Por
José Sócrates,
in Expresso Diário,
19/02/2020
O surgimento da eutanásia no debate político segue-se a um longo período em que estes dilacerantes dilemas morais foram sendo resolvidos na intimidade familiar e com recurso às insubstituíveis qualidades do amor sensível e bondoso. Nessas alturas era preciso enfrentar, com coragem e em silêncio, as pressões e ameaças vindas do Estado ou da comunidade exterior à família. Agora, com o avanço da ciência médica e o incessante aumento da esperança de vida, são trazidos ao conhecimento público múltiplos casos em que parece cada vez mais evidente que o nosso “direito- a–viver” se transformou lentamente num “dever-de-viver” e nalguns casos numa verdadeira “punição-de-viver”. Em 2002 a Holanda foi o primeiro país a despenalizar esta prática, a que se seguiram a Bélgica, em 2003, e, mais tarde, o Luxemburgo, em 2008. Agora, em 2020, no espaço de duas semanas, Portugal e Espanha juntam-se ao grupo inicial, discutindo leis semelhantes às daqueles países. O movimento europeu parece assim inclinar-se, em definitivo, para o lado da autonomia do doente e pela expulsão do Estado da relação com quem age para ajudar alguém a morrer em determinadas e muito precisas condições.
Os projetos de lei que vão ser votados no Parlamento são todos eles respeitantes à eutanásia voluntária, isto é à despenalização da ação médica nos casos de doentes que reúnem, no que é essencial, quatro características - doença comprovadamente incurável, irreversível e mortal; sofrimento físico e mental insuportável; informação e consciência plena da sua condição e, finalmente, pedidos reiterados (não apenas em momentos de desespero) para que lhe antecipem a morte. Nestes casos – e só nestes casos - o Estado deixará de processar judicialmente, como até aqui fazia, o médico que, perante, como disse, uma situação clínica incurável e de grande sofrimento, atue de acordo com o desejo do doente, acabando com a sua aflição. É este o ponto que as novas leis mudam: o Estado deixa de poder, através da ameaça e da força da sua ação penal, impor uma vida de suplício a alguém que considera esse tormento insuportável.
Para quem olha para o tema com um mínimo de sensibilidade não pode deixar de reconhecer que soa um pouco estranho falar de um direito a morrer. Se na civilização ocidental tanto lutámos pelo direito à vida e se esse foi desde sempre o direito inicial donde declinámos os direitos fundamentais constitucionais, custa agora pensar na morte como algo sobre a qual podemos também fazer reivindicações de direitos que antes não eram concebíveis. Todavia, todos os que estão de boa-fé no debate reconhecem que as novas leis de eutanásia voluntária se fundam no princípio de respeito pela autonomia individual, valor filosófico com fortes tradições no mundo ocidental. Por outro lado, ela retoma também o caminho, já há muito iniciado, de tornar a prática médica menos paternalista e mais respeitadora da vontade e do desejo do doente, desde que esta se expresse de forma livre e sem condicionamento. Finalmente, o que esta lei faz – e que explica a azeda disputa política que está longe de terminar - é respeitar o princípio de neutralidade ética do Estado, libertando–o de determinadas concepções religiosas ou morais que, invocando a sua condição maioritária, devam ser seguidas não apenas pelos seus crentes, mas também por todos os cidadãos, impondo-as abusivamente. Como aconteceu antes nas discussões sobre o aborto e sobre o casamento homossexual, a questão política central é colocar o Estado ao serviço da proteção do pluralismo moral que se exprime na salvaguarda de todos os estilos de vida pessoais desde que conformes à lei.
Um dos pontos mais azedos do debate, que é normalmente convocado pelos opositores à nova lei, é o argumento da rampa deslizante, que corre mais ou menos assim: se permitirmos a eutanásia voluntária, acabaremos por permitir a eliminação dos mais velhos, dos pobres e de todas as categorias da população sobre as quais as autoridades de turno venham a decidir que as respetivas vidas não merecem ser vividas. Aprovada a eutanásia voluntária, ela acabará por abrir a porta, como diz a igreja católica, a uma cultura de morte. O argumento, considerando os cuidados com que as leis foram elaboradas, parece muito injusto. Na verdade, a legislação procura responder a todas as preocupações levantadas no já longo debate que se seguiu à primeira aprovação da lei na Holanda, assegurando que a eutanásia só seja praticada se:
a) for explícita e reiteradamente solicitada;
b) não deixe qualquer dúvida quanto ao desejo do doente ;
c) tenha garantias de que essa decisão será informada, livre e definitiva;
d) o estado de saúde seja irreversível;
e) o sofrimento físico ou mental seja insuportável.
Por outro lado, nada na experiência desses países nos assegura que houve “derivas” que levassem a mortes indesejadas fora dos estritos parâmetros exigidos pelas leis em vigor. No entanto, a ninguém, dos que se opõem à aprovação desta lei, ocorreu que o argumento da rampa deslizante pode também ser invocado em sentido contrário: mantendo a eutanásia voluntária como crime não estaremos também a abrir a porta ao regresso da criminalização do suicida, à expropriação dos bens da sua família, ou ao seu banimento dos cemitérios cristãos?
Por outro lado, compreende-se mal que se atribua valor diferente ao pedido para morrer daquele que se dá à escolha de viver (como é flagrante no parecer do Conselho de Ética). A vontade destes últimos é tomada à letra imediatamente e sem mais exigências; os pedidos dos outros, daqueles que formulam o desejo de não querer mais viver em circunstâncias que julgam indignas ou insuportáveis, são encarados com suspeição, carecendo de interpretação psicológica e análises detalhadas das relações e afetos do paciente. Para além da confirmação da vontade, que deve ser feita com perguntas espaçadas no tempo de modo a ter-se certeza sobre a decisão, tudo o mais revela um paternalismo insuportável, em particular quando se afirma que essas dolorosas decisões pessoais devem ser “ entendidas como pedidos de ajuda”. Quando se fala de autonomia, é mesmo disto que estamos a falar - de levar a sério os pedidos das pessoas que sofrem.
Pondo de parte os argumentos radicais, que em pouco contribuem para o esclarecimento do que está em causa, as experiências dos países que estiveram na vanguarda da despenalização evidenciam que, apesar do investimento público contínuo na melhoria e no desenvolvimento dos cuidados paliativos que permitem aliviar a dor a doentes incuráveis, continua a haver casos em que a obediência à vontade expressa pelo doente constitui a única forma de respeitar a sua autonomia e de acabar com o sofrimento atroz. Nestes casos – e, mais uma vez, só nestes casos específicos - a eutanásia voluntária pode constituir a única possibilidade de um ato de empatia, de humanidade e de amor compassivo para com o nosso semelhante.
Ericeira, 17 de fevereiro de 2020
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