação. A deontologia?
A cereja no topo do bolo está na concentração de tanto poder em Calado. Funciona como um “ditador”, se cair, arrasta o regime, é o canto do cisne. Se por um lado a concentração protege-o politicamente, por outro é possível aniquilar todo o GR com um só tiro mostrando “casos de polícia”. Calado, com tanta ambição, ainda não percebeu que responderá pelo todo acumulado do quero, mando e posso e as respectivas impunidades durante décadas. As pedras são mais do que uma suspeita, é um “modus operandi” já displicente por contínua impunidade. Chegar e pactuar torna-o único cúmplice. Albuquerque, sem poder é inimputável, prova da ratice da escola que matou. Caindo Calado é pior do que cair Albuquerque, mas o homem da fotografia pagará caro por não ter, conscientemente e por projecto pessoal, os melhores ao seu lado. Sem contraditório é um desvario.
A Renovação enfrentará um partido em convulsão com muitos carrascos (para a gândara inculta), executores (para o executivo na alta Justiça), algozes (na tribo) e verdugos (como em Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos). A direita salvou-se por agora mas o colapso tem data marcada, de mão dada. Julgam somar votos mas anulam, já há arrependidos por votar e acreditar. Os políticos fantasiam num mundo de conspirações e ambições e o povo pergunta para que serve a política e a democracia capturada por tantos interesses, ficando os seus no fim da lista. A população embirra com a política pouco séria e claramente interesseira de todos os “bons rapazes e raparigas” da cena política madeirense, da direita à esquerda, passando pelo centro onde anda tudo desacreditado. Aguardam serenamente por uma alternativa com o foco na sociedade real e ela existe. Mística? Será que falavam da Fox/Disney?

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Thatcher morreu, Reagan também e o Pinochet já não se sente lá muito bem


Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
05/11/2019

Vou dedicar-me, neste texto, ao que se passa no Chile e na Argentina. Mas quero deixar claro que não ignoro os acontecimentos recentes noutras paragens daquele continente. Sobre a tragédia venezuelana já escrevi inúmeras vezes. Sobre a Bolívia, tratarei noutro dia. Até porque nunca coloquei Evo Morales no mesmo saco que Maduro ou sequer Chávez. Morales vem de um movimento social e representa uma clivagem impossível de ignorar na Bolívia: a do povo indígena eternamente esquecido.


Nada tinha a apontar-lhe até cometer o grave erro de mudar a ConsTituição para conseguir um terceiro mandato e violá-la para ir ao quarto. Este é o problema histórico da esquerda latino-americana: os processos de democratização social chocarem com a dependência de homens salvadores, o que é o oposto da democratização política. Seja como for, as crises na Venezuela e na Bolívia resultam de soluções políticas com décadas, evidentemente desgastadas pelo tempo e por erros. Estes eram os últimos sobreviventes do domínio da esquerda na América Latina.
Em novembro de 2007, reuniram-se em Santiago, numa cimeira ibero-americana, Lula da Silva, Hugo Chávez, Evo Morales, Cristina Kirchner, Michelle Bachelet, Rafael Correa, Tabaré Vazquez, José Manuel Zelaya, Daniel Ortega e Alan García. Com alguma relevância política, só destoava o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. Um ano depois, juntou-se ao clube da esquerda latino-americana Fernando Lugo, do Paraguai. Doze anos depois, a era de Nestor e Cristina Kirchner chegou ao fim na Argentina (regressa agora de outra forma); Bachelet foi alternando com o direitista Sebastian Piñera no Chile, que o dirige agora; Lenin Moreno, o sucessor de Correa no Equador, afastou-se da esquerda para rumar para os braços dos Estados Unidos; os conservadores Juan Orlando Hernández e Martín Vizcarra governam as Honduras e o Peru; e o Presidente do Paraguai é Abdo Benítez, filho do antigo secretário particular do ditador Stroessner. E Jair Bolsonaro chegou ao poder no Brasil. Entre as quedas, contam-se as destituições ilegais de Fernando Lugo e Dilma Rousseff e o golpe militar nas Honduras. Mas, regra geral, foi o voto que os fez cair. Hoje, as exceções são El Salvador, Uruguai e México. E o Uruguai está tremido.
O padrão parecia tão claro que ninguém esperava que esta guinada à direita fosse perturbada tão rapidamente. Havia quem acreditasse que as experiências de esquerda poderiam ter servido de vacina. Pois parece que está a acontecer o oposto: são as experiências de direita, com soluções económicas cada vez mais radicais e urgentes para satisfazer que as apoia, que se degradam a uma velocidade estonteante.
A Argentina foi a primeira queda de um governo instalado por esta onda de direita que parecia estar a varrer a América Latina. Mauricio Marci devolveu o poder ao peronismo de esquerda, representado por Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Quando chegou ao poder, Marci reverteu o default da brutal dívida argentina, desenvolveu uma grande contrarreforma laboral, limitando a possibilidade de recurso à Justiça, e eliminou os subsídios à eletricidade, com efeitos devastadores. Nada disto impediu que a dívida externa aumentasse ainda mais. A economia degradou-se e a inflação tornou-se um problema grave de um governo que prometera inflação zero. Resumindo num só parágrafo, diria que estas são as razões aparentes para a sua derrota.
Mas a vitória da esquerda argentina é especialmente perturbante porque vence um duplo cerco dos mercados. Um cerco de apoio a Marci e um cerco de combate a Fernández. Sem que os resultados económicos do primeiro o justifiquem. Primeiro, através de um empréstimo inédito do FMI: 50 mil milhões de dólares que depois subiram para 57 mil milhões. Numa coincidência quase absoluta com o calendário eleitoral, reservando grande parte das transferências para o período próximo das últimas eleições. Mas inédita também porque parte destas transferências serviram para sustentar a cotação do peso e financiar o tipo de políticas sociais que o FMI costuma condenar. O objetivo foi evidente: salvar um aliado. E mal a vitória de Alberto Fernández se começou a tornar evidente, logo regressou um discurso público que exigia sinais de austeridade e contenção dos futuros governantes. Aqueles que não foram exigidos a quem contou com um forte apoio. Mesmo assim, nada resultou. Como escreveu o analista político Mario Wainfeld, no jornal “Página 12”, “às vezes os cidadãos pronunciam-se como se tivessem conjurado”. Os argentinos queriam que Marci caísse. Assim como os chilenos querem que Piñera caia.
Se a Argentina foi a primeira queda, o Chile é um caso muito mais surpreendente, porque acontece um ano e meio depois de a direita regressar ao poder. Tudo rebentou poucas semanas depois de o Chile ter sido descrito por Sebastian Piñera como um “oásis”. Como é evidente, não é o aumento de quatro cêntimos da tarifa do metropolitano de Santiago que explica a explosão de revolta. Terá sido um pretexto há muito esperado. O preço da habitação aumentou 150% na última década, enquanto os salários aumentaram 25%. O salário mínimo anda pelos 370 euros e 70% dos trabalhadores recebem menos de 680 euros. Os salário dos políticos é 33 vezes mais alto do que o salário mínimo. O Chile tem números económicos de primeiro mundo e serviços públicos de terceiro mundo. Um dos piores sistemas de educação da América do Sul, num país com muito menos razões históricas do que outros para que isso aconteça. Um péssimo sistema de saúde infantil. Pensões muitíssimo baixas num sistema que está há muito tempo em crise, onde 80% recebem menos do que o salário mínimo.
Tudo isto se resume numa frase: o grande problema do Chile é a desigualdade. É, de longe, o país mais desigual da OCDE. O relatório de 2017 da Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) diz que um quarto da riqueza está concentrada nas mãos de 1% da população enquanto a metade mais pobre detém apenas 2%. Para além das razões históricas coloniais, partilhadas por quase todos os países da América Latina, há uma herança mais recente. Com alguns remendos, o Chile tem a Constituição imposta por uma ditadura e que reflete muitos dos seus valores. Incluindo os valores que nortearam as suas políticas económicas. Tudo é privado: a educação, a saúde, a água (penso que é o único país do mundo) e o sistema de pensões – os trabalhadores depositam os seus descontos em contas individuais geridas por privados e os resultados têm sido tudo menos famosos. O Chile é o país mais neoliberal do mundo. Desafiando os que associam a dependência eterna ao banco, à seguradora e ao patrão à liberdade, o Chile é a prova histórica de que não há qualquer relação entre o neoliberalismo e a democracia. No Chile, o neoliberalismo é a mais sólida herança da ditadura. Aquela que nem a democracia conseguiu vencer.
Milton Friedman ainda tentou desafiar o quebra-cabeças que contrariava a propaganda, afirmando, sobre as reformas que ele e os seus “Chicago boys” defenderam e que Pinochet aplicou com mão de ferro, que “o verdadeiro milagre não foi essas reformas terem funcionado tão bem, foi uma junta militar estar disposta a fazê-lo”. Não havia qualquer contradição. E o casamento a que assistimos hoje entre a direita neoliberal e a autoritária, presente em duplas como a de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, é a prova disso. O autoritarismo é condição para lidar com os efeitos da destruição das almofadas que tornam o capitalismo compatível com a paz social e, por consequência, com a democracia.
Um grafitti nas ruas de Santiago diz: “O neolibarismo nasce e morre no Chile”. Lamentavelmente, acho que não morrerá lá. Mas é sintomático que esta revolta, que tem o neoliberalismo como único verdadeiro alvo, aconteça em democracia no lugar onde ele se impôs, com mão de ferro, tortura e assassínios, através de uma ditadura. Tem-se escrito e dito que a democracia liberal está em crise. É verdade. E há, como em todas as crises sistémicas, muitas causas que se cruzam. Mas ignorar os efeitos da desregulação económica e da destruição de políticas sociais é ignorar o que mais toca a vida das pessoas. Com uma agravante: o enfraquecimento do papel económico dos Estados resultou num enfraquecimento do seu papel político. Hoje, ele está mais frágil para se defender da revolta, venha ela de onde vier. E é por isso que Eduardo Bolsonaro, o tresloucado deputado filho do Presidente brasileiro, reagiu assim aos acontecimentos no Chile: “Não vamos deixar isso daí vir para cá. Se vier para cá, vai ter que se ver com a polícia. E se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a História se repetir.” É o que lhes resta: a ameaça do fuzil.
Na Europa, quem acredita na democracia tem outra resposta. Perceber que não há só uma crise da democracia liberal, que temos de combater. Há uma crise do neoliberalismo, que temos de consumar. Como? Através de um contrato social. A última vez que o percebemos foi depois da mais abjeta das guerras. Seria excelente não precisarmos de outra. O que precisamos é de restaurar a social-democracia. Só assim salvaremos a democracia.
O neoliberalismo nasceu no Chile e é o Chile que nos avisa que ele está a morrer. Salvemos a democracia com um golpe de misericórdia nessa doença que, desde os anos 70, agrava as desigualdades nas economias ocidentais, deslaça as nossas sociedades e enfraquece as nossas democracias. Enterremos de uma vez Thatcher, Pinochet e Reagan. Precisamos de um novo New Deal. E que desta vez também seja verde, para salvar o planeta.

domingo, 3 de novembro de 2019

Cumplicidades mil


Por
Dnotícias
03 Nov 2019

Continuemos com os olhos postos na dança de cadeiras

Há um novo governo desde o dia 15 de Outubro, mas passadas duas semanas (42 dias após as eleições) a impressão é de que não há um novo executivo, mas o de sempre. Com uma ligeiríssima, mas importante diferença: está mais pesado e mais caro ao erário. Não fosse a fulgurante dança das cadeiras nos lugares da administração pública e a sensação de marasmo acentuar-se-ia. Lugares que ainda nem foram ocupados pelos militantes designados dos partidos que partilham o poder. Depois do ‘sais daqui, mas vais para ali’, ninguém ainda foi empossado. Este governo dá-se ao luxo de esperar semanas para começar a discutir o seu programa no parlamento. Na República, o mega executivo de António Costa fê-lo em quatro dias. Por cá ‘nada de novo sobre a Terra’, que isto remedeia-se em gestão e em duodécimos.

Enquanto a classe política se entretém com o puzzle das nomeações, 
os problemas permanecem e agudizam-se.

O que temos assistido com a extracção de inertes de ribeiras e praias é um escândalo monumental, que já gerou – finalmente - uma investigação do Ministério Público e uma comissão parlamentar de inquérito. Ao que parece (entra pelos olhos dentro) é que a operação é feita à margem da lei, na sequência de anos e anos de prática consentida por uma fiscalização inexistente e dócil. Uma fiscalização que consubstancia a face visível do falhanço absurdo da administração regional, perante ilegalidades aparentemente consentidas. Subtraem-se pedras e areia, que são transportadas de um lado para outro, à vista de todos, em plena luz do dia e ninguém – até agora – questionou rigorosamente nada. 

Há coincidências difíceis de engolir, tão descaradas que são. A vontade política e a falta dela esbarram na evidência cúmplice, entre um poder político subjugado a um leque diversificado de interesses económicos, emergentes da ‘Madeira Nova’, erigida pelo PSD de Alberto João Jardim, durante as décadas de ouro da construção civil. 

A teia frutificou e laborou perante a complacência e o fechar de olhos da cúpula directiva da ilha. O tema é melindroso e quem conhece os seus meandros só fala perante a garantia de não ser identificado, porque sustentabilidade ambiental e património natural são conceitos para entreter nos períodos eleitorais.
Perante a evidência, denunciada pelo DIÁRIO uma dúzia de vezes, sobre a ilicitude praticada a céu aberto, que fez o governo regional? Diz que é preciso criar um “novo enquadramento jurídico”. O que Miguel Albuquerque não disse, junto à Ribeira da Madalena do Mar, provavelmente porque não sabe (?), é que já existem mecanismos legais suficientes para regular todo o sector. Neste ‘jogo’ complexo e milionário (convém não esquecer que uma mão lava a outra) parece que todos foram apanhados de surpresa! Agora já não há desculpas. Informação não falta. E pronto, enquanto se aguarda pelas decisões judiciais e parlamentares, continuemos com os olhos postos na dança de cadeiras, que o programa de governo só é debatido na segunda semana de Novembro.
Ilustração: Google Imagens.

sábado, 2 de novembro de 2019

48 Horas no Sistema de Saúde Inglês


Por estatuadesal
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 01/11/2019

Soube que estava em sarilhos. Saí de um restaurante na zona de Kings Cross e entrei na estação de metro. As imediações de St. Pancras e Kings Cross, um monturo nos anos do thatcherismo, são uma das zonas mais gentrificadas de Londres. Casas e escritórios caríssimos, arquitetura de ponta, torres de vidro e aço, a novíssima e monstruosa sede da Google a ser construída. Da construção emana o poder brilhante do futuro. Londres é uma cidade-estado, a Singapura dos Tories, mas ainda faz parte do Reino Unido, do empobrecido país dos nortes. Aqui, com as lojas de luxo e as marcas europeias chiques, às quais os ingleses reconhecem uma superioridade elegante, nada existe ou virá a existir que não seja de bom gosto e de bom preço. 


Os restaurantes, fusão criativa, com empregados esbeltos e clientes dessa população que só se costumava ver em Nova Iorque e LA. Nómadas digitais, novos empresários, a burguesia nacional e internacional viajada e bem empregada, qualificada, jovens e baby boomers que debicam vinhos franceses, americanos, italianos, neozelandeses, argentinos, israelitas e, sim, portugueses. Estive quase a pedir um Papa-Figos. Eu aprecio este mundo transversal, internacional, criativo, onde se ouve a babel das línguas e onde o talento tem importância. Nada de milionários, apenas profissionais ambiciosos que não são racistas nem puristas porque o mundo é o seu território. A espécie humana a viver bem sem fazer mal a ninguém. Saí do Coal Office, o restaurante era um antigo edifício industrial no tempo em que existia classe operária inglesa, a caminho do Gauguin na National. Chovia torrencialmente. Nas escadas rolantes do metro, um abismo de metal ensopado em água, escorreguei. Perna torcida e pé do avesso.
Amparada pelo meu filho, rumei ao Hospital Universitário perto de Kings Cross, onde costumo passar no autocarro quando vou ao Selfridges. Sempre o observei com atenção, a espiar o movimento da Urgência. Pior ou melhor? A transparência dos vidros dá para ver. Parecia-me muito decente.
Uma sala de espera com dezenas de pacientes esperando pacientemente. Todas as etnias e cores, um ou dois utentes de pele desmaiada e olho claro. Os coloridos são tão ingleses como estes, convém recordar. Quando se sustentam impérios onde o sol nunca se põe, a população não pode ser deitada ao mar. Inscrevi-me, não me pediram cartão europeu de saúde, mandaram-me esperar. Não residente no UK, certo. Quatro horas depois, fui inquirir. A perna doía prodigiosamente. A sala esvaziara, os comensais desandavam, novos comensais rodeavam-me. Deram-me Brufen e Paracetamol e disseram-me que estava nos três próximos. Mais um par de horas e nada. Inquiro de novo. Será hoje? Tom agressivo. Meia hora depois chamam-me. Paredes pintadas, boas instalações. Nada de corredores entulhados, nem macas a esmo, nem gente estafada. Enfermeiras conversam pelos cantos. Algumas portuguesas, decerto. Um médico de origem asiática, Paquistão ou Índia, atendeu-me. Raios X. Leitura dos raios X. Fratura múltipla. Tem de vir à Clínica da Fratura daqui a três dias para colocar uma bota de tala, porque agora vamos fazer metade do gesso para imobilizar. Será vista pelos ortopedistas. O seu país é o melhor país do mundo, disse-me no fim. Antes de entrar na sala do gesso, outro médico, de origem paquistanesa ou indiana, vem falar comigo. Vi os seus raios X e considero a cirurgia inevitável e a ser feita já. Fraturou vários ossos. A ortopedista vai falar consigo daqui a pouco. Veio a ortopedista, uma jovem médica, decerto estagiária. A operação é a única solução. Tudo se precipita. Tiram sangue para análises, deixamos o cateter para o soro, não deixamos, mais raios X, tensão medida, o melhor é ficar internada esta noite. Pergunto se não posso ir a casa, que não é longe, não vinha preparada. A ortopedista vai conferenciar com outro ortopedista no computador e já me dirá, mas o anestesista poderá vir às 5h ou 6h da manhã para discutir a anestesia e eu teria de estar no hospital a essa hora. Para a vaga. Uma injeção de anticoagulantes na barriga por causa das embolias. Será uma por dia, sem falta. Quando sair do hospital para casa, leva a receita e leva a medicação consigo. Mas... se volto de madrugada. Há aqui inconsistências. Tenho de preparar o meu internamento, preciso do computador. Vão ligar-lhe do hospital logo de manhã, depois da conferência ortopédica. Se as análises do sangue fossem anormais, ligaríamos durante a noite. Era um domingo. Aos fins de semana há menos médicos. Por esta altura, estava maravilhada com o NHS. Saí sem a medicação. Telefonei para o meu médico em Lisboa. Sim, se te operam já, melhor. E explicou as minudências. Riscos de embolia, edemas, etc. O médico que detetou a urgência cirúrgica deseja-me felicidades e diz que ficou contente por ter visto os meus exames. Cirurgia é a única solução. Não estará lá no domingo, quando eu entrar. Boa sorte.
Telefonam-me às 9h da manhã. Uma administrativa. Não a podemos operar. O sistema está cheio de emergências e temos de dar prioridade. Como é residente em Portugal, recomendamos que viaje para o seu país para se operar, a.s.a.p. Mas disseram-me que era urgente, entraria de madrugada. Sim, mas o serviço tem outras prioridades além da sua e tem a hipótese de se operar no seu país. Digo que não preparei as coisas, há aviões a tomar, há que avisar médicos que não me viram, tudo em menos de 24 horas. Pode dizer-me, se preferir operar-me aqui, quando o seria? Não lhe posso dar uma data, teria de ir aguardando dia após dia. Nenhuma ideia do dia. Incerto.

Tenho de ser operada com urgência, o edema, a embolia, a hemorragia, pois, não lhe posso adiantar mais nada. Regresse a Portugal. E a injeção? Não me deram a receita e a medicação. E os exames? Como ia ser internada, não os tenho. Venha ao hospital buscar a medicação, já não será observada por um médico. Regresse ao seu país.

Hospital de novo, a coxear nas canadianas. Na receção dizem-me que sou internacional. Onde está o meu seguro? Começo a berrar que eles ainda estão na União Europeia. A seguir, despejo uma torrente de argumentos que acabam com a ameaça de processo, linguagem jurídica complexa, nos anglo-saxónicos tem efeito seguro. Pedem logo desculpa, vão dar-me uma pulseira de prioridade. Não me podem dar a medicação e exames sem ser vista por um médico. Sorry. Mais umas horas de espera, o meu filho entra na unidade restrita e agarra um dos médicos do dia anterior, o que não tinha visto a necessidade da cirurgia. Pede-me desculpa das inconsistências do NHS. Diz-me para escrever uma carta e apresentar a reclamação. Porque foram rudes e isso afeta todo o sistema. Rudes? É esse o problema? Rudeza? Negaram-me tratamento. O NHS está muito sobrecarregado. Dá-me os exames, com ar pesaroso, depois de muita burocracia e vários impedimentos e uma conversa absurda sobre a proibida transmissão de dados para fora do UK. Tenho direito a um CD, peço a análise do sangue, dão a injeção, não a medicação. Tenho para 24 horas de efeito anticoagulante, por causa do avião. Tinham-me falado numa caixa de medicação, antes. Em Lisboa, trate do resto. Da ortopedista, nem sinais. Ou de um ortopedista. Fui expulsa do sistema.

Estou em Lisboa, a ser muito bem tratada pelos médicos portugueses. Sei que o nosso depauperado SNS, para o qual pago impostos, jamais faria isto a um cidadão britânico. O ‘Brexit’ já aqui está. 

O português com sotaque britânico que conduzia o Uber que me levou a casa, depois de 25 anos a trabalhar no país, mulher e filha com passaporte britânico, viu-lhe negado o pedido de residência fixa por causa de uns papéis em falta dos últimos seis meses. Fazem-lhe a vida negra.
No NHS, mal pus os olhos num “puro-sangue”. Médicos e utentes? Vi imigrantes e descendentes de imigrantes, com uma ou outra exceção. Quem vai limpar as latrinas dos ingleses? Os ‘brexiteiros’, espero. Vai fazer-lhes bem.