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sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Thatcher morreu, Reagan também e o Pinochet já não se sente lá muito bem


Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
05/11/2019

Vou dedicar-me, neste texto, ao que se passa no Chile e na Argentina. Mas quero deixar claro que não ignoro os acontecimentos recentes noutras paragens daquele continente. Sobre a tragédia venezuelana já escrevi inúmeras vezes. Sobre a Bolívia, tratarei noutro dia. Até porque nunca coloquei Evo Morales no mesmo saco que Maduro ou sequer Chávez. Morales vem de um movimento social e representa uma clivagem impossível de ignorar na Bolívia: a do povo indígena eternamente esquecido.


Nada tinha a apontar-lhe até cometer o grave erro de mudar a ConsTituição para conseguir um terceiro mandato e violá-la para ir ao quarto. Este é o problema histórico da esquerda latino-americana: os processos de democratização social chocarem com a dependência de homens salvadores, o que é o oposto da democratização política. Seja como for, as crises na Venezuela e na Bolívia resultam de soluções políticas com décadas, evidentemente desgastadas pelo tempo e por erros. Estes eram os últimos sobreviventes do domínio da esquerda na América Latina.
Em novembro de 2007, reuniram-se em Santiago, numa cimeira ibero-americana, Lula da Silva, Hugo Chávez, Evo Morales, Cristina Kirchner, Michelle Bachelet, Rafael Correa, Tabaré Vazquez, José Manuel Zelaya, Daniel Ortega e Alan García. Com alguma relevância política, só destoava o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. Um ano depois, juntou-se ao clube da esquerda latino-americana Fernando Lugo, do Paraguai. Doze anos depois, a era de Nestor e Cristina Kirchner chegou ao fim na Argentina (regressa agora de outra forma); Bachelet foi alternando com o direitista Sebastian Piñera no Chile, que o dirige agora; Lenin Moreno, o sucessor de Correa no Equador, afastou-se da esquerda para rumar para os braços dos Estados Unidos; os conservadores Juan Orlando Hernández e Martín Vizcarra governam as Honduras e o Peru; e o Presidente do Paraguai é Abdo Benítez, filho do antigo secretário particular do ditador Stroessner. E Jair Bolsonaro chegou ao poder no Brasil. Entre as quedas, contam-se as destituições ilegais de Fernando Lugo e Dilma Rousseff e o golpe militar nas Honduras. Mas, regra geral, foi o voto que os fez cair. Hoje, as exceções são El Salvador, Uruguai e México. E o Uruguai está tremido.
O padrão parecia tão claro que ninguém esperava que esta guinada à direita fosse perturbada tão rapidamente. Havia quem acreditasse que as experiências de esquerda poderiam ter servido de vacina. Pois parece que está a acontecer o oposto: são as experiências de direita, com soluções económicas cada vez mais radicais e urgentes para satisfazer que as apoia, que se degradam a uma velocidade estonteante.
A Argentina foi a primeira queda de um governo instalado por esta onda de direita que parecia estar a varrer a América Latina. Mauricio Marci devolveu o poder ao peronismo de esquerda, representado por Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Quando chegou ao poder, Marci reverteu o default da brutal dívida argentina, desenvolveu uma grande contrarreforma laboral, limitando a possibilidade de recurso à Justiça, e eliminou os subsídios à eletricidade, com efeitos devastadores. Nada disto impediu que a dívida externa aumentasse ainda mais. A economia degradou-se e a inflação tornou-se um problema grave de um governo que prometera inflação zero. Resumindo num só parágrafo, diria que estas são as razões aparentes para a sua derrota.
Mas a vitória da esquerda argentina é especialmente perturbante porque vence um duplo cerco dos mercados. Um cerco de apoio a Marci e um cerco de combate a Fernández. Sem que os resultados económicos do primeiro o justifiquem. Primeiro, através de um empréstimo inédito do FMI: 50 mil milhões de dólares que depois subiram para 57 mil milhões. Numa coincidência quase absoluta com o calendário eleitoral, reservando grande parte das transferências para o período próximo das últimas eleições. Mas inédita também porque parte destas transferências serviram para sustentar a cotação do peso e financiar o tipo de políticas sociais que o FMI costuma condenar. O objetivo foi evidente: salvar um aliado. E mal a vitória de Alberto Fernández se começou a tornar evidente, logo regressou um discurso público que exigia sinais de austeridade e contenção dos futuros governantes. Aqueles que não foram exigidos a quem contou com um forte apoio. Mesmo assim, nada resultou. Como escreveu o analista político Mario Wainfeld, no jornal “Página 12”, “às vezes os cidadãos pronunciam-se como se tivessem conjurado”. Os argentinos queriam que Marci caísse. Assim como os chilenos querem que Piñera caia.
Se a Argentina foi a primeira queda, o Chile é um caso muito mais surpreendente, porque acontece um ano e meio depois de a direita regressar ao poder. Tudo rebentou poucas semanas depois de o Chile ter sido descrito por Sebastian Piñera como um “oásis”. Como é evidente, não é o aumento de quatro cêntimos da tarifa do metropolitano de Santiago que explica a explosão de revolta. Terá sido um pretexto há muito esperado. O preço da habitação aumentou 150% na última década, enquanto os salários aumentaram 25%. O salário mínimo anda pelos 370 euros e 70% dos trabalhadores recebem menos de 680 euros. Os salário dos políticos é 33 vezes mais alto do que o salário mínimo. O Chile tem números económicos de primeiro mundo e serviços públicos de terceiro mundo. Um dos piores sistemas de educação da América do Sul, num país com muito menos razões históricas do que outros para que isso aconteça. Um péssimo sistema de saúde infantil. Pensões muitíssimo baixas num sistema que está há muito tempo em crise, onde 80% recebem menos do que o salário mínimo.
Tudo isto se resume numa frase: o grande problema do Chile é a desigualdade. É, de longe, o país mais desigual da OCDE. O relatório de 2017 da Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) diz que um quarto da riqueza está concentrada nas mãos de 1% da população enquanto a metade mais pobre detém apenas 2%. Para além das razões históricas coloniais, partilhadas por quase todos os países da América Latina, há uma herança mais recente. Com alguns remendos, o Chile tem a Constituição imposta por uma ditadura e que reflete muitos dos seus valores. Incluindo os valores que nortearam as suas políticas económicas. Tudo é privado: a educação, a saúde, a água (penso que é o único país do mundo) e o sistema de pensões – os trabalhadores depositam os seus descontos em contas individuais geridas por privados e os resultados têm sido tudo menos famosos. O Chile é o país mais neoliberal do mundo. Desafiando os que associam a dependência eterna ao banco, à seguradora e ao patrão à liberdade, o Chile é a prova histórica de que não há qualquer relação entre o neoliberalismo e a democracia. No Chile, o neoliberalismo é a mais sólida herança da ditadura. Aquela que nem a democracia conseguiu vencer.
Milton Friedman ainda tentou desafiar o quebra-cabeças que contrariava a propaganda, afirmando, sobre as reformas que ele e os seus “Chicago boys” defenderam e que Pinochet aplicou com mão de ferro, que “o verdadeiro milagre não foi essas reformas terem funcionado tão bem, foi uma junta militar estar disposta a fazê-lo”. Não havia qualquer contradição. E o casamento a que assistimos hoje entre a direita neoliberal e a autoritária, presente em duplas como a de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, é a prova disso. O autoritarismo é condição para lidar com os efeitos da destruição das almofadas que tornam o capitalismo compatível com a paz social e, por consequência, com a democracia.
Um grafitti nas ruas de Santiago diz: “O neolibarismo nasce e morre no Chile”. Lamentavelmente, acho que não morrerá lá. Mas é sintomático que esta revolta, que tem o neoliberalismo como único verdadeiro alvo, aconteça em democracia no lugar onde ele se impôs, com mão de ferro, tortura e assassínios, através de uma ditadura. Tem-se escrito e dito que a democracia liberal está em crise. É verdade. E há, como em todas as crises sistémicas, muitas causas que se cruzam. Mas ignorar os efeitos da desregulação económica e da destruição de políticas sociais é ignorar o que mais toca a vida das pessoas. Com uma agravante: o enfraquecimento do papel económico dos Estados resultou num enfraquecimento do seu papel político. Hoje, ele está mais frágil para se defender da revolta, venha ela de onde vier. E é por isso que Eduardo Bolsonaro, o tresloucado deputado filho do Presidente brasileiro, reagiu assim aos acontecimentos no Chile: “Não vamos deixar isso daí vir para cá. Se vier para cá, vai ter que se ver com a polícia. E se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a História se repetir.” É o que lhes resta: a ameaça do fuzil.
Na Europa, quem acredita na democracia tem outra resposta. Perceber que não há só uma crise da democracia liberal, que temos de combater. Há uma crise do neoliberalismo, que temos de consumar. Como? Através de um contrato social. A última vez que o percebemos foi depois da mais abjeta das guerras. Seria excelente não precisarmos de outra. O que precisamos é de restaurar a social-democracia. Só assim salvaremos a democracia.
O neoliberalismo nasceu no Chile e é o Chile que nos avisa que ele está a morrer. Salvemos a democracia com um golpe de misericórdia nessa doença que, desde os anos 70, agrava as desigualdades nas economias ocidentais, deslaça as nossas sociedades e enfraquece as nossas democracias. Enterremos de uma vez Thatcher, Pinochet e Reagan. Precisamos de um novo New Deal. E que desta vez também seja verde, para salvar o planeta.

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